Immanuel Kant - Prolegômenos Estes Prolegômenos não são para serem utilizados por aprendizes, mas por futuros mestres e a estes devem servir, não para ordenar a exposição de uma ciência já existente, mas para, antes de tudo, inventarem eles mesmos esta ciência. Há eruditos para os quais a história da filosofia (tanto da antiga como da moderna) é a sua própria filosofia; os presentes Prolegômenos não foram escritos para eles. Eles devem esperar até que aqueles, que estão empenhados em sorver das fontes da razão, tenham levado a cabo sua tarefa: só então terá chegado a sua vez de dar a conhecer ao mundo o seu trabalho. Na opinião deles, entretanto, nada que já não tenha sido dito pode vir a sê-lo, o que de fato pode servir para uma segura previsão do futuro, pois, tendo o conhecimento humano divagado durante séculos de tal maneira sobre inumeráveis assuntos, não deve ser difícil encontrar para cada obra nova uma antiga, que tenha algumas semelhanças com ela. Minha intenção é a de convencer a todos aqueles que consideram valer, a pena ocupar-se com a metafísica: é absolutamente necessário abandonar por enquanto seu trabalho, considerar tudo o que já aconteceu até agora como inexistente e antes de tudo lançar a questão: "Será que algo como a metafísica é realmente possível?". Se ela é uma ciência, como é que não obtém, como as outras ciências, aplauso unânime e duradouro? Se ela não é uma ciência, como explicar que se vanglorie incessantemente sob o brilho de uma ciência e iluda o entendimento humano com esperanças nunca saciadas e nunca realizadas? É necessário, portanto, chegar-se a uma conclusão segura a respeito da natureza desta pretensa ciência, quer isto demonstre saber ou ignorância, pois ela não pode permanecer por mais tempo no pé em que está. Parece quase ridículo que cada ciência progrida sem cessar, enquanto que esta, que pretende ser a própria sabedoria, cujo oráculo cada homem consulta, continue girando num mesmo círculo, sem dar um passo adiante. Também seus adeptos se perderam e nem se nota que aqueles, que se sentem suficientemente fortes para brilhar em outras ciências, queiram arriscar sua fama nesta, onde cada um, mesmo ignorante em tudo o mais, pretende ter o direito de formular um julgamento decisivo, porque na verdade ainda não existem neste país medida e peso seguros para distinguir profundidade de palavreado superficial. Não é, pois, de se admirar que, depois de ter elaborado longamente uma ciência e esteja surpreendido com os resultados, ocorra a alguém perguntar-se: é possível tal ciência e de que modo? Pois a razão humana gosta tanto de construir que já por inúmeras vezes edificou a torre, derrubando-a depois, para verificar o bom estado de seu fundamento. Nunca é tarde demais para tornar-se racional e sábio; mas é difícil, em qualquer circunstância, pôr em ação o discernimento, se ele chega tarde. Chegar a perguntar-se se uma ciência é possível pressupõe que se duvide da realidade da mesma. Tal dúvida, porém, ofende a todos aqueles cuja riqueza consiste talvez justamente neste pretenso tesouro; assim se explica que aquele que deixa transparecer esta dúvida só encontre resistência à sua volta. Alguns, orgulhosamente cônscios de seus bens, adquiridos há muito tempo, e por isso mesmo considerados legítimos, irão, com seus compêndios metafísicos na mão, olhá-lo com desdém; outros, que nunca conseguem ver algo que não seja idêntico ao já visto em outra parte, não irão compreendê-lo ; e tudo permanecerá assim durante algum tempo, como se nada houvesse ocorrido capaz de acarretar ou de fazer esperar uma transformação próxima. Do mesmo modo atrevo-me a predizer que o leitor, capaz de pensar por si próprio, irá, ao ler estes Prolegômenos, não só duvidar da ciência que possuiu até agora, mas de ficar por consequência totalmente convencido de que tal ciência não poderia ter existido sem que as exigências aqui expressas, e nas quais se baseia sua possibilidade, sejam atendidas, e como isto até agora nunca aconteceu, não há ainda uma verdadeira metafísica. Mas como a procura por ele nunca pode ser renunciada porque o interesse da razão humana universal está intimamente entrelaçado com ela, deverá o leitor admitir que está prestes a acontecer uma reforma completa e inevitável, ou, mais ainda, um renascimento da metafísica segundo um plano até agora desconhecido, mesmo que se queira resistir a isto por algum tempo. Desde as tentativas de Locke e Leibniz, ou, mais ainda, desde a criação da metafísica, por mais longe que remonte a sua história, não houve acontecimento algum que fosse mais decisivo em relação ao destino desta ciência do que a ofensiva levada a efeito por David Hume contra ela. Ele não trouxe luz a esta espécie de conhecimento, mas despertou uma centelha, na qual se poderia ter acendido uma luz, se ele tivesse encontrado uma mecha inflamável, cujo arder fosse cuidadosamente mantido e aumentado. Hume tomou como ponto de partida um único mas importante conceito da metafísica, ou seja, o da conexão entre causa e efeito (e, por conseguinte, os conceitos daí derivados, de força e de ação, etc.); desafiou a razão, que pretende ter gerado este conceito em seu seio, a responder-lhe precisamente com que direito ela pensa que uma coisa possa ter sido criada de tal maneira que, uma vez posta, possa-se depreender daí que outra coisa qualquer também deva ser posta; pois isso é o que afirma o conceito de causa. Demonstrou de maneira irrefutável ser totalmente impossível à razão pensar esta conexão a priori e a partir de conceitos, pois ela encerra necessidade; não é, pois, possível conceber que, pelo fato de uma coisa ser, outra coisa deva ser necessariamente e como seja possível introduzir a priori o conceito de tal conexão. A partir daí concluiu que a razão se engana completamente com este conceito ao considerá-lo sua própria criação, já que ele não passa de um bastardo da imaginação, a qual, fecundada pela experiência, colocou certas representações sob a lei da associação, fazendo passar a necessidade subjetiva que daí deriva, ou seja, um hábito, por uma necessidade objetiva baseada no conhecimento. A partir daí concluiu que a razão não tem a faculdade de pensar em tais conexões, mesmo de um modo geral, porque seus conceitos não passariam então de simples ficções e todos os seus pretensos conhecimentos a priori não seriam mais do que experiências comuns mal rotuladas, o que equivale a afirmar: não há em parte alguma e nem pode haver uma metafísica. (Não obstante, Hume denominou esta mesma filosofia destrutiva de metafísica e atribuiu-lhe um grande valor. "Metafísíca e moral", diz ele (Versuche, 4.a parte, p. 214 da tradução alemã), "são os ramos mais importantes da ciência; a matemática e a ciência da natureza não têm nem a metade do seu valor." Este homem perspicaz viu aqui apenas a utilidade negativa que teria a limitação das exigências exageradas da razão especulativa para eliminar controvérsias intermináveis e inoportunas que confundem o gênero humano; mas perdeu de vista o prejuízo positivo que resulta de tomar da razão as mais importantes, baseada nas quais ela pode-impor à vontade o mais alto objetivo de todas as suas aspirações. Nota do Autor). Por mais precipitada e incorreta que fosse sua conclusão, baseava-se pelo menos numa investigação, e esta investigação merecia certamente que os bons cérebros de sua época se tivessem unido para dar ao problema, exposto por Hume, uma solução talvez mais feliz, o que teria propiciado uma reforma total da ciência. Mas o destino, desde há muito desfavorável à metafísica, não permitiu que Hume fosse compreendido por alguém. Não se pode deixar de sentir certa pena ao verificar como seus adversários Reid, Oswald, Beattie e finalmente Pristley não haviam percebido nem de longe o ponto crucial da questão, pois tomavam como ponto pacífico justamente aquilo de que ele duvidava, procurando demonstrar, ao contrário, com ardor e muitas vezes com grande arrogância, aquilo que Hume jamais pensara em pôr em dúvida, ignorando de tal maneira o seu aceno para uma renovação que tudo permaneceu no antigo estágio, como se nada tivesse acontecido. A questão não era se o conceito de causa era certo, útil e indispensável a todo o conhecimento da natureza, pois isso Hume nunca colocara em dúvida; mas se era concebido a priori pela razão, tendo desta maneira uma verdade interior independente de toda experiência e, por conseguinte, uma utilidade mais ampla não limitada simplesmente aos objetos da experiência: a respeito disso, esperava Hume um esclarecimento. Estava em cogitação apenas a origem deste conceito e não sua utilidade indispensável; uma vez determinada esta origem, apresentar-se-iam espontaneamente as condições de sua utilização bem como o âmbito de sua aplicação. Mas os adversários deste homem célebre deveriam ter penetrado, para que sua tarefa fosse satisfatoriamente cumprida, profundamente na natureza da razão enquanto ela se ocupa apenas com o pensamento puro, o que lhes era muito penoso. Inventaram então um meio mais cômodo para não ir contra todo o conhecimento, ou seja, apelar para o entendimento humano comum. É de fato uma grande dádiva do céu possuir um entendimento reto (ou, como recentemente o denominaram entendimento sadio). Mas ele deve ser provado por fatos, pelo que se pensa e se diz de refletido e racional, e não quando é utilizado como oráculo, quando não se sabe dizer nada inteligente para se justificar. Apelar para o entendimento comum somente quando conhecimento e ciência chegam a seu fim, e não antes, é uma das sutis invenções da época moderna, com o que o mais insípido tagarela chega a afrontar, confiadamente, a mais penetrante cabeça e resistir-lhe. Mas enquanto houver uma parcela mínima de conhecimento, é oportuno resguardar-se de recorrer a este expediente desesperado. E visto que este apelo claramente nada mais é do que um apelo ao juízo das massas: um aplauso, que faz enrubescer o filósofo, mas é objeto de orgulho e triunfo para o charlatão popular. Mas eu deveria pensar, na verdade, que Hume podia ter tanto direito de pretender possuir sadio entendimento quanto Beattie, e além disso, algo mais, que este certamente não possuía, ou seja, uma razão crítica, que delimite o entendimento comum para que ele não se perca em altas especulações, ou, quando se trata apenas destas, não aspire a decidir nada, porque não consegue justificar-se perante seus próprios princípios: pois somente assim permanecerá um entendimento sadio. Cinzel e malho podem muito bem servir para trabalhar um pedaço de madeira, mas para gravar no cobre é preciso utilizar o buril. Assim são ambos úteis, tanto o sadio entendimento como o entendimento especulativo, mas cada um à sua maneira; aquele, quando se tratam de juízos imediatamente aplicáveis na experiência, este, porém, quando se trata de julgar de maneira geral e a partir de simples conceitos, por exemplo na metafísica, onde o sadio entendimento, como se denomina a si mesmo, muitas vezes por antiphrasin, não possui absolutamente nenhum juízo. Confesso francamente: a lembrança de David Hume foi justamente o que há muitos anos interrompeu pela primeira vez meu sono dogmático e deu às minhas pesquisas no campo da filosofia especulativa uma direção completamente nova. Eu estava bem longe de dar ouvidos a suas conclusões, que resultavam simplesmente do fato de ele não se ter proposto sua tarefa em toda a sua amplitude, mas de ter visto apenas uma de suas partes, que, sem levar em consideração o todo, não pode dar informação alguma. Quando se parte de um pensamento já fundamentado, apesar de não mais ter sido desenvolvido, que outro nos deixou, pode-se esperar ser possível levá-lo, através da reflexão, mais além do que o perspicaz homem, a quem se deve a primeira centelha desta luz, o levou. Examinei em primeiro lugar, portanto, se a objeção de Hume não poderia ser tomada como geral e logo descobri que o conceito de conexão entre causa e efeito não é de modo algum o único pelo qual o entendimento pensa a priori as conexões entre as coisas, mas, muito mais do que isto, a metafísica é totalmente constituída disso. Procurei assegurar-me de seu número, e como isto me foi possível realizar conforme meu desejo, ou seja, a partir de um único princípio, passei a tratar da dedução desses conceitos, os quais, agora tinha certeza, não haviam sido deduzidos da experiência, como pensava Hume, mas originavam-se do entendimento puro. Esta dedução, que parecia impossível ao meu perspicaz predecessor e que a ninguém ocorrera antes dele, apesar de cada um ter se servido desses conceitos com segurança, sem nem sequer perguntar-se onde se baseava sua validade objetiva, esta dedução foi, portanto, a tarefa mais árdua que jamais se empreendeu a favor da metafísica; o pior nisso foi, entretanto, que a metafísica, ou o quanto existe dela sob este nome, não podia trazer-me o mínimo auxílio, pois a possibilidade de uma metafísica só se faz presente justamente por tal dedução. Por ter conseguido solucionar o problema de Hume, não apenas em um caso particular, mas tendo em vista todo o poder da razão pura, só assim, então, pude avançar a passos firmes, ainda que lentos, no sentido de determinar completamente e de acordo com princípios universais o âmbito da razão pura, tanto em seus limites como em seu conteúdo, pois isso era a única coisa da qual necessitava a metafísica para executar seu sistema segundo um plano seguro. Receio, porém, que aconteça à exposição do problema de Hume, apresentada da maneira mais extensa possível (a saber, à Crítica da Razão Pura); o mesmo que aconteceu ao próprio problema como foi apresentado pela primeira vez. Será julgada incorretamente, porque não é compreendida; não será compreendida, porque se tem prazer em folhear o livro, mas não em meditar sobre ele; não se quererá dispender tal esforço, porque a obra é árida, obscura, porque é contrária a todos os conceitos costumeiros e por demais pormenorizada. Confesso que não esperava ouvir de um filósofo queixas quanto à falta de popularidade, entretenimento e comodidade, quando se trata justamente da existência de um conhecimento de alta relevância, indispensável à humanidade que não pode ser estabelecido a não ser segundo as mais estritas regras de uma exatidão justa, à qual se seguirá, com o tempo, a popularidade, mas jamais logo de início. A queixa só é justa no que se refere a certa obscuridade, causada em parte pela extensão do plano, que não permite que se deixem de lado os pontos principais, dos quais depende a investigação; propus-me então a sanar esta queixa com estes Prolegômenos. A referida obra, que apresenta o poder da razão pura em todo o seu âmbito e limites, continua sendo sempre o fundamento ao qual estes Prolegômenos se referem como meros exercícios preliminares; pois aquela Crítica deve ser, enquanto ciência, sistemática e completa até os mínimos detalhes, antes de se pensar em permitir que surja a metafísica ou ter disso a mais remota esperança. Já se está há muito tempo habituado a ver surgir como novos velhos e gastos conhecimentos, retirados de suas relações anteriores, e dar-lhes uma indumentária sistemática, segundo um corte qualquer, mas sob novos títulos; a maioria dos leitores não estará esperando, antecipadamente, nada além disso daquela Crítica. Estes Prolegômenos, entretanto, levá-los-ão a ver que esta é uma ciência totalmente nova, na qual ninguém antes havia pensado, da qual a simples ideia era desconhecida e para a qual nada até agora pôde ser de utilidade, a não ser o aceno dado pelas dúvidas de Hume. Este também nem sequer pressentiu a possibilidade de tal ciência formal, mas, para colocar seu barco em lugar seguro, levou-o até a praia (ao ceticismo), onde poderia permanecer e apodrecer; em vez disso, me é de enorme importância dar-lhe um piloto que possa manobrar o barco com firmeza, de acordo com os princípios seguros da arte náutica, retirados do conhecimento do globo, e, munido de uma carta náutica completa e de um compasso, levá-lo para onde melhor lhe parecer. Abordar uma ciência nova, isolada e única em seu gênero, com o preconceito de poder julgá-la graças a pretensos conhecimentos anteriormente adquiridos, apesar de ser justamente de sua realidade que se deve, antes de tudo, duvidar, não leva a coisa alguma a não ser a crer ver em toda parte aquilo que já era conhecido em consequência de certa semelhança de expressões; só que isto tudo lhe deve parecer deformado, absurdo e totalmente confuso, porque se baseia, não no pensamento do autor, mas sempre só em seus próprios, que se tornaram pela força do hábito uma maneira de pensar tornada natureza. Mas a extensão da obra, na medida em que se funda na própria ciência e não na sua exposição, sua inevitável aridez e sua exatidão escolástica passam a ser qualidades vantajosas à coisa em si, tornando-se ao livro, entretanto, bastante prejudiciais. É verdade que nem a todos é dado escrever tão sutil e atrativamente como David Hume ou tão profunda e ao mesmo tempo elegantemente como Moses Mendelssohn; é certo que poderia ter dado um caráter popular à minha exposição (como me lisonjeio) se meu intuito fosse criar um plano, recomendando a outros sua execução e não levasse tão a sério o bem da ciência, que há tanto tempo me ocupa; pois requeria muita constância e não menor abnegação ceder o atrativo de uma acolhida favorável e mais rápida ao aplauso tardio, mas duradouro. Fazer planos é, na maioria das vezes, uma exuberante ocupação do espírito, uma fanfarronice pela qual se toma ares de gênio criador, ao se exigir o que não se pode produzir, ao censurar o que não se é capaz de fazer melhor e ao propor aquilo que nem se sabe onde encontrar, se bem que seria necessário, para um plano sério de uma crítica geral da razão, muito mais do que se pode supor; se não se quiser que ele se torne, como é comum, uma simples declamação de piedosos desejos. Pois a razão pura é uma esfera tão isolada, tão completamente conexa em si mesma, que não é possível tocar em uma de suas partes sem que se atinja todas as outras, e nada se pode fazer sem ter determinado a cada parte o seu lugar e sua influência sobre as outras; porque nada, a não ser ela, poderia corrigir interiormente nosso juízo; a validade e utilidade de cada parte dependem da relação que existe entre ela e as outras na própria razão, e, como acontece na estrutura de um corpo organizado, a finalidade de cada um dos membros só pode ser deduzida do conceito completo do todo. Partindo daí, pode-se afirmar de tal Crítica que ela nunca será digna de confiança, se não estiver integralmente acabada até os mínimos elementos da razão pura, e que, na esfera deste poder, ou se deve determinar e regular tudo ou então nada. Mas se um simples plano que precedesse o da Crítica da Razão Pura fosse ininteligível, indigno de confiança e inútil, tanto mais útil ele seria seguindo-se-lhe na ordem do tempo. Pois com isto estar-se-á apto a ter uma visão do conjunto, a examinar, peça por peça, os pontos principais que importam nesta ciência e poder dispor melhor alguns detalhes da exposição do que se podia fazer na primeira redação da obra. Este é, portanto, um plano desta espécie, posterior à obra concluída, estabelecido em método analítico, já que a obra propriamente dita teve que ser redigida de acordo com o método sintético, a fim de que a ciência pudesse mostrar todas as suas articulações como a estrutura de um poder particular de conhecimento em sua relação natural. Quem ainda achar obscuro este plano que antecipo como Prolegômenos a toda metafísica futura, pensar que não é necessário que todos estudem metafísica, que há alguns talentos que alcançam certo sucesso em ciências sólidas e mesmo profundas, as quais se aproximam mais, porém, da intuição, este não conseguirá triunfar nas investigações através de conceitos puramente deduzidos, e deve então, neste caso, aplicar seus dons intelectuais em outro objeto; que aquele, porém, que se proponha a julgar a metafísica, ou pretenda mesmo criar uma, atenda totalmente às exigências aqui formuladas, quer aceite minha solução, quer a refute até o fundo, colocando outra em seu lugar - pois não pode repeli-la; e que finalmente a tão decantada obscuridade (uma habitual desculpa para a própria comodidade e incapacidade) tenha sua utilidade, já que todos aqueles que guardam cauteloso silêncio, em se tratando de outras ciências, falam magistralmente em questões da metafísica e as resolvem com ousadia, porque sua ignorância não contrasta claramente com a ciência dos outros, mas com certeza com os verdadeiros princípios críticos, dos quais podemos afirmar com razão: ignavum, fucos, pecus a praesepibus arcent. Virgílio. PROLEGÔMENOS Advertência preliminar a respeito das peculiaridades de todo conhecimento metafísico 1. Das fontes da metafísica Quando se pretende apresentar um conhecimento como ciência, é necessário, antes de tudo, poder determinar precisamente seu caráter, o que ela não tem em comum com nenhuma outra, e que lhe é, portanto, peculiar; caso contrário, confundem-se os limites de todas as ciências e nenhuma delas pode ser tratada profundamente de acordo com sua natureza. Quer esta peculiaridade consista na diferença do objeto ou das fontes do conhecimento, ou ainda do modo de conhecimento, de algumas destas coisas senão de todas juntas, é sobre isso que se baseia antes de tudo a ideia da possível ciência e de seu domínio. Primeiramente, no que se refere às fontes de um conhecimento metafísico; já está implícito em seu conceito que elas não podem ser empíricas. Seus princípios (aos quais pertencem não só seus axiomas, mas seus conceitos fundamentais) não devem ser tirados da experiência, pois o conhecimento deve ser metafísico e não físico, isto é, estar além da experiência. Logo, nem a experiência externa, que é a fonte da Física propriamente dita, nem a interna, que é à base da Psicologia empírica, constituem o seu fundamento. Ela é, portanto, conhecimento a priori, de entendimento puro ou de razão pura. Mas assim ela não teria nada que a distinguisse da matemática pura; ela deverá chamar-se, então, conhecimento filosófico puro; a respeito do significado desta expressão, refiro-me na Crítica da Razão Pura, p. 712 e seguintes, onde está clara e satisfatoriamente apresentada a diferença entre estas duas maneiras do uso da razão. - Isso era o que tinha a dizer acerca das fontes do conhecimento metafísico. 