Immanuel Kant – Sobre a Pedagogia Índice: Introdução Sobre a Educação Física Sobre a Educação Prática INTRODUÇÃO O homem é a única criatura que precisa ser educada. Por educação entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina e a instrução com a formação. Consequentemente, o homem é infante, educando e discípulo. Os animais, logo que começam a sentir alguma força, usam-na com regularidade, isto é, de tal maneira que não se prejudicam a si mesmos. É de fato maravilhoso ver, por exemplo, como os filhotes de andorinhas, apenas saídos do ovo e ainda cegos, sabem dispor-se de modo que seus excrementos caiam fora do ninho. Os animais, portanto, não precisam ser cuidados, no máximo precisam ser alimentados, aquecidos, guiados e protegidos de algum modo. A maior parte dos animais requer nutrição, mas não requer cuidados. Por cuidados entendem-se as precauções que os pais tomam para impedir que as crianças façam uso nocivo de suas forças. Se, por exemplo, um animal, ao vir ao mundo, gritasse, como fazem os bebês, tornar-se-ia com certeza presa dos lobos e de outros animais selvagens atraídos pelos seus gritos. A disciplina transforma a animalidade em humanidade. Um animal é por seu próprio instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a ele tomou por ele antecipadamente todos os cuidados necessários. Mas o homem tem necessidade de sua própria razão. Não tem instinto, e precisa formar por si mesmo o projeto de sua conduta. Entretanto, por ele não ter a capacidade imediata de realizá-lo, mas vir ao mundo em estado bruto, outros devem fazê-lo por ele. A espécie humana é obrigada a extrair de si mesma pouco a pouco, com suas próprias forças, todas as qualidades naturais, que pertencem à humanidade. Uma geração educa a outra. Pode-se buscar o começo da humanidade num estado bruto ou num estado perfeito de civilização. Mas, neste último caso, é necessário admitir que o homem tenha caído depois no estado selvagem e no estado de natureza rude. A disciplina é o que impede ao homem de desviar-se do seu destino, de desviar-se da humanidade, através das suas inclinações animais. Ela deve, por exemplo, contê-lo, de modo que não se lance ao perigo como um animal feroz, ou como um estúpido. A disciplina, porém, é puramente negativa, porque é o tratamento através do qual se tira do homem a sua selvageria; a instrução, pelo contrário, é a parte positiva da educação. A selvageria consiste na independência de qualquer lei. A disciplina submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a força das próprias leis. Mas isso deve acontecer bem cedo. Assim, as crianças são mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas tranquilamente e a obedecer pontualmente àquilo que lhes é mandado, a fim de que no futuro elas não sigam de fato e imediatamente cada um de seus caprichos. Mas o homem é tão naturalmente inclinado à liberdade que, depois que se acostuma a ela por longo tempo, a ela tudo sacrifica. Ora, esse é o motivo preciso, pelo qual é conveniente recorrer cedo à disciplina; pois, de outro modo, seria muito difícil mudar depois o homem. Ele seguiria, então, todos os seus caprichos. Do mesmo modo, pode-se ver que os selvagens jamais se habituam a viver como os europeus, ainda que permaneçam por muito tempo a seu serviço. O que neles não deriva, como opinam Rousseau e outros, de uma nobre tendência à liberdade, mas de uma certa rudeza, uma vez que o animal ainda não desenvolveu a humanidade em si mesmo numa certa medida. Assim, é preciso acostumá-lo logo a submeter-se aos preceitos da razão. Quando se deixou o homem seguir plenamente a sua vontade durante toda a juventude e não se lhe resistiu em nada, ele conserva certa selvageria por toda a vida. Tampouco uma afeição materna exagerada é útil aos jovens, uma vez que mais tarde lhes surgirão obstáculos de todas as partes e receberão golpes de todos os lados, logo que tomarem parte nos afazeres do mundo. Um erro, no qual se cai comumente na educação dos grandes, é o de não se lhes opor nenhuma resistência durante a juventude, porque estão destinados a comandar. No homem, a brutalidade requer polimento por causa de sua inclinação à liberdade; no animal bruto, pelo contrário, isso não é necessário, por causa do seu instinto. O homem tem necessidade de cuidados e de formação. A formação compreende a disciplina e a instrução. Nenhum animal, quanto saibamos, necessita desta última, uma vez que nenhum deles aprende dos seus ascendentes qualquer coisa, a não ser aqueles pássaros que aprendem a cantar. De fato, os pássaros são treinados no canto por seus genitores; e é admirável ver, como se fosse numa escola, os pais cantarem com todas as forças diante dos filhotes, enquanto estes se esforçam por tirar os mesmos sons das suas pequenas goelas. Para convencer-se de que os pássaros não cantam por instinto, mas que aprendem a cantar, vale a pena fazer a prova: tire dos canários a metade dos ovos e os substitua por ovos de pardais; ou também misture aos canarinhos filhotes de pardais bem novinhos, Coloque-os num cômodo onde não possam escutar os pardais de fora; eles aprenderão dos canários o canto e assim teremos pardais cantantes. É estupendo o fato de que toda espécie de pássaros conserva em todas as gerações certo canto principal; assim, a tradição do canto é a mais fiel do mundo. O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz. Note-se que ele só pode receber tal educação de outros homens, os quais a receberam igualmente de outros. Portanto, a falta de disciplina e de instrução em certos homens os torna mestres muito ruins de seus educandos, Se um ser de natureza superior tornasse cuidado da nossa educação, ver-se-ia, então, o que poderíamos nos tornar. Mas, assim como, por um lado, a educação ensina alguma coisa aos homens e, por outro lado, não faz mais que desenvolver nele certas qualidades, não se pode saber até aonde nos levariam as nossas disposições naturais. Se pelo menos fosse feita uma experiência com a ajuda dos grandes e reunindo as forças de muitos, isso solucionaria a questão de se saber até aonde o homem pode chegar por esse caminho. Uma coisa, porém, tão digna de observação para uma mente especulativa quanto triste para o amigo da humanidade é ver que a maior parte dos grandes não cuida senão de si mesma e não toma parte nas interessantes experiências sobre a educação, para fazer avançar algum passo em direção à perfeição da natureza humana. Não há ninguém que, tendo sido abandonado durante a juventude, seja capaz de reconhecer na sua idade madura em que aspecto foi descuidado, se na disciplina ou na cultura (pois que assim pode ser chamada a instrução). Quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não tem disciplina ou educação é um selvagem. A falta de disciplina é um mal pior que falta de cultura, pois esta pode ser remediada mais tarde, ao passo de que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina. Talvez a educação se torne sempre melhor e cada uma das gerações futuras dê um passo a mais em direção ao aperfeiçoamento da humanidade, uma vez que o grande segredo da perfeição da natureza humana se esconde no próprio problema da educação. A partir de agora, isso pode acontecer. De fato, atualmente se começa a julgar com exatidão e a ver de modo claro o que propriamente pertence a uma boa educação. É entusiasmante pensar que a natureza humana será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educação, e que é possível chegar a dar àquela forma, a qual em verdade convém à humanidade. Isso abre a perspectiva para uma futura felicidade da espécie humana. O projeto de uma teoria da educação é um ideal muito nobre e não faz mal que não possamos realizá-lo. Não podemos considerar uma ideia como quimérica e como um belo sonho só porque se interpõem obstáculos à sua realização. Uma ideia não é outra coisa senão o conceito de uma perfeição que ainda não se encontra na experiência. Tal, por exemplo, seria a ideia de uma república perfeita, governada conforme as leis da justiça. Dir-se-á, entretanto, que é impossível? Em primeiro lugar, basta que a nossa ideia seja autêntica; em segundo lugar, que os obstáculos para efetuá-la não sejam absolutamente impossíveis de superar. Se, por exemplo, todo mundo mentisse, o dizer a verdade seria por isso mesmo uma quimera? A ideia de uma educação que desenvolva no homem todas as suas disposições naturais é verdadeira absolutamente. Com a educação presente, o homem não atinge plenamente a finalidade da sua existência. Na verdade, quanta diversidade no modo de viver ocorre entre os homens! Entre eles não pode acontecer uma uniformidade de vida, a não ser na medida em que ajam segundo os mesmos princípios, e seria necessário que esses princípios se tornassem como que outra natureza para eles. Podemos trabalhar num esboço de uma educação mais conveniente e deixar indicações aos pósteros, os quais poderão pô-las em prática pouco a pouco. Vê-se, por exemplo, nas flores chamadas "orelhas de urso" que, quando as arrancamos pela raiz, têm todas a mesma cor; quando, ao invés, plantamos suas sementes, obtemos cores diferentes e variadíssimas. A natureza, portanto, depôs nelas certos germes da cor e, para desenvolvê-los, basta semear e transplantar de modo conveniente estas flores. Acontece algo semelhante com o homem. Há muitos germes na humanidade e toca a nós desenvolver em proporção adequada as disposições naturais e desenvolver a humanidade a partir dos seus germes e fazer com que o homem atinja a sua destinação. Os animais cumprem o seu destino espontaneamente e sem o saber. O homem, pelo contrário, é obrigado a tentar conseguir o seu fim; o que ele não pode fazer sem antes ter dele um conceito. O indivíduo humano não pode cumprir por si só essa destinação. Se admitirmos um primeiro casal, realmente educado, do gênero humano, é preciso saber também de que modo ele educou os seus filhos. Os primeiros genitores dão a seus filhos um primeiro exemplo; estes o imitam e assim se desenvolvem algumas disposições naturais, Mas não podem todos ser educados desse modo, uma vez que as crianças veem os exemplos ocasionalmente. Normalmente os homens não tinham ideia alguma da perfeição de que a natureza humana é capaz. Nós mesmos ainda não a temos em toda a sua pureza. É certo igualmente que os indivíduos, ao educarem seus filhos, não poderão jamais fazer que estes cheguem a atingir a sua destinação. Essa finalidade, pois, não pode ser atingida pelo homem singular, mas unicamente pela espécie humana. A educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações. Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações precedentes, está sempre melhor aparelhada para exercer uma educação que desenvolva todas as disposições naturais na justa proporção e de conformidade com a finalidade daquelas, e, assim, guie toda a humana espécie a seu destino. A Providência quis que o homem extraísse de si mesmo o bem e, por assim dizer, desse modo lhe fala: "Entra no mundo. Coloquei em ti toda espécie de disposições para o bem. Agora compete somente a ti desenvolvê-las e a tua felicidade ou a tua infelicidade depende de ti". O homem deve, antes de tudo, desenvolver as suas disposições, para o bem; a Providência não as colocou nele prontas; são simples disposições, sem a marca distintiva da moral. Tornar-se melhor, educar-se e,se se é mau, produzir em si a moralidade: eis o dever do homem. Desde que se reflita detidamente a respeito, vê-se o quanto é difícil. A educação, portanto, é o maior e o mais árduo problema que pode ser proposto aos homens. De fato, os conhecimentos dependem da educação e esta, por Sua vez, depende daqueles. Por isso, a educação não poderia dar um passo à frente a não ser pouco a pouco, e somente pode surgir um conceito da arte de educar na medida em que cada geração transmite suas experiências e seus conhecimentos à geração seguinte, a qual lhes acrescenta algo de seu e os transmite à geração que lhe segue. Que grande cultura e que experiência, portanto, esse conceito supõe? Na verdade, tal conceito não poderia ter surgido senão muito tarde e nós mesmos ainda não o elevamos ao seu mais alto grau de pureza. Deve a educação do indivíduo imitar a cultura que a humanidade em geral recebe das gerações anteriores? Entre as descobertas humanas há duas dificílimas, e são: a arte de governar os homens e a arte de educá-los. Na verdade, ainda persistem Controvérsias sobre esses assuntos. Ora, de onde começaríamos a desenvolver as disposições naturais dos homens? Deveremos começar pelo estado rude ou pelo estado já culto? Não é fácil conceber um desenvolvimento, partindo do estado rude (daí também a dificuldade de formar uma ideia do primeiro homem); e vemos que, sempre que se partiu desse estado, o homem sempre recaiu na rudeza e novamente se levantou a partir daí. Até nos povos bastantes civilizados reencontramos ausência de limites para a rudeza, o que é atestado pelos mais antigos monumentos escritos que nos foram legados - e que grau de cultura a escrita já não supõe? -, de tal modo que se poderia propor a invenção da escrita como o começo do mundo com respeito à civilização. Uma vez que as disposições naturais do ser humano não se desenvolvem por si mesmas, toda educação é uma arte. A natureza não depositou nele nenhum instinto para essa finalidade. A origem da arte da educação, assim como o seu progresso, é: ou mecânica, ordenada sem plano conforme as circunstâncias, ou raciocinada. A arte da educação não é mecânica senão em certas oportunidades, em que aprendemos por experiência se uma coisa é prejudicial ou útil ao homem. Toda arte desse tipo, a qual fosse puramente mecânica, conteria muitos erros e lacunas, pois que não obedeceria a plano algum. A arte da educação ou pedagogia deve, portanto, ser raciocinada, se ela deve desenvolver a natureza humana de tal modo que esta possa conseguir o seu destino. Os pais, os quais já receberam certa educação, são exemplos pelos quais os filhos se regulam. Mas, se estes devem tornar-se melhores, a pedagogia deve tornar-se um estudo; de outro modo, nada se poderia dela esperar e a educação seria confiada a pessoas não educadas corretamente. É preciso colocar a ciência em lugar do mecanicismo, no que tange à arte da educação; de outro modo, esta não se tornará jamais um esforço coerente; e uma geração poderia destruir tudo o que outra anterior tivesse edificado. Um princípio de pedagogia, o qual mormente os homens que propõem planos para a arte de educar deveriam ter ante os olhos, é: não se deve educar as crianças segundo o presente estado da espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a ideia de humanidade e da sua inteira destinação, Esse princípio é da máxima importância. De modo geral, os pais educam seus filhos para o mundo presente, ainda que seja corrupto. Ao contrário, deveriam dar-lhes uma educação melhor, para que possa acontecer um estado melhor no futuro. Mas aqui se deparam dois obstáculos: os pais não se preocupam ordinariamente senão com uma coisa, isto é, que seus filhos façam uma boa figura no mundo; e os príncipes consideram os próprios súditos apenas como instrumento para os seus propósitos. Os pais cuidam da casa, os príncipes, do Estado. Uns e outros deixam de se propor como fim último o bem geral e a perfeição a que está destinada a humanidade e para a qual esta tem as disposições. O estabelecimento de um projeto educativo deve