2. Da única espécie de conhecimento que pode ser chamado metafísico A) DA DIFERENÇA ENTRE JUÍZO SINTÉTICO E ANALÍTICO EM GERAL O conhecimento metafísico deve conter juízos a priori; isto exige a peculiaridade de suas fontes. Ora, tenham os juízos a origem que tiverem ou se apresentem em sua forma lógica como quiserem, existe uma diferença entre eles pelo seu conteúdo, que faz com que sejam simplesmente explicativos e nada acrescentem ao conteúdo do conhecimento, ou extensivos e ampliem o conhecimento dado; os primeiros podem ser denominados juízos analíticos e os segundos sintéticos. Os juízos analíticos não afirmam no predicado nada que já não tenha sido pensado no conceito do sujeito, embora com menos clareza e consciência. Quando eu digo: todos os corpos são extensos, não terei ampliado em nada meu conceito de corpo, mas apenas o decompus, pois a extensão daquele conceito já havia sido realmente pensada antes do juízo, apesar de não afirmada explicitamente; o juízo é, pois, analítico. Ao contrário, a proposição: alguns corpos são pesados, contém algo no predicado que não é pensado realmente no conceito geral de corpo; ela aumenta, portanto, meu conhecimento ao acrescentar algo ao meu conceito, e deve por isso ser denominada um juízo sintético. B) O PRINCÍPIO COMUM DE TODOS OS JUÍZOS ANALÍTICOS É O PRINCÍPIO DE CONTRADIÇÃO Todos os juízos analíticos repousam fundamentalmente sobre o princípio de contradição e são por sua natureza conhecimentos a priori, sejam os conceitos que lhes servem de matéria empíricos ou não. Pois, tendo o predicado de um juízo analítico afirmativo sido pensado já no conceito do sujeito, não pode por ele ser negado sem que haja uma contradição; do mesmo modo, deve ser necessariamente negado o seu contrário, num juízo analítico mas negativo, pelo sujeito, e isto em consequência do princípio de contradição. Assim acontece com as proposições: cada corpo é extenso por natureza, e: nenhum corpo é inextenso (simples) por natureza. Justamente por isso são todas as proposições analíticas juízos a priori, mesmo que seus conceitos sejam empíricos, por exemplo: ouro é um metal amarelo; pois, para saber isso, não preciso de outra experiência além do meu conceito de ouro, o qual contém que este corpo é amarelo e é metal; pois isso já constituía o meu conceito e eu não fiz nada a não ser desmembrá-lo, sem precisar recorrer a nada além dele. C) JUÍZOS SINTÉTICOS NECESSITAM DE OUTRO PRINCÍPIO QUE O DE CONTRADIÇÃO Existem juízos sintéticos a posteriori cuja origem é empírica; mas existem também aqueles que são certos a priori e originam-se do entendimento puro e da razão pura. Ambos concordam entre si que não podem de modo algum originar-se do princípio de análise, ou seja, do princípio de contradição; eles exigem ainda outro princípio totalmente diverso, embora, qualquer que seja o princípio de onde derivem, devam sempre derivar de acordo com o princípio de contradição; pois nada pode ir contra este princípio, apesar de nem tudo poder derivar dele. Quero agora classificar os juízos sintéticos. 1) Juízos de experiência são sempre sintéticos. Pois seria absurdo fundamentar um juízo analítico na experiência, já que não preciso ir além do meu conceito para formular um juízo e não é necessário para isso recorrer ao testemunho da experiência. Que um corpo é extenso é uma proposição já estabeleci da a priori, e não um juízo de experiência. Pois, antes que eu chegue à experiência, tenho já todas as condições para o meu juízo no conceito, do qual só poderei extrair o predicado de acordo com o princípio de contradição e com isso torno-me ao mesmo tempo consciente da necessidade do juízo, o que jamais me ensinaria a experiência. 2) Juízos matemáticos são em conjunto sintéticos. Esta proposição parece ter escapado até agora aos analistas da razão humana, parece até opor-se em linha reta a todas as suas suposições, apesar de ser incontestavelmente certa e por consequência muito importante. Pois por se achar que as conclusões dos matemáticos seguiam todas o princípio de contradição (o que exige a natureza de qualquer certeza apodítica), assim se chegou à persuasão de que também os princípios deveriam ser conhecidos segundo o princípio de contradição, no que eles muito se enganaram; pois uma proposição sintética pode ser na verdade compreendida segundo o princípio de contradição, mas só quando é pressuposta uma outra proposição sintética, da qual pode ser deduzida, nunca porém em si mesma. Antes de tudo, deve ser observado que as proposições matemáticas são a qualquer tempo juízos a priori e não empíricos, por carregarem necessidade, coisa que não pode ser tirada da experiência. Se não se quiser conceder-me isso, restrinjo minha proposição à matemática pura, cujo conceito já implica que ela contenha conhecimento não empírico, mas simples conhecimento puro a priori. Poder-se-ia pensar a princípio que a proposição 7+ 5 = 12 não passe de uma simples proposição analítica, resultando do conceito de uma soma de 7 e 5 segundo o princípio de contradição. Somente quando se observa mais de perto, descobre-se que o conceito da soma de 7 e 5 nada mais contém do que a reunião destes dois algarismos num único, com o que não é pensado de maneira alguma o que é este algarismo único que os compreende. O conceito de 12 não está de modo algum pensado no momento em que eu penso apenas aquela reunião de 5 e 7 e, ainda que desmembre por longo tempo meu conceito de uma tal possível soma, não encontrarei nele o doze. Deve-se ir além desses conceitos, tomando por ajuda a intuição que corresponde a um dos dois, por exemplo os cinco dedos, ou (como Segner em sua Aritmética) cinco pontos, e acrescentar uma após outra as unidades do 5, dado pela intuição, ao conceito de 7. Por esta proposição, 7+ 5 = 12, ampliamos realmente nosso conceito e acrescentamos ao primeiro conceito um novo, que não havia sido pensado naquele, isto é, a proposição aritmética é sempre sintética, o que nos fica interiormente ainda mais claro se tomarmos números um pouco maiores, pois vemos claramente que, por mais que viremos e reviremos nossos conceitos à nossa vontade, nunca poderíamos, sem recorrer à ajuda da intuição e mediante o simples desmembramento de nossos conceitos, encontrar a soma. Tampouco é analítico qualquer princípio da geometria pura. Que a linha reta seja a mais curta entre dois pontos é uma proposição sintética, pois meu conceito de reto não contém nada de grandeza, porém apenas uma qualidade. O conceito do "mais curto" é inteiramente acrescentado e não pode ser deduzido do conceito de linha reta de acordo com um desmembramento. Aqui deve-se recorrer à ajuda da intuição, e somente mediante ela é possível a síntese. Alguns outros princípios, pressupostos pelos geômetras, são na verdade analíticos e se fundam no princípio de contradição; mas eles servem apenas como proposições idênticas para o encadeamento metódico e não como princípios; por exemplo, a = a, o todo é igual a si mesmo, ou (a + b) > a, isto é, o todo é maior que sua parte. Entretanto, mesmo estes princípios, se válidos por simples conceitos, só são permitidos na matemática porque podem ser representados na intuição. O que nos faz acreditar comumente que o predicado de tais juízos apodíticos já esteja presente em nosso conceito e o juízo seja, portanto, analítico, é simplesmente a ambiguidade da expressão. Devemos, a saber, pensar para o conceito dado um determinado predicado e esta necessidade já é inerente aos conceitos. Mas a questão não é o que devemos pensar para o conceito dado, mas o que pensamos realmente nele, apesar de obscuramente; aí fica evidente que o predicado está intimamente ligado de maneira necessária àqueles conceitos, não imediatamente, mas por meio de uma intuição que lhe deve ser acrescentada. 3. Observação para a divisão geral dos juízos em analíticos e sintéticos Esta divisão é indispensável no que diz respeito à crítica do entendimento humano e merece por isso ser clássica nessa crítica; do contrário, eu não saberia dizer se ela teria considerável utilidade em outro campo qualquer. E aqui encontro também a causa de os filósofos dogmáticos terem em geral procurado as fontes dos juízos metafísicos sempre apenas na própria metafísica e nunca fora dela, nas leis puras da razão. Estes filósofos menosprezaram esta divisão que parece oferecer-se por si mesma e como o famoso Wolff, ou o perspicaz Baumgarten, que lhe seguiu as pegadas, puderam procurar a prova para o princípio de razão suficiente, manifestamente sintético, no princípio de contradição. Ao contrário já encontro nos Ensaios de Locke sobre o entendimento humano um aceno para esta divisão. Pois, no quarto livro, terceiro capítulo, 9 e seguintes, depois de já haver falado antes do diverso modo de conexão das representações em juízos e de suas fontes, onde ele coloca uma delas na identidade ou contradição (juízos analíticos), a outra, porém, na existência das representações num sujeito (juízos sintéticos), confessa enfim, no 10, que nosso conhecimento (a priori) da última é muito restrito e quase nulo. Mas contém tão pouca determinação e regularidade o que ele afirma desta espécie de conhecimento que não nos devemos admirar que ninguém, nem mesmo o próprio Hume, tenha aproveitado a ocasião para tecer considerações sobre esta espécie de proposições. Pois tais princípios universais e não obstante determinados não podem ser aprendidos facilmente de outras pessoas que apenas os pressentiram obscuramente. Deve-se chegar a eles primeiro por reflexão própria, depois então se pode achá-los em outro lugar, onde seguramente não se teria encontrado nada antes, porque nem sequer os próprios autores sabiam que suas próprias observações têm como fundamento tal ideia. Os que não pensam nunca por si mesmos possuem, entretanto, a perspicácia de encontrar tudo, depois que lhes foi mostrado, naquilo que já havia sido dito e onde ninguém antes pudera ver. A questão geral dos Prolegômenos é, em geral, possível à metafísica? 4 Fosse real a metafísica, que se pudesse afirmar como ciência, poder-se-ia então dizer: aqui está a metafísica, vós podeis aprendê-la e ela convencer-vos-á irresistível e invariavelmente de sua verdade; esta pergunta seria então desnecessária e permaneceria apenas esta outra, que se refere mais a um exame de nossa perspicácia do que à prova da existência da coisa em si, ou seja, como é possível a metafísica e como começa a razão para chegar até ela? Só que neste caso a razão não teve tanta sorte. Não se pode apresentar um único livro, como se estivesse mostrando um Euclides, e afirmar: isto é metafísica, aqui encontrais o mais nobre objetivo desta ciência, o conhecimento de um ser supremo e de um mundo futuro, provados a partir de princípios da razão pura. É certo que nos podem ser apresentadas muitas proposições, apoditicamente certas e nunca contestadas; mas elas são em conjunto analíticas e referem-se mais ao material e aos instrumentos de construção da metafísica do que à ampliação do conhecimento, que deve ser a nossa verdadeira intenção para com ela (2, c.). Mas, se apresentardes logo também proposições sintéticas (por exemplo, o princípio de razão suficiente) que vós nunca provastes a priori, a partir da simples razão, como era vosso dever, mas que se concede com prazer a vós, assim caís, quando quereis servir-vos dela para vosso objetivo principal, em afirmações tão inadmissíveis e inseguras que uma metafísica contradiz a outra para todo o sempre, quer isto se refira às próprias afirmações, quer às provas, e com isso terá destruído sua própria pretensão a um aplauso duradouro. As primeiras tentativas de realizar tal ciência foram sem dúvida a primeira causa da precoce manifestação do ceticismo, uma maneira de pensar onde a razão procede tão violentamente contra si mesma que ela nunca poderia ter surgido a não ser em total desespero quanto a satisfazer suas mais importantes aspirações. Pois, muito tempo antes de se começar a interrogar metodicamente a natureza, interrogou-se apenas a razão isolada, que já havia sido exercitada, de certa maneira, pela experiência comum; porque a razão nos está sempre presente, as leis da natureza, entretanto, precisam ser procuradas comumente com grande esforço; e assim a metafísica flutuava como espuma, mas de tal maneira que quando uma, que se havia criado, se desfazia, imediatamente aparecia outra na superfície, que era sempre recolhida com sofreguidão por alguns, enquanto outros, ao invés de procurarem na profundeza a causa deste aparecimento, consideravam-se muito sábios porque zombavam dos baldados esforços dos primeiros. O essencial do conhecimento matemático puro que o distingue de todo o outro conhecimento a priori é que ele nunca deve ir adiante a partir de conceitos, mas sempre e somente a partir da construção de conceitos (Crítica, p. 713). Como, porém, ele deve ir em seus princípios além do conceito e alcançar aquilo que contém a intuição correspondente ao mesmo conceito, assim não podem nem devem seus princípios ser obtidos por desmembramento de conceitos, isto é, analiticamente, e são por isso todos sintéticos. Não posso deixar de apontar aqui b prejuízo que constituiu para a filosofia o fato de uma observação aparentemente tão simples e insignificante ter sido descurada. Hume, quando sentiu a vocação digna de um filósofo, ou seja, lançar o olhar sobre todo o campo do conhecimento a priori, no qual o entendimento humano se arroga tão amplos domínios, eliminou irrefletidamente toda uma província da mesma, na verdade a mais considerável, ou seja, a matemática pura, partindo da suposição de sua natureza, e por assim dizer sua constituição, se fundar em princípios completamente diversos, isto é, meramente no princípio de contradição; apesar de ele não ter feito a divisão dos princípios tão formal ou geral ou usando as mesmas denominações que eu uso aqui, o fez, porém, de tal maneira que equivaleria a afirmar: a matemática pura contém apenas proposições analíticas, mas a metafísica, sintéticas a priori. Mas aqui ele se enganou muito e este engano teve consequências decisivamente prejudiciais para seu conceito. Pois, se isto não tivesse acontecido com ele, teria ampliado sua pergunta quanto à origem de nossos juízos sintéticos, indo muito além de seu conceito metafísico de causalidade, estendendo-a sobre a possibilidade da matemática a priori, pois esta ele também deveria ter tomado como sintética. Neste caso, porém, não teria podido fundar suas proposições metafísicas na simples experiência, pois senão teria sujeitado da mesma forma os axiomas da matemática pura à experiência, para o que ele era por demais perspicaz. A boa companhia que a metafísica teria encontrado a teria assegurado contra o perigo de um mau trato indigno, pois os golpes desferidos contra a última teriam atacado também a primeira, o que ele não pretendia, nem podia pretender. Assim teria sido levado este homem perspicaz a considerações que deveriam ter-se tornado análogas às que nos ocupam agora, mas que teriam lucrado imensamente com a inimitável beleza de sua exposição. Os juízos metafísicos propriamente ditos são todos sintéticos. Deve-se aqui distinguir os juízos que pertencem à metafísica dos que são propriamente metafísicos. Entre aqueles estão muitos analíticos, mas são apenas os meios para chegar a juízos metafísicos, para os quais está voltado o fim da ciência, e que são todos sintéticos. Pois, quando conceitos pertencem à metafísica, por exemplo, o de substância, então pertencem também necessariamente à metafísica os juízos, que surgem do simples desmembramento da mesma, por exemplo, substância é aquilo que existe apenas como sujeito e por meio de outros juízos analíticos semelhantes procuramos chegar perto da definição dos conceitos. Mas como a análise de um conceito puro do entendimento (como os contidos na metafísica) não vai adiante senão pelo desmembramento de cada um dos outros conceitos empíricos, que não pertencem à metafísica (por exemplo, o ar é um fluido elástico, cuja elasticidade não é suprimida por nenhum grau conhecido de baixa temperatura), vê-se então que o conceito, e não o juízo analítico, é na verdade metafísico: pois esta ciência tem algo peculiar e próprio dela na produção de seus conhecimentos a priori, o que deve ser diferenciado do que ela possui em comum com outros conhecimentos do entendimento; assim é, por exemplo, a proposição: tudo o que nas coisas é substância, é constante; uma proposição sintética e propriamente metafísica. Quando se reuniram preliminarmente, segundo certos princípios, os conceitos a priori que constituem a matéria e o instrumento de construção da metafísica, então é de grande valor o desmembramento destes conceitos. Também podem ser os mesmos expostos separadamente como uma parte especial (assim como philosophia definitiva), que contém apenas proposições analíticas pertencentes à metafísica, separadamente de todas as proposições sintéticas que constituem a própria metafísica. Pois tais desmembramentos não têm, de fato, em nenhum lugar uma utilidade tão relevante como na metafísica, isto é, no que se refere às proposições sintéticas, que devem ser produzidas daqueles conceitos previamente desmembrados. A conclusão deste parágrafo é, pois, que a metafísica tem a ver, na verdade, com proposições sintéticas a priori e somente estas constituem seu objetivo, para o qual ela necessita certamente de alguns desmembramentos de seus conceitos, portanto de juízos analíticos, mas o procedimento nada mais é, como em qualquer outra espécie de conhecimento, que procurar tornar claros, por desmembramento, seus conceitos. Somente a produção do conhecimento a priori, tanto segundo a intuição como os conceitos, bem como, finalmente, segundo proposições sintéticas a priori, e isto no conhecimento filosófico, constituem o conteúdo essencial da metafísica. Cansados, portanto, do dogmatismo, que não nos ensina nada, e ao mesmo tempo do ceticismo, que de modo geral nada nos promete, nem mesmo a tranquilidade lícita da ignorância, impelidos pela importância do conhecimento que julgamos possuir, ou que se nos oferece sob o título de razão pura, resta-nos apenas uma pergunta crítica, sob cuja resposta podemos regular nosso comportamento futuro: é, em geral, possível a metafísica? Mas esta pergunta não deve ser respondida por objeções céticas contra certas afirmações de uma real metafísica (pois até agora não consideramos nenhuma válida), porém só pelo conceito ainda problemático de tal metafísica. Na Crítica da Razão Pura procurei tratar desta questão sinteticamente, ou seja, pesquisando na própria razão pura e procurando determinar nesta mesma fonte os elementos bem como as leis de seu uso puro segundo princípios. Este trabalho é árduo e exige um leitor decidido a, pouco e pouco, penetrar pelo pensamento num sistema que não tem como fundamento nenhum dado a não ser a própria razão, e sem apoiar-se, portanto, em nenhum fato que procure desenvolver o conhecimento a partir de seu embrião originário. Os Prolegômenos devem servir, ao contrário, de exercício preliminar; devem ser mais para mostrar o que se tem a fazer para trazer à realidade uma ciência; onde for possível; e não tentar expô-la. Eles devem, pois, apoiar-se em algo que já se conhece como digno de confiança de onde se pode partir com segurança e remontar às fontes, que ainda não se conhecem e cuja descoberta não esclarece apenas aquilo que já se sabia, mas que apresentará ao mesmo tempo um conjunto de muitos conhecimentos que nascem todos das mesmas fontes. O procedimento metódico dos Prolegômenos, principalmente daqueles que devem preparar para uma futura metafísica, será, portanto analítico. Embora não se possa admitir que a metafísica seja real como ciência, felizmente podemos afirmar com segurança que certo conhecimento sintético puro a priori é real e dado, a saber, matemática pura e ciência pura da natureza; ambas contêm proposições apoditicamente certas, seja através da simples razão, seja através do consentimento geral adquirido pela experiência, e apesar disso universalmente reconhecidas como independentes da experiência. Possuímos, portanto, ao menos algum conhecimento sintético a priori incontestado e não devemos perguntar se ele é possível (pois ele é real), mas apenas como ele é possível, para podermos derivar a possibilidade de todos os outros do princípio de possibilidade do conhecimento dado. Questão geral dos Prolegômenos; como é possível um conhecimento pela razão pura? 5 Vimos acima a considerável diferença entre juízos analíticos e sintéticos. A possibilidade de proposições analíticas pôde ser facilmente concebida, pois ela se funda exclusivamente no princípio de contradição. A possibilidade de proposições sintéticas a posteriori, ou seja, das que são tiradas da experiência, não necessita tampouco de explicação especial, pois a própria experiência nada mais é do que uma contínua reunião (síntese) de percepções. Restam-nos, portanto, apenas proposições sintéticas a priori, cuja possibilidade deve ser procurada ou investigada, porque ela deve basear-se em outros princípios que não o princípio de contradição. Mas não devemos aqui procurar primeiro a possibilidade de tais proposições, isto é, perguntar se são possíveis. Há um número suficiente delas e de fato não são dadas realmente com indiscutível certeza. Como o método aqui seguido agora deve ser analítico, nosso ponto de partida será que tal conhecimento sintético, porém puro, da razão realmente existe. Em seguida, devemos investigar o fundamento desta possibilidade e perguntar como é possível este conhecimento, para que possamos estar em condições de determinar, a partir dos princípios de sua possibilidade, as condições de seu uso, seu âmbito e seus limites. A verdadeira tarefa, da qual tudo depende, expressa com precisão escolástica, é, pois: Como são possíveis proposições sintéticas a priori? Coloquei-a acima por amor à popularidade, em termos um pouco diferentes, ou seja, como uma questão do conhecimento pela razão pura, o que poderia fazer agora sem prejuízo para o conhecimento procurado, porque, tratando-se aqui apenas da metafísica e de suas fontes, espero que, depois das advertências feitas preliminarmente, todos se lembrem sempre de que, quando falamos aqui de conhecimento pela razão pura, não se trata nunca do analítico, mas unicamente do sintético. (Quando o conhecimento avança pouco a pouco, é impossível evitar que certas expressões já clássicas, que remontam à infância da ciência, devam ser consideradas insuficientes e impróprias e que certo uso novo e mais adequado venha a cair no perigo de confusão. O método analítico, enquanto contrário ao sintético, é algo completamente diferente de um complexo de proposições analíticas: significa apenas que se parte daquilo que se analisa, como se tivesse sido dado, e se chega às condições sob as quais somente é possível. Neste método empregam-se frequentemente apenas proposições sintéticas, do que dá um exemplo a análise matemática e poderia ser melhor denominado de método regressivo em contraposição com o sintético ou progressivo. O termo analítico é também uma parte principal da lógica, e então é a lógica da verdade, contrapondo-se à dialética, sem que se leve em consideração se os conhecimentos a ela pertencentes são analíticos ou sintéticos. Nota do Autor) Da solução desta tarefa depende a permanência ou o desaparecimento da metafísica e, portanto, toda a sua existência. Poderá alguém expor suas afirmações a respeito da mesma com a maior verossimilhança, acumular conclusões sobre conclusões até sufocar, mas se ele não pôde antes responder satisfatoriamente a esta questão, então tenho o direito de afirmar: isto tudo não passa de fútil e infundada filosofia e de falsa sabedoria. Falas por meio da razão pura e te arrogas o direito de criar, ao mesmo tempo, conhecimento a priori, não somente desmembrando conceitos dados, mas apresentando novas conexões, que não se fundam no princípio de contradição, e que todavia julgas descobrir independentemente de toda experiência; como chegas a isso, e como pretendes justificar-te de semelhantes arrogâncias? Não te pode ser concedido apelar para o assentimento da razão humana comum, pois esta é uma testemunha, cuja autoridade repousa apenas nos boatos públicos. Quodcumque ostendis mihi sic, incredulus odi. (Horácio.) Por indispensável que seja a resposta a esta questão, ela é ao mesmo tempo difícil, e, apesar de a principal causa de não se ter tentado respondê-la mais cedo residir no fato de ninguém ter imaginado que tal coisa pudesse ser questionada, então é uma segunda causa o fato de uma resposta satisfatória exigir uma reflexão muito mais contínua, mais profunda. e mais penosa do que a exigida, em tempo algum, pela mais extensa obra da metafísica, que desde seu aparecimento tenha prometido imortalidade a seu autor. Também deve todo leitor razoável, se meditar atentamente sobre as exigências desta tarefa, assustado a princípio com sua dificuldade, tomá-la por insolúvel e, se não existisse realmente tal conhecimento sintético puro a priori, por totalmente impossível; isso aconteceu realmente a David Hume, apesar de ele não se ter proposto a questão nem de longe com tal universalidade, como acontece aqui e deve acontecer, se é mister a resposta tornar-se decisiva para toda a metafísica. Pois como é possível, afirmava o perspicaz homem, que, quando me é dado um conceito, eu possa ir além do mesmo e conectá-lo com outro, que nem sequer está contido naquele, e de tal maneira como se pertencesse necessariamente a ele? Só a experiência pode nos dar tais conexões (assim concluiu a partir daquela dificuldade que considerou impossibilidade) e toda aquela suposta necessidade, ou, o que é a mesma coisa, conhecimento considerado a priori, nada mais é do que um longo hábito de considerar algo verdadeiro e daí tomar a necessidade subjetiva por objetiva. Se o leitor queixar-se da fadiga e esforço que lhe causarei com a solução desta tarefa, deverá então tentar resolvê-la por si mesmo e de maneira mais fácil. Talvez se sinta então ligado àquele que tomou, por ele, a seu encargo tarefa de tão profunda investigação, e deixe transparecer alguma admiração pela facilidade que pôde ser dada à exposição pela natureza do assunto, além disso custou um esforço de anos solucionar esta tarefa em toda a sua universalidade (no sentido em que os matemáticos usam este termo, isto é, estendendo-o a todos os casos) e poder apresentá-la finalmente em forma analítica, como o leitor irá encontrá-la aqui. Todos os metafísicos estão, portanto, solene e legitimamente suspensos de suas ocupações, até que tenham respondido satisfatoriamente à pergunta: Como são possíveis conhecimentos sintéticos a priori? Pois apenas nesta resposta consistem as credenciais, que deveriam apresentar, quando tiverem algo a nos dizer em nome da razão pura; na falta delas, porém, não podem esperar mais nada, de pessoas já tantas vezes iludidas, que a repulsa, sem qualquer investigação ulterior do que é por eles proposto. Se quiserem, ao contrário, levar adiante sua tarefa, não como ciência, mas como uma arte de persuasões salutares e convenientes ao entendimento humano comum, não se lhes pode negar, por justiça, tal missão. Utilizarão neste caso a linguagem modesta de uma fé racional, admitirão que não lhes é permitido conjeturar sobre aquilo que está além de toda a experiência possível, muito menos saber, mas apenas admitir algo (não para o uso especulativo, pois devem renunciar a ele, mas unicamente para o prático) que é possível e mesmo indispensável para guiar o entendimento e a vontade na vida. Somente assim poderão merecer o nome de homens úteis e sábios, e tanto mais ainda se renunciarem ao de metafísicos, pois estes querem ser filósofos especulativos, e como, quando se trata de juízos a priori, não se pode contentar-se com simples verossimilhanças (pois aquilo que é conhecido a priori pela afirmação é declarado como necessário justamente por isso), então não lhes pode ser permitido jogar com suposições, mas sua afirmação deve ser ciência, ou então ela não é em geral coisa alguma. Pode-se afirmar que mesmo toda a filosofia transcendental, que precede necessariamente toda metafísica, nada mais é do que a simples solução completa da questão aqui colocada, mas sinteticamente ordenada e pormenorizada, e que não houve até agora nenhuma filosofia transcendental; o que disso tem o nome é apenas uma parte da metafísica; aquela ciência deve, porém, tornar possível a última e, portanto, preceder toda metafísica. Se, para responder a uma única questão satisfatoriamente, é necessária uma ciência totalmente nova, bem como o auxílio das outras, não é de se admirar que a solução da mesma esteja ligada a esforço e dificuldade e até mesmo a certa obscuridade. Ao encaminharmo-nos agora a esta solução, e isto pelo método analítico, no qual pressupomos que tais conhecimentos pela razão existem realmente, podemos referir-nos apenas a duas ciências do conhecimento teórico (o único tratado aqui), ou seja, matemática pura e ciência pura da natureza, pois apenas elas podem apresentar-nos os objetos na intuição, e, se nelas ocorresse um conhecimento a priori, mostrar a verdade ou a concordância deste conhecimento com o objeto em concreto, isto é, sua realidade, de onde se poderia avançar pelo caminho analítico até ao fundamento de sua possibilidade. Isto facilita em muito a tarefa, na qual as observações gerais não se aplicam apenas aos fatos, mas até mesmo partem deles, enquanto que no método sintético devem ser deduzi das inteiramente em abstrato de conceitos. Mas, para ascendermos destes conhecimentos puros a priori e ao mesmo tempo fundados a uma metafísica possível que procuramos, ou seja, uma metafísica como ciência, necessitamos daquilo que a propicia, daquilo que, como simples conhecimento a priori, naturalmente dado, mas não insuspeito quanto à sua verdade, é o fundamento da mesma, daquilo que é elaborado sem qualquer investigação crítica de sua possibilidade, já é denominado metafísica, com outras palavras, a disposição natural para tal ciência está entre nossas principais questões; assim, a questão principal é dividida em quatro outras questões e pouco a pouco resolvida. Como é possível a matemática pura? Como é possível a ciência pura da natureza? Como é possível a metafísica em geral? Como é possível a metafísica como ciência? Veja-se que, se principalmente a solução destas tarefas deve constituir o conteúdo essencial da Crítica, ela tem ao mesmo tempo algo peculiar, que por si só merece atenção, ou seja, levar a procurar as fontes das ciências dadas na própria razão, para assim investigar e medir pela própria ação o poder da razão de conhecer algo a priori. Por meio disto saem ganhando estas mesmas ciências, apesar de não no que se refere a seu conteúdo, mas no que diz respeito a seu uso certo e, no momento em que trazem luz a uma questão mais alta devido a sua origem comum, dão ao mesmo tempo motivo a que sua própria natureza seja melhor elucidada. PRIMEIRA PARTE DA QUESTÃO TRANSCENDENTAL PRINCIPAL Como é possível a matemática pura? 6 Aqui está um conhecimento vasto e provado, de âmbito já agora admirável, que promete um crescimento ilimitado no futuro, que comporta certeza apodítica, isto é, absoluta necessidade, não se baseando em nenhuma espécie de fundamentos de experiência: é, portanto, um produto puro da razão, mas além disso sintético; "como é possível à razão humana constituir totalmente a priori tal conhecimento?" Este poder, que não se apoia nem pode se apoiar em experiências, não pressupõe algum fundamento de conhecimento a priori, profundamente oculto, mas que se poderia revelar por estas suas ações, se se aplicasse à investigação dos primeiros inícios das mesmas? 7 Consideramos, porém, que todo conhecimento matemático possui esta peculiaridade de ter de apresentar seu conceito primeiro na intuição e a priori e com isso não numa intuição empírica mas pura, sem o que não lhe é possível avançar um passo sequer; por tal motivo seus juízos são sempre intuitivos, enquanto que a filosofia pode contentar-se com juízos discursivos de simples conceitos e explica sua doutrina apodítica por intuição mas nunca pode derivá-la daí. Esta observação com relação à natureza da matemática dá-nos uma indicação sobre a primeira e suprema condição de sua possibilidade: deve haver um fundamento de uma intuição pura qualquer pela qual apresenta ela todos os seus conceitos em concreto e no estudo a priori, ou, como se denomina, poder construí-los. Se pudermos descobrir esta intuição pura e sua possibilidade, então será possível explicar facilmente como proposições sintéticas a priori são possíveis na matemática e com isto também como esta ciência é possível; pois, assim como a intuição empírica torna possível, sem dificuldade alguma, que ampliemos nosso conceito dado por um objeto da intuição, através de novos predicados que a própria intuição oferece, assim fará também a intuição pura, apenas com a diferença: no último caso, será o juízo sintético certo a priori e apodítico, no primeiro, entretanto, a posteriori e empiricamente certo, porque este contém apenas o que é encontrado na intuição casual empírica, aquele, porém, o que deve ser encontrado necessariamente na intuição pura, por ela estar inseparavelmente ligada, como intuição a priori, ao conceito anterior a toda experiência ou a cada percepção. 8 Neste ponto, a dificuldade parece antes aumentar do que diminuir. De agora em diante, a questão é: como é possível intuir algo a priori? A intuição é uma representação, como se ela dependesse imediatamente da presença do objeto. Daí parecer impossível intuir originariamente a priori, pois então a intuição deveria produzir-se sem a presença anterior ou simultânea de um objeto, ao qual se referisse, e não poderia ser, portanto, intuição. Os conceitos são de tal natureza que podemos muito bem produzir alguns deles totalmente a priori, ou seja, aqueles que contêm o pensamento de um objeto em geral, sem que com isso nos encontremos numa relação imediata com o objeto, por exemplo, o conceito de grandeza, de causa, etc.; mas mesmo estes necessitam, é verdade, para dar-lhes significação e sentido, de um determinado uso em concreto, isto é, aplicação a uma intuição qualquer, através do que nos é dado um objeto da mesma. Como pode, entretanto, a intuição do objeto preceder o próprio objeto? 9 Se nossa intuição devesse ser de tal maneira que representasse coisas como são em si mesmas, não se produziria nenhuma intuição a priori, mas seria sempre empírica, pois só posso saber o que está contido no objeto em si mesmo se este me for presente e dado. Naturalmente, é mesmo então incompreensível como a intuição de uma coisa presente devesse fazer-me conhecer como ela é em si, já que suas propriedades não podem passar para minha capacidade de representação mas, concedida a possibilidade disto, mesmo assim não se produziria a mesma intuição a priori, isto é, antes que o objeto me fosse apresentado; sem isso não haveria fundamento para a relação de minha representação com ele, e deveria repousar numa espécie de inspiração. É, pois, de uma única maneira possível que minha intuição preceda a realidade do objeto e se produza como conhecimento a priori, quando ela nada mais contém do que a forma da sensibilidade que antecede, em meu sujeito, todas as impressões reais pelas quais os objetos me afetam. Com efeito, posso saber a priori que os objetos dos sentidos podem ser intuídos segundo esta forma de sensibilidade. Segue-se daí que proposições que se referem apenas a esta forma da intuição sensível serão possíveis e válidas por objetos dos sentidos, e inversamente, que intuições, possíveis a priori, não podem referir-se jamais a outras coisas que não objetos de nossos sentidos. 10 Aparecer (aos nossos sentidos), não como eles podem ser em si, e esta pressuposição é absolutamente necessária, se se admitir proposições sintéticas a priori como possíveis, ou, no caso de serem encontradas realmente, deve-se conceber e determinar com antecedência sua possibilidade. Tempo e espaço são as intuições que servem de fundamento a todos os conhecimentos da matemática pura e juízos que surgem ao mesmo tempo como apodíticos e necessários; pois a matemática deve apresentar todos os seus conceitos primeiro na intuição e a matemática pura na intuição pura, isto é, construí-los, sem os quais (por ela não proceder analiticamente, ou seja, por desmembramento dos conceitos, mas sinteticamente) é-lhe impossível dar um passo sequer, enquanto lhe faltar a intuição pura, pois somente nela pode ser dada a matéria para juízos sintéticos a priori. A geometria coloca como fundamento a intuição pura de espaço. A aritmética constrói seus conceitos de número através da adição sucessiva de unidades no tempo, mas especialmente a mecânica pura pode constituir seu conceito de movimento por meio da representação de tempo. Ambas as representações são, entretanto, apenas intuições; pois, quando se deixa de lado tudo que é empírico das intuições empíricas dos corpos e suas transformações (movimento), ou seja, o que pertence à sensação, restam ainda tempo e espaço, que são intuições puras que servem de fundamento às intuições empíricas e por isso mesmo não podem ser deixados de lado, mas, justamente por serem intuições empíricas a priori, provam serem apenas formas de nossa sensibilidade e que devem anteceder toda intuição empírica, isto é, a percepção de objetos reais, e conforme elas, podem ser conhecidos a priori objetos, mas somente como eles nos aparecem. 11 A tarefa deste capítulo fica, pois, resolvida. Matemática pura, como conhecimento sintético a priori, é somente possível na medida em que se refere apenas aos objetos dos sentidos, cuja intuição empírica serve de fundamento a priori a uma intuição pura (de espaço e de tempo), e pode servir de fundamento por ser apenas a simples forma da sensibilidade que antecede a aparição real dos objetos, tornando-a, antes de tudo, possível de fato. Contudo, este poder de intuir a priori refere-se não à matéria do fenômeno ou seja, àquilo que nele é sensação, pois esta constitui o empírico, mas unicamente à forma do mesmo, espaço e tempo. Se se tivesse a mínima dúvida de que ambos são simples determinações inerentes, não às coisas em si, mas à sua relação com a sensibilidade, gostaria de saber como se pode achar possível saber a priori e, portanto, antes de todo contato com as coisas, antes que elas nos sejam dadas, como deve ser formada sua intuição, como é aqui o caso de espaço e tempo. Isto é perfeitamente concebível tão logo sejam ambos tomados como exigências formais de nossa sensibilidade, os objetos, porém, como simples fenômenos, pois então a forma do fenômeno, isto é, a intuição pura certamente a partir de nós mesmos, ou seja, a priori, poder ser representada. 12 Para acrescentar algo elucidativo e comprobatório, basta que se observe o procedimento comum e absolutamente necessário dos geômetras. Todas as provas da perfeita identidade de suas figuras dadas (de maneira que uma possa ser colocada em todas as suas partes no lugar da outra) resultam, afinal, que uma cobre a outra; o que notadamente nada mais é do que uma proposição sintética baseada na intuição imediata, e esta intuição deve ser dada pura e a priori, pois, do contrário, aquela proposição não poderia ser considerada apoditicamente certa, mas teria apenas certeza empírica. Equivaleria então a dizer: nota-se sempre isto e vale só até onde nossa percepção alcança. Que o espaço completo (que não é mais limite de outro espaço) tenha três dimensões e o espaço em geral não possa mais tê-las, é fundamentado na proposição de que num ponto não pode haver mais de três linhas que se cortem em ângulo reto; esta proposição, porém, não pode ser demonstrada a partir de conceitos, mas baseia-se imediatamente na intuição pura a priori, por ser apoditicamente certa; que se possa exigir o prolongamento de uma linha ao infinito (in indefinitum) ou a continuação de uma série de transformações ao infinito (por exemplo, espaços percorridos por movimento), pressupõe uma representação de espaço e tempo, que só pode depender da intuição, enquanto ela não estiver limitada por coisa alguma, pois ela nunca poderia ser deduzi da de conceitos. Portanto, a matemática tem realmente como fundamento intuições puras, que tornam possíveis suas proposições sintéticas e apoditicamente válidas; com isso, esclarece nossa dedução transcendental dos conceitos no espaço e no tempo a possibilidade de uma matemática pura que, sem tal dedução, e, sem que aceitemos que "tudo que é dado aos nossos sentidos (aos externos no espaço, aos internos no tempo) é por nós apenas intuído tal como nos aparece e não como é em si mesmo", poderia sem dúvida ser admitida, mas nunca compreendida. 