ser executado de modo cosmopolita. Mas o bem geral é uma ideia que pode tornar-se prejudicial ao nosso bem particular? Nunca! Já que, ainda que pareça que lhe devamos sacrificar alguma coisa, na verdade trabalhamos desse modo melhor para o nosso estado presente. E, então, quantas consequências nobres se seguem! Uma boa educação é justamente a fonte de todo bem neste mundo. Os germes que são depositados no homem devem ser desenvolvidos sempre mais. Na verdade, não há nenhum princípio do mal nas disposições naturais do ser humano. A única causa do mal consiste em não submeter à natureza a normas. No homem não há germes, senão para o bem. Assim sendo, de quem deve provir o melhoramento do estado social? Dos príncipes, ou dos súditos, no sentido de que estes se aperfeiçoem antes por si mesmos e façam meio caminho para ir ao encontro de bons governos? Se, pelo contrário, esse aperfeiçoamento deve partir dos príncipes, então, comece-se por melhorar a sua educação; esta sempre teve graves erros, uma vez que não resistiu jamais aos príncipes durante a sua juventude. Uma árvore que permanece isolada no meio do campo não cresce direito e expande longos galhos; pelo contrário, aquela que cresce no meio de uma floresta cresce ereta por causa da resistência que lhe opõem as outras árvores, e, assim, busca por cima o ar e o Sol. Com os príncipes acontece o mesmo. Mais vale que sejam sempre educados por algum dos seus súditos do que pelos seus pares. Não se pode esperar que o bem venha do alto, a não ser no caso em que lá a educação seja primorosa. Aqui é necessário, portanto, contar mais com os esforços Particulares do que com a ajuda dos príncipes, como julgaram Basedow e outros; uma vez que a experiência ensina que os príncipes, para atingir seus objetivos, se preocupam não com o bem do mundo, mas com o bem do seu Estado. Se prestam auxílio à educação com dinheiro, reservam-se o direito de estabelecer o plano que lhes convém. O mesmo diga-se de tudo aquilo que diz respeito à cultura do espírito humano e ao incremento dos conhecimentos humanos. Estes dois resultados não são conseguidos pelo poder e pelo dinheiro, mas são no máximo por eles facilitados. Na verdade poderiam fazê-lo, se o Estado não arrecadasse impostos unicamente destinados ao interesse do seu erário. Nem mesmo as academias produziram estes resultados, e hoje em dia, mais que nunca, não se vislumbra o menor sinal de que essas os produzirão. A direção das escolas deveria, portanto, depender da decisão de pessoas competentes e ilustradas. Toda cultura começa pelas pessoas privadas e depois, a partir destas, se difunde. A natureza humana pode aproximar-se pouco a pouco do seu fim apenas através dos esforços das pessoas dotadas de generosas inclinações, as quais se interessam pelo bem da sociedade e estão aptas para conceber como possível um estado de coisas melhor no futuro. Entretanto, alguns poderosos consideram, de certo modo, o seu povo como uma parte do reino animal e têm em mente apenas a sua multiplicação. No máximo desejam que eles tenham certo aumento de habilidade, mas unicamente com a finalidade de poder aproveitar-se dos próprios súditos como instrumentos mais apropriados aos seus desígnios. As pessoas particulares devem em primeiro lugar estar atentas à finalidade da natureza, mas devem, sobretudo, cuidar do desenvolvimento da humanidade, e fazer com que ela se torne não somente mais hábil, mas ainda mais moral e, por último - coisa muito mais difícil -, empenhar-se em conduzir a posteridade a um grau mais elevado do que elas atingiram. Na educação, o homem deve, portanto: 1. Ser disciplinado. Disciplinar quer dizer: procurar impedir que a animalidade prejudique o caráter humano, tanto no indivíduo como na sociedade. Portanto, a disciplina consiste em domar a selvageria. 2. Tornar-se culto. A cultura abrange a instrução e vários conhecimentos. A cultura é a criação da habilidade e esta é a posse de uma capacidade condizente com todos os fins que almejamos. Ela, portanto, não determina por si mesma nenhum fim, mas deixa esse cuidado às circunstâncias. Algumas formas de habilidade são úteis em todos os casos, por exemplo, o ler e o escrever; outras são boas só em relação a certos fins, por exemplo, a música, para nos tornar queridos. A habilidade é de certo modo infinita, graças aos muitos fins. 3. A educação deve também cuidar para que o homem se torne prudente, que ele permaneça em seu lugar na sociedade e que seja querido e tenha influência. A essa espécie de cultura pertence aquela chamada propriamente de civilidade. Esta requer certos modos corteses, gentileza e a prudência de nos servirmos dos outros homens para os nossos fins. Ela se regula pelo gosto mutável de cada época. Assim, prezavam-se, faz já alguns decênios, as cerimônias sociais. 4. Deve, por fim, cuidar da moralização. Na verdade, não basta que o homem seja capaz de toda sorte de fins; convém também que ele consiga a disposição de escolher apenas os bons fins. Bons são aqueles fins aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um. O homem pode ser ou treinado, disciplinado, instruído, mecanicamente, ou ser em verdade ilustrado. Treinam-se os cães e os cavalos; e também os homens podem ser treinados. (Tal palavra, em alemão, é derivada do inglês, to dress, "vestir". Daí se origina também Dresskammer, "lugar onde os pregadores trocam as vestes", e não Trostkammer.) Entretanto, não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam a pensar. Devem-se observar os princípios dos quais todas as ações derivam. Fica claro, portanto, quantas coisas uma verdadeira educação requer! Contudo, na educação privada, o quarto ponto - que é o mais importante - é, de modo geral, descuidado, pois que ensinamos às crianças aquilo que julgamos essencial e deixamos a moral para o pregador. Mas como é infinitamente importante ensinar às crianças a odiar o vício por virtude, não pela simples razão de que Deus o proibiu, mas por ser desprezível por si mesmo! De outro modo, elas pensariam facilmente que o vício poderia ser praticado e que seria permitido, se Deus não o houvesse proibido, e que Deus bem poderia fazer uma exceção em seu favor. Deus é o ser soberanamente santo e não quer senão o que é bom, e exige que pratiquemos a virtude pelo seu valor intrínseco e não porque Ele o ordena. Vivemos em uma época de disciplina, de cultura e de civilização, mas ela ainda não é a da verdadeira moralidade. Nas condições atuais pode dizer-se que a felicidade dos Estados cresce na mesma medida que a infelicidade dos homens. E não se trata ainda de saber se seríamos mais felizes no estado de barbárie, no qual não existiria toda essa nossa cultura, do que no atual estado. De fato, como poderíamos tomar os homens felizes, se não os tomamos morais e sábios? Desse modo, a maldade não será diminuída. É necessário fundar escolas experimentais antes de poder criar escolas normais. A educação e a instrução não devem ser puramente mecânicas, mas devem apoiar-se em princípios. Entretanto, não devem fundar-se no raciocínio puro, mas, num certo sentido, também no mecanicismo. A Áustria não tem quase senão escolas normais, instituídas segundo um propósito contra o qual se levantaram muitas objeções, com fundamento, e ao qual se reprochava sobretudo um mecanicismo cego. Todas as outras escolas deviam regular-se por aquelas e chegava-se a recusar promoção a quem não as havia frequentado. Tais prescrições demonstram com quanta influência o governo se imiscui em certos assuntos; e não se pode chegar a nada de bom com tais coações. Crê-se geralmente que não é preciso fazer experiência em assuntos educacionais e que se pode julgar unicamente com a razão se uma coisa será boa ou má. Quanto a isso erra-se muito e a experiência nos ensina que as nossas tentativas produziram de fato resultados opostos àqueles que esperávamos. Vê-se, pois, que, sendo nesse assunto necessária a experiência, nenhuma geração pode criar um modelo completo de educação. A única escola experimental que até agora começou de algum modo a trilhar esse caminho foi o Instituto de Dessau. Apesar dos muitos defeitos que se lhe podem assacar, defeitos que se encontram em todas as obras pioneiras, cabe-lhe essa glória: ele não cessou de fazer novas tentativas. De certo modo, essa foi a única escola em que os mestres tiveram a liberdade de trabalhar segundo seus próprios métodos e intentos, e na qual estiveram unidos entre si e mantiveram relações com todos os sábios da Alemanha. A educação abrange os cuidados e a formação. Esta é: 1. Negativa, ou seja, disciplina, a qual impede os defeitos; 2. Positiva, isto é, instrução e direcionamento e, sob esse aspecto, pertence à cultura. O direcionamento é a condução na prática daquilo que foi ensinado. Daqui nasce a diferença entre o professor - que é simplesmente um mestre - e o governante, o qual é um guia. O primeiro ministra a educação da escola; o segundo, a da vida. O primeiro período para o educando é aquele em que deve mostrar sujeição e obediência passivamente; no segundo, lhe é permitido usar a sua reflexão e a sua liberdade, desde que submeta uma e outra a certas regras. No primeiro período, o constrangimento é mecânico; no segundo, é moral. . A educação é privada ou pública. Esta última se refere às informações, e pode permanecer sempre pública. A prática dos preceitos fica reservada à primeira. Uma educação pública completa é aquela que reúne, ao mesmo tempo, a instrução e a formação moral. Seu fim consiste em promover uma boa educação privada. Uma escola na qual isto é praticado chama-se Instituto de Educação. Não é possível haver um grande número desses institutos, nem poderiam admitir um grande número de alunos; na verdade, são caríssimos e a simples montagem desses colégios acarreta grandes despesas. O mesmo se diga das Casas de Misericórdia (Santas Casas) e dos hospitais. Os edifícios necessários, o pagamento dos diretores, dos supervisores e dos serviçais absorvem a metade do orçamento; e já está provado que, se esse dinheiro fosse distribuído aos pobres em suas casas, eles seriam muito melhor cuidados. Por isso também é difícil conseguir que outras crianças, que não as dos ricos, participem nesses institutos. A finalidade desses institutos públicos é o aperfeiçoamento da educação doméstica. Se os pais, ou aqueles que lhes assistem na educação dos seus filhos, tivessem recebido uma boa educação, poderia não ser mais necessária a despesa com os institutos públicos. Estes devem se prestar a realizar certas experiências e a formar pessoas aptas para que possam dar uma boa educação doméstica. A educação privada é dada pelos próprios pais ou, caso não tenham tempo, capacidade ou não o queiram, por outras pessoas que os ajudem nessa tarefa, mediante uma recompensa. Mas tal educação, ministrada por auxiliares, tem a gravíssima circunstância de dividir a autoridade entre os pais e esses governantes, A criança deve regular-se pelos preceitos de seus governantes e, ao mesmo tempo, seguir os caprichos de seus pais. Nesse tipo de educação é necessário que os pais deponham toda a sua autoridade nas mãos dos governantes. Até onde, porém, deve-se preferir a educação privada à educação pública, ou vice-versa? Em geral, à educação pública parece mais vantajosa que a doméstica, não somente em relação à habilidade, mas também com respeito ao verdadeiro caráter do cidadão. A educação doméstica, além de engendrar defeitos do âmbito familiar; os propaga. Quanto tempo deve durar a educação? Até o momento em que a natureza determinou que o homem se governe a si mesmo; ou até que nele se desenvolva o instinto sexual; até que ele possa se tornar pai e seja obrigado, por sua vez, a educar: até aproximadamente a idade de dezesseis anos. Passada essa idade, poder-se-á recorrer a expedientes culturais e especializá-lo, submetê-lo a uma disciplina especial; mas não se trata mais de uma educação regular. A sujeição do educando pode ser positiva: enquanto deve fazer aquilo que lhe é mandado, enquanto não pode ainda julgar por si mesmo, tendo apenas a capacidade de imitar. Negativa: enquanto o educando deve fazer aquilo que os outros desejam, se quer que eles, por sua vez, façam algo que lhe seja agradável. No primeiro caso, está sujeito a ser punido; no segundo, a não conseguir o que deseja: e aqui, se bem que já possa refletir, ele não fica menos dependente dos outros quanto à própria satisfação. Um dos maiores problemas da educação é o poder de conciliar a submissão ao constrangimento das leis Com o exercício da liberdade. Na verdade, o constrangimento é necessário! De que modo, porém, cultivar a liberdade? É preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade. Sem essa condição, não haverá nele senão algo mecânico; e o homem, terminada a sua educação, não saberá usar sua liberdade. É necessário que ele sinta logo a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tornar-se independente. Aqui se deve ter presente as seguintes regras: 1. É preciso dar liberdade à criança desde a primeira infância e em todos os seus movimentos (salvo quando pode fazer mal a si mesma, como, por exemplo, se pega uma faca afiada), com a condição de não impedir a liberdade dos outros, como no caso de gritar ou manifestar a sua alegria alto demais, incomodando os outros. 2. Deve-se-lhe mostrar que ela pode conseguir seus propósitos, com a condição de que permita aos demais conseguir os próprios; por exemplo, nada se fará que lhe seja agradável, se não fizer o que desejamos, ou seja, aprender o que lhe é ensinado, e assim por diante. 