13 Os que todavia não conseguem livrar-se do conceito de que espaço e tempo são naturezas reais, dependentes das coisas em si mesmas, podem exercitar sua perspicácia no seguinte paradoxo e, quando tiverem inutilmente tentado sua solução, suspeitem, livres de preconceitos pelo menos por alguns instantes, que talvez a redução do espaço e do tempo a simples formas de nossa intuição sensível possa ter fundamento. Se duas coisas são perfeitamente idênticas em todas as partes que em cada uma delas podem ser conhecidas em si (em todas as determinações pertencentes à grandeza e à qualidade), deverá seguir-se que uma poderia ser colocada no lugar da outra em todos os casos e relações, sem que esta troca provocasse a mínima diferença apreciável. Na verdade, isto também acontece com as figuras planas na geometria; certas figuras esféricas mostram, porém, apesar de uma total concordância interna, uma relação externa completamente diferente, que não permite que uma figura seja colocada no lugar da outra; por exemplo, dois triângulos esféricos dos dois hemisférios que têm como base comum um arco do equador podem ser perfeitamente iguais tanto no que se refere aos lados como aos ângulos, e isso de tal forma que, quando um deles é descrito só e ao mesmo tempo completamente, não se pode encontrar nada que não esteja na descrição do outro, mas mesmo assim um não pode ser colocado no lugar do outro (a saber, no hemisfério contrário), e aqui há uma diferença interna entre ambos os triângulos, que nenhum entendimento pode dar como intrínseca e se manifesta apenas por uma relação externa no espaço. Quero citar somente casos costumeiros que podem ser retirados da vida comum. O que poderia ser mais semelhante à minha mão ou à minha orelha e mais igual em todas as suas partes que sua imagem no espelho? E, no entanto, não posso colocar tal mão, como é vista no espelho, no lugar da original, pois, se esta era uma mão direita, então aquela no espelho é uma esquerda e a imagem da orelha direita é esquerda e jamais poderá ocupar o lugar da primeira. Ora, aqui não há uma diferença interna, que um entendimento qualquer pudesse pensar, e contudo as diferenças são intrínsecas, como ensinam os sentidos, pois a mão esquerda, apesar de suas recíprocas semelhanças e igualdades, não pode estar contida nos mesmos limites da direita (não podem coincidir), a luva de uma mão não pode ser usada na outra. Qual é, pois, a solução? Estes objetos não são representações das coisas como são em si mesmas, e como o entendimento puro as conheceria, mas intuições sensíveis, isto é, fenômenos cuja possibilidade se baseia na relação de certas coisas desconhecidas com outra, ou seja, com nossa sensibilidade. Ora, desta é o espaço a forma da intuição externa, e a determinação interna de cada espaço é possível somente pela determinação da relação externa com o espaço todo, do qual aquele é uma parte (da relação com o sentimento externo), isto é, a parte só é possível pelo todo, o que acontece nos simples fenômenos, mas nunca nas coisas em si mesmas, como objetos do simples entendimento. Daí, portanto, não podermos tornar compreensível por nenhum conceito a diferença entre coisas semelhantes e iguais, mas incongruentes (por exemplo, caracóis inversamente enrolados), senão por sua relação com a mão esquerda e com a direita, o que nos leva imediatamente à intuição. OBSERVAÇÃO I A matemática pura e principalmente a geometria pura não podem ter realidade objetiva a não ser sob a condição de dizerem respeito apenas aos objetos dos sentidos, em relação aos quais vale o princípio: nossa representação sensível não é, de modo algum, uma representação das coisas em si mesmas, mas somente de como elas nos aparecem. De onde se conclui que as proposições da geometria não podem ser relacionadas com as determinações de uma simples criação de nossa fantasia poética e nem seguramente com objetos reais, mas que são necessariamente válidas para o espaço e por isso também com tudo que pode ser encontrado no espaço, pois o espaço nada mais é que a forma de todos os fenômenos externos sob o qual somente nos podem ser dados os objetos dos sentidos. A sensibilidade, cuja forma a geometria toma para fundamento, é a condição de possibilidade dos fenômenos externos, não podendo, portanto, estes conter outra coisa senão o que a geometria lhes prescreve. Seria bem diferente se os sentidos devessem representar os objetos como são em si mesmos. Neste caso, da representação do espaço, que o geômetra toma a priori com todas as suas propriedades como fundamento, não se seguiria ainda que tudo isto e mais o que daí resulta deva comportar-se assim na natureza. Considerar-se-ia o espaço do geômetra pura ficção, sem validade objetiva, pois não se compreende como as coisas devessem concordar necessariamente com a imagem que dela fazemos antecipadamente. Se esta imagem, porém, ou antes, esta intuição formal, que é a propriedade principal de nossa sensibilidade, mediante a qual os objetos nos são dados e se ela não nos representa as coisas em si mesmas, mas somente seus fenômenos, então é muito fácil entender e ao mesmo tempo fica indiscutivelmente provado: todos os objetos externos de nosso mundo sensível devem concordar necessariamente, e com toda exatidão, com as proposições da geometria, porque a sensibilidade, através de sua forma de intuição externa (o espaço), objeto de estudo do geômetra, torna primeiro possível aqueles objetos como fenômenos. Ficará para sempre como um fenômeno digno de nota na história da filosofia o fato de ter havido uma época em que até os matemáticos, que eram ao mesmo tempo filósofos, começaram a duvidar, não da exatidão de suas proposições geométricas, enquanto se referiam apenas ao espaço, mas da validade objetiva e da aplicação deste mesmo conceito e de todas as determinações geométricas do mesmo à natureza, pois receavam que uma linha na natureza fosse composta de pontos físicos e ao mesmo tempo em que o verdadeiro espaço no objeto fosse constituído de partes simples, apesar de o espaço que o geômetra tem em mente não poder ser assim constituído de maneira alguma. Não viam que este espaço torna possível no pensamento o espaço físico, isto é, a extensão da matéria; que ele não é propriedade das coisas em si mesmas, mas apenas uma forma de nosso poder sensível de representação; que todos os objetos no espaço são apenas fenômenos, ou seja, não coisas em si mesmas, mas representações de nossa intuição sensível, e, como o espaço, da maneira como o pensa o geômetra, é exatamente a forma da intuição sensível, que encontramos a priori em nós, e que contém o fundo da possibilidade de todas as aparições externas (de acordo com sua forma), estes devem concordar necessariamente e da maneira mais exata com as proposições do geômetra, que ele próprio tira não de um conceito fictício, mas do fundamento de todos os fenômenos externos, quer dizer, da própria sensibilidade. Assim, e não de outra maneira, pode o geômetra ficar assegurado contra todas as chicanas de uma metafísica superficial, no que diz respeito à indubitável realidade objetiva de suas proposições, por estranhas que elas possam parecer a esta metafísica, por ela não remontar até as fontes de seus conceitos. OBSERVAÇÃO II Tudo que nos deve ser dado como objeto deve ser-nos dado na intuição. Toda a nossa intuição acontece apenas por meio dos sentidos; o entendimento não intui nada, apenas reflete. Uma vez que os sentidos, de acordo com o agora demonstrado, nunca nos dão a conhecer em nenhuma parte as coisas em si mesmas, mas apenas suas aparências, e estas não passam de meras representações da sensibilidade, "todos os corpos, incluindo o espaço onde se encontram, não devem ser considerados senão como simples representações em nós e em nenhuma outra parte existem a não ser em nosso pensamento". Não é isto senão o manifesto idealismo? O idealismo consiste apenas na afirmação de que não existe outro ser senão o pensante; as demais coisas, que acreditamos perceber na intuição, seriam apenas representações nos seres pensantes, às quais não corresponderia, de fato, nenhum objeto fora deles. Eu afirmo, ao contrário: são-nos dadas coisas como objetos de nossos sentidos, existentes fora de nós, só que nada sabemos do que eles possam ser em si mesmos, mas conhecemos apenas seus fenômenos, isto é, as representações que produzem em nós ao afetarem nossos sentidos. Com isto admito, portanto, existirem fora de nós corpos, isto é, coisas que, embora sem dúvida nos sejam de todo desconhecidas no tocante ao que em si mesmas possam ser, são-nos conhecidas pelas representações suscitadas em nós por sua influência sobre nossa sensibilidade, e às quais denominamos corpos, termo este que designa apenas o fenômeno do objeto que nos é desconhecido, mas que nem por isso é menos real. Poderá isto ser chamado idealismo? Trata-se exatamente do contrário disto. Que, sem prejuízo da existência real das coisas externas, se possa afirmar, de muitos de seus predicados, que eles pertenceriam não a essas coisas em si mesmas, mas a seus fenômenos, e não teriam existência própria fora da nossa representação, é algo já universalmente aceito e concedido muito antes de Locke, mas principalmente depois de sua época. A esses predicados pertencem o calor, a cor, o sabor, etc. Mas, se além disso incluo, por motivos importantes, também as demais qualidades dos- corpos, denominadas primárias, a extensão, o lugar e o espaço em geral, com tudo que lhes é inerente (impenetrabilidade ou materialidade, forma, etc.), entre os meros fenômenos, não vejo aí a mínima razão para não o admitir; tampouco pode ser chamado de idealista aquele que pretende ver as cores não como propriedades inerentes ao objeto em si mesmo, mas como modificações do sentido da visão; minha doutrina também não pode ser denominada idealista somente por eu achar que muitas outras, ou, mesmo, todas as propriedades que constituem a intuição de um corpo pertencem apenas a seu fenômeno, pois a existência da coisa que aparece não é por isso suprimida, como acontece no idealismo real, mas mostra apenas que não podemos conhecê-la pelos sentidos, como é em si mesma. Gostaria de saber como deveria ter elaborado minhas afirmações para que não contivessem um idealismo. Sem dúvida, deveria dizer: as representações de espaço não só correspondem perfeitamente à relação que nossa sensibilidade tem com o objeto, pois já havia afirmado isto, mas que é inteiramente semelhante ao objeto; uma afirmação desprovida de sentido, como se dissesse que a sensação de vermelho se assemelha à propriedade do cinábrio, que esta sensação desperta em mim. OBSERVAÇÃO III Daqui podemos fazer facilmente uma objeção, fácil de prever, mas destituída de valor: "A idealidade do espaço e do tempo transforma todo o mundo sensível em mera ilusão". Com efeito, depois de se ter viciado toda a compreensão filosófica da natureza do conhecimento sensível, reduzindo a sensibilidade a uma simples maneira de representação confusa, mediante a qual conheceríamos sempre as coisas como elas são, mas sem termos o poder de levar a uma clara consciência o conteúdo desta representação, nós, ao contrário, provamos que a sensibilidade consiste não nessa diferença lógica da clareza e obscuridade, mas na diferença genética da origem do próprio conhecimento, pois o conhecimento sensível não representa as coisas como elas são, mas somente o modo como afetam nossos sentidos, e que, portanto, através delas são dados ao entendimento para reflexão meros fenômenos e não as próprias coisas. Depois desta retificação necessária, surge uma objeção oriunda de uma imperdoável e quase intencional falsa interpretação, ou seja, que minha doutrina transforma todas as coisas do mundo sensível em mera ilusão. Quando nos é dado um fenômeno, somos ainda completamente livres para julgar a coisa, a partir dele, como quisermos. Na verdade, aquele fenômeno repousa sobre os sentidos, ao passo que o julgamento, sobre o entendimento, e é de se perguntar se há verdade ou não na determinação do objeto. Mas a diferença entre verdade e sonho não resulta da natureza das representações relacionadas com os objetos, pois são idênticas em ambos, mas pela conexão dos mesmos de acordo com as regras que determinam as relações das representações no conceito de um objeto e até que ponto podem estar juntos na experiência. E, portanto, não depende dos fenômenos se o nosso conhecimento toma ilusão por verdade, isto é, se a intuição, através da qual nos é dado um objeto, é tomada por conceito do objeto ou também da existência do mesmo, o que só o entendimento pode pensar. Os sentidos representam-nos o curso dos planetas, ora como progressivo, ora como regressivo, no que não há erro, nem verdade, pois, enquanto nos limitarmos a ver nisso só aparência, não julgamos nada sobre a constituição objetiva de seus movimentos. Mas porque, se o entendimento não tomar providências para impedir que este modo de representação subjetivo seja tomado por objetivo, pode daí facilmente resultar um juízo falso, então se afirma: eles parecem se mover para trás; só que a ilusão não deve ser lançada à conta dos sentidos, mas do entendimento, ao qual compete tirar da aparência um juízo objetivo. Desta maneira, mesmo que não refletíssemos sobre a origem de nossas representações e ligássemos nossas intuições dos sentidos, seja qual for seu conteúdo, no espaço e no tempo, de acordo com regras da relação de todo conhecimento numa experiência, pode produzir-se a ilusão enganadora ou a verdade, consoante procedermos com irreflexão ou com circunspecção; isto compete apenas ao uso das representações sensíveis no entendimento e não à sua origem. Do esmo modo, se tomo as representações dos sentidos com sua forma, ou seja, espaço e tempo, por nada mais que fenômenos e os últimos por uma simples forma da sensibilidade, que não é encontrada fora dela em nenhum objeto, e eu me sirvo da mesma representação somente em relação a uma experiência possível, isso não significa que eu tenda a ver nas representações só erro ou ilusão, ao tomá-las por simples fenômenos, pois, não levando isto em conta, elas podem estar convenientemente relacionadas na experiência segundo regras da verdade. Assim, são válidas todas as proposições da geometria para o espaço, bem como para todos os objetos dos sentidos e também no que diz respeito a toda experiência possível, quer eu considere o espaço uma simples forma da sensibilidade, quer algo inerente às coisas em si mesmas; se bem que somente no primeiro caso possa compreender como é possível conhecer a priori aquelas proposições de todos os objetos da intuição externa; mas, em relação a toda experiência possível, permanece tudo como se eu não me tivesse proposto desviar-me da opinião comum. Se ouso, entretanto, ir além de toda experiência possível com meus conceitos de espaço e tempo, o que é inevitável quando os considero propriedades inerentes às coisas em si mesmas (o que me impediria de considerá-los pertencentes a estas mesmas coisas, mesmo que meus sentidos fossem organizados de modo diferente, aptos ou não para as perceber?), pode então surgir um grave erro, que repousa sobre uma ilusão, uma vez que considero o que era simples condição da intuição das coisas inerentes ao meu sujeito seguramente válido para todos os objetos dos sentidos e, portanto, para toda experiência meramente possível, como válido universalmente, porque os refiro às coisas em si mesmos e não os limito às condições da experiência. Daí que minha doutrina da idealidade do espaço e do tempo, bem longe de considerar todo o mundo sensível simples ilusão, é antes o único meio de assegurar a objetos reais a aplicação de um conhecimento mais importante que qualquer outro, ou seja, aquele que expõe a matemática a priori, e de impedir que ela seja tomada por simples ilusão, pois sem esta observação seria totalmente impossível decidir se as intuições de espaço e tempo, que não retiramos de nenhuma experiência, e que além disso estão a priori em nossa representação, não são simples quimeras por nós feitas, às quais não corresponde nenhum objeto, pelo menos adequadamente, e com isso mesmo a geometria seria uma simples ilusão. Nós, ao contrário, pudemos demonstrar sua indiscutível validade com relação a todos os objetos do mundo sensível, justamente por serem eles meros fenômenos. Em segundo lugar, estes meus princípios estão bem longe de destruir a verdade da experiência e transformá-la em mera ilusão, por fazerem fenômenos das representações dos sentidos, ao contrário, eles são o único meio de impedir a ilusão transcendental, que em todos os tempos enganou a metafísica e com isso desviou-a de seu caminho, levando-a a correr, como criança, atrás de bolhas de sabão, porque se tomavam fenômenos, que são simples representações, por coisas em si mesmas. Daí derivam todas as estranhas antinomias da razão, às quais me referirei, e que ficam desfeitas com esta única observação: o fenômeno, enquanto usado na experiência, verdade, tão logo vá além dos limites da experiência e se torne transcendente, não gera nada a não ser pura ilusão. Como deixo às coisas, que nos representamos pelos sentidos, sua realidade e limito apenas nossa intuição sensível destas coisas ao ponto de ela não representar em nenhuma parte, nem mesmo nas intuições puras de espaço e tempo, mais do que um simples fenômeno daquelas coisas, nunca, porém, a constituição delas em si mesmas, então não vejo na natureza nenhuma ilusão universal por mim criada, e meu protesto contra a suspeita de idealismo é tão bem fundado e esclarecedor que pareceria supérfluo se não houvesse juízes incompetentes que, ciosos de aplicar um nome antigo a toda opinião comum contrária às suas, e incapazes de se desligarem da letra e de julgarem o espírito das denominações filosóficas, estão sempre dispostos a substituir conceitos bem determinados por sua própria loucura, torcendo-os e desfigurando-os. Pois que eu tenha dado a esta minha teoria o nome de um idealismo transcendental, não dá a ninguém o direito de confundi-la com o idealismo empírico de Descartes (embora este fosse apenas um problema, cuja insolubilidade, segundo Descartes, permitia a cada um negar a existência do mundo corpóreo, por não ter sido nunca resolvido satisfatoriamente) ou com o idealismo místico e fantasista de Berkeley (contra o qual, como contra quimeras idênticas, nossa crítica contém o antídoto verdadeiro). Pois este por mim denominado idealismo não diz respeito à existência das coisas (mas a dúvida acerca disso constitui na verdade o idealismo no sentido tradicional), e duvidar dela nunca me passou pela mente, mas apenas da representação sensível das coisas a que pertencem, em primeiro lugar, espaço e tempo; destes, como também de todos os fenômenos, apenas mostrei que eles não são coisas (mas apenas maneiras de representar), nem determinações inerentes às coisas em si mesmas. A palavra transcendental, entretanto, que em mim não tem nunca uma relação de nosso conhecimento com as coisas, mas apenas com o poder de conhecimento, deveria evitar esta falsa interpretação. Para que esta denominação não a provoque de ora em diante, quero retirá-la e chamar meu idealismo de crítico. Mas se de fato é idealismo condenável o transformar coisas reais (não fenômenos) em simples representações, qual denominação deverá ser dada àquele que, ao contrário, converte simples representações em coisas? Penso que se poderia chamá-lo de idealismo sonhador, para distingui-lo do anterior, que pode ser chamado de fantasista; um e outro devem ser deixados de lado pelo meu idealismo, chamado transcendental, ou melhor, crítico. SEGUNDA PARTE DA QUESTÃO TRANSCENDENTAL PRINCIPAL Como é possível a ciência pura da natureza? 14 Natureza é a existência das coisas enquanto determinadas por leis universais. Se natureza significasse existência das coisas em si mesmas, não poderíamos conhecê-las nem a priori, nem a posteriori. Não a priori, pois, como queremos saber o que convém às coisas em si mesmas, já que isto jamais pode acontecer por desmembramento de nossos conceitos (proposições analíticas), porque eu não quero saber o que está contido em meu conceito das coisas (pois isso pertence a seu ser lógico), mas o que é acrescentado na realidade das coisas a este conceito, e o que determina a própria coisa em sua existência fora de meu conceito. Meu entendimento e as condições, sob as quais ele pode conectar as determinações das coisas em sua existência, não fornecem às próprias coisas nenhuma regra; estas não se regulam pelo meu entendimento, mas meu entendimento deveria regular-se por elas; deveriam ser-me dadas, portanto, anteriormente, para poder tirar delas estas determinações, mas neste caso não seriam conhecidas a priori. Também a posteriori seria impossível tal conhecimento da natureza das coisas em si mesmas. Pois, se a experiência deve ensinar-me leis que regem a existência das coisas, então deveriam, enquanto se referirem às coisas em si mesmas, regê-las necessariamente também fora de minha experiência. A experiência ensina-me, é certo, o que existe e como existe, nunca, porém, que deve ser necessariamente assim e não de outra maneira. Não pode, pois, ensinar nunca a natureza das coisas em si mesmas. 15 Agora estamos realmente de posse de uma ciência pura da natureza, que expõe a priori, e com a necessidade que se exige das proposições apodíticas, leis às quais se sujeita a natureza. Permito-me chamar aqui como testemunha aquela propedêutica da doutrina da natureza, que antecede, sob o título de ciência universal da natureza (fundamentada sobre princípios empíricos), toda a física. Encontramos nela a matemática aplicada a fenômenos e também princípios puramente discursivos (de conceitos), que constituem a parte filosófica do conhecimento da natureza. Encontramos também nela muitas coisas que não são inteiramente puras e independentes de fontes de experiência: como o conceito de movimento, de impenetrabilidade (sobre o qual se funda o conceito empírico de matéria), de inércia e outros, que impedem que ela possa ser inteiramente denominada ciência pura da natureza; além disso, ela refere-se somente a objetos dos sentidos externos e não dá, portanto, nenhum exemplo de uma ciência universal da natureza no sentido estrito, pois deve reduzir a natureza a leis universais, quer quanto ao objeto dos sentidos externos, quer do sentido interno (tanto ao objeto da física como ao da psicologia). Mas entre os princípios daquela física geral encontram-se alguns que possuem realmente a universalidade por nós exigida, como a proposição: a substância permanece e não se destrói, e tudo que acontece é sempre predeterminado por uma causa segundo leis constantes, etc. Estas são leis da natureza, realmente universais, existentes absolutamente a priori. Existe, portanto, na verdade, uma ciência pura da natureza, donde a questão: como é ela possível? 16 O termo natureza adquire ainda outro significado que determina o objeto, enquanto que no significado precedente indicava apenas a regularidade das determinações das coisas em geral. A natureza considerada, portanto, materialiter é o conjunto de todos os objetos da experiência. Somente com esta natureza nos ocupamos aqui, pois, sem isso, coisas que jamais podem tornar-se objetos de uma experiência, se conhecidas por sua natureza, obrigar-nos-iam a recorrer a conceitos, cuja significação jamais poderia ter sido dada em concreto (em qualquer exemplo de uma experiência possível) e de cuja natureza só poderíamos formar conceitos cuja realidade, isto é, se se referem realmente a objetos ou se são apenas coisas da mente, não poderia ser decidida. O que não pode ser um objeto da experiência, do qual o conhecimento seria hiperfísico e disso não nos queremos ocupar aqui, mas do conhecimento da natureza, cuja realidade pode ser comprovada pela experiência, embora seja possível a priori e preceda toda a experiência. 17 O formal da natureza neste sentido mais restrito é, pois, a regularidade de todos os objetos da experiência e, enquanto conhecida a priori, sua regularidade necessária. Acabamos, pois, de mostrar que as leis da natureza não podem ser conhecidas a priori enquanto os objetos não forem considerados em relação à experiência possível, mas como coisas em si mesmas. Mas não nos ocupamos aqui com coisas em si mesmas (estas suas propriedades não nos interessam), mas apenas com coisas enquanto objetos de uma possível experiência, e o conjunto das mesmas é que denominamos aqui natureza. Então eu me pergunto se, quando se trata da possibilidade de um conhecimento a priori da natureza, não seria melhor colocar a questão da seguinte maneira: como é possível conhecer a priori a regularidade necessária das coisas como objetos da experiência, ou: como é possível conhecer a priori a regularidade necessária da própria experiência com relação a todos os seus objetos em geral? Vista claramente a solução da questão, seja ela apresentada desta ou daquela maneira, será absolutamente a mesma no que diz respeito ao conhecimento puro da natureza (o qual constitui propriamente o nó da questão). Pois as leis subjetivas, pelas quais somente é possível um conhecimento da natureza das coisas, valem também para estas coisas como objetos de uma possível experiência (mas naturalmente não para as mesmas enquanto coisas em si mesmas, coisa com a qual não nos ocupamos aqui). É totalmente indiferente que eu diga: sem a lei de que um acontecimento percebido seja sempre relacionado com alguma coisa que o antecede e ao qual ele segue com uma regra geral, um juízo de percepção não pode valer nunca como experiência; ou que me exprima da seguinte maneira: tudo, a respeito do qual a experiência ensina que acontece, deve ter uma causa. É mais conveniente, porém, escolher a primeira fórmula. Pois, como podemos ter a priori e anteriormente a todos os objetos dados um conhecimento das condições, sob as quais somente é possível uma experiência referente a eles, nunca, porém, quais as leis a que estão sujeitos, sem levar em conta a experiência possível, também não podemos estudar a priori a natureza das coisas senão investigando as condições e as leis universais (apesar de subjetivas), sob as quais é possível tal conhecimento como experiência (de acordo com a simples forma) e com isso determinar a possibilidade das coisas como objetos da experiência; pois, se escolhesse a segunda fórmula e procurasse a priori as condições, sob as quais a natureza é possível como objeto da experiência, poderia facilmente cair em erro e acreditar estar falando da natureza como uma coisa em si mesma; então me perderia inutilmente em intermináveis tentativas, buscando leis para as coisas, das quais nada me é dado. Por conseguinte, temos de nos ocupar aqui apenas da experiência e das condições gerais dadas a priori de sua possibilidade, determinando daí a natureza como objeto total de toda a experiência possível. Penso que me compreenderão: não me refiro aqui às regras de observação de uma natureza já dada, pois elas já pressupõem experiência; nem, por conseguinte, à maneira como podemos aprender da natureza (pela experiência) as leis, pois estas não seriam leis a priori e não dariam nenhuma ciência pura da natureza; mas pretendo mostrar como as condições a priori são, ao mesmo tempo, as fontes da possibilidade da experiência, das quais devem ser derivadas todas as leis universais da natureza. 18 Devemos, portanto, observar em primeiro lugar que, não obstante todos os juízos de experiência serem empíricos, isto é, terem seu fundamento na percepção imediata dos sentidos, nem por isso são todos os juízos empíricos, inversamente, juízos de experiência, mas que ao empírico e ao que é dado a intuição sensível devem ser acrescentados conceitos particulares, os quais têm sua origem totalmente a priori no entendimento puro, e aos quais deve ser primeiramente subordinada cada percepção, para ser, logo em seguida, transformada em experiência. Juízos empíricos, enquanto tiverem validade objetiva, são juízos de experiência; aqueles, porém, válidos apenas subjetivamente, denomino meros juízos de percepção. Os últimos não necessitam de nenhum conceito de entendimento puro, mas apenas da conexão lógica de percepções num sujeito pensante. Os primeiros exigem, entretanto, a qualquer tempo, além das representações da intuição sensível, ainda conceitos especiais produzidos originariamente no entendimento, os quais permitem justamente que o juízo de experiência seja válido objetivamente. Todos os nossos juízos são em primeiro lugar juízos de percepção; valem apenas para nós, isto é, para nosso sujeito, e só mais tarde lhes damos uma nova relação, ou seja, com um objeto, e queremos que seja válido sempre para nós e para qualquer outra pessoa; pois, quando um juízo concorda com um objeto, então devem todos os juízos do mesmo objeto concordar uns com os• outros, assim não significa a validade objetiva do juízo de experiência nada além da validade universal necessária do mesmo. Mas, também ao contrário, quando encontramos causas para tomar um juízo por necessária e universalmente válido (o que nunca se funda na percepção, mas no conceito puro do entendimento, sob o qual a percepção está subsumida), então devemos também tomá-lo por objetivo, isto é, que ele expressa não apenas uma relação da percepção com um sujeito, mas uma disposição do objeto; pois não haveria razão para outros juízos concordarem necessariamente com o meu, se não fosse a unidade do objeto, ao qual todos se referem, com o qual concordam e com isso devem também concordar todos entre si. 19 Daí que validade objetiva e validade universal necessária (para todos) são conceitos recíprocos, e, embora não conheçamos o objeto em si, no entanto, quando consideramos um juízo como universalmente válido e, consequentemente, necessário, queremos com isso dizer ser ele de validade objetiva. Conhecemos o objeto por meio deste juízo (mesmo que este continuasse desconhecido como é em si mesmo) pela conexão universalmente válida e necessária das percepções dadas, e, como este é o caso de todos os objetos dos sentidos, então os juízos de experiência tiram sua validade objetiva não do conhecimento imediato do objeto (pois é impossível), mas apenas da condição de validade universal dos juízos empíricos, a qual repousa, como já foi dito, nunca sobre condições empíricas, nem em geral sobre condições sensíveis, mas sobre um conceito de entendimento puro. O objeto em si mesmo permanece sempre desconhecido; mas quando, pelo conceito de entendimento, a conexão das representações, dadas por ele à nossa sensibilidade, é determinada como universal, então o objeto é determinado por esta relação e o juízo é objetivo. É o que vamos explicar: que o quarto seja quente, o açúcar doce, o absinto amargo, (Confesso com prazer que estes exemplos não representam tais prejuízos de percepção, capazes um dia de serem juízos de experiência, se se acrescentasse a eles também um conceito do entendimento, pois se referem apenas ao sentimento, que cada um reconhece como meramente subjetivo, e que, portanto, não pode ser atribuído ao objeto, nem, por conseguinte, torna-se objetivo; gostaria apenas de dar um exemplo do juízo, válido apenas subjetivamente e que não contém em si nenhum fundamento para a necessária validade universal e, portanto, para uma relação com o objeto. Um exemplo dos juízos de percepção, que pelo acréscimo de um conceito do entendimento tornam-se juízos de experiência, é dado na observação seguinte. Nota do Autor) são apenas juízos subjetivamente válidos. Não exijo que eu ache sempre ou que outros achem como eu que eles exprimem apenas uma relação de duas sensações com o mesmo sujeito, a saber, comigo mesmo, e também só no meu atual estado de percepção, não devendo, portanto, valer para o objeto; a estes denomino juízos de percepção. Algo bem diferente são os juízos de experiência. O que em determinadas circunstâncias me ensina a experiência deve ensinar sempre a mim e a todos, e sua validade não se limita apenas ao sujeito e seu estado do momento. Daí eu considerar todos os juízos desta espécie como objetivamente válidos, como, por exemplo, quando digo que o ar é elástico, este juízo é, primeiramente, apenas um juízo de percepção, eu relaciono duas sensações em meus sentidos somente uma com a outra. Se quero que ele seja denominado juízo de experiência, então exijo que esta conexão esteja sob uma condição que a torne universalmente válida. Quero, portanto, que, em todo o tempo, eu e todos devamos ligar necessariamente a mesma percepção nas mesmas circunstâncias. 20 Devemos, portanto, desmembrar a experiência em geral, para verificar o que está contido neste produto dos sentidos e do entendimento e como é possível o juízo de experiência. Na base está a intuição, da qual estou consciente, isto é, percepção (perceptio) que só pertence aos sentidos. Mas, em segundo lugar, também pertence a isso o julgar (que só convém ao entendimento). Este julgar pode ser de duas espécies; em primeiro lugar, limito-me a comparar as percepções e a uni-las numa consciência, na consciência do meu estado, ou, em segundo lugar, uno-as numa consciência em geral. O primeiro juízo é um simples juízo de percepção e, enquanto tal, tem só validade subjetiva, é apenas conexão das percepções no meu estado de espírito, sem relação com o objeto. Portanto, não basta, para a experiência, como se imagina vulgarmente, comparar percepções e conectá-las mediante o juízo numa consciência; daí não surge nenhuma validade universal, nem necessidade do juízo, propriedades únicas através das quais este pode ser objetivamente válido e chamar-se experiência. É necessário, portanto, um juízo antecedente, inteiramente diferente, para que a percepção possa tornar-se experiência. A intuição dada deve ser subsumida sob um conceito, que determina a forma do julgar em geral com relação à intuição, conecta a consciência empírica da última numa consciência em geral e, por este meio, confere valor universal aos juízos empíricos; tal conceito é um conceito de entendimento puro a priori, que nada mais faz a não ser determinar, em geral, a maneira como uma intuição serve para julgar. Seja tal conceito o conceito de causa; ele determina a intuição, que é subsumida sob ele, por exemplo, a do ar, com relação ao julgar em geral, a saber, que o conceito de ar, no que diz respeito à dilatação, está como o antecedente para o consequente num juízo hipotético. O conceito de causa é, portanto, um conceito de entendimento puro, inteiramente distinto de toda possível percepção, servindo apenas para determinar a percepção que lhe é subordinada, relativamente ao juízo em geral, e, por conseguinte, para tornar possível um juízo universalmente válido. Ora, antes que um juízo de percepção se torne um juízo de experiência, é exigido que a percepção seja subsumida sob um conceito de entendimento desta espécie; por exemplo, o ar pertence ao conceito de causa, que determina o juízo sobre o mesmo com relação à extensão como hipotético. (Para ter um exemplo fácil de ser compreendido, deve-se tomar o seguinte: quando o sol incide sobre a pedra, torna-a quente. Este juízo é apenas um juízo de percepção e não contém necessidade, tenha eu ou qualquer outro percebido isto, seja qual for o número de vezes: só devido ao hábito é que as percepções estão assim ligadas. Mas se afirmo: o sol aquece a pedra, então à percepção é acrescentado um conceito de entendimento de causa, conectando necessariamente o conceito de calor ao conceito de brilho do sol; assim o juízo sintético torna-se necessária e universalmente válido, portanto, objetivo e, de percepção, transforma-se em experiência. Nota do Autor) Assim, esta expansão não é representada como pertencendo simplesmente à minha percepção de ar em um ou mais de meus estados ou ao estado da percepção de outros, mas como pertencendo a isso; e o juízo o ar é elástico torna-se válido universalmente e, com isso, juízo de experiência, pelo fato de o precederem certos juízos, que subsumem a intuição do ar sob o conceito de causa e efeito, determinando com isso as percepções, não só em sua recíproca relação com meu sujeito, mas com a forma do julgar em geral (aqui a hipotética), tornando desta maneira o juízo empírico universalmente válido. Desmembrando todos os nossos juízos sintéticos, enquanto objetivamente válidos, verificamos que nunca estão constituídos de simples intuições, como comumente se crê, e conectadas num juízo simplesmente por comparação, mas seriam impossíveis, se não se tivesse acrescentado aos conceitos tirados da intuição um conceito de entendimento puro, sob o qual aqueles conceitos foram subsumidos e primeiramente conectados num juízo objetivamente válido. Mesmo os juízos da matemática pura em seus axiomas mais simples não escapam a esta condição. A proposição: a linha reta é a mais curta entre dois pontos pressupõe que a linha seja subsumida sob o conceito de grandeza, o que certamente não é uma simples intuição, mas tem sua sede unicamente no entendimento e serve para determinar a intuição (da linha) quanto aos juízos que sobre ela podem ser emitidos, com relação à quantidade dos mesmos, ou seja, à pluralidade (como iudicia plurativa), (Preferiria que assim fossem chamados os juízos, denominados particularia na lógica. Pois a última expressão contém já o pensamento de que não são universais. Quando, porém, parto da unidade (nos juízos singulares) e vou à totalidade, não posso ainda imiscuir nenhuma relação à totalidade; penso apenas a pluralidade sem totalidade, não a exclusão desta. Isto é necessário, se os momentos lógicos devem ser a base para os conceitos de entendimento puro; no que se refere ao uso lógico, podemos servir-nos dos antigos. Nota do Autor) enquanto por meio deles se entende que numa dada intuição estão contidos muitos elementos homogêneos. 21 Para esclarecer a possibilidade da experiência, enquanto se basear em conceitos de entendimento puro a priori, devemos, antes de tudo, apresentar o que pertence ao julgar em geral, bem como os diversos momentos do entendimento dos mesmos, numa tábua completa; pois os conceitos do entendimento puro nada mais são que conceitos de intuições em geral, na medida em que estas são determinadas com relação a um ou outro desses momentos do julgar em si mesmos, e daí revestidas de necessidade e de universalidade, desenvolvem-se perfeitamente paralelas a eles. Deste modo são determinados também com exatidão os princípios a priori da possibilidade de toda experiência como um conhecimento empírico objetivamente válido. Pois estes não são mais que proposições que subsumem toda percepção (conforme certas condições gerais da intuição) sob aqueles conceitos de entendimento puro. Tábua lógica dos juízos 1. Segundo a quantidade Universais Particulares Singulares 2. Segundo a qualidade Afirmativos Negativos Infinitos 3. Segundo a relação Categóricos Hipotéticos Disjuntivos 4. Segundo a modalidade Problemáticos Assertórios Apodíticos Tábua transcendental dos conceitos do entendimento 1. Segundo a quantidade Unidade (a medida) Pluralidade (a grandeza) Totalidade (o todo) 2. Segundo a qualidade Realidade Negação Limitação 3. Segundo a relação Substância Causa Comunidade 4. Segundo a modalidade Possibilidade Existência Necessidade Tábua fisiológica pura dos princípios gerais da ciência da natureza 1. Axiomas da intuição 2. Antecipações da percepção 3. Analogias da experiência 4. Postulados do pensamento empírico em geral 21 Para resumir o que foi tratado até agora num conceito, é necessário, antes de tudo, recordar aos leitores que não se fala aqui da origem da experiência, mas daquilo que nela está contido. A primeira pertence à psicologia empírica, mas mesmo neste domínio não poderia ser convenientemente desenvolvida sem o segundo, que pertence à crítica do conhecimento e particularmente ao entendimento. A experiência é composta de intuições pertencentes à sensibilidade e de juízos que dizem respeito somente ao entendimento. Aqueles juízos, porém, formados só pelo entendimento a partir de intuições sensíveis, estão longe de ser juízos de experiência. Pois num dos casos, o juízo conectaria apenas as percepções, assim como elas são dadas na intuição sensível; no último caso, entretanto, devem os juízos dizer que coisa em geral está contida na experiência, e não, por conseguinte, na simples percepção, cuja validade é apenas subjetiva. O juízo de experiência deve, pois, acrescentar, num juízo, à intuição sensível e à conexão lógica da mesma (depois desta ter sido universalizada por comparação), algo que determina o juízo sintético como necessário e, portanto, como universalmente válido; e isto só pode ser aquele conceito que representa a intuição como determinada em si em relação a outras, isto é, um conceito daquela unidade sintética das intuições que só pode ser representada por uma função lógica dada dos juízos. 22 O resumo disso é o seguinte: compete aos sentidos intuir; ao entendimento, pensar. Pensar, entretanto, é unir representações numa consciência. Esta união produz-se ou só relativamente ao sujeito, e é casual e subjetiva, ou acontece absolutamente, e é necessária ou objetiva. A união de representações numa consciência é o juízo. Portanto, pensar é tanto quanto julgar, ou relacionar representações com juízos em geral. Daí serem eles ou simplesmente subjetivos, quando as representações se relacionam a uma consciência num sujeito e nele unificadas, ou objetivos, quando são unificadas numa consciência em geral, isto é, necessariamente. Os momentos lógicos de todos os juízos são outras tantas maneiras possíveis de unir representações numa consciência. Mas, se os mesmos servirem de conceitos, então são conceitos da união necessária das mesmas representações numa consciência e, por conseguinte, princípios de juízos objetivamente válidos. Esta união é ou analítica, pela identidade, ou sintética, pela combinação e adição recíproca de diversas representações. A experiência consiste na conexão sintética de fenômenos (percepções) numa consciência, enquanto a mesma é necessária. De onde serem conceitos de entendimento puro aqueles sob os quais todas as percepções devem ser subsumidas em primeiro lugar, antes de poderem servir a juízos de experiência, nos quais é representada a unidade sintética das percepções, como necessária e universalmente válida. (Como concorda, porém, esta proposição: os juízos de experiência devem conter necessidade na síntese das percepções, com a minha proposição acima, tão insistente: que a experiência, como conhecimento a posteriori, só pode dar juízos acidentais? Quando afirmo que a experiência me ensina algo, refiro-me sempre à percepção que está nela, por exemplo, que à iluminação da pedra pelo sol segue-se sempre o calor e, portanto, a proposição de experiência é, neste caso, sempre acidental. Que este aquecimento resulte necessariamente da iluminação pelo sol, está certamente contido no juízo de experiência (graças ao conceito de causa), mas isso não me é ensinado pela experiência, porém, ao contrário, a experiência é produzida, em primeiro lugar, por este acréscimo do conceito de entendimento (de causa) à percepção. Como a percepção chega a este acréscimo, é algo a ser visto na Crítica, seção da capacidade transcendental do juízo, p. 137 e ss. Nota do Autor) 23 Os juízos, enquanto considerados mera condição da união de representações dadas numa consciência, são regras. Estas regras, na medida em que representam união como necessária, são regras a priori, e, enquanto não houver nenhuma outra acima delas, da qual possam ser derivadas, são princípios. Como no que se refere à possibilidade de toda experiência, quando nesta se considera só a forma o pensamento, não há condições dos juízos de experiência, acima daquelas, que subordinam os fenômenos, segundo a forma diversa de sua intuição, ao conceito e entendimento puro, que tornam o juízo empírico objetivamente válido, então estes princípios são os princípios a priori de uma experiência possível. Os princípios de uma experiência possível são, ao mesmo tempo, leis universais da natureza, que podem ser conhecidas a priori. Assim fica resolvida a questão suscitada por nossa segunda pergunta: Como é possível a ciência da razão pura? Pois o sistemático exigido para a forma de uma ciência é totalmente encontrado aqui, não sendo possíveis outras condições além das enunciadas condições formais de todos os juízos em geral e, por conseguinte, de todas as regras em geral, oferecidas pela lógica; elas constituem um sistema lógico, porém, os conceitos nelas fundamentados, que contêm as condições a priori para todos os juízos sintéticos e necessários, constituem justamente por isso um sistema transcendental; finalmente, os princípios, por meio dos quais todos os fenômenos são subsumidos sob estes conceitos, constituem um sistema fisiológico, isto é, um sistema da natureza, que antecede todo o conhecimento empírico da natureza, torna-a primeiramente possível, podendo com isso ser denominado ciência propriamente universal e pura da natureza. 