3. É preciso provar que o constrangimento, que lhe é imposto, tem por finalidade ensinar a usar bem da sua liberdade, que a educamos para que possa ser livre um dia, isto é, dispensar os cuidados de outrem. Esse pensamento é o mais tardio, porque as crianças nos primeiros anos não imaginam que deverão um dia providenciar por si mesmas sua própria manutenção. Elas acreditam que mais tarde acontecerá como no lar paterno, onde elas têm o que comer e beber sem preocupação. Sem esse tratamento, as crianças, sobretudo as dos ricos e os filhos dos príncipes, permanecerão a vida toda como os habitantes do Tahiti, isto é, como crianças. A educação pública tem aqui manifestamente as maiores vantagens: aí se aprende a conhecer a medida das próprias forças e os limites que o direito dos demais nos impõe. Aí não se tem nenhum privilégio, pois que sentimos por toda parte resistência, e nos elevamos acima dos demais unicamente por mérito próprio. Essa educação pública é a melhor imagem do futuro cidadão. Há ainda uma dificuldade que não deve ser aqui esquecida, e se refere à experiência precoce do sexo, a fim de preservar do vício os adolescentes, antes da idade madura. Tornaremos a esse assunto. A pedagogia, ou doutrina da educação, se divide em física e prática. A educação física é aquela que o homem tem em comum com os animais, ou seja, os cuidados com a vida corporal. A educação prática ou moral (chama-se prático tudo o que se refere à liberdade) é aquela que diz respeito à construção (cultura) do homem, para que possa viver como um ser livre. Esta última é a educação que tem em vista a personalidade, educação de um ser livre, o qual pode bastar-se a si mesmo, constituir-se membro da sociedade e ter por si mesmo um valor intrínseco. Portanto, a educação consiste: 1. Na cultura escolástica ou mecânica, a qual diz respeito à habilidade: é, portanto, didática (informator); 2. Na formação pragmática, a qual se refere à prudência; 3. Na cultura moral, tendo em vista a moralidade. O homem precisa da formação escolástica, ou da instrução, para estar habilitado a conseguir todos os seus fins. Essa formação lhe dá um valor em relação a si mesmo, como indivíduo. A formação da prudência, porém, o prepara para tornar-se um cidadão, uma vez que lhe confere um valor público. Desse modo ele aprende tanto a tirar partido da sociedade civil para os seus fins como a conformar-se à sociedade. Finalmente, a formação moral lhe dá um valor que diz respeito à inteira espécie humana. A formação escolástica é a mais precoce. Com efeito, a prudência pressupõe a habilidade. A prudência é a capacidade de usar bem e com proveito a habilidade própria. Por último vem a formação moral, enquanto é fundada sobre princípios que o próprio homem deve reconhecer; mas, enquanto repouso unicamente no senso comum, deve ser praticada desde o princípio, ao mesmo tempo que a educação física, pois, de outro modo, se enraizariam muitos defeitos, a ponto de tornar vãos todos os esforços da arte educativa. Com respeito à habilidade e à prudência, tudo deve acontecer a seu tempo com o passar dos anos. Mostrar-se hábil, prudente, paciente, sem astúcia como um adulto, durante a infância, vale tão pouco como a sensibilidade infantil na idade madura. SOBRE A EDUCAÇÃO FÍSICA Ainda que alguém que tome a seu cargo uma educação, como governante, não receba de imediato as crianças, quando então deveria ocupar-se também da sua educação física, por outro lado é útil que ele saiba tudo o que se requer na educação, do princípio ao fim. Mesmo que um governante não deva ocupar-se senão de crianças crescidas, pode acontecer que ele veja nascer outros filhos na mesma família e, se ele procede corretamente, tem o direito de ser o confidente dos pais, e estes poderão consultá-lo sobre a educação física dos seus filhos; pois acontece frequentemente o governante ser a única pessoa doura da casa. É necessário, portanto, que o governante tenha conhecimentos sobre essa matéria. A educação física consiste propriamente nos cuidados materiais prestados às crianças ou pelos pais, ou pelas amas de leite, ou pelas babás. O alimento destinado pela natureza à criança é o leite de sua própria mãe. É um mero preconceito crer que, de algum modo, a criança sugue com o leite os sentimentos maternos, se bem que ouçamos dizer frequentemente: "Tu sugas isso com o leite de tua mãe!". Mas é muito vantajoso para a criança e para a mãe que esta mesma a amamente. É preciso, porém, admitir em certos casos extremos as justas exceções por motivos de doença. Acreditava-se antigamente que o primeiro leite, tido pela mãe após o parto e parecido com soro, fosse nocivo à criança, e que a mãe devesse livrar-se dele imediatamente antes de amamentar seu filho. Mas Rousseau foi o primeiro a chamar a atenção dos médicos sobre as qualidades deste primeiro leite, se acaso não poderia ser útil à criança, uma vez que a natureza nada fez em vão. E foi realmente comprovado que ele não somente limpa o corpo do recém-nascido dos excrementos que contém, chamados pelos médicos de mecônio, mas que também é bom e útil à criança. Foi discutido se se pode igualmente alimentar a criança com o leite de animais. O leite humano é muito diferente do leite animal. O leite dos animais herbívoros, isto é, que se nutrem de vegetais, coalha muito depressa quando se lhe mistura algum ácido, por exemplo, o ácido tartárico ou o ácido cítrico, ou especialmente o ácido do estômago da vitela, chamado coalho. Mas o leite humano não se coalha. Isso posto, quando a mãe ou a ama de leite se alimenta por algum tempo exclusivamente de vegetais, o seu leite coalha como o da vaca, por exemplo. Contudo, se ela se põe por algum tempo a comer carne, o leite fica bom como antes. Donde se concluiu que o melhor e mais condizente à criança é que a mãe ou a ama de leite coma carne enquanto amamenta. Quando as crianças vomitam o leite ingerido, vê-se que este coalhou. O ácido do seu estômago deve, portanto, fazer coalhar o leite mais eficientemente que todos os outros ácidos, uma vez que, de outro modo, o leite humano não teria de fato a propriedade de coalhar. Assim, seria muito pior oferecer aos bebês leite que coalhasse por si mesmo! Pode-se ver por outros povos que não depende tudo só disso. Por exemplo: os thonga se sustentam quase exclusivamente de carne, e são gente sadia e robusta. Mas todos os povos, como este, têm vida curta e, sem muito esforço, pode-se levantar do chão um jovem alto que, à primeira vista, não se acredita que seja leve. Os suecos, ao contrário, e sobretudo os povos da Índia, quase não comem carne e, entretanto, seus filhos são muito bem criados e crescem fortes. Parece, portanto, que tudo depende da saúde de quem amamenta e que o alimento mais condizente à nutriz é o que a faz gozar de melhor saúde. Agora se trata de saber que alimento se há de escolher para o bebê, quando secou o leite materno. Faz algum tempo, tentou-se dar todo tipo de papinha. Mas não é bom dar ao bebê esse tipo de alimento desde o princípio. Tenha-se, sobretudo, o cuidado de não ministrar algo picante, como vinho, condimentos ou sal. É na verdade estranho que os bebês manifestem tanto gosto por estas coisas! A causa é que, por terem os sentidos ainda embotados, provocam neles um estímulo e uma excitação que lhes agrada. Na Rússia, os bebês certamente herdam esse tipo de gosto de suas mães, as quais tomam aguardente, e nota-se que os russos são fortes e robustos. Sem dúvida, aqueles que suportam esse modo de viver devem ter uma boa constituição física; mas é também verdade que muitos morrem enquanto deveriam poder sobreviver. De fato, uma excitação prematura dos nervos engendra muitas desordens na vida. Tenha-se igualmente o cuidado de não dar aos bebês bebidas e alimentos muito quentes, porque tudo isso os enfraquece. Convém, além disso, ter o cuidado de não manter os bebês muito aquecidos, porque o seu sangue é mais quente que o dos adultos. O calor do sangue dos bebês sobe a 110° no termômetro Fahrenheit, enquanto o dos adultos não ultrapassa os 96°. Os bebês sufocam numa temperatura mais alta em que os adultos podem passar bem. Os ambientes frescos tornam os homens fortes. E não é bom para a saúde dos adultos vestir roupas muito quentes, cobrir-se e habituar-se a bebidas muito quentes. Por isso, a cama dos infantes deve ser fresca e dura. Os banhos frios também são bons. Não se deve usar nenhum excitante para despertar o apetite da criança; pelo contrário, é necessário que o apetite seja provocado pela atividade e pela Ocupação. Não se permita aos infantes contrair hábitos que mais tarde se tornem necessidades. Até mesmo naquilo que é bom, não se deve usar a arte para transformá-lo inteiramente em um costume artificial. Os povos bárbaros não usam faixas nos bebês. Os selvagens da América, por exemplo, cavam pequenas fossas na terra para os bebês; guarnecem o fundo com o pó de árvores velhas, para que a urina e as imundícies se infiltrem e os bebês possam assim permanecer enxutos; depois os cobrem com folhas. Mas, de resto, deixam de fato o livre uso dos membros. Se nós transformamos os bebês como que em múmias, é somente para nossa comodidade, isto é, para evitarmos a chateação de impedir que eles fiquem defeituosos. E é o que acontece, porém, frequentem ente com O uso de faixas! Estas, por outro lado, resultam dolorosas para os próprios bebês e provocam neles uma espécie de desespero, impedindo-lhes o uso dos próprios membros. Crê-se, então, poder aquietar o seu choro, dirigindo-lhes simples palavras. Experimente-se, porém, enfaixar daquele modo bem apertado a um homem adulto, e, então, perceber-se-á que ele também se põe a gritar e cai na angústia e no desespero. Em geral, acaba-se por observar que a primeira educação deve ser puramente negativa, isto é, que nada cabe acrescentar às precauções tomadas pela natureza, mas restringir-se a não perturbar a sua ação. Se há um artifício que seja permitido na educação, é o do enrijecimento, Não se deve, por isso, usar faixas nos bebês. Mas, se se quiser fumar alguma precaução, a melhor coisa é uma espécie de caixa guarnecida de correias na parte superior. Os italianos a usam e a chamam de arcuccio. O bebê fica sempre nessa caixa, mesmo quando é amamentado. Desse modo se evita que a mãe sufoque o bebê, caso ela durma ao amamentar durante a noite. Por esse motivo morrem muitos bebês entre nós. Essa precaução é, pois, preferível às faixas, porque o bebê se move dessa forma mais livremente e se evitam as deformidades que ocorrem frequentemente por causa do enfaixamento. Outro costume na primeira educação é o de ninar os bebês. O meio mais simples é o que certos camponeses usam. Suspendem o berço nos caibros através de uma corda, e nada mais fazem que empurrá-lo; o berço balança por si mesmo. Contudo, em geral, o embalar o bebê de nada serve. Prejudica à criança ser balançada de um lado para outro. Vê-se até mesmo com os adultos que esse balanço produz ânsia de vômito e tontura. Dessa maneira, pretende-se atordoar os bebês para impedi-los de chorar. Mas o choro lhes é salutar. Uma vez saídos do seio materno, no qual estão privados de ar, começam a respirar. O fluxo de sangue, sendo assim alterado, causa-lhes uma sensação dolorosa. Com o choro, porém, eles desenvolvem melhor as partes internas e os vasos do corpo. É muito prejudicial para os bebês procurar aquietá-los, logo que começam a chorar, cantando-lhes algo, como costumam fazer as nutrizes ou semelhantes. E esse é o primeiro mal costume dos bebês, posto que, vendo que tudo cede aos seus choros, eles o repetem mais frequentemente. Podemos dizer em verdade que os bebês do povo são mais mal-acostumados que os das elites. Uma vez que o povo brinca com eles, como o fazem os macacos. Cantam para eles, acariciam, beijam, dançam com eles. Creem que fazem algo bom e útil aos bebês, acorrendo imediatamente e brincando com eles, logo que começam a chorar, e assim por diante. Mas eles não farão senão chorar sempre mais. Se, pelo contrário, não nos preocupamos com os seus choros, eles acabam por não mais chorar. Pois nenhuma criatura procura para si mesma um sofrimento inútil. Se acostumarmos os bebês a verem satisfeitos todos os seus caprichos, depois será tarde para dobrar a suo vontade. Deixemos, pois, que chorem à vontade, e logo eles mesmos ficarão cansados de chorar. Se cedemos, porém, a todos os seus caprichos na primeira infância, corrompemos desse modo o seu coração e os seus costumes. Certamente o bebê ainda não tem nenhuma ideia dos costumes, mas, se arruinamos assim as suas disposições naturais, para remediar ao mal será necessário aplicar-lhes depois duríssimas punições. E se queremos desacostumar os bebês de verem satisfeitos imediatamente os seus caprichos, eles choram com tanta raiva, como se tal não fosse possível senão a adultos, com a diferença de que não continuam unicamente porque suas forças acabam. Enquanto precisam apenas chorar e tudo acontece ao redor, eles dominam como verdadeiros déspotas. Quando cessa esse domínio, isso os aborrece muito. Porque, mesmo para gente grande que esteve no poder por algum tempo resulta muito penoso desacostumar-se dele de modo forçado. No começo, nos primeiros três meses de vida, os bebês ainda não possuem a vista bem desenvolvida. Eles têm a sensibilidade para luz, mas não podem distinguir um objeto do outro. Podemos convencer-nos disso, mostrando-lhe algo brilhante; eles não o seguem com os olhos. Com a visão se desenvolve também a faculdade do riso e do choro; nesse período da vida o bebê chora com certa reflexão, se bem que obscura. Ele acredita sempre que se lhe fez mal. Rousseau nota que, se beliscarmos as mãos de um bebê de seis meses, ele chora como se um tição ardente se lhe tivesse caído sobre a mão; ele já ajunta aqui a ideia de ofensa. Os pais, ao contrário, falam muito em dobrar a vontade de seus filhos de idade tenra. Não se deve quebrar a sua vontade, a não ser que já estejam mal acostumados desde o princípio. A primeira perdição das crianças está em curvarmo-nos ante sua vontade despótica, de modo que possam conseguir tudo com seu choro. E, além disso, mais tarde é sumamente difícil remediar esse mal, e só com muita dificuldade isso será obtido. Podemos, é verdade, conseguir que o bebê se acalme; mas ele sufoca dentro de si a bílis e não faz senão alimentar a sua raiva interna. Desde modo se o habitua à dissimulação e às paixões internas. Assim, por exemplo, para citar apenas um caso, é algo estranho que alguns pais, depois de ter batido com uma vara em seus filhos, exijam que depois lhes beijem as mãos. É propriamente acostumá-las à dissimulação e à falsidade. Os golpes não são, pois, um belo presente pelo qual alguém possa mostrar-se agradecido; e pode-se imaginar facilmente com que coração a criança beija a mão de quem lhe bateu! São usados comumente para ensinar as crianças a andar, as faixas e o carrinho. Mas é muito curioso querer ensinar uma criança a andar; como se um homem não pudesse andar sem que se lhe ensine. As faixas são em especial perigosíssimas. Um escritor se lamentava de sua estreiteza de peito, atribuindo-a as faixas. De fato, uma vez que a criança apanha e cata tudo, naturalmente apoia o peito nas faixas. Como o peito é ainda maleável, fica amassado e contrai depois essa forma. Com todos esses expedientes, a criança por certo não vai aprender a andar com maior segurança do que o faria se aprendesse por si mesma. O melhor é deixá-la engatinhar até que pouco a pouco comece a andar. Nesse caso, pode-se ter a precaução de cobrir o chão com mantas de lã para evitar contusões e quedas feias. Diz-se geralmente que as crianças caem com muita força. Mas, além de tal não poder acontecer, de resto, não é ruim que aconteça de vez em quando. Visto que isso não faz senão ensinar-lhes a manter-se em equilíbrio e a encontrar um modo de impedir que as quedas as prejudiquem. Geralmente as crianças são protegidas com um aro de tecido com enchimento de pano, para impedi-las de bater o rosto no chão. Essa, porém, é uma educação negativa, que consiste em usar meios artificiais, ao passo que a criança dispõe dos meios naturais. No nosso caso, os instrumentos naturais são as mãos, que a criança projeta adiante ao cair. Quanto mais são utilizados meios artificiais, tanto mais fica o homem dependente deles. Em geral, seria melhor usar desde o início poucos instrumentos e deixar que as crianças aprendam muitas coisas por si mesmas; dessa forma aprenderiam mais eficazmente. Por exemplo: seria muito possível que a criança aprendesse a escrever por ela própria. Pois alguém deve ter inventado por primeiro a escrita, e essa invenção não é assim tão difícil. Bastaria, por exemplo, dizer à criança que quer pão: "Você pode desenhá-lo?". Ela desenharia uma figura oval. Poderemos observar, então, que não se distingue se quis desenhar um pão ou uma pedra. Tentará fazer depois um P, e assim por diante; desse modo, formará por si mesma o seu próprio abecedário, o qual ela poderá substituir, a seguir, por outros sinais. Há algumas crianças que nascem com certas imperfeições no corpo: podem ser corrigidas essas deformações? As pesquisas dos mais doutos escritores demonstraram que os coletes em nada ajudam e, antes, agravam o mal, impedindo a circulação