24 O primeiro (Os três parágrafos seguintes dificilmente poderão ser entendidos como devem, se não se tomar como auxílio o que a Critica afirma a respeito dos princípios; podem, porém, ter sua utilidade para pôr em relevo a universalidade dos mesmos e para chamar atenção sobre os pontos principais. Nota do Autor). destes princípios fisiológicos subsume todos os fenômenos, como intuições no espaço e no tempo, sob o conceito de grandeza, e é, assim, o princípio da aplicação da matemática à experiência. O segundo subsume o propriamente empírico, ou seja, a sensação, que designa o real das intuições, não propriamente sob o conceito de grandeza, porque sensação não é intuição que contenha espaço ou tempo, apesar de colocar em ambos o objeto que lhe corresponde; mas há, entre realidade (representação de sensação) e o zero, isto é, a ausência total de intuição temporal, uma diferença, que tem uma grandeza, já que entre um grau qualquer de luz e as trevas, entre um grau qualquer de calor e o frio absoluto, qualquer grau de peso e a imponderabilidade absoluta, qualquer grau de densidade do espaço e o espaço totalmente vazio, sempre podem ser pensados graus ainda menores, assim como mesmo entre uma consciência e a inconsciência total (obscuridade psicológica) há sempre ainda menores; daí ser impossível uma percepção que demonstre carência absoluta, por exemplo, nenhuma obscuridade psicológica que não possa ser considerada como uma consciência, apenas superada por um estado mais forte, e o mesmo acontece em todos os casos da sensação; por isso pode o entendimento antecipar sensações, que constituem a qualidade própria das representações empíricas (fenômenos), por meio do princípio de que todas as sensações, ou seja, o real de todo fenômeno, comportam graus, o que é a segunda aplicação da matemática (mathesis intensorum) à ciência da natureza. 25 Quanto à relação dos fenômenos, e justamente no que diz respeito à sua existência, a determinação desta relação não é matemática, mas dinâmica, e nunca objetivamente válida, nem, por conseguinte, convém a uma experiência, se não estiver sujeita a princípios a priori, os quais tornam possível, em primeiro lugar, o conhecimento de experiência relativo a eles. Daí deverem ser os fenômenos subsumidos sob o conceito de substância, o qual serve de fundamento para toda a determinação da existência, como um conceito da coisa mesma, ou, em segundo lugar, enquanto se encontrar uma sucessão entre os fenômenos, isto é, um acontecimento, sob o conceito de um efeito em relação a uma causa, ou enquanto a simultaneidade deve ser conhecida objetivamente, ou seja, por um juízo de experiência, sob o conceito de comunidade (ação recíproca); assim, princípios a priori servem de fundamento para juízos objetivamente válidos, apesar de empíricos, isto é, para a possibilidade da experiência, na medida em que ela deve conectar objetos da natureza, segundo sua existência. Estes princípios são as próprias leis da natureza e podem ser denominados dinâmicos. Por último, pertence também aos juízos de experiência o conhecimento da concordância e da conexão, não tanto dos fenômenos entre si na experiência, quanto em sua relação com a experiência em geral, a qual une num conceito ou a concordância deles com as condições formais, que o entendimento conhece, ou o encadeamento com os materiais dos sentidos e da percepção, ou ambas as coisas, e consequentemente contém possibilidade, realidade e necessidade segundo leis gerais da natureza, o que constituiria a doutrina fisiológica do método (distinção da verdade e das hipóteses e dos limites da legitimidade destas últimas). 26 Embora a terceira tábua dos princípios, tirada da natureza do próprio entendimento segundo o método crítico, mostre uma perfeição, pela qual se eleva acima de qualquer outra que já tenha sido tentada, apesar de em vão, ou que possa vir a ser no futuro, dogmaticamente, a partir das próprias coisas: a saber, que todos os princípios sintéticos a priori foram estabelecidos completamente e segundo um princípio, ou seja, o poder de julgar em geral, que constitui a essência da experiência com relação ao entendimento de modo que se pode estar certo de não haver outros princípios deste gênero (uma satisfação que não pode ser dada pelo método dogmático), não é este, entretanto, nem de longe seu maior mérito. Deve ser dada atenção ao fundamento demonstrativo, que descobre a possibilidade deste conhecimento a priori, e que ao mesmo tempo limita todos estes princípios a uma condição, que nunca se deve perder de vista, sob pena de se entender mal o uso dos mesmos para além dos limites autorizados pelo sentido originário, que lhe é dado pelo entendimento: a saber, que eles contêm apenas as condições de uma experiência possível em geral, enquanto subordinadas a leis a priori. Não afirmo que as coisas em si mesmas tenham uma grandeza, sua realidade um grau, sua existência conexão dos acidentes numa substância, etc.; pois isso ninguém pode provar, porque é absolutamente impossível tal conexão sintética de simples conceitos, se por um lado falta toda relação a uma intuição sensível e, por outro lado, toda conexão dos mesmos numa experiência possível. Portanto, a limitação essencial dos conceitos nestes princípios é a de que todas as coisas estão sujeitas necessariamente e a priori, como objetos da experiência, às condições mencionadas. Daqui se segue ainda, em segundo lugar, uma prova específica e característica dos mesmos: que os princípios pensados não se referem diretamente aos fenômenos e sua relação, mas à possibilidade da experiência, da qual os fenômenos constituem apenas a matéria e não a forma, isto é, a proposições sintéticas e válidas objetiva e universalmente, onde se distinguem os juízos de experiência dos meros juízos de percepção. Isto acontece porque os fenômenos, como simples intuições que ocupam uma parte do espaço e do tempo, estão sob o conceito de grandeza, o qual une sinteticamente a priori e segundo regras sua multiplicidade; que, enquanto a percepção fora da intuição contém também sensação, entre aquela e o zero, isto é, a ausência total, há sempre uma transição por graus inferiores, o real dos fenômenos deva ter um grau, não enquanto a sensação ocupa, ela própria, uma parte do tempo e do espaço, (O calor, a luz, etc., são tão intensos num espaço pequeno (segundo o grau) como num grande; da mesma maneira, não são menores, segundo o grau, a representação interior, a dor, a consciência, durem pouco ou muito tempo. A grandeza é aqui num ponto e num momento tão grande como em qualquer espaço ou tempo, por grandes que sejam. Graus são, portanto, maiores, mas não na intuição, porém segundo a simples sensação, ou são também a grandeza do fundamento de uma intuição, e só podem ser apreciados como grandezas pela relação de 1 a 0, isto é, enquanto cada uma das mesmas pode descrever por um número infinito de graus intermédios até desaparecer, ou crescer, num certo tempo, do zero até uma sensação determinada através de momentos infinitos. (Quantitas qualitatis est gradus.) Nota do Autor) mas enquanto a transição para chegar do espaço e do tempo vazios até ela só é possível no tempo; por conseguinte, apesar de a sensação não poder ser conhecida, nunca a priori, como qualidade da intuição empírica em relação ao que a distingue especificamente de outras sensações, pode, entretanto, ser intensivamente distinta, numa experiência possível em geral, de qualquer outra da mesma espécie; é justamente isto que possibilita a aplicação da matemática à natureza, no que diz respeito à intuição sensível, pela qual nos é dada e determinada. Mas o leitor deve estar atento sobretudo ao modo de demonstração dos princípios que surgem sob o nome de analogias da experiência. Pois estes não se referem, assim como os princípios da aplicação da matemática, à ciência da natureza em geral, ao produto da intuição, mas à conexão de sua existência numa experiência, esta não pode ser outra coisa que a determinação da existência no tempo segundo leis necessárias, sob as quais só é objetivamente válida, e, por conseguinte, experiência: a demonstração não se refere à unidade sintética na conexão das coisas em si mesmas, mas das percepções, e destas não no que diz respeito a seu conteúdo, mas à determinação do tempo e de sua relação da existência nele, segundo leis universais. Estas leis universais contêm, portanto, a necessidade da determinação da existência no tempo em geral (consequentemente, segundo uma regra do entendimento a priori), se a determinação empírica do tempo relativo deve ser válida e, por conseguinte, experiência. Mais não posso acrescentar aqui nos Prolegômenos, a não ser recomendar ao leitor, há muito acostumado a considerar a experiência como mera composição empírica de percepções e nunca pensa que ela vai muito além do que estas alcançam, conferindo aos juízos empíricos validade universal e, necessita para isso de uma unidade de entendimento puro, que a precede a priori: atentar para esta diferença entre a experiência e um simples agregado de percepções e que, a partir deste ponto de vista, julgue a maneira de demonstrar. 27 É este o lugar de se minar pela base a dúvida de Hume. Ele afirmava com razão: não vemos de maneira alguma, pelo entendimento, a possibilidade da causalidade, isto é, da relação da existência de uma coisa com a existência de outra qualquer, posta necessariamente pela primeira. Eu ainda acrescento que não vemos melhor o conceito de subsistência, isto é, da necessidade de a existência das coisas se fundar num sujeito, que por sua vez não pode ser o predicado de outra coisa qualquer, que nem sequer podemos formar um conceito da possibilidade de tal coisa (embora possamos mostrar exemplos de seu uso na experiência); esta incompreensibilidade estende-se também à comunidade das coisas, pois não se compreende de modo algum como se possa tirar do estado de uma coisa uma consequência sobre o estado de outras coisas além dela e reciprocamente, nem como as substâncias, cada uma dotada de existência própria e particular, devam depender necessariamente umas das outras. Contudo, estou bem longe de considerar estes conceitos como meramente derivados de experiência, e a necessidade, representada neles; como ilusão e simples aparência resultante de longo hábito; muito mais, mostrei suficientemente que eles e os princípios dos mesmos são estabelecidos a priori anteriormente a toda experiência e possuem exatidão objetiva acima de qualquer dúvida, se bem que apenas no que diz respeito à experiência. 28 Embora não tenha o mínimo conceito de tal conexão das coisas em si mesmas, de como elas existem como substância, ou de como agem como causa, ou como podem estar em comunidade com outras (como partes de um todo real), posso pensar menos ainda semelhantes propriedades nos fenômenos como fenômenos (pois aqueles conceitos não contêm nada do que está nos fenômenos, mas apenas o que o entendimento deve pensar), possuímos, entretanto, tal conceito de uma conexão desta espécie de representações em nosso entendimento e justamente no julgar em geral, a saber: as representações pertencem a uma classe de juízos, como sujeito em relação a predicados, a outra como causa em relação a um efeito e uma terceira, como partes que constituem todo um conhecimento possível. Além disso, conhecemos a priori: sem considerar a representação de um objeto como determinada em relação a um ou outro destes momentos, não poderíamos obter nenhum conhecimento válido do objeto e, se nos ocupássemos como objeto em si mesmo, não haveria um único indício possível, pelo qual pudesse conhecer, que fosse determinado em relação a um ou outro dos momentos pensados, isto é, que pertencesse ao conceito de substância, ou ao de causa, ou (em relação com outras substâncias) ao conceito de comunidade; pois, da possibilidade de uma tal conexão da existência não tenho conceito algum. Mas a questão não é como as coisas em si são determinadas, mas como o é o conhecimento de experiência das coisas em relação a momentos pensados de juízos em geral, isto é, de que maneira coisas, como objetos da experiência, podem e devem ser subsumidas sob aquele conceito de entendimento. Então fica claro que compreendo inteiramente não só a possibilidade, mas também a necessidade de subsumir todos os fenômenos sob estes conceitos, ou seja, utilizá-los como princípios da possibilidade da experiência. 29 Para pôr à prova o conceito problemático de Hume (esta sua crux metaphysicorum), ou seja, o conceito de causa é-me dada primeiramente a priori, pela lógica, a forma de um juízo condicionado em geral, a saber, um conhecimento dado utilizável como fundamento e outro como consequência. Mas é possível que seja encontrada na percepção uma regra da relação, que afirme: um determinado fenômeno segue regularmente outro (embora não inversamente), e este é um caso para me servir do juízo hipotético e dizer, por exemplo: se um corpo fica exposto ao sol por tempo suficiente, torna-se quente. Aqui não há ainda, na verdade, uma necessidade de conexão e nem, por conseguinte, o conceito de causa. Mas continuo e digo: se a proposição anterior, que é apenas uma conexão subjetiva de percepções, deve ser uma proposição de experiência, deve ser considerada necessária e válida universalmente. Tal proposição seria, pois: o sol é, através de sua luz, a causa do calor. A regra empírica anterior é agora considerada lei, e assim não só válida para fenômenos, mas para fenômenos que visam a uma experiência possível, a qual necessita de regras universais e necessariamente válidas. Compreendo, portanto, muito bem o conceito de causa como um conceito pertencendo necessariamente à simples forma da experiência e sua possibilidade como unia união sintética das percepções numa consciência em geral; não compreendo, porém, de maneira alguma, a possibilidade de uma coisa em geral como uma causa, e isto porque o conceito de causa designa uma condição inerente não às coisas, mas à experiência, a saber, que esta só pode ser um conhecimento objetivamente válido dos fenômenos e de sua sucessão no tempo na medida em que o antecedente pode ser ligado ao consequente, segundo regras dos juízos hipotéticos. 30 Eis por que os conceitos de entendimento puro não têm nenhuma significação, quando se afastam dos objetos da experiência e querem ser relacionados apenas coisas em si mesmas (noúmena). Servem, de algum modo, apenas para soletrar fenômenos, a fim de que possam ser lidos como experiência; os princípios que brotam de sua relação com o mundo sensível servem apenas ao nosso entendimento para o uso da experiência; além disso, são ligações arbitrárias sem realidade objetiva, cuja possibilidade não se pode conhecer a priori, nem comprovar, ou tornar inteligível sua relação com objetos por nenhum exemplo, isto porque todos os exemplos só podem ser tirados de uma experiência qualquer e, por conseguinte, também os objetos destes conceitos não podem ser encontrados, a não ser numa experiência possível. Esta solução completa do problema de Hume, apesar de contrária à pressuposição de seu autor, salva, pois, aos conceitos do entendimento puro sua origem a priori e às leis universais da natureza sua validade como leis do entendimento de tal maneira que limita seu uso na experiência, porque sua possibilidade só tem fundamento na relação do entendimento com a experiência; não no sentido que elas derivam da experiência, mas que a experiência deriva delas, uma maneira bem diversa de conexão, da qual Hume nunca suspeitou. Daqui sai o resultado de todas as pesquisas precedentes: "Todos os princípios a priori nada mais são que princípios de experiência possível" e não podem ser nunca relacionados com coisas em si mesmas, mas somente com fenômenos como objetos da experiência. Por isso, tanto a matemática pura como a ciência pura da natureza nunca podem ir além dos meros fenômenos e representam apenas aquilo que torna possível uma experiência em geral ou o que, sendo derivado destes princípios, deve poder ser representado, em todo o tempo, em qualquer experiência possível. 31 Temos, enfim, algo de determinado em que nos apoiar em todas as tentativas metafísicas, que até agora, suficientemente audazes, mas sempre cegas, foram além de tudo sem distinção. Pensadores dogmáticos nunca se convenceram de que o objetivo de seus esforços devia circunscrever-se em tão estreitos confins; nem mesmo aqueles que, fiando-se em sua razão pretensamente sadia, partindo de conceitos e princípios da razão pura, legítimos e naturais, mas de uso apenas de experiência, pretendiam chegar a conclusões das quais não conheciam nenhum limite determinado, nem podiam conhecer, por nunca haverem pensado ou ousado pensar sobre a natureza e mesmo a possibilidade de tal entendimento puro. Algum naturalista da razão pura (sob este nome entendo aquele que se atreve a decidir, sem nenhuma ciência, sobre as coisas da metafísica) poderia muito bem opor que tudo que foi exposto aqui com tanto aparato ou, se o agrada mais, com prolixa e pedante solenidade, já desde há muito não só presumiu, através de seu espírito adivinhatório, como soube e viu: "que na verdade, com toda nossa razão, nunca podemos ir além do campo da experiência". Todavia, se ele, simplesmente, é pouco a pouco interrogado a respeito de seus princípios da razão, deve confessar que entre eles estão muitos que não tirou da experiência, que, portanto, são independentes desta e válidos a priori, como e com quais motivos quer ele impor limites ao dogmático e a si mesmo, pretendendo servir-se destes conceitos e princípios para além de toda experiência possível, justamente por serem conhecidos independentemente desta. E mesmo ele, este adepto da razão sadia, não obstante sua pretensa sabedoria adquirida a preço baixo, não está seguro de não se desviar dos objetos da experiência, para cair no campo das quimeras. Também aí se encontra, de ordinário, suficientemente envolvido, embora por sua linguagem popular, pois considera tudo meras verossimilhanças, conjecturas racionais ou analogias, dá certo colorido a suas pretensões infundadas. 32 Desde os tempos mais remotos da filosofia, os pesquisadores da razão pura conceberam, além dos seres sensíveis ou fenômenos (phaenómena), que constituem o mundo sensível, seres inteligíveis (noúmena), que deveriam constituir o mundo inteligível, e, como confundiam fenômeno com aparência (coisa desculpável numa época ainda inculta), atribuíram realidade apenas aos seres inteligíveis. De fato, quando consideramos os objetos dos sentidos - como é justo - simples fenômenos, então admitimos, ao mesmo tempo, que uma coisa em si mesma lhes serve de fundamento, apesar de não a conhecermos como é constituída em si mesma, mas apenas seu fenômeno, isto é, a maneira como nossos sentidos são afetados por este algo desconhecido. O entendimento, portanto, justamente por admitir fenômenos, aceita também a existência das coisas em si mesmas, donde podemos afirmar que a representação de tais seres, que servem de fundamento aos fenômenos, e, por conseguinte, a representação de simples seres inteligíveis, não só é admissível como inevitável. Nossa dedução crítica não exclui de maneira alguma tais coisas (noúmena), mas só limita os princípios da estética, de modo a não se estenderem a todas as coisas, o que transformaria tudo em meros fenômenos, mas a serem válidos somente como objetos de uma experiência possível. Através disso admitem-se seres inteligíveis, somente com a limitação desta regra, que não admite exceção: que não sabemos, nem podemos saber, nada de determinado destes seres inteligíveis puros, porque nossos conceitos de entendimento puro, bem como nossas intuições puras, referem-se apenas a objetos de uma experiência possível, portanto, a meros seres sensíveis e, tão logo nos desviemos deles, tais conceitos deixam de ter a mínima significação. 33 Há, na verdade, algo de capcioso com nossos conceitos de entendimento puro, com respeito à atração que exercem para um uso transcendente; assim denomino aquele que vai além de toda experiência possível. Não apenas enquanto nossos conceitos de substância, de força, de ação, de realidade, etc., são totalmente independentes da experiência e, por não conterem nenhum fenômeno dos sentidos, pois parecem na verdade referir-se a coisas em si mesmas (noúmena), mas, o que ainda corrobora esta suposição, encerram em si uma necessidade da determinação, à qual a experiência nunca consegue igualar-se. O conceito de causa contém uma regra segundo a qual a um estado se segue necessariamente outro; mas a experiência só pode nos mostrar que muitas vezes, ou mais comumente, a um estado das coisas sucede outro, e não pode, portanto, gerar nem universalidade rigorosa, nem necessidade, etc. Donde parecem ter os conceitos do entendimento muito mais significado e conteúdo do que poderia exaurir o simples uso da experiência de todas as suas determinações, e assim constrói o entendimento para si, imperceptivelmente, ao lado do edifício da experiência, um anexo muito mais vasto, que é preenchido apenas com seres pensantes, sem ao menos reparar que, com seus conceitos aliás legítimos, foi além dos limites de seu uso. 34 Eram necessárias, portanto, duas investigações importantes, até mesmo indispensáveis, embora sumamente áridas, empreendidas na Crítica, p. 137, etc., e 235, etc. Pelas primeiras ficou provado que os sentidos não fornecem os conceitos de entendimento puro em concreto, mas apenas o esquema para o uso dos mesmos, e que o objeto a ele conforme só se encontra na experiência (como produto do entendimento tirado dos materiais da sensibilidade). Na segunda investigação (Crítica, p. 235), mostra-se: não obstante a independência de nossos conceitos de entendimento puro e princípios de experiência e mesmo o âmbito aparentemente maior de seu uso, todavia, por meio desta nada pode ser pensado ora do campo da experiência, porque nada podem fazer a não ser determinar apenas a forma lógica do juízo em relação a intuições dadas; mas, como não há intuição além do campo da sensibilidade, falta a estes conceitos puros toda e qualquer significação, pois não podem ser representados de maneira nenhuma em concreto, consequentemente, todos os noúmena bem como o conjunto dos mesmos, de um mundo inteligível, (E não (como habitualmente se diz) mundo intelectual. Pois intelectuais são os conhecimentos pelo entendimento e estes também se referem a nosso mundo dos sentidos; inteligíveis denominam-se os objetos, enquanto podem ser representados apenas pelo entendimento e aos quais não se pode referir nenhuma de nossas intuições sensíveis. Mas, como a cada objeto deve corresponder uma intuição possível, deveríamos conceber um entendimento que intuísse as coisas imediatamente; de um tal entendimento não temos, porém, o mínimo conceito, nem, por conseguinte, dos entes do entendimento a que deve referir-se. Nota do Autor) nada mais são que representações de um problema, cujo objeto é possível em si, mas cuja solução, de acordo com a natureza de nosso entendimento, é totalmente impossível, visto não ser nosso entendimento um poder da intuição, mas apenas a conexão de intuições dadas numa experiência e que com isto ela deve Conter todos os objetos correspondentes aos nossos conceitos, ao passo que fora dela todos os conceitos são destituídos de significação, já que nenhuma intuição pode lhes servir de fundamento. 35 Talvez possa ser perdoado à imaginação o fato de ela, por vezes, divagar, isto é, não se manter cautelosamente dentro dos limites da experiência, pois ao menos ela é animada e fortificada por este impulso livre, e tornar-se-á cada vez mais fácil moderar sua ousadia, do que ajudá-la em sua indolência. Mas que o entendimento, que deve pensar, ao invés disso divague, isto não se lhe pode perdoar nunca; pois nele está toda a ajuda que pode impor limites às divagações da imaginação, onde se fizer necessário. Ele começa aqui de maneira muito inocente e correta. Em primeiro lugar, põe a limpo os conhecimentos elementares que estão nele antes de toda experiência, mas que todavia devem ter sempre sua aplicação na experiência. Pouco a pouco deixa de lado estes limites, e o que deveria impedi-lo disto, já que o entendimento tomou livremente, de si mesmo, seus princípios? E então aplica-se a forças novamente pensadas na natureza, logo depois a seres estranhos à natureza, com uma palavra, ao mundo, para a construção do qual não nos podem faltar os materiais, porque uma imaginação fecunda os traz com abundância e, apesar de não confirmados pela experiência, tampouco são desmentidos por ela. Esta também é a causa pela qual jovens pensadores gostam tanto da metafísica em sua genuína forma dogmática e lhe sacrificam muitas vezes seu tempo e talento, aplicáveis a outro objeto. De nada serve, porém, querer reprimir estas tentativas da razão pura através de quaisquer advertências a respeito da dificuldade da solução de problemas tão obscuros, com lamentações sobre os limites de nossa razão e reduzindo as afirmações a simples suposições. Pois, enquanto não for claramente estabelecida a impossibilidade das mesmas e o autoconhecimento da razão não se tornar ciência, na qual o âmbito de seu uso fecundo não for distinguido do nulo, por assim dizer, com certeza geométrica, nunca cessarão completamente estas tentativas inúteis. Como é possível a própria natureza? 36 Esta questão, que é o ponto mais alto que a filosofia transcendental pode alcançar, e para o qual também deve ser conduzida como a seu limite e perfeição, contém, na verdade, duas questões. Em primeiro lugar: como é possível em geral a natureza em sentido material, ou seja, segundo a intuição como complexo dos fenômenos, e como são possíveis em geral o espaço, o tempo e aquilo que os preenche, ou seja, o objeto da sensação? A resposta é: pela condição de nossa sensibilidade, segundo a qual ela é impressionada, de modo peculiar, por objetos que lhes são em si mesmos desconhecidos e inteiramente distintos daqueles fenômenos. Esta resposta é dada no próprio livro, na estética transcendental, porém aqui, nos Prolegômenos, pela solução da primeira questão principal. Em segundo lugar: como é possível a natureza em sentido formal, como complexo das regras, sob as quais devem estar todos os fenômenos, se devem ser pensados como conectados numa experiência? A resposta não pode ser outra do que: ela só é possível pela condição de nosso entendimento, em virtude da qual todas as representações da sensibilidade devem ser relacionadas necessariamente em uma consciência, o que possibilita primeiramente a forma peculiar de nosso pensar, a saber, por regras, e, por ela, a experiência, que é absolutamente distinta do conhecimento dos objetos em si mesmos. Esta resposta é dada no próprio livro, na lógica transcendental, porém aqui, nos Prolegômenos, no decorrer da solução da segunda questão principal. Mas como seja possível esta propriedade peculiar de nossa própria sensibilidade ou de nosso entendimento e da necessária apercepção que serve de fundamento a este e a todo o pensar, não pode ser resolvido nem respondido ulteriormente, porque são, por sua vez, sempre necessárias para toda a resposta e para todo o pensar dos objetos. São muitas as leis da natureza que podemos saber apenas por meio da experiência, mas a regularidade na conexão dos fenômenos, isto é, a natureza em geral, só podemos conhecer pela experiência, porque a própria natureza precisa de tais leis, que servem de fundamento a priori para sua possibilidade. A possibilidade da experiência em geral é ao mesmo tempo a lei geral da natureza, e os princípios da primeira são mesmo as leis da segunda. Pois não conhecemos a natureza a não ser como complexo dos fenômenos, isto é, das representações em nós, por isso não podemos retirar a lei de suas conexões de nenhum outro lugar a não ser dos princípios das conexões dos mesmos em nós, isto e, das condições da ligação necessária numa consciência, que torna possível a experiência. Mesmo a proposição fundamental que foi desenvolvida em toda esta seção, a saber, que as leis gerais da natureza podem ser conhecidas a priori, conduz por si à proposição: que a legislação suprema da natureza deve estar em nós mesmos, isto é, em nosso entendimento, e que não devemos buscar as leis gerais da natureza na própria natureza por meio da experiência, mas, ao contrário, devemos derivar a natureza, em sua regularidade universal, unicamente das condições de possibilidade da experiência inerentes à nossa sensibilidade e ao nosso entendimento; pois, como seria possível conhecer de outro modo, a priori, as leis, já que elas não são regras do conhecimento analítico, mas verdadeiras extensões sintéticas destes? Tal concordância necessária dos princípios de uma experiência possível com as leis da possibilidade da natureza só pode acontecer a partir de duas causas: ou são estas leis derivadas da natureza por meio da experiência, ou, ao contrário, a natureza é derivada das leis da possibilidade da experiência em geral e forma uma só coisa com a simples regularidade universal da última. A primeira alternativa se contradiz, pois as leis universais da natureza podem e devem ser conhecidas a priori (isto é, independentemente de toda experiência) e servir de fundamento a todo uso empírico do entendimento. (Somente Crusius sabia um meio-termo: a saber, que um espírito, que não pode errar nem enganar, implantou em nós, originariamente, esta lei da natureza, Somente, uma vez que também princípios errôneos se introduzem frequentemente, do que o sistema deste homem nos oferece não poucos exemplos, o uso de tal princípio, à falta de critérios seguros para distinguir a origem verdadeira da falsa, é muito precário, pois nunca se pode saber seguramente o que nos possa ter inspirado o espírito da verdade ou o pai da mentira. Nota do Autor) Devemos, porém, distinguir leis da natureza, que pressupõem sempre percepções especiais, de leis puras ou universais da natureza, que, sem que se fundem sobre percepções especiais, contêm apenas as condições de sua ligação necessária na experiência e, com referência às últimas, natureza e experiência possível são uma só coisa e como nesta a conformidade com as leis se baseia na conexão necessária dos fenômenos numa experiência (sem a qual não podemos absolutamente conhecer nenhum objeto do mundo sensível), consequentemente, nas leis originárias do entendimento, pode, à primeira vista, parecer estranho, mas nem por isso é menos certo, se afirmo, levando em consideração estas últimas: o entendimento não cria suas leis (a priori) a partir da natureza, mas as prescreve à mesma. 37 Vamos agora explicar esta proposição, ousada na aparência, através de um exemplo que deve mostrar: que as leis descobertas por nós nos objetos da intuição sensível, principalmente quando reconhecidas como necessárias, já são consideradas por nós mesmos como tais, impostas pelo entendimento, embora sejam em tudo semelhantes às leis da natureza que atribuímos à experiência. 38 Quando se examinam as propriedades do círculo, pelas quais esta figura reúne em si, numa regra universal, tantas determinações arbitrárias do espaço, não se pode deixar de atribuir uma natureza a esta figura geométrica. Assim, duas linhas que cortem ao mesmo tempo a si mesmas e ao círculo, seja qual for o sentido em que forem traçadas, dividem-se sempre regularmente: que o retângulo construído com os segmentos de uma das linhas é igual ao construído com os da outra. Então pergunto: "esta lei está no círculo ou no entendimento", contém esta figura, independentemente do entendimento, o fundamento desta lei em si, ou é o entendimento que, tendo construído a figura segundo seus conceitos (a saber, da igualdade dos raios), introduz nela ao mesmo tempo a lei das cordas que se cortam mutuamente em proporção geométrica? Ao se pesquisar as provas desta lei, é fácil verificar que ela somente pode ser derivada da condição que o entendimento coloca como fundamento para a construção desta figura, a saber, a igualdade dos raios. Alarguemos agora este conceito, para seguir a unidade das múltiplas propriedades das figuras geométricas sob leis comuns, e examinemos o círculo como uma secção cônica, que está com outras secções cônicas sob as mesmas condições fundamentais da construção; assim encontramos que todas as cordas que se cortam no interior das últimas, da elipse, da parábola e da hipérbole, fazem-no sempre de maneira que os retângulos formados de seus segmentos, embora não sejam iguais, estejam sempre nas mesmas relações entre si. Indo mais longe, a saber, até as doutrinas fundamentais da astronomia física, apresenta-se-nos aí uma lei física estendida a toda a natureza material, a lei da atração recíproca, cuja regra é que a atração diminui na razão inversa do quadrado das distâncias a partir de cada centro de atração, como as superfícies esféricas em que esta força se difunde aumentam, o que parece estar necessariamente na natureza das próprias coisas e por isso é apresentada como cognoscível a priori. Por simples que sejam as fontes desta lei, pois se fundam apenas na relação das superfícies esféricas de diferentes raios, a consequência que daí resulta, em relação à multiplicidade de sua harmonia e regularidade, é que não só todas as órbitas possíveis dos corpos celestes provêm das secções cônicas, mas também que tal relação entre as mesmas, que nenhuma lei da atração pode ser concebida como aplicável a um sistema cósmico a não ser a da relação inversa do quadrado das distâncias. Temos aqui, portanto, natureza que se funda em leis, que o entendimento conhece a priori, principalmente dos princípios universais da determinação do espaço. Agora pergunto: estão estas leis da natureza no espaço, e o entendimento as aprende procurando descobrir o sentido profundo que aquele contém, ou elas estão no entendimento e na maneira como este determina o espaço segundo as condições da unidade sintética, para onde convergem todos os seus conceitos? O espaço é algo tão uniforme e tão indeterminado no que diz respeito a todas as propriedades especiais que não se vai procurar nele, certamente, nenhum tesouro de leis naturais. Pelo contrário, o que determina o espaço em figura de círculo, em figura de cone e de esfera, é o entendimento, enquanto contém o fundamento da idade de construção das mesmas figuras. A mera forma universal da intuição, que se chama espaço, é, pois, com razão o substrato de todos os objetos particulares de intuições determináveis, e nele está, portanto, a condição da possibilidade e multiplicidade das últimas; mas a unidade dos objetos é finalmente determinada pelo entendimento, e isto segundo condições inerentes à sua própria natureza; assim, é o entendimento a origem da ordem universal da natureza ao abarcar todos os fenômenos em suas próprias leis e, deste modo, constitui primeiramente a experiência (segundo sua forma) a priori, mercê da qual tudo quanto deve ser conhecido pela experiência deve ser submetido necessariamente a suas leis. Pois não temos de nos ocupar com a natureza das coisas em si mesmas, isto é, independente das condições tanto de nossa sensibilidade como do entendimento, mas com a natureza como um objeto de uma experiência possível, então se compreende como o entendimento, no mesmo momento em que torna possível a experiência, faça ao mesmo tempo em que o mundo sensível ou não seja nenhum objeto da experiência, ou seja, uma natureza. 39. Apêndice à ciência pura da natureza Do sistema das categorias Nada pode ser mais desejável a um filósofo do que, ao se encontrar diante a multiplicidade de conceitos ou de princípios que anteriormente, no uso que eles fazia em concreto, se lhe apresentava uma pluralidade esparsa, poder derivá-los de um princípio a priori e, desta maneira, uni-l os todos num conhecimento. Antes acreditava que o que lhe restava depois de certa abstração e que parecia constituir, depois de uma comparação recíproca, certa categoria de conhecimentos fosse completamente reunido, mas isto era apenas um agregado; agora ele sabe que esta categoria de conhecimento é constituída por um determinado número, nem mais, nem menos, e viu a necessidade de sua divisão, o que é uma compreensão, tendo, portanto, somente agora um sistema. Tirar do conhecimento comum os conceitos que não se fundam em nenhuma experiência particular, e que, no entanto, aparecem em todo conhecimento de experiência, do qual constituem ao mesmo tempo a simples forma da conexão, não pressupõe maior reflexão ou compreensão do que tirar de uma língua as regras do uso real das palavras em geral, e, assim, reunir os elementos de uma gramática (na verdade, ambas as operações estão muito intimamente ligadas), sem poder, entretanto, indicar o motivo por que uma língua tem justamente esta e nenhuma outra constituição formal, menos ainda, por que se podem encontrar tantas determinações formais da mesma em geral, nem mais, nem menos. Aristóteles reuniu dez destes conceitos elementares puros sob o nome de categorias. A estas, também denominadas predicamentos, sentiu depois a necessidade de acrescentar outros cinco post-predicamentos, que em parte já estão naqueles (como prius, simul, motus); esta rapsódia podia valer antes como um aceno aos futuros pesquisadores do que como uma ideia desenvolvida sistematicamente e receber aplausos; mas, com o maior esclarecimento alcançado pela filosofia, foi rejeitada como de todo inútil. Numa investigação dos elementos puros (que nada contêm de empírico) do conhecimento humano, logrei primeiramente, depois de longa reflexão, distinguir e separar com certeza os conceitos elementares puros da sensibilidade (espaço e tempo) dos do entendimento. Com isto foram excluídas daquele registro a sétima, a oitava e a nona categorias. As restantes de nada me poderiam valer, por não haver nenhum princípio segundo o qual o entendimento pudesse ser medido exaustivamente e determinadas completamente todas as suas funções, donde derivam seus conceitos puros. Mas, para encontrar tal princípio, procurei ver se não havia uma operação dei entendimento que contivesse todas as outras e que se distinguisse apenas por diferentes modificações ou momentos, para colocar a multiplicidade das representações sob a unidade do pensar em geral, e então encontrei que esta operação do entendimento consiste no julgar. Diante de mim já havia um trabalho pronto, se bem que não livre de falhas, dos lógicos, com o qual fiquei em condições de apresentar uma tábua completa das funções do entendimento puro, que eram, entretanto, indeterminadas com relação a todo objeto. Finalmente, referi estas funções a objetos em geral, ou mais ainda, à condição para determinar juízos como objetivamente válidos, resultando daí conceitos de entendimento puro, com o que não podia duvidar que eles e somente eles, nem mais, nem menos, podem constituir todo o nosso conhecimento das coisas a partir do simples entendimento. Denominei-os, como é justo, pelo seu velho nome de categorias: permiti-me acrescentar-lhes, sob o nome de predicáveis, o sistema completo dos conceitos que deles podem ser derivados, seja por conexão entre eles, seja com a forma pura dos fenômenos (espaço e tempo) ou com a matéria, enquanto não determinada empiricamente (objeto da sensação em geral), já que devia surgir um sistema da filosofia transcendental, fim para o qual eu agora só tinha a ver com a própria Crítica da Razão Pura. O essencial neste sistema de categorias, pelo qual se distingue daquela velha rapsódia, que continuava sem nenhum princípio, e o motivo pelo qual deve ser acrescentado à filosofia consistem no seguinte: por meio destas categorias, puderam ser determinados com exatidão o verdadeiro significado dos conceitos de entendimento puro e a condição de seu uso. Pois aí se verificou que elas, por si, nada mais são que funções lógicas, como tais não constituem o mínimo conceito de um objeto em si mesmo, mas precisam da intuição sensível como fundamento, servindo, então, apenas para determinar juízos empíricos, que em relação a todas as outras funções de juízo são indeterminadas e indiferentes, tornando-os, assim, universalmente válidos e possíveis por meio de seus juízos de experiência em geral. Nem o primeiro inventor das categorias, nem ninguém depois dele imaginou algo a respeito de tal compreensão da natureza das categorias, que as limitasse ao simples uso da experiência; mas, sem esta compreensão (que depende total e exatamente da derivação ou dedução das mesmas), são completamente inúteis e um pobre registro de nomes, sem explicação e regra para seu uso. Se algo semelhante tivesse vindo à mente dos antigos, sem dúvida todo o estudo do conhecimento da razão pura que, sob o nome de metafísica, arruinou algumas sólidas cabeças durante muitos séculos, teria chegado até nós numa forma bem diferente e teria esclarecido o entendimento do homem, ao invés de, como aconteceu realmente, esgotá-lo em obscuras e vãs sutilezas e torná-lo inútil para a verdadeira ciência. Este sistema das categorias torna, por sua vez, sistemático todo o manejo de cada objeto da própria razão pura e dá uma indicação exata ou fio orientador, como e por que pontos da investigação deve ser conduzida cada observação metafísica, se ela deve tornar-se completa: pois esgota todos os momentos do entendimento, sob os quais deve ser colocado qualquer outro conceito. Assim surgiu também a tábua dos princípios, de cuja integridade só se pode estar seguro pelo sistema das categorias, e mesmo na divisão dos conceitos, que deve ir além do uso fisiológico do entendimento (Crítica, pp. 344 e 415), é sempre o mesmo fio orientador que, devendo passar pelos mesmos pontos fixos, determinados a priori no entendimento humano, forma sempre um círculo fechado que não dá lugar a nenhuma dúvida de que o objeto de um conceito de entendimento puro ou de razão pura, ao ser examinado filosoficamente e segundo princípios, possa ser desta maneira totalmente conhecido. Não podia deixar de fazer uso desta direção com relação a uma das divisões ontológicas abstratas, a saber, à distinção múltipla dos conceitos de algo e de nada, e daí construir uma tábua regular e necessária (Crítica, p. 292). (Diante de uma tábua das categorias, é possível fazer-se toda sorte de considerações interessantes, tais como: I) que a terceira resulta da combinação da primeira e da segunda num conceito; 2) que nas de grandeza e qualidade só há um progresso da unidade à totalidade, ou de algo a nada (para este fim, as categorias de qualidade devem estar da seguinte maneira: realidade, limitação, negação total), sem correlata, ou opposita, mas as categorias de relação e modalidade, ao contrário, as comportam; 3) que, assim como na lógica os juízos categóricos servem de fundamento a todos os outros, assim a categoria de substância é o fundamento de todos os conceitos de coisas reais; 4) que, como a modalidade no juízo não é um predicado particular, assim tampouco os conceitos modais acrescentam qualquer determinação às coisas, etc. Tais considerações têm grande utilidade. Se, além disso, enumeramos todos os predicáveis, que se podem tirar mais ou menos completamente de cada boa ontologia (por exemplo, a de Baumgarten) e os ordenarmos por classes entre as categorias, sem deixarmos de acrescentar um desmembramento tão completo quanto possível de todos estes conceitos, surgirá daí uma parte simplesmente analítica, que não contém nenhuma proposição sintética, e que poderia anteceder a segunda parte (a sintética); isto não só seria proveitoso, não apenas por sua determinação e inteireza, mas pelo que nela houvesse de sistemático, conteria ainda certa beleza. Nota do Autor). Este mesmo sistema mostra sua não assaz apreciável utilidade, como todo verdadeiro sistema fundado num princípio universal, e também exclui todos os conceitos estranhos que se pudessem insinuar entre os conceitos de entendimento puro, e determina a cada conhecimento seu lugar. Tais conceitos, que também coloquei, pelo fio orientador das categorias, numa tábua e aos quais denominei conceitos de reflexão, mesclam-se na ontologia, sem permissão nem pretensões legítimas, com os conceitos de entendimento puro, embora estes sejam conceitos da conexão e com isto do próprio objeto, aqueles, porém, apenas da simples comparação de conceitos já dados, tendo assim outra natureza e outro uso; com minha divisão sistemática (Crítica, p. 260), ficam libertos daquela confusão. Mais clara ainda se torna a utilidade daquela tábua distinta das categorias quando, como acontecerá agora, separamos a tábua dos conceitos transcendentais da razão, que são de natureza e origem bem diversas daqueles conceitos do entendimento (e por isso deve ter outra forma), daqueles cuja separação tão necessária nunca aconteceu em nenhum sistema da metafísica, onde aquelas ideias da razão mesclam-se sem distinção com os conceitos do entendimento, como se pertencessem, como irmãos, a uma mesma família, numa confusão impossível de ser evitada, por falta de um sistema de categorias particular. TERCEIRA PARTE DA QUESTÃO TRANSCENDENTAL PRINCIPAL Como é possível a metafísica em geral? 