do sangue e dos humores, e o desenvolvimento tão necessário das partes internas e externas do corpo. Se a criança é deixada livre, ainda pode exercitar os membros; mas um ser humano que use um colete, quando consegue livrar-se dele, é muito mais fraco que outro, o qual não o usou jamais. Ao contrário, poder-se-ia ajudar a quem nasceu disforme, colocando um peso maior naquele lado em que os músculos são mais fortes. Mas mesmo esse procedimento é muito perigoso: pois, qual é o homem que pode determinar o equilíbrio? A melhor coisa é que a criança se exercite por si mesma e assuma uma posição ainda que incômoda para ela, pois que qualquer aparelho é inoperante. Todos os aparelhos artificiais dessa espécie são tanto mais funestos, na medida em, que contradizem diretamente ao fim que se propõe a natureza nos seres organizados e racionais, em consequência do qual deve permanecer livre para aprender a servir-se das próprias forças. Tudo aquilo que a educação deve fazer é impedir que as crianças cresçam muito delicadas. A fortaleza é o oposto da moleza. Pretende-se demais ao querer habituar as crianças a tudo. Nesse assunto cometem excesso os russos. Entre eles morre um excessivo número de crianças. O hábito é um prazer ou uma ação convertida em necessidade pela repetição contínua desse prazer ou dessa ação. Não há nada a que se habituem mais facilmente as crianças do que às substâncias excitantes, como, por exemplo, ao tabaco, à aguardente, às bebidas quentes; portanto, é imperioso não habituá-las a isso. Resulta dificílimo desabituá-las depois, e causa-lhes sofrimento, porque aquele gozo repetido altera as funções do corpo. Quanto mais costumes tem um homem, tanto menos é livre e independente. Acontece aos homens o mesmo que aos outros animais: ele conserva sempre certa inclinação para os primeiros hábitos: daí ser imperioso impedir que a criança se acostume a algo; não se pode permitir que nela surja hábito algum. Muitos pais querem que seus filhos se acostumem a tudo. Mas isso é uma tarefa inútil. Porque a natureza humana em geral, e em parte a dos diversos seres humanos singulares, não se presta a se habituar a tudo e muitos filhos permanecem no estado infantil de aprendizagem. Assim, por exemplo, querem que as crianças vão dormir e se levantem a qualquer hora, ou que comam quando eles permitem. Mas, para suportar isso, é necessário um teor particular de vida que fortifique o corpo e que repare o mal que esse sistema causou. De resto, até mesmo na natureza encontramos muitos exemplos de periodicidade. Os animais têm o seu tempo determinado para o sono. O homem também deveria habituar-se a dormir em certas horas marcadas, para não perturbar as funções corporais. Quanto ao comer toda hora, não podemos aqui citar o exemplo dos animais. Assim, os herbívoros, por exemplo, por comerem coisas pouco nutritivas, o pastar é para eles algo ordinário. Mas ao homem é muito salutar alimentar-se em horas marcadas, Muitos pais querem também que suas crianças possam suportar frios intensos, maus cheiros, qualquer barulho e outros inconvenientes. Mas tal não é nada necessário; o importante é que não contraiam nenhum hábito e para tal faz bem que se encontrem em situações diferentes. Um leito duro é muito mais sadio que um leito macio. Geralmente uma educação rígida fortifica o corpo. Entendemos por educação rígida simplesmente aquela que nos afasta das comodidades. Não faltam exemplos notáveis para confirmar essa asserção, mas não são observados, ou melhor dizendo, não se quer observá-las. Quanto à educação da índole, que pode, em certo sentido, se chamar de física, é preciso sobretudo cuidar para que a disciplina não trate as crianças como escravos, mas sim que faça que elas sintam sempre a sua liberdade, mas de modo a não ofender a dos demais: daí que devam encontrar resistência. Muitos pais recusam tudo aos seus filhos, para exercitá-las na paciência, exigindo dos filhos mais paciência do que eles próprios demonstram. Mas isso é crueldade. Dê-se à criança tudo o que ela precisa e depois seja dito: "Você já tem o suficiente!". Mas é absolutamente necessário que essa sentença seja irrevogável. Não se dê atenção aos gritos das crianças e não se condescenda com elas, quando querem obter alguma coisa por esse procedimento; mas, se pedem cordialmente, deve-se dar a elas o que é útil. Desse modo, se acostumam a ser sinceras e, como não importunarão os demais com gritos, cada um será, em compensação, cordial com elas. Parece que a Providência deu em verdade às crianças uma aparência agradável, para que possam atrair os adultos. Nada há mais funesto para elas do que uma disciplina obstinada e servil, com a finalidade de dobrar a sua vontade própria. Ordinariamente grita-se com elas: "Ei! Não se envergonha?", "Não fica bem!", e expressões semelhantes, as quais não deveriam jamais ser empregadas na primeira educação. A criança não possui ainda nenhuma ideia de vergonha e de conveniência; não tem nem deve ter vergonha. Isso a tornará tímida. Ficará embaraçada diante dos outros e de boa vontade fugirá da sua presença. Assim, nascem nela uma reserva e uma dissimulação nefasta. Não ousa perguntar mais nada, ao passo que deveria poder perguntar tudo; esconde os sentimentos e parece ser sempre diferente do que é, quando deveria poder dizer tudo francamente. Ao invés de estar sempre junto aos seus pais, os evita e se lança aos braços dos complacentes domésticos. Nem a burla e os carinhos contínuos ajudam mais que essa educação irritante. Tudo isso torna a criança teimosa na sua vontade, torna-a fingido e, manifestando-se uma fraqueza nos pais, perde respeito devido a eles. Mas se é educada de modo que nada possa conseguir gritando, ela se torna livre, sem ficar sem-vergonha, e modesta, sem se tornar tímida. (Dreist deveria ser escrito dräust, pois o palavra vem de dräuen, drohen.) Não se pode tolerar um insolente. Certos homens têm um aspecto tão insolente que fazem a gente temer sempre deles alguma vilania; como também há outros que, só de vê-los, se pensa que são incapazes de dizer uma vilania a alguém! Podemos mostrar-mo-nos francos, desde que ajuntemos certa bondade. Frequentemente ouve-se dizer que os grandes têm de fato um aspecto de reis, Mos isso neles não é outra coisa que um ar insolente, ao qual se habituaram desde jovens sem encontrar resistência. Tudo isso diz respeito apenas à educação negativa. De fato, muitas fraquezas do homem não provêm da falta de ensinamento, mas daquilo que lhes comunicam as falsas impressões. Assim, a guisa de exemplo, as nutrizes criam nas crianças medo dc aranhas, de sapos, e assim por diante. As crianças poderiam certamente pegar uma aranha, como apanham qualquer outra coisa. Mas, como os nutrizes, à vista de uma aranha, manifestam por sua mímica o medo, este se comunico à criança por certa simpatia. Muitos conservam tal medo por toda a vida e, sob esse aspecto, permanecem sempre infantis. Na verdade, as aranhas são perigosas para as moscas, e a sua mordida é venenosa para elas; mas não prejudicam ao homem. Quanto ao sapo, é tão inócuo como uma linda perereca ou qualquer outro animal. A parte positiva da educação física é a cultura. Por ela o homem se distingue do animal. A cultura consiste notada mente no exercício das forças da índole. Portanto, os pais devem criar para os filhos ocasiões favoráveis, A primeira e essencial regra é dispensar, enquanto possível, todo instrumento. É preciso, pois, abolir o uso das faixas e do carrinho, deixando que a criança se arraste pelo chão até que aprenda a caminhar por si mesma, uma vez que, dessa forma, andará com mais segurança. Os instrumentos resultam danosos à habilidade natural. Assim, servimo-nos de uma corda para medir certa distância, mas pode-se fazê-lo simplesmente com o olhar; valemo-nos de um relógio para determinar a hora, mas bastaria olhar a posição do Sol; servimo-nos de uma bússola para nos orientar numa floresta, mas podemos sabê-lo também observando o Sol, se é de dia, ou as estrelas, se é de noite. Acrescentemos que, em vez de nos servimos de um barco para atravessar a água, podemos nadar. O célebre Franklin se admira de que nem todo mundo aprenda a nadar, uma vez que é tão agradável e útil. Ele indicava o modo fácil de aprendê-lo. Deixe-se cair um ovo num rio onde, estando de pé, se mantenha pelo menos a cabeça fora da água. Procura-se, então, apanhar o ovo. Ao se curvar, sobem os pés para o alto e, para que a água não entre na boca, suspende-se a cabeça sobre a nuca, tendo-se, assim, a posição certa necessária para nadar. Basta, então, movimentar as mãos e, dessa forma, nadar. O essencial consiste em cultivar a habilidade natural. No mais das vezes basta uma simples indicação; frequentemente a criança é bastante inventiva e cria por si mesma os instrumentos. O que é preciso observar na educação física, portanto, em relação ao corpo, se refere ao uso do movimento voluntário ou dos órgãos dos sentidos. No primeiro caso, é importante que a criança se exercite por si mesma. É preciso força, habilidade, rapidez e segurança. Assim, por exemplo, deve poder passar por caminhos estreitos, subir montes escarpados de onde se possa ver o abismo, caminhar sobre bases balançantes, Se um homem não pode fazer tudo isso, não é de fato o que poderia ser. Desde que o Instituto Philanthropinum de Dessau deu o exemplo, foram feitos muitos experimentos desse gênero noutros institutos. Ficamos bastante maravilhados ao ler como os suíços se acostumam desde a juventude a subir as montanhas e com que prática atravessam pelos lugares mais estreitos, inteiramente seguros, c saltam sobre precipícios, julgando com um golpe de vista a possibilidade de fazê-lo sem perigo. Mas a maior parte dos homens teme uma queda imaginária; e esse medo paralisa de tal modo os seus membros que se lhes toma perigoso fazer tais proezas. Esse medo ordinariamente cresce com a idade e é mais encontradiço naqueles que se dedicam a muitas ocupações mentais. Tais experimentos com as crianças não são na verdade muito perigosos. De acordo com a sua idade, elas são mais leves que os adultos, e por isso suas quedas são menos graves. Além disso, seus ossos não são tão rígidos nem tão quebradiços, como o serão mais tarde. As crianças experimentam por si mesmas suas forças. Como exemplo, vemo-las subir em algo sem uma finalidade determinada. A corrida é um movimento salutar e fortifica o corpo. Pular, levantar e carregar pesos, manejar a funda, atirar pedras num alvo, lutar, correr e todos os outros exercícios desse gênero são muito bons. A dança, enquanto requer arte, parece não convir por enquanto às crianças. O lançar, seja à distância, seja ao alvo, exercita também os sentidos, especialmente a vista. O jogo de bola é um dos melhores para as crianças, pois requer a corrida benfazeja. Em geral, os melhores jogos são aqueles que, além de desenvolver a habilidade, provocam exercício dos sentidos; por exemplo, o exercício da visão, ao julgar com exatidão a distância, a grandeza e a proporção, ao descobrir posições dos lugares conforme as regiões do céu com a ajuda do Sol, e assim por diante: todos esses exercícios são muito bons. É muito vantajosa a imaginação local, sob a qual se compreende a habilidade de representar todas as coisas nos respectivos lugares em que foram vistas, algo que é muito proveitoso; por exemplo, o prazer de situar-se numa floresta, observando as árvores, diante das quais passamos antes. O mesmo se diga da memória local (memória localis), pela qual sabemos, por exemplo, não somente em que livro lemos tal coisa, mas também em que parte do próprio livro. Assim, o músico tem teclas na mente e não precisa mais procurá-las. É igualmente muito útil cultivar o ouvido das crianças para distinguir se algo está longe ou perto, ou de que lado. O brinquedo infantil da cabra-cega já era conhecido dos gregos, com o nome de muinda. Em geral, as brincadeiras infantis são quase universais, Aquelas que existem na Alemanha são encontradas também na Inglaterra, na França, e assim por diante. Elas têm por fundamento uma peculiar inclinação infantil: a brincadeira da cabra-cega, por exemplo, é para saber como poderiam desempenhar-se, caso fossem privadas de um sentido. O pião é um jogo admirável. Esse tipo de brincadeira infantil dá aos homens ocasiões para reflexões ulteriores e, às vezes, são ocasiões de importantes descobertas. Assim, Segner, por exemplo, escreveu uma dissertação sobre o pião, a qual forneceu a um capitão de um barco inglês a ocasião de inventar um espelho, com o qual se pode medir, desde o navio, a altura das estrelas. As crianças gostam de instrumentos barulhentos, por exemplo, pequenas trombetas, pequenos tambores e outros. Mas tais instrumentos de nada servem, pois os outros são simplesmente por eles molestados. Melhor seria que aprendessem a cortar um bambu, de modo que pudessem brincar assoprando. Também o balanço é um bom exercício; até os adultos o usam, tendo em vista a saúde; entretanto, é necessário vigiar as crianças, pois que o movimento pode tornar-se muito rápido. O papagaio é um brinquedo inocentíssimo. Desenvolve a habilidade, uma vez que empinar papagaio depende de certa posição em relação ao vento. Com o interesse nesses brinquedos a criança renuncia a outras necessidades e, assim, pouco a pouco se acostuma a privar-se de outras coisas. Além disso, ela se acostuma a ocupações duradouras. Entretanto, não se trata aqui de brincadeiras, mas de brincadeiras com objetivo e finalidade. Assim, quanto mais o seu corpo se fortifica e se enrijece através delas, tanto mais se torna protegida contra as consequências corruptoras da lassidão. A própria ginástica deve restringir-se a guiar a natureza; não deve propiciar uma graciosidade forçada. O primeiro passo toca à disciplina, e não ao ensinamento. Cabe zelar para que na cultura do corpo também se eduque para a sociedade. Diz Rousseau: "Não conseguireis jamais formar homens sábios, se antes não formardes traquinas". Mas de um garoto esperto conseguir-se-á um homem de bem, antes que de um impertinente que banca o esperto. Que a criança não se mostre importuna em sociedade, mas também que não se mostre insinuante. Deve mostrar-se familiar sem importunações, sincera sem impertinências, a quantos a solicitem. Para dela tal se conseguir, é preciso não prejudicá-la em nada, não inspirar noções de comportamento que servirão apenas para torná-la acanhada e tímida, ou que, ao contrário, lhe sugiram o desejo de se fazer prevalecer. Nada há de mais ridículo numa criança que uma prudência senil ou uma imatura presunção. No segundo caso, é nosso dever fazer com que a criança perceba seus defeitos, mas, ao mesmo tempo, não deixando transparecer demais a nossa Superioridade e autoridade, para que ela se forme por si mesma, como uma pessoa que deve viver em sociedade, uma vez que, se o mundo é bastante grande para ela, é também para os outros. Toby, no Tristan Shandy, diz a uma mosca que o havia molestado por muito tempo e a qual ele deixa escapar pela janela: "Vai, malvado animal, o mundo é bastante grande para mim e para ti". Cada um poderia tomar esse dito como divisa. Não devemos tomar-nos importunos uns aos outros; o mundo é bastante grande para todos. Chegamos, assim, à cultura da alma, que de certo modo podemos chamar também de física. Deve-se distinguir liberdade e natureza. Dar leis à liberdade é completamente diferente de cultivar a natureza. A natureza do corpo e da alma concordam no seguinte: cultivando-as, deve-se procurar impedir que se corrompam, mutuamente e buscar que a arte aporte algo tanto àquele como a esta. Pode-se, portanto, em certo sentido, qualificar de física tanto a formação da alma quanto a do corpo. Mas essa formação física da alma se distingue da formação moral, pois que esta se refere à liberdade, aquela, apenas à natureza. Um ser humano pode ter uma sólida formação física, pode ter um espírito muito bem formado, mas ser mau do ponto de vista moral, sendo desse modo uma criatura má. É preciso distinguir a formação física da formação prática, sendo esta pragmática ou moral. Nesta última, temos a moralização e não a cultura. Dividimos a cultura física do espírito em cultura livre e cultura escolástica. A cultura livre é semelhante a um divertimento, ao passo que a escolástica é coisa séria. A primeira é aquela que deve se encontrar naturalmente no aluno; na segunda, ele pode ser considerado como que submetido a uma obrigação. Pode-se estar ocupado até mesmo no jogo, como se diz: ocupado no ócio; mas pode-se estar ocupado na obrigação, e isso se chama trabalho. A cultura escolástica deve ser, pois, um trabalho para a criança, e a cultura livre, um divertimento. Foram propostos vários planos de educação - coisa de fato laudabilíssima - para encontrar o melhor método educativo. Entre outras coisas, pensou-se em deixar que as crianças aprendam tudo por diversão. Lichtenberg, num fascículo da Revista de Göttingen, ridiculariza a opinião daquelas que querem que se tente deixar as crianças fazerem qualquer coisa como um divertimento, quando deveriam ser habituadas desde cedo nas ocupações sérias, uma vez que ingressarão um dia na vida em sociedade, Esse método produz um efeito detestável. A criança deve brincar, ter suas horas de recreio, mas deve também aprender a trabalhar. Certamente é bom exercitar a sua habilidade e cultivar o seu espírito; mas deve-se dedicar horários diferentes a estas duas espécies de cultura. Constitui grande infelicidade para o homem ter de ficar à toa tão frequentemente. Quanto mais ele se abandona à preguiça, mais dificilmente se decide a trabalhar. No trabalho, a ocupação não é agradável por si mesma, porém, tomamo-la com outra finalidade. A ocupação no divertimento, ao contrário, é agradável em si, não sendo preciso se propor algum fim. Se se sai a passear, o passeio é ele próprio o objetivo, e, portanto, quanto mais longa a caminhada, mais nos é agradável. Mas se nos ocorre ir a algum lugar, a finalidade do nosso caminhar é a sociedade que lá se encontra, ou outra coisa; então, escolhemos de boa vontade o caminho mais curto. Acontece o mesmo em relação ao jogo de cartas. É de fato admirável ver homens razoáveis permanecerem sentados, por horas inteiras, embaralhando cartas. Isso demonstra que os homens não deixam facilmente de ser crianças. Com efeito, em que este jogo é superior ao jogo de bola das crianças? É verdade que as pessoas adultas não andam num cavalo de pau, mas elas montam outros cavalos de pau. É de suma importância que as crianças aprendam a trabalhar. O homem é o único animal obrigado a trabalhar. Para que possa ter o seu sustento, muitas coisas deve fazer necessariamente para tal. A questão a respeito do céu não ter sido mais benigno conosco, oferecendo todas as coisas já belas e prontas de tal modo que não precisássemos trabalhar, deve ser respondida certamente com uma negativa; pois, o homem precisa de ocupações, inclusive daquelas que implicam certo constrangimento. É igualmente falso imaginar que, se Adão e Eva tivessem permanecido no paraíso terrestre, não teriam feito mais que estar sentados lado a lado, cantando canções pastorais e contemplando a beleza da natureza. O ócio os atormentaria, sem dúvida, como atormenta outras pessoas em situação semelhante. O homem deve permanecer ocupado, de tal forma que, tendo em vista o fim que almeja, se realize sem sentir-se a si mesmo, e que o seu melhor repouso seja aquele que sucede ao trabalho. Que a criança, portanto, seja habituada ao trabalho. E onde a tendência ao trabalho pode ser mais bem cultivada que na escola? A escola é uma cultura obrigatória. Prejudica-se à criança, se se a acostuma a considerar tudo um divertimento. Ela deve certamente ter seu tempo de recreio, mas também as suas horas de trabalho. Se ela não aprende logo a utilidade dessa obrigação, descobrirá mais tarde seus grandes frutos. Querer responder sempre às perguntas infantis, como "Para que é isso? Para quê?", seria a mesma coisa que, em geral, fomentar-lhes a indiscrição. A educação deve ser impositiva; mas, nem por isso, escravizante. No que toca à livre cultura das potências do ser humano, note-se que progride continuamente. Ela deve estar voltada sobretudo às potências superiores. Cultivar também as potências inferiores, mas apenas tendo em vista as superiores; a espirituosidade, por exemplo, com vistas ao entendimento. A principal regra é essa: não desenvolver separadamente uma potência por si mesma, mas desenvolver cada uma, levando em conta as outras, como a imaginação a serviço da inteligência. As potências inferiores não têm, por elas mesmas, nenhum valor; por exemplo: que adianta que um homem tenha grande memória, mas pouco discernimento? Até esses "burros de carga do Parnaso" são, por outro lado, bastante úteis, na medida em que, não podendo produzir por si mesmos algo razoável, pelo menos carregam os materiais, ensejando que outros façam algo de bom. Espirituosidade não faz senão disparates, quando não acompanhada do juízo. O entendimento é conhecimento do geral. O juízo é a aplicação do geral ao particular. A razão é a faculdade de discernir a ligação entre o geral e o particular. Essa livre cultura prossegue seu curso desde a infância, até que o jovem termine a sua educação. Por exemplo, quando um jovem fala de uma regra geral, podemos citar casos tirados da História ou das fábulas, nas quais aquela se esconde, ou trechos de poetas em que está expressa e, assim, fornecer ocasião de exercitar o engenho, a memória etc. A máxima Tantum scimus quantum memoria tenemus (tanto sabemos quanto retemos pela memória) tem lá sua verdade, e por isso o cultivo da memória é muito necessário. As coisas estão feitas de tal modo que o entendimento não acontece senão após as impressões sensíveis e toca à memória guardá-las. O mesmo acontece, por exemplo, no domínio das línguas. Podemos aprendê-las através de uma memorização formal, ou praticamente. Este último método é o melhor, em se tratando de línguas vivas. Sem dúvida, é necessário o estudo do vocabulário, mas aprende-se muito melhor quando se o encontra no autor que se tem sob os olhos. É preciso que a juventude tenha uma programação fixa e determinada. A Geografia especialmente se aprende por um cerro mecanismo. A memória tem predileção por tal mecanismo, que se torna utilíssimo em muitos casos. Até agora não foi encontrado nenhum mecanismo apto para a História. Tentou-se o uso de tabelas, mas parece que não deram bons resultados. A História é um meio excelente para exercitar o entendimento no julgar. O memorizar é muito necessário, mas não serve como simples exercício; tal seria o fazer aprender de cor. Em todo caso, serviria apenas para provocar o atrevimento. Por outro lado, a declamação convém apenas aos adultos. Diga-se o mesmo de todas as coisas que se aprendem para um exame futuro, ou tendo em vista o esquecimento posterior (in futuram oblivionem). A memória deve ser ocupada apenas com conhecimentos que precisam ser conservados e que têm pertinência com a vida real. A leitura de romances é muito funesta às crianças, porque elas não os utilizam depois, uma vez que os usam como divertimento; a leitura de romances debilita a memória. Seria de fato ridículo pretender memorizar para contar aos demais. É preciso, pois, retirar das mãos das crianças todos os romances. Lendo-os, elas criam um novo romance, pois reordenam as circunstâncias e inflamam a fantasia, sem reflexão. As distrações não devem jamais ser toleradas, muito menos na escola, porque acabam por degenerar numa certa tendência, num cena hábito. Mesmo os mais belos talentos se perdem numa pessoa sujeita às distrações. Ainda que as crianças se dispersem com distrações, não demoram a se recompor. Em compensação vemo-las distraídas, sobretudo quando maquinam coisa má, uma vez que então pensam como poderiam escondê-la ou repará-la. Então, escutam as coisas pela metade, respondem atravessado, não sabem o que leem etc. Deve-se cultivar desde logo a memória, procurando cultivar na mesma medida a inteligência. Cultiva-se a memória: 1. Através da retenção dos nomes que se encontram nas narrações; 2. Através da leitura e da escrita, mas de cabeça, sem precisar soletrar; 3. Pelo estudo das línguas, as quais devem ser apresentadas às crianças de ouvido. O assim chamado "mundo figurado" (orbis pictus), adaptado convenientemente, presta grande serviço e podemos começá-lo com a Botânica, com a Mineralogia e com a História Natural. O fazer um resumo dessas matérias dá ocasião a desenhar e a modelar, para o que é necessária a Matemática. Os primeiros conhecimentos científicos, os mais úteis, têm a ver com a Geografia, tanto matemática quanto física. Os relatos de viagem, explicados através de gravuras e de mapas, conduzem em seguida à Geografia Política. Do estado presente da superfície da terra caminha-se ao seu estado primitivo, e chega-se à Geografia Antiga, à História Antiga etc. Na instrução da criança é preciso procurar unir pouco a pouco o saber e a capacidade. Entre todas as ciências, parece que a Matemática é a única para se obter da melhor maneira essa finalidade. Além disso, é preciso unir a ciência à palavra (a facilidade no dizer, a elegância, a eloquência). E, ainda, a criança deve aprender a distinguir perfeitamente a ciência da simples opinião ou da crença. Desse modo, se formará nela uma mente correta, um gosto justo, sem refinamentos ou afetação. O primeiro gosto a ser cultivado será o dos sentidos, sobretudo o da vista, e, finalmente, o das ideias. Deve haver regras para tudo aquilo que pode cultivar o entendimento. É também muito útil abstraí-las, para que o entendimento proceda não apenas mecanicamente, mas tenha consciência da regra que segue. Resulta também de grande utilidade exprimir as regras por meio de certa fórmula e transmiti-las desse modo à memória. Se temos na memória a regra e esquecemos o seu uso, logo poderemos reencontrá-la. Aqui se coloca a questão: convém começar com o estudo das regras abstratamente, ou devemos aprendê-las após o uso delas? Devemos aprendê-las ao mesmo tempo que o seu uso? Este último é o único método razoável: no outro caso, enquanto não se chega à regra, o uso permanecerá incerto. Ocorre também, quando se apresenta a ocasião, ordenar as regras por classes, pois, não se as conserva, se não estão unidas entre si. Portanto, sob esse aspecto, a gramática deverá preceder sempre o estudo das línguas. Devemos agora dar uma ideia sistemática do fim global da educação e do modo como consegui-lo. 1. Cultura geral da índole, distinta da cultura particular. Aquela se dirige à habilidade e ao aperfeiçoamento; não no sentido de informar algo particular ao aluno, mas no de fortificar a índole. Ela é: a) ou física, e tudo depende da prática e da disciplina, sem que a criança precise conhecer nenhuma máxima. É cultura passiva em relação ao discípulo, o qual deve seguir orientações de outrem. Outros pensam por ele; b) ou moral: esta se fundamenta, em máximas e não sobre a disciplina. Perde-se tudo quando se a quer fundamentar sobre o exemplo, sobre ameaças, sobre punições etc. Tornar-se-ia, então, uma mera disciplina. É preciso cuidar para que o discípulo aja segundo suas próprias máximas, e não por simples hábito, e que não faça simplesmente o bem, mas o faça porque é bem em si. Com efeito, todo o valor moral das ações reside nas máximas do bem. Entre a educação física e a educação moral existe essa diferença: a primeira é passiva em relação ao aluno, enquanto a segunda, ativa. É necessário que ele veja sempre o fundamento e a consequência da ação a partir do conceito do dever. 2. Cultura particular da índole. Aqui têm lugar a inteligência, os sentidos, a imaginação, a memória, a atenção e a espirituosidade, o que também diz respeito às potências inferiores do entendimento. Já falamos da cultura dos sentidos, por exemplo, da vista. Quanto à imaginação, deve-se notar o seguinte: as crianças são dotadas de uma imaginação potentíssima e não há necessidade de desenvolvê-la e alargá-la com fábulas. Ao contrário, cabe ser refreado e submetida a regras, sem deixá-la inteiramente desocupada. Os mapas geográficos são de grande atração para todas as crianças, mesmo para as menores. Ainda que estejam cansadas de outras tarefas, elas aprendem alguma coisa, desde que se usem mapas. Essa é uma distração conveniente para as crianças, uma vez que a imaginação não pode divagar muito, mas deve poder concentrar-se numa determinada figura. Para isso pode-se ajuntar figuras de animais, de plantas etc.; estas poderiam tornar viva a Geografia. A História deveria vir mais tarde. Em relação ao fortalecimento da atenção, note-se que ela precisa ser geralmente reforçada. Unir fortemente os nossos pensamentos a um objeto não é bem um talento, mas antes uma fraqueza do nosso sentido interior, o qual se apresenta indócil, e não se deixa conduzir a nosso talante. A distração é inimiga de qualquer educação. A memória supõe a atenção. Entre as potências do entendimento, figuram o entendimento a faculdade de julgar e a razão. Pode-se começar formando, ainda que passivamente, o entendimento, citando exemplos que se apliquem a uma regra ou, ao contrário, a regra que se aplique a exemplos particulares. A faculdade de julgar mostra o uso que se deve fazer do entendimento. É necessária para se compreender bem o que se aprende ou se diz, e para não repetir dos outros o que se não entendeu. Quantas pessoas leem e escutam certas coisas, as quais admitem sem entender? Essa educação precisa de imagens e objetos. A razão faz conhecer os princípios. Mas é preciso ter em conta que aqui se trata de uma razão ainda dirigida. Esta não deve pretender sempre discorrer, mas ter o cuidado de não se exercer sobre aquilo que é superior aos conceitos. Aqui não se trata da razão especulativa, mas da reflexão a respeito do que acontece segundo as suas causas e seus efeitos. Trata-se de uma razão prática em sua economia e em sua disposição. A melhor maneira de cultivar as potências da índole consiste no fazer por si mesmo o que se quer fazer; por exemplo, pôr em prática a regra gramatical que se acabou de aprender. Compreendemos melhor um mapa geográfico quando o fazemos. O melhor modo de compreender é fazendo. Aprende-se mais solidamente e se grava de modo mais estável o que se aprende por si mesmo. Poucas pessoas se encontram nessa situação, são as chamadas autodidatas. No cultivo da razão é preciso praticar o método de Sócrates, Este, que se nomeava parteiro dos conhecimentos dos seus ouvintes, nos seus diálogos, que Piarão de algum modo nos conservou, nos dá exemplos de como se pode guiar até mesmo pessoas idosas para retirar muita coisa de sua própria razão. Em muitos pontos não é necessário que as crianças exercitem a razão. Não devem subtilizar sobre todas as coisas. Não necessitam conhecer os fundamentos de tudo que pode aperfeiçoá-las; mas, quando se trata do dever, é necessário fazê-las conhecer os princípios. Contudo, devemos proceder de tal modo que busquem por si proceder de forma a perseguir por si mesmas esses conhecimentos, ao invés de inculcar-lhos. O método socrático deveria constituir a regra do método catequético. Aquele é certamente vagaroso e se torna difícil conduzi-lo de tal modo que, quando se extraia de uma pessoa os conhecimentos, os outros também aprendam algo nessa ocasião. Em algumas ciências, como no ensino da religião revelada, o método mecânico catequético é também útil. Na religião geral, ao contrário, deve-se usar o método socrático. Mas, para os estudos de caráter histórico, o método mecânico catequético é recomendável de preferência. Devemos tratar aqui da formação do sentimento do prazer e do desprazer, Deve ser negativa, O sentimento não deve ser mimado. O gosto pela facilidade é para o homem o mais funesto dos males da vida. Por isso é sobremaneira importante que as crianças aprendam a trabalhar desde cedo. A menos que já estejam amolecidas, elas gostam em verdade dos divertimentos associados à fadiga e das ocupações que requerem uso da força. No que diz respeito aos prazeres, não devemos torná-las ávidas nem deixar a elas a escolha. Nesse assunto as mães acostumam mal os seus filhos e os tornam muito delicados. Entretanto, observa-se que as crianças, sobretudo os meninos, amam mais o pai que a mãe. Isso decorre do fato de a mãe não lhes permitir pular, correr de um lado para outro, com medo que se machuquem. O pai, ao contrário, que ralha, que os castiga até fisicamente, quando são mal-educadas, leva-as ao campo a passear e lá as deixa correr, brincar e divertir-se conforme sua idade. Crê-se que se exercita a paciência das crianças fazendo-as esperar por muito tempo alguma coisa. Tal não seria necessário. Mas elas devem ter paciência nas doenças e semelhantes. Há dois tipos de paciência: ou consiste em renunciar a toda esperança ou em retomar a coragem. A primeira não é necessária, quando se almeja apenas o possível; a segunda é sempre permitida, desde que nada mais se deseje que o certo. Entretanto, a falta de esperança nas doenças é tão prejudicial quanto à coragem é benéfica ao restabelecimento da saúde. Quem é capaz de encher-se de coragem quanto ao seu estado físico ou moral não abandona a esperança. Não é necessário tornar as crianças tímidas. Isso acontece sobretudo quando são-lhes dirigidas palavras injuriosas e são envergonhadas frequentem ente. Convém, portanto, reprovar certas palavras que muitos pais dirigem a seus filhos: "Credo! Não tem vergonha?". Não se vê porque as crianças deveriam envergonhar-se, por exemplo, quando põem o dedo na boca etc. Pode-se dizer-lhes que isso não fica bem, que não é o costume; mas jamais devemos dizer-lhes: "Credo! Não tem vergonha?", a não ser quando mentem. A natureza deu ao homem o rubor, para que ele se traia, quando mente. Os pais devem falar de vergonha a seus filhos apenas quando mentem; assim, eles conservam até à morte esse rubor da vergonha por mentir. Mas, se se ruborizam continuamente, cria-se neles uma timidez que jamais os abandonará. Como dissemos acima, não se deve dobrar a vontade das crianças, mas dirigi-la, de modo que elas saibam ceder aos obstáculos naturais. No início, a criança deve obedecer cegamente. Não é natural que ela comande com seus gritos e que o forte obedeça ao fraco. Portanto, jamais deve-se ceder aos gritos das crianças, mesmo em tenra idade, e deixá-las conseguir alguma coisa desse modo. Nesse caso, os pais geralmente se enganam e creem poder remediar o mal, recusando aos filhos mais tarde o que solicitam. Mas é absurdo negar-lhes sem motivo o que esperam da bondade de seus pais, com a simples intenção de contradizê-los e fazê-los sentir a prepotência dos mais velhos - sendo aqueles mais fracos. Prejudica as crianças satisfazer as suas vontades e as educa muito mal quem vai sempre ao encontro de suas vontades e desejos. Isso acontece enquanto as crianças são um passatempo para os pais, sobretudo no período em que começam a falar. Mas o trato mimado acarreta-lhes grande dano por toda a vida. A oposição às suas vontades impede que manifestem seu despeito; isso, porém, não faz senão torná-las mais revoltadas interiormente. Ainda não aprenderam a conhecer como devem se portar. A regra a ser praticada com as crianças desde cedo é essa: ir socorrê-las, quando gritam e se teme que lhes aconteceu algo mau, mas deixá-las, quando o fazem por raiva. E semelhante conduta se há de manter constantemente depois. A resistência que aí demonstra a criança é de fato natural e negativa, uma vez que se lhe recusa a ceder. Muitos filhos, entretanto, obtêm de seus pais tudo que desejam, mercê de súplicas. Se se permite às crianças tudo obter pelos gritos, tornam-se más; se conseguem tudo com súplicas, elas se tornam suscetíveis. Deve-se, pois, atender à súplica da criança, exceto quando se achar alguma razão importante em contrário. Caso haja razões para não ceder, não se deve deixar comover pelas muitas súplicas. Toda recusa deve ser definitiva. Isso produz o efeito de não ter de repetir recusas frequentemente. Supondo que haja na criança - coisa que se admitiria muito raramente - uma tendência natural à teimosia, a melhor maneira de se lhe opor seria que, nada ela fazendo para ser agradável, nada se faça por ela em troca. Contrariar sua vontade inspira sentimentos servis; a resistência natural, ao contrário, gera a docilidade. A cultura moral deve-se fundar sobre máximas, não sobre a disciplina. Esta impede os defeitos; aquelas formam a maneira de pensar. É preciso proceder de tal modo que a criança se acostume a agir segundo máximas, e não segundo certos motivos. A disciplina não gera senão um hábito, que desaparece com os anos. É necessário que a criança aprenda a agir segundo certas máximas, cuja equidade ela própria distinga. Vê-se facilmente ser difícil desenvolver tal coisa nas crianças, e que por isso a cultura moral requer muitos conhecimentos por parte dos pais e mestres. Quando uma criança mente, por exemplo, não se deve punir, mas tratá-la com desprezo, dizer que no futuro não mais acreditaremos nela, e semelhantes. Mas se a castigamos, quando procede mal, e a recompensamos, quando procede bem, então ela fará o certo para ser bem tratada. Quando mais tarde entrar no mundo, onde as coisas acontecem de modo diverso, isto é, no qual ela poderá fazer o bem sem recompensa e o mal sem receber castigo, então ter-se-á um ser humano que só visará como sair-se bem no mundo, e será bom ou mau, conforme melhor lhe parecer. As máximas são deduzi das do próprio homem. Deve-se procurar desde cedo inculcar nas crianças, mediante a cultura moral, a ideia do que é bom ou mal. Se se quer fundar a moralidade, não se deve punir. A moralidade é algo tão santo e sublime que não se deve rebaixá-la, nem igualá-la à disciplina. O primeiro esforço da cultura moral é lançar os fundamentos da formação do caráter. O caráter consiste no hábito de agir segundo certas máximas. Estas são, em princípio, as da escola e, mais tarde, as da humanidade. Em princípio, a criança obedece a leis. Até as máximas são leis, mas subjetivas; elas derivam da própria inteligência do homem. Nenhuma transgressão da lei da escola deve ficar impune, mas seja a punição sempre proporcional à culpa. Quando se quer formar o caráter das crianças, urge mostrar-lhes em todas as coisas certo plano, certas leis, as quais devem seguir fielmente. Assim, por exemplo, se lhes é estabelecida a hora para dormir, para trabalhar, para brincar, esse horário não deve ser dilatado ou abreviado. Nas coisas indiferentes pode-se deixar a escolha às crianças, contando que depois observem sempre a lei que criaram para si mesma. Não é necessário, entretanto, criar na criança um caráter de adulto, mas sim, o de uma criança. Os homens que não se propuseram certas regras não podem inspirar confiança; não se sabe como comportar-se com eles, e não se pode saber ao certo se se tem vez com eles. É verdade que não raramente se repreende a pessoa que age sempre segundo certas regras, por exemplo, a que faz cada coisa em hora marcada; frequentemente essa repreensão é injusta, e aquela regularidade é uma disposição favorável ao caráter, ainda que pareça meticulosidade. Antes de tudo, a obediência é um elemento essencial do caráter de uma criança e, sobretudo, de um escolar. Ela tem duplo aspecto: o primeiro é a obediência à vontade absoluta de um governante, ou também a obediência a uma vontade de um governante reconhecida como razoável e boa. A obediência pode proceder da autoridade - e, então, é absoluta - ou da confiança - e, nesse caso, é de outro tipo. Esta última, a voluntária, é importantíssima; mas a primeira é absolutamente necessária, porque prepara a criança para o respeito às leis que deverá seguir corretamente como cidadão, ainda que não lhe agradem. Deve-se, portanto, submeter as crianças a uma certa lei necessária. Mas esta lei deve ser geral e é preciso tê-la presente sobretudo nas escolas. O mestre não deve mostrar predileção alguma, nenhuma preferência a um aluno em relação aos outros, pois a lei deixaria de ser geral. Quando a criança observa que os outros não estão submetidos à mesma lei que ela, torna-se rebelde. Sempre se diz que as coisas devem ser apresentadas às crianças de tal modo que as cumpram por inclinação, o que é bom em muitos casos; entretanto, muitas coisas devem ser-lhes prescritas como dever. Isso lhes será utilíssimo, a seguir, por toda a vida. Já que, no pagamento de impostos, no exercício da profissão e em muitos outros casos, só nos pode guiar o dever, não a inclinação. Supondo-se que a criança não entenda o dever, melhor assim; e, supondo-se que algo seja dever dela, por ser criança, ela verá que é seu dever como ser humano, ainda que mais dificilmente. Se chega a compreender também isso, o que só é possível com o passar dos anos, sua obediência será ainda mais perfeita. Toda transgressão de uma ordem por parte da criança é defeito de obediência, que acarreta punição. Mas não é inútil punir mesmo uma simples negligência. A punição é física ou moral. É moral, quando vai contra nossa inclinação de sermos honrados e amados, sentimentos estes que são dois auxiliares da moral idade, quando, por exemplo, a criança é humilhada ou recebida com frieza glacial. Tais inclinações devem ser conservadas, enquanto for possível. Esse é também o melhor tipo de pena, porque auxilia a moralidade, Por exemplo: se uma criança mente, o melhor e suficiente castigo é olhá-la com desprezo. As punições físicas consistem em recusar à criança o que ela deseja ou aplicar castigos. A primeira se assemelha à punição moral, e é negativa, As outras devem ser usadas com precaução, para que não gerem disposição servil (indoles servilis). Não convém recompensar as crianças, pois isso as torna interesseiras e gera nelas disposição de mercenário (indoles mercennaria). Além disso, a obediência é ou da criança ou do adolescente. Acontecendo a desobediência, segue a punição. Esta é ou de fato natural, como seria a doença, que o próprio homem contrai - por exemplo, quando a criança fica doente, porque come demais -; esse tipo de punição é o melhor, porque o ser humano a recebe não só na infância, mas durante toda a vida. Ou, então, é punição artificial. A inclinação a ser estimado e amado é um expediente seguro para tornar duráveis as punições. Os castigos físicos devem ser empregados somente como complemento à insuficiência das penas morais. Quando as penas morais deixaram de ter eficácia, e se recorre aos castigos físicos, então, não se consegue mais formar um bom caráter. Mas, no início, a coação física deve suprir a falta de reflexão na criança. De nada servem os castigos aplicados com raiva. Nessas ocasiões, as crianças os veem apenas como consequências, e a si mesmas, como objeto da paixão de outra pessoa. Em geral, é preciso agir de modo que as próprias crianças percebam que o fim das punições aplicadas é o seu aprimoramento. É absurdo pretender que a criança punida agradeça, beije as mãos etc.; é insensato e faz dela um escravo. Quando os castigos físicos são repetidos frequentemente, formam caracteres obstinados e intratáveis e, se os pais castigam os filhos por sua obstinação, não fazem mais que torná-los mais obstinados ainda. Nem sempre são as mais malvadas aquelas pessoas cabeçudas; estas cedem muitas vezes facilmente a boas repreensões. A obediência do adolescente é diferente da criança. Aquela consiste na submissão às regras do dever. Fazer algo por dever equivale a obedecer à razão. Falar a respeito do dever às crianças é trabalho perdido; elas, no final das contas, concebem o dever como algo cuja transgressão acarreta castigo. A criança poderia ser guiada apenas por seus instintos; mas, logo que cresce, precisa da ideia do dever. Igualmente não cabe procurar causar vergonha nas crianças, mas esperar a adolescência. De fato, só pode haver tal sentimento quando o conceito de honra já lançou raízes. Um segundo traço que se deve ter em mira na formação do caráter da criança é a veracidade. Esse é o traço principal e essencial do caráter. Uma pessoa que mente não tem caráter e, se há nela algo bom, deriva-se do temperamento. Muitas crianças têm inclinação à mentira, a qual deve ser atribuída a certa vivacidade de imaginação. É dever do pai cuidar para que os filhos não contraiam esse hábito, pois que as mães geralmente dão a ele pouca ou nenhuma importância; quando não, veem nisso uma prova aduladora das disposições e capacidades superiores de seus filhos. Aqui é oportuno recorrer ao sentimento de vergonha, pois que a criança o compreende beníssimo. O rubor nos denuncia quando mentimos; mas isso não é uma prova de ter mentido ou de mentir. Frequentemente ficamos ruborizados pela impudência dos outros, quando nos acusam de alguma falta. Não se deve de modo algum tentar arrancar a verdade da boca das crianças por meio de punições, mesmo que sua mentira pudesse acarretar algum dano; elas seriam nesse caso punidas pelo próprio dano. A única pena que convém aos mentirosos é a perda da estima. As punições podem ser divididas em negativas e positivas. As primeiras se aplicariam à preguiça ou à imoralidade, por exemplo, à mentira, à indocilidade, à insociabilidade. As penas positivas são reservadas à malvadeza. Antes de qualquer coisa, urge não se ter rancor das crianças. Um terceiro traço do caráter da criança é a sociabilidade. A criança deve manter com os outros relações de amizade, e não viver sempre isoladamente. É verdade que muitos mestres são contrários a essa ideia: entretanto, muito injustamente. As crianças devem, assim, preparar-se para o mais doce de todos os prazeres da vida. Entretanto, os mestres não devem preferir alguns por seus dotes intelectuais, mas pelo caráter; do contrário, nasceria um ciúme contrário à amizade. As crianças devem ser abertas e de olhar tão sereno como o Sol. Só um coração contente é capaz de encontrar prazer no bem. Toda religião que torne o homem taciturno é falsa, porque este deve servir a Deus com prazer, e não constrangido. Não se deve sempre coibir a alegria na disciplina escolar; em pouco tempo a criança ficaria abatida. Se tem liberdade, logo se recupera. Daí a utilidade de certos jogos, nos quais ela tem liberdade e procura superar as outras. Então, sua alma recobra a serenidade. Muitas pessoas consideram que o período da sua juventude foi o mais feliz e agradável da sua vida. Mas, na verdade, não é assim. Os anos da juventude são os mais penosos, pois que então se está submetido à disciplina; raramente se tem um amigo verdadeiro e, mas raramente ainda, se goza de liberdade. Horácio já o dissera: Multa tulit fecitque puer; sudavit et alsit. As crianças devem ser instruídas apenas naquelas coisas adaptadas à sua idade. Muitos pais se alegram vendo os filhos proferirem discursos de velhos; tais crianças a nada chegam. Uma criança não deve ter senão a prudência de uma criança; e não deve se transformar num imitador cego. Ora, uma criança que apresenta as máximas do senso próprio de homens feitos está fora do caminho traçado para a sua idade e não faz senão imitar. Ela deve ter apenas a inteligência de uma criança e não deve se pôr em evidência muito cedo. Uma criança assim conformada não se tornará jamais um homem ilustrado e de mente serena. É igualmente insuportável que uma criança queira seguir toda moda, por exemplo, cortar a barba, usar pulseiras e também uma tabaqueira. Torna-se desse modo uma pessoa afetada, o que não fica bem numa criança. Uma verdadeira sociedade civil é um peso para ela, e termina por faltar-lhe inteiramente a coragem de um homem. É preciso, pois, combater cedo a sua vaidade, ou melhor ainda, não dar ocasião de torna-se vaidosa. O que acontece, quando não se faz outra coisa que repetir-lhes desde cedo que são bonitas, que esse ou aquele adorno lhes cai muito bem, ou se lhes promete ou dá um adorno como prêmio. Adornos não servem para crianças. Devem ser suas vestes limpas e simples, atendendo às necessidades. Mas os pais, eles próprios, não deem muito valor a isso e evitem passar muito tempo frente ao espelho; uma vez que, como em todas as coisas, o exemplo tem enorme eficácia e fortifica ou destrói os bons preceitos. SOBRE A EDUCAÇÃO PRÁTICA Pertencem à educação prática: 1. A habilidade; 2. A prudência; 3. A moralidade. No que toca à habilidade, requer-se que seja sólida e não passageira. Não se deve mostrar ares de quem conhece algo que não se possa depois traduzir em ações. A habilidade deve, antes de qualquer coisa, ser bem fundada e tornar-se pouco a pouco um hábito do pensar. É o elemento essencial do caráter de um homem. A habilidade é necessária ao talento. A prudência consiste na arte de aplicar aos homens a nossa habilidade, ou seja, de nos servir dos demais para os nossos objetivos, Para isso são necessárias muitas condições. A habilidade vem propriamente em último lugar no homem, mas pelo seu valor fica em segundo. Se um jovem deve entregar-se à prudência, é preciso que se torne dissimulado e impenetrável e que saiba escrutar os demais. Com relação ao caráter, sobretudo, deve dissimular. A arte da aparência é o decoro e é preciso ter essa arte. É difícil escrutar os outros; mas deve-se necessariamente entender dessa arte; ao contrário, deve tornar-se impenetrável. Pertence a essa arte a dissimulação, isto é, esconder os próprios defeitos e manter a aparência externa. A dissimulação não quer dizer sempre fingimento e pode, às vezes, ser permitida; mas aproxima-se da deslealdade. A dissimulação é um meio desesperado. Pertence à prudência mundana o não se irritar; mas também, ao contrário, que não se apareça como indolente. Não se deve, portanto, ser violento, mas enérgico. Ser enérgico é diferente de ser violento. Homem enérgico (stremus) é aquele que se compraz no querer. Essa qualidade modera as paixões. A prudência mundana concerne ao temperamento. A moralidade diz respeito ao caráter. Sustine, abstine: essa é a maneira de se preparar para uma sábia moderação. Se se quer formar um bom caráter, é preciso antes domar as paixões. No que toca às suas tendências, o homem não deve deixá-las tornarem-se paixões, antes deve aprender a privar-se um pouco quando algo lhe é negado. Sustine quer dizer: suporta e acostuma a suportar! Para se aprender a se privar de alguma coisa é necessário coragem e certa inclinação. É preciso acostumar-se às recusas, à resistência etc. A simpatia pertence ao temperamento. Convém evitar nas crianças uma compaixão carregada de nostalgia e languidez. A compaixão é na verdade sentimentalismo; convém apenas a um caráter sentimental. Distingue-se da piedade, e é um mal, o qual consiste simplesmente em lamentar as coisas. Dever-se-ia dar às crianças um pouco de dinheiro, para que possam ajudar aos necessitados: dessa forma, poder-se-ia ver se têm compaixão, ou não, pelos outros. Quando os filhos não são generosos senão com o dinheiro dos pais, então não são generosos. A máxima festina lente significa uma operosidade constante, pela qual se deve apresar a aprender muitas coisas, isto é, festina. Mas é preciso aprender com profundidade e, para isso, dedicar tempo, isto é, lente. Existe uma questão: é preferível uma grande quantidade de conhecimentos a uma menor soma, porém, mais sólida? Vale mais saber pouco, mas sabê-lo bem, que saber muito, superficialmente; pois que, nesse caso, se perceberá afinal sempre a superficialidade. Mas a criança ignora em quais circunstâncias precisa destes ou daqueles conhecimentos; por isso é melhor que saiba solidamente alguma coisa; de modo contrário, ela enganaria e perturbaria os outros com seus conhecimentos superficiais. A etapa suprema é a consolidação do caráter. Consiste na resolução firme de querer fazer algo e colocá-lo realmente em prática. Vir propositi tenax, diz Horácio; eis aí um bom caráter! Se, por exemplo, prometi algo a alguém, devo manter minha promessa, mesmo que isso acarrete algum dano. Porque um homem que toma uma decisão, e não a cumpre, não pode ter confiança em si mesmo. Se, por exemplo, tendo decidido alguém levantar-se cedo todos os dias para estudar, ou para fazer qualquer outra coisa, mesmo para passear, e depois não cumpre, escusando-se porque na primavera faz muito frio de manhã e poderia lhe fazer mal, no verão é gostoso dormir e gosta demais de dormir e adia sempre a decisão, acaba por perder toda confiança em si mesmo. Tudo o que se opõe à moral deve, ser excluído dos propósitos. Num homem mau o caráter é muito ruim. Aqui se trata de obstinação, ainda que se aprecie sempre vê-lo seguir suas decisões e permanecer constante; se bem que mais valeria vê-lo constante no bem. Pouco se pode esperar daquele que adia sempre o cumprimento dos seus propósitos. A assim chamada conversão futura é desse teor. De fato, um homem que viveu sempre no vício e queira converter-se num instante não pode consegui-lo; pois não pode acontecer o milagre de que, num piscar de olhos, ele possa se tornar o que o outro é, o qual viveu honestamente e pensou corretamente a vida inteira. Por isso, nada podemos esperar das peregrinações, das mortificações e dos jejuns; pois que não se vê como peregrinações e os rituais possam transformar um homem vicioso num homem honesto de uma hora para outra. Que adianta à honestidade e à melhora dos costumes o jejum de um dia, salvo para comer demais à noite ou infligir ao corpo um castigo que nada traria à conversão da alma? Se quisermos solidificar o caráter moral das crianças, urge seguir o que segue. É preciso ensinar-lhe, da melhor maneira, através de exemplos e com regras, os deveres a cumprir. Esses deveres são aqueles costumeiros, que as crianças têm em relação a si mesmas e aos demais. Eles se deduzem da natureza das coisas. Vejamos mais de perto em que consistem. a) Deveres para consigo mesmas. Não consistem em arranjar roupas magníficas, em buscar lautos banquetes etc., conquanto no vestir e no comer deva-se buscar a conveniência. Tampouco consistem em procurar satisfazer desejos e inclinações, pois deve-se, ao contrário, ser comedido e sóbrio; mas consistem em conservar uma certa dignidade interior, a qual faz do homem a criatura mais nobre de todas; é seu dever não renegar em sua própria pessoa essa dignidade da natureza humana. Ora, renegamos essa dignidade quando, por exemplo, nos entregamos à embriaguez, ou a vícios contra a natureza, ou a qualquer sorte de intemperança, e assim por diante; coisas essas que colocam os homens abaixo dos animais. Nem menos contrário à dignidade humana é o aviltar-se diante de outro, ou recobri-lo de cumprimentos, para insinuar-se, segundo ele presume; também isso é contrário à dignidade humana. Dever-se-ia fazer a criança perceber a dignidade humana em sua própria pessoa, por exemplo, no caso de sordidez, a qual pelo menos desdiz da humanidade. A criança pode, porém, colocar-se abaixo da dignidade humana quando mente, desde que já possa pensar e comunicar seus pensamentos aos demais. A mentira torna o homem um ser digno do desprezo geral e é um meio de tirar a estima e credibilidade que cada um deve a si mesmo. b) Deveres para com os demais. Deve-se inculcar desde cedo nas crianças o respeito e atenção aos direitos humanos e procurar assiduamente que os ponha em prática. Por exemplo, se uma criança encontra outra, pobre, e a afasta rudemente do seu caminho ou bate nela etc., não se deve dizer "Não faça isso; isso machuca, tenha dó, é um pequeno infeliz" etc.; ao contrário, precisa ser tratada com a mesma arrogância e deve-se fazê-la sentir vivamente quanto sua conduta é contrária ao direito de humanidade. As crianças não possuem de fato generosidade. Para persuadir-se disso basta, por exemplo, que os pais imponham a seu filho que dê a outra criança a metade do pão com manteiga sem prometer outra coisa em troca: ou o filho não obedece ou o faz muito raramente e de má vontade. Por outro lado, não se pode falar muito de generosidade às crianças, porque ainda nada está em seu poder. Muitos autores omitiram, ou explicaram falsamente, como Crugott, a parte da moral que compreende a doutrina dos deveres para consigo mesmo. O dever para consigo mesmo, porém, consiste, diríamos, em que o homem preserve a dignidade humana em sua própria pessoa. O homem, quando tem diante dos olhos a ideia de humanidade, critica a si mesmo. Nessa ideia ele encontra um modelo, com o qual se compara a si mesmo. Quando cresce em anos e começa a fazer-se sentir a inclinação ao sexo, então, é o momento crítico, em que somente a ideia de dignidade humana é capaz de conter o jovem. É preciso adverti-lo desde logo a evitar tal ou qual ação. Falta quase totalmente em nossas escolas uma coisa que, entretanto, seria muito útil para educar as crianças na honestidade, isto é, falta um catecismo do direito. Este deveria conter em versão popular de casos referentes à conduta que se há de manter na vida cotidiana, e que implicariam naturalmente sempre a pergunta: isso é justo ou injusto? Se alguém, por exemplo, que devesse pagar hoje ao seu credor, fica comovido à vista de um infeliz e lhe dá a quantia que deve pagar ao credor, está fazendo algo justo ou não? Não; injusto, pois se quero praticar a beneficência, devo estar livre de toda dívida. Se dou o dinheiro a um pobre, faço algo meritório; mas, pagando a dívida, cumpro um dever. Mais: é permitido mentir por necessidade? Não. Não se poderia conceber um único caso que se pudesse justificar, pelo menos diante das crianças; pois que, de outro modo, estas tomariam a menor coisa por necessidade e se permitiriam mentir frequentem ente. Se existisse um livro desse gênero, poder-se-ia gastar uma hora por dia, com grande utilidade, para ensinar as crianças a conhecerem e a acatarem os direitos humanos, essa menina dos olhos de Deus sobre a terra. Em relação à obrigação de fazer a beneficência, é um dever imperfeito. Importa menos enfraquecer que excitar o ânimo das crianças para torná-las sensíveis às desgraças alheias. Que a criança esteja completamente impregnada não pelo sentimento, mas pela ideia do dever! Muitas pessoas se tornaram realmente duras de coração, porque, tendo-se mostrado compassivas, foram frequentemente enganadas. É inútil tentar fazer as crianças sentirem o lado meritório das ações. Os padres cometem frequentemente o erro de apresentar os atos de beneficência como algo meritório. Mesmo sem pensar que, em relação a Deus, não podemos fazer mais que o nosso dever; fazer benefícios aos pobres é simplesmente nosso dever. Já que a desigualdade de bem-estar entre os homens deriva de meras condições ocasionais. Se possuo bens de fortuna, devo agradecer àquelas circunstâncias, que são devidas a num, ou a quem me precedeu; e, entretanto, a relação ao todo social permanece sempre a mesma. Excita-se a inveja de uma criança, levando-a a se estimar pelo valor dos outros. Ela deve, ao contrário, estimar-se pelos conceitos da própria razão. Assim, a humildade não é propriamente senão um conforto do valor próprio com a perfeição moral. A religião cristã, por exemplo, não ensina a humildade, senão que humilha os homens, porque, em consequência da humildade, o homem deve comparar-se com o mais alto exemplo de perfeição. Fazer consistir a humildade no estimar-se menos que os demais é muito errado. "Vede como esta ou aquela criança se comporta bem!" ou expressões semelhantes: falar desse modo à criança provoca nelas certamente pensamentos ignóbeis. Quando o homem se estima pelo valor dos outros, procura ou elevar-se acima deles ou diminuir o valor dos outros. O segundo caso é próprio da inveja. Não se pensa senão em encontrar defeitos nos outros; se o outro aí não estivesse, não se poderiam fazer comparações e aparecer-se-ia como o melhor. O espírito de emulação mal aplicado produz a inveja. O caso em que a emulação serviria para algo seria o de convencer alguém de que algo pode ser feito, por exemplo, quando exijo de uma criança que aprenda uma matéria e lhe mostro que as outras o conseguem. De modo algum é permitido a uma criança humilhar outra. É conveniente dedicar-se a afastar toda soberba baseada nas vantagens da sorte. Mas é necessário ao mesmo tempo procurar solidificar a franqueza nas crianças. Esta é uma modesta confiança em si mesmo. Tal confiança põe o homem em condições de mostrar de modo conveniente os seus talentos. Deve-se distinguir a franqueza da arrogância; esta consiste na indiferença diante dos juízos dos outros. Todos os apetites humanos são ou formais (liberdade e poder), ou materiais (relativos a um objeto), como desejos de adulação ou de prazer; ou, finalmente, dizem respeito à simples duração dessas duas coisas, como elementos da felicidade. São apetites da primeira espécie: a ambição das honras, do poder e a das riquezas. Pertencem à segunda espécie os apetites: do prazer sexual (volúpia), do gozo material (bem-estar material) e do gozo social (gosto do entretenimento). São, enfim, desejos da terceira espécie: o amor à vida, à saúde, à comodidade (estar livre de preocupações no futuro). Os vícios são: ou os da malignidade, ou os da baixeza, ou os de estreiteza de ânimo. À primeira espécie pertencem a inveja, a ingratidão e a alegria pela desgraça alheia. À segunda, a injustiça, a infidelidade (falsidade), a incontinência, tanto na dissipação dos próprios bens como na da própria saúde (intemperança) e da própria reputação. À terceira, a dureza de coração, a avareza e a preguiça (moleza). As virtudes são: ou de puro mérito, ou de estrita obrigação, ou de inocência. A primeira classe compreende: a magnanimidade (que consiste no conter-se, seja na cólera, seja no amor da comodidade e das riquezas), a beneficência e o domínio de si mesmo. Pertencem à segunda classe: a lealdade, a decência e a pacificidade. Pertencem, enfim, à terceira classe: a honradez, a modéstia e a temperança. Pergunta: o homem é moralmente bom ou mau por natureza? Não é bom nem mau por natureza, porque não é um ser moral por natureza. Torna-se moral apenas quando eleva a sua razão até aos conceitos do dever e da lei. Pode-se, entretanto, dizer que o homem traz em si tendências originárias para todos os vícios, pois tem inclinações e instintos que o impulsionam para um lado, enquanto sua razão o impulsiona para o contrário. Ele, portanto, poderá se tornar moralmente bom apenas graças à virtude, ou seja, graças a uma força exercida sobre si mesmo, ainda que possa ser inocente na ausência dos estímulos. A maior parte dos vícios deriva daquele estado de civilização que violenta a natureza; e é nossa destinação, como seres humanos, sair do estado natural de barbárie animal. A arte torna-se natureza. Na educação tudo depende de uma coisa: que sejam estabelecidos bons princípios e que sejam compreendidos e aceitos pelas crianças. Estas devem aprender a substituir ao ódio o horror do que é nojento e inconveniente; a aversão interior em lugar da aversão exterior diante dos homens e das punições divinas; a estima de si mesmas e a dignidade interior em lugar da opinião dos homens; o valor intrínseco do comportamento e das ações em lugar das palavras e dos movimentos da índole; o entendimento em lugar do sentimento; a alegria e serenidade no bom humor em lugar da devoção triste, temerosa e tenebrosa. Mas é preciso, antes de tudo, preservar os jovens do perigo de estimar demais os méritos da sorte (merita fortunae). No que se diz respeito à educação das crianças na perspectiva da religião, surge em primeiro lugar a pergunta: é possível inculcar desde cedo nas crianças os conceitos religiosos? Eis uma questão pedagógica sobre a qual muito se disputou. Os conceitos da religião supõem alguma Teologia. Ora, dever-se-ia ensinar uma Teologia no início da infância, quando ainda não conhece o mundo e sequer a si mesma? As crianças, as quais não têm ainda a noção do dever, poderiam entender um dever direto em relação a Deus? O que acontece certamente é que, se fosse possível acontecer que as crianças jamais estivessem presentes a ato algum de veneração ao Ente Supremo, e não ouvissem jamais pronunciar o nome de Deus, seria, então, consentâneo à natureza das coisas atrair primeiro a sua atenção para os fins e para tudo quanto se relaciona ao homem, exercitar o seu julgamento, instruí-las a respeito da ordem e da beleza da natureza, acrescentar depois um conhecimento mais vasto e perfeito do sistema do universo, e chegar, assim, ao conceito de um Ente Supremo, de um legislador. Mas, porque nada disso é possível na nossa presente situação, assim, se se quisesse ensinar-lhes apenas depois algo sobre Deus e elas ouvissem o nome de Deus e contemplassem os atos de devoção a Ele, isso produziria nelas ou uma grande indiferença ou conceitos falsos, como, por exemplo, o temor do poder de Deus. Ora, porque se deve evitar que tais conceitos se instalem na imaginação das crianças, deve-se, para evitá-los intentar desde cedo, inculcar-lhes os conceitos religiosos. O que, por outro lado, não deve ser um mero exercício de memória, nem também uma simples imitação e macaquice, mas, ao contrário, o caminho escolhido precisa concordar sempre com a natureza. As crianças, mesmo não tendo ainda o conceito abstrato do dever, da obrigação, da conduta boa ou má, entendem que há uma lei do dever e que esta não deve ser determinada pelo prazer, pelo útil ou semelhante, mas por algo universal que não se guia conforme os caprichos humanos. Antes, o próprio mestre deve formar para si mesmo esse conceito. Em primeiro lugar, tudo deve ser referido à natureza e esta, a Deus, como, por exemplo: primeiramente, que tudo está disposto para a conservação das espécies e seu equilíbrio, mas indiretamente para o homem, a fim de que ele se faça feliz. O melhor modo de dar um conceito claro de Deus seria compará-lo desde cedo por analogia ao conceito de um pai, sob cujos cuidados estamos; chega-se, assim, com felicidade a uma unidade do gênero humano como uma só família. Em que, afinal, consiste a religião? Esta é a lei que reside em nós mesmos, na medida em que recebe de um legislador e de um juiz a autoridade que tem sobre nós; é uma moral aplicada ao conhecimento de deus. Se uma religião não se une à moral, então ela se torna simplesmente um modo de solicitar os favores. Os cânticos, as preces, o frequentar a igreja, tudo isso deve servir unicamente para dar aos homens novas forças e nova coragem para se tornarem melhores; ou ser a expressão de um coração animado pela representação do dever. Tudo isso é preparação para as boas obras, mas não é boa obra em si. Não podemos agradar ao Ser Supremo, a não ser tornando-nos melhores. Antes de tudo, convém ensinar às crianças a lei que têm dentro de si. O homem torna-se desprezível a seus próprios olhos quando cai no vício. Esse desprezo tem sua razão no próprio homem, e não na consideração de que Deus proibiu o mal. Posto que não é necessário que o legislador seja ao mesmo tempo autor da lei. Um príncipe pode proibir o furto no seu país, sem que seja tido como o autor da proibição. Assim, o homem reconhece que a sua conduta correta é a única que pode torná-lo digno de felicidade. A lei divina deve aparecer ao mesmo tempo como lei natural, pois que não é arbitrária. A religião adentra, pois, na moralidade. Mas não é preciso começar pela Teologia. A religião que estiver fundamentada unicamente na Teologia nada pode conter da moralidade. Nessa situação o homem terá apenas, de um lado, temor, e de outro, intenção e vontade de ser premiado; o que provocará um culto supersticioso. A moral deve, portanto, preceder; a Teologia deve seguir aquela; isto é religião. A lei, considerada em nós, se chama consciência. A consciência é de fato a referência das nossas ações a essa lei. Os remorsos de consciência permanecerão ineficazes, enquanto não os considerarmos como representantes de Deus, que erigiu sobre nós um trono sublime, mas também uma cátedra de juiz dentro de nós. Se a religião não vem acompanhada pela consciência moral, permanece ineficaz. A religião sem a consciência moral é um culto supersticioso. Pretende-se servir a Deus, por exemplo, louvando-o, celebrando seu poder e sabedoria, sem, entretanto, buscar observar as leis divinas, sequer conhecendo sua sabedoria e poder etc., nem procurando seus vestígios. Tais louvores são uma espécie de narcótico para a sua consciência e uma espécie de travesseiro no qual podem repousar tranquilamente. As crianças não estão aptas para entender todos os conceitos religiosos, mas podemos inculcar-lhes alguns: estes devem ser antes negativos que positivos. É inútil fazermos as crianças recitarem fórmulas; isso não lhes dá senão uma ideia falsa da piedade. O verdadeiro modo de louvar a Deus consiste no agir segundo sua vontade: isso precisa ser incutido nas crianças. Em relação às crianças e a nós mesmos devemos cuidar para que o nome de Deus não seja tão frequentemente mal-usado. Invocá-lo nas felicitações, mesmo com propósitos piedosos, é um abuso. Quando se usa o nome de Deus, seu conceito deve estar presente com reverência; o homem deveria, portanto, usá-lo raramente e nunca com ligeireza. A criança deve aprender a reverenciar a Deus primeiro como Senhor da sua vida e do universo; depois como providente e, finalmente, como seu juiz. Refere-se que Newton parava e meditava um pouco toda vez que pronunciava o nome de Deus. Através da elucidação conjunta dos conceitos de Deus e do dever, a criança aprende melhor a respeitar a providência divina com as suas criaturas e fica preservada da tendência à destruição e à crueldade, cuja tendência de tantas maneiras se manifesta, quando judiam de pequenos animais. Ao mesmo tempo, dever-se-ia instruir os jovens a descobrir o bem no mal, por exemplo, modelos de limpeza e operosidade nos animais de rapina e nos insetos. Homens maus encorajam a criação da lei. Os pássaros, que caçam vermes, são os defensores dos jardins, e assim por diante. É preciso, pois, inculcar nas crianças certas noções sobre o Ente Supremo, a fim de que, quando virem os demais rezar etc., possam saber a quem e por que isso é feito. Mas tais noções devem ser pouco numerosas e, como dissemos acima, apenas negativas. Devem ser-lhes inculcadas desde a mais tenra idade, mas, ao mesmo tempo, deve-se cuidar para que as crianças não estimem os homens conforme a prática da respectiva religião, pois, apesar da diversidade dos cultos religiosos, a religião é por toda parte uma só. Queremos aqui, para concluir, acrescentar algumas considerações que cabem ser observadas de modo especial pelos que entram na juventude. Nessa idade, o rapaz começa a fazer certas distinções que antes não fazia. Em primeiro lugar, a distinção dos sexos. A natureza de algum modo aí lançou um manto secreto, como se aí houvesse qualquer coisa menos decente para o homem, e como se se tratasse de uma mera necessidade animal. Mas a natureza procurou unir esse assunto a toda espécie de moralidade possível. Nesse ponto, até os povos selvagens conservam uma espécie de pudor e moderação. As crianças fazem, às vezes, perguntas indiscretas sobre esse assunto aos adultos, por exemplo: donde nascem as crianças? Mas deixam-se contentar facilmente, ou com respostas insignificantes ou dizendo-lhes que a pergunta é própria de crianças. No adolescente o desenvolvimento dessas tendências é mecânico; e, como em todos os instintos, se desenvolvem sem precisar conhecer o objeto de antemão. Nesse assunto é, pois, impossível manter o adolescente na ignorância e na inocência que a acompanha. O silêncio não faz senão agravar o mal. Pode-se ver isso na educação dos nossos antepassados. Segundo a educação do nosso tempo, admite-se de modo correto que é preciso falar dessas coisas ao adolescente, sem circunvoluções, de modo claro e preciso. É certo que se trata de um assunto delicado, uma vez que não se toma como objeto de conversas públicas. Mas tudo anda bem se lhe falamos a respeito de modo sério e conveniente, e se entramos no jogo de suas inclinações. A idade de treze ou quatorze anos é a idade em que geralmente se desenvolve nos adolescentes a tendência ao sexo (se acontece antes, significa que a criança foi corrompida e perdida por maus exemplos). Nessa idade, o seu juízo já está formado e a natureza providenciou que possamos discorrer sobre assuntos com eles. Não há coisa que enfraqueça tanto o espírito e o corpo quanto a forma de voluptuosidade voltada a si mesma; ela é totalmente contrária à natureza humana. Entretanto, não se deve mantê-la oculta ao adolescente. É preciso mostrá-la em toda sua feiura, e dizer que através dela ele se torna desadaptado à propagação da espécie, que arruína ao máximo as forças físicas, que acarreta uma velhice precoce, que consome o espírito etc. Pode-se fugir das tentações desse tipo através de ocupações constantes e não dedicando à cama e ao sono senão as horas necessárias. O adolescente deve espantar de si esses maus pensamentos através das ocupações, pois o objeto só existe na imaginação, ele se nutre da força vital. Se a inclinação se dirige ao sexo oposto, pelo menos encontra alguma resistência; porém, quando se dirige ao próprio indivíduo, pode ser satisfeita a todo momento. O efeito sobre o corpo é péssimo; mas as consequências morais são ainda piores. Transgridem-se os limites da natureza, e a tendência jamais se aquieta, pois que não encontra jamais uma satisfação real. Alguns preceptores de jovens propuseram a seguinte questão: pode ser permitido a um jovem unir-se a pessoa do outro sexo? Se fosse necessário escolher entre as duas situações, a segunda é certamente a melhor. No primeiro caso, o jovem age contra a natureza; mas, no segundo, não. A natureza o predispôs a se tornar homem, logo que se torna maior, e também a propagar a sua espécie. Mas as necessidades às quais deve necessariamente atender na sociedade civilizada não lhe permitem ainda criar filhos. Aqui, pois, ele vai contra a ordem civil. A melhor saída para o jovem, e isso é também para ele um dever, é esperar até que esteja em condições de casar-se convenientemente. Então, ele age não somente como homem de bem, mas também como bom cidadão. O jovem deve aprender desde cedo a demonstrar para com o outro sexo todo o respeito que lhe é devido, a ganhar a sua estima com louvável diligência, e assim aspirar ao alto prêmio de um casamento feliz. Outra diferença que o adolescente, já próximo de entrar na sociedade, começa a apresentar é aquela que diz respeito ao conhecimento das diferenças de condição e da desigualdade entre os homens. Enquanto é criança, não é de modo algum necessário que note tal diferença. Não se lhe deve permitir dar ordens aos domésticos. Se observam que seus pais dão essas ordens, pode-se-lhe em todo caso dizer: "Nós os mantemos e eles nos obedecem. Tu não faças isso e, portanto, eles não devem obedecer-te". As crianças ignoram totalmente essa diferença, caso os próprios pais não lhes causem essa ilusão. Convém demonstrar aos adolescentes como a desigualdade entre os homens é certa ordem de coisas derivada das vantagens que algum homem buscou em relação a outro. A consciência da igualdade dos homens na desigualdade da ordem civil pode ser inspirada aos poucos. É necessário acostumar o jovem a se estimar absolutamente e não relativamente aos outros. A estima dos outros, em tudo aquilo que não constitui de fato o valor do ser humano, é vaidade. É preciso, além disso, ensinar ao adolescente a fazer tudo conscienciosamente, e a ter todo cuidado, não tanto em aparecer, mas em ser. Deve-se-lhe fazer estar atento a que não deixe se tornar de modo algum um propósito vazio o propósito que fez; é preferível não tomar nenhuma resolução e deixar em suspenso: moderação em circunstâncias exteriores, tolerância nas fadigas: sustine et abstine, moderação nos prazeres. Quando o homem não busca unicamente os prazeres, mas tem paciência nas fadigas, torna-se membro útil à comunidade e fica livre do tédio. Convém também orientar o jovem para a alegria e o bom humor. A alegria do coração deriva da consciência tranquila, da igualdade de humor. Pode-se levá-lo através do exercício a tornar-se membro conveniente da sociedade. Deve-se também orientá-lo a considerar muitas coisas como deveres. Devo considerar uma ação como valiosa, não porque se adapta à minha inclinação, mas porque através dela eu cumpro o meu dever. Deve-se orientar o jovem à humanidade no trato com os outros, aos sentimentos cosmopolitas. Em nossa alma há qualquer coisa que chamamos de interesse: 1. Por nós próprios; 2. Por aqueles que conosco cresceram; e, por fim, 3. Pelo bem universal. É preciso fazer os jovens conhecerem esse interesse para que eles possam por ele se animar. Eles devem alegrar-se pelo bem geral mesmo que não seja vantajoso para a pátria, ou para si mesmo. Convém orientá-los a dar pouco valor ao gozo dos prazeres da vida. Assim, perderá o temor pueril da morte. É preciso demonstrar aos jovens que o prazer não deixa conseguir o que a imaginação promete. É preciso, por fim, orientá-los sobre a necessidade de, todo dia, examinar a sua conduta, para que possam fazer uma apreciação do valor da vida, ao seu término.