40 A matemática pura e a ciência pura da natureza, para sua própria segurança e certeza, não teriam tido necessidade de tal dedução, como a que estabelecemos até agora para cada uma delas; pois a primeira apoia-se em sua própria evidência; a segunda, porém, apesar de ter surgido das fontes puras do entendimento, funda-se na experiência e na sua confirmação constante, não podendo de maneira alguma rejeitar este último testemunho, porque não pode nunca com toda a sua certeza, enquanto filosofia, igualar-se à matemática. Ambas as ciências necessitam da mencionada investigação não para si, mas para outra ciência, a saber, para a metafísica. A metafísica tem a ver não só com os conceitos da natureza, que encontram sempre sua aplicação na experiência, mas também com conceitos de entendimento puro, que nunca são fornecidos em qualquer experiência possível, por conseguinte, com conceitos, cuja realidade objetiva (que não sejam simples quimeras), e com afirmações, cuja verdade ou falsidade não pode ser comprovada nem descoberta por nenhuma experiência, e esta parte da metafísica é justamente aquela que constitui o fim essencial da mesma, para o que todo o resto é apenas meio, e assim precisa esta ciência de tal dedução por si mesma. A terceira questão a que nos propomos refere-se, portanto, ao mesmo tempo ao cerne e à particularidade da metafísica, a saber, à ocupação da razão somente consigo mesma e, ao meditar sobre seus conceitos, extrai imediatamente desta meditação pretensos conhecimentos com objetos, sem requerer para tanto a intervenção da experiência, ou poder chegar até lá por meio da mesma. (Se se pode afirmar que uma ciência é real pelo menos na ideia de todos os homens, desde que se estabeleça que as tarefas que a ela conduzem são postas a cada um pela natureza da razão humana, daí serem inevitáveis tantas tentativas, apesar de falhas, dever-se-á então dizer: a metafísica é subjetivamente (e de maneira necessária) real, e então perguntamos, com razão, como é ela possível (objetivamente). Nota do Autor). Sem a solução desta questão a razão nunca terá feito suficientemente por si mesma. O uso da experiência, ao qual a razão limita o entendimento puro, não preenche inteiramente sua própria determinação. Cada experiência em particular é apenas uma parte de todo seu setor, mas mesmo a totalidade absoluta de toda experiência possível não é experiência e, no entanto, um problema necessário para a razão, para cuja simples representação necessita de conceitos completamente diferentes daqueles conceitos do entendimento puro, cujo uso é apenas imanente, ou seja, refere-se à experiência na medida em que esta pode ser dada, ao passo que os conceitos da razão se referem à completude, isto é, à unidade coletiva de toda experiência possível, e com isso vão além de toda experiência dada e tornam-se transcendentes. Assim como o entendimento necessitava das categorias para a experiência, assim contém a razão em si o fundamento das ideias, com isto quero significar conceitos necessários, cujo objeto não pode ser dado, porém, em nenhuma experiência. Estas últimas estão na natureza da razão, como as primeiras estão na natureza do entendimento e, se comportam em si uma ilusão, que facilmente pode levar ao caminho errado, essa ilusão é inevitável, embora seja perfeitamente possível evitar "que ela seduza". Como toda a ilusão consiste em que o fundamento subjetivo do juízo seja considerado objetivo, assim será o autoconhecimento da razão pura, em seu uso transcendente (suprassensível), o único preservativo contra as aberrações em que ela cai, quando interpreta mal sua determinação e refere ao objeto em si, de modo transcendente, o que só diz respeito ao seu próprio sujeito e à direção deste em todo uso imanente. 41 A distinção entre as ideias, isto é, entre os conceitos da razão pura e as categorias ou conceitos de entendimento puro, como conhecimento de espécie, origem e uso inteiramente diversos, é uma parte tão importante para a fundamentação de uma ciência que deve conter o sistema de todos estes conhecimentos a priori, que, sem esta distinção, a metafísica é absolutamente impossível ou, no máximo, uma tentativa desordenada e imperfeita, sem conhecimento dos materiais com os quais nos ocupamos e da aptidão dos mesmos para serem aplicados desta ou daquela maneira, que se propõe apenas a construir um castelo de cartas. Se a Crítica da Razão Pura também tivesse conseguido apenas isto, ou seja, colocar esta distinção diante dos olhos, então teria contribuído mais para o esclarecimento de nosso conceito e para a direção da pesquisa no campo da metafísica do que todos os esforços inúteis até aqui envidados para resolver a tarefa transcendental da razão pura, sem jamais suspeitar que se encontravam num outro campo completamente diferente do entendimento e que, por conseguinte, se enumeravam conceitos do entendimento e da razão como se fossem da mesma espécie. 42 Todos os conhecimentos do entendimento puro têm em si que seus conceitos podem ser dados na experiência e seus princípios podem ser comprovados pela experiência; os conhecimentos da razão transcendente, ao contrário, não podem, no que se refere às suas ideias, ser dados na experiência, nem suas proposições podem ser comprovadas ou contraditas pela experiência; daí que o erro, que neles pode insinuar-se, não pode ser descoberto por nada mais além da própria razão pura, o que é muito difícil, porque justamente esta razão torna-se naturalmente dialética por meio de suas ideias e esta inevitável ilusão não pode ser conservada dentro de limites por nenhum exame objetivo e dogmático da coisa, mas somente por um exame subjetivo, da própria razão, como fonte das ideias. 43 Foi sempre minha maior preocupação na Crítica não só distinguir cuidadosamente as várias espécies de conhecimento, como também derivar de sua fonte comum os conceitos pertencentes a cada uma delas, a fim de, uma vez informado de onde originavam, poder informar com certeza não só seu uso, mas também ter a vantagem inestimável, e até agora insuspeita, de conhecer, segundo princípios, a completa enumeração, classificação e especificação dos conceitos a priori. Sem isto, é tudo simples rapsódia na metafísica e não se sabe nunca se aquilo que se possui é suficiente ou se e onde pode faltar algo. Naturalmente, só se pode ter esta vantagem na filosofia pura, que constitui, aliás, a essência da mesma. Como encontrei a origem das categorias nas quatro funções lógicas de todos os juízos do entendimento, foi bem natural procurar a origem das ideias nas três funções do raciocínio; pois, uma vez dados tais conceitos da razão pura (ideias transcendentais), eles, a não ser que os tenhamos por inatos, não poderiam ser encontrados senão na mesma atividade da razão, que, no que concerne à simples forma, constitui o lógico dos raciocínios, mas, enquanto apresenta os juízos de entendimento como determinados em relação a uma ou outra forma a priori, constitui o conceito transcendental da razão pura. A diferença formal dos raciocínios torna necessária a sua divisão em categóricos, hipotéticos e disjuntivos. Os conceitos da razão fundados nisso contêm, portanto, em primeiro lugar, a ideia do sujeito completo (substancial); em segundo lugar, a ideia da série completa das condições; em terceiro lugar, a determinação de todos os conceitos na ideia de uma completa totalidade do possível. (No juízo disjuntivo, consideramos como dividida toda a possibilidade no que se refere a certo conceito. O princípio ontológico da determinação universal de uma coisa em geral (de todos os predicados contrários possíveis, um é acrescentado a cada coisa), o qual é também o princípio de todos os juízos disjuntivos, coloca como fundamento o complexo de toda a possibilidade, no qual a possibilidade de cada coisa em geral é considerada como mais determinada. Isto serve para uma pequena explicação da proposição acima: a atividade da razão nos raciocínios disjuntivos é, segundo a forma, idêntica àquela, pela qual estabelece a ideia de um complexo de toda a realidade, que contém em si o positivo de todos os predicados opostos uns aos outros. Nota do Autor). A primeira ideia era fisiológica, a segunda, cosmo lógica, a terceira, teológica, e, como todas as três dão lugar a uma dialética, cada uma, entretanto, à sua maneira funda-se nisso a divisão de toda a dialética da razão pura em paralogismo, antinomia e finalmente ideal da mesma, por cuja derivação se fica completamente seguro de que todas as pretensões da razão pura são aqui inteiramente apresentadas, não podendo faltar nenhuma, porque o próprio poder da razão, donde elas tiram sua origem, é totalmente medido por este meio. 44 Há ainda nesta observação algo em geral notável: as ideias da razão não oferecem utilidade alguma, como as categorias, para o uso do entendimento em relação à experiência, mas são totalmente dispensáveis, mais ainda, opõem-se às máximas do conhecimento racional da natureza e lhes são obstáculos, apesar de necessárias num outro sentido, que ainda deve ser determinado. Que a alma seja uma substância simples, ou não, pode ser-nos inteiramente indiferente para a explicação dos fenômenos da mesma; pois não podemos tornar, por nenhuma experiência possível, sensível, nem por conseguinte, inteligível, o conceito de um ser simples, pois assim ele é, com relação a toda compreensão desejada para a causa dos fenômenos, completamente vazio e não pode servir a nenhum princípio de esclarecimento para aquilo que nos é dado pela experiência interna ou externa. Tampouco nos servem as ideias cosmológicas do início do mundo ou de sua eternidade (a parte ante) para esclarecer qualquer fenômeno do próprio mundo. Finalmente, de acordo com uma máxima certa da filosofia da natureza, devemos abster-nos de todo esclarecimento a respeito da disposição da natureza tirado da vontade de um ser superior, porque isto não é mais filosofia da natureza, mas uma confirmação de que chegamos ao nosso limite. As ideias têm, portanto, uma determinação de seu uso completamente distinta daquelas categorias, através das quais e dos princípios nelas fundados se tornou primeiramente possível a própria experiência. Com o que nossa laboriosa analítica do entendimento seria totalmente supérflua, se nosso intuito fosse outro que não o mero conhecimento da natureza, como ela pode ser dada na experiência; pois a razão cumpre sua tarefa, tanto na matemática como na ciência da natureza, de modo seguro e conveniente sem toda esta dedução sutil: portanto, nossa crítica do entendimento une-se às ideias da razão pura com uma intenção que ultrapassa o uso de experiência do entendimento, do qual afirmamos acima ser neste sentido inteiramente impossível e sem objeto carente de significação. Mas deve haver concordância entre aquilo que pertence à natureza da razão e do entendimento e aquela deve contribuir para a perfeição do último e é impossível que o confunda. A solução desta questão é a seguinte: a razão pura não possui como intenção entre suas ideias objetos particulares situados além do campo da experiência, mas exige somente completude do uso do entendimento na concatenação da experiência. Mas esta completude só pode ser uma completude dos princípios e não das intuições e dos objetos. Contudo, para a apresentarmos de modo determinado, a razão concebe-a como o conhecimento de um objeto, conhecimento completamente determinado em relação àquelas regras, cujo objeto, porém, é somente uma ideia, para tornar o mais próximo possível o conhecimento do entendimento da totalidade expressa por aquela ideia. 45. Observação provisória para a dialética da razão pura Mostramos acima §§ 33 e 34: que a ausência de toda mescla de determinações sensíveis nas categorias pode desviar a razão e levá-la a estender seu uso para além da experiência, a coisas em si mesmas, se bem que, como elas mesmas não encontram intuição, que lhes confira significação e sentido em concreto, possam, como meras funções lógicas, representar, de fato, uma coisa em geral, sem poderem entretanto, dar por si mesmas um conceito determinado de uma coisa qualquer. Tais objetos hiperbólicos são os chamados noúmena, ou entes do entendimento (melhor, do pensamento), como por exemplo, substância, que é pensada sem permanência no tempo, ou uma causa, que não faz efeito no tempo, etc., pois conferimos-lhes predicados, que servem somente para tornar possível a regularidade da experiência, mas tira-lhe, ao mesmo tempo, todas as condições da intuição, sob as quais somente é possível a experiência, com o que aqueles conceitos perdem novamente toda significação. Mas não há perigo que o entendimento por si próprio, sem ser coagido por leis estranhas, chegue a divagar tão caprichosamente pelo campo de simples entes do pensamento. Mas, se a razão não pode estar inteiramente satisfeita com nenhum uso empírico das regras do entendimento, visto ser ele sempre condicionado, exige complementação desta cadeia de condições, o entendimento é então impelido para fora do círculo, em parte para apresentar objetos da experiência numa série tão extensa que nenhuma experiência pode abarcar, em parte para procurar (a fim de completar a série) fora dela noumena, aos quais possa conectar aquela cadeia, e com isso, finalmente independente das condições da experiência, perfazer-se integralmente. Estas são, pois, as ideias transcendentais que, embora destinadas, de acordo com o fim verdadeiro, mas oculto, da determinação natural de nossa razão, não para introduzir conceitos transcendentes, mas a fim de contribuir para a ampliação ilimitada do uso da experiência, atraem, entretanto, por uma ilusão inevitável, o entendimento a um uso transcendente, o qual, se bem que enganosamente, não pode ser coagido por nenhuma resolução a permanecer dentro dos limites da experiência, mas só pode aí ser mantido por uma disciplina científica, e mesmo assim com muito esforço. I. Ideias psicológicas (Crítica, p. 341 e ss.) 46 Já se observou há muito tempo que, em todas as substâncias, o sujeito propriamente dito, isto é, o que permanece depois de eliminados todos os acidentes (como predicados), por conseguinte, o substancial, nos é desconhecido e a respeito destas limitações de nossa compreensão muitas lamentações se têm feito ouvir. Aqui se faz necessário notar que não se deve culpar disto o entendimento humano: que ele não conheça o substancial das coisas, isto é, que ele não possa determiná-las por si próprio, mas muito mais pelo fato de aspirar a conhecê-lo como ideia, logo determinada a um objeto dado. A razão pura exige que devemos procurar para cada predicado de uma coisa seu sujeito correspondente, para este, porém, que por sua vez é necessariamente predicado, o sujeito, e assim até o infinito (ou até onde alcançarmos). Daqui se segue que não devemos considerar nada que logramos alcançar como o último sujeito e que o substancial nunca pode ser pensado por nosso entendimento, por mais profunda que seja a penetração, mesmo que a natureza lhe revelasse seus segredos; pois a natureza específica de nosso entendimento consiste em pensar tudo discursivamente, isto é, por conceitos, por conseguinte, através de simples predicados, aos quais deve sempre faltar o sujeito absoluto. Pelo que todas as propriedades, pelas quais conhecemos os corpos, são meros acidentes, até mesmo a impenetrabilidade, que devemos nos representar sempre como apenas o efeito de uma força para a qual nos falta o sujeito. Parece, pois, que temos na nossa própria consciência (no sujeito pensante) este substancial, e isto numa intuição imediata; pois todos os predicados do sentido interno referem-se ao eu, como sujeito, e este não pode ser pensado como predicado de um outro sujeito qualquer. Parece, pois, aqui, que a completude, na relação dos conceitos dados como predicados com um sujeito, pode ser dada não como simples ideia, mas como objeto, a saber, o próprio sujeito absoluto. Mas isto é ilusão. Pois o eu não é nenhum conceito, (Se a representação da apercepção, o eu, fosse um conceito, pelo qual qualquer coisa fosse pensada, então poderia ser utilizada como predicado pelas outras coisas, ou conter em si tais predicados. Ora, ela não é mais que o sentimento de uma existência sem o mínimo conceito, e simples representação com a qual todo o pensamento está em relação (relatione accidentis). Nota do Autor) mas apenas a designação do objeto do sentido interno, enquanto não o conhecermos por nenhum predicado, por conseguinte, não pode ser ele em si nenhum predicado de uma outra coisa, mas tampouco um conceito determinado de um sujeito absoluto, apenas, como em todos os outros casos, a relação dos fenômenos internos com o sujeito desconhecido dos mesmos. Do mesmo modo, esta ideia (que serve muito bem, como princípio regulador, para destruir todas as explicações materialistas dos fenômenos internos de nossa alma) dá origem, por um equívoco muito natural, a um argumento muito ilusório, para concluir, a partir deste pretenso conhecimento do substancial de nosso ser pensante, sua natureza, na medida em que o conhecimento desta cai totalmente fora do complexo da experiência. 47 Este eu pensante (a alma) pode ser denominado substância como também o último sujeito do pensar, que não pode ser representado como predicado de outra coisa: então este conceito fica completamente vazio e sem qualquer consequência, se não pode ser demonstrada sua permanência como aquilo que torna fértil o conceito das substâncias na experiência. A permanência, entretanto, nunca pode ser demonstrada a partir do conceito de uma substância, como coisa em si, mas somente como válida para a experiência. Isto ficou suficientemente apresentado na primeira analogia da experiência (Crítica, p. 182) e, se não se quiser render a esta prova, então se deve experimentar, se se consegue demonstrar, a partir do conceito de um sujeito, que não existe propriamente como predicado de outra coisa, que esta existência é permanente e que não pode nascer ou morrer, nem por si mesmo, nem por qualquer outra causa da natureza. Tais proposições sintéticas a priori nunca podem ser demonstradas em si mesmas, mas sempre em relação a coisas como objetos de uma experiência possível. 48 Quando queremos, portanto, concluir, a partir do conceito da alma como substância, para a permanência da mesma: isto só pode valer para ela tendo por fim uma experiência possível e não como uma coisa em si mesma e além de toda experiência possível. Ora, a condição subjetiva de toda a nossa experiência possível é a vida: consequentemente, só se pode chegar a conclusões sobre a permanência da alma na vida, pois a morte do homem é o fim de toda experiência no que se refere à alma como objeto da mesma, enquanto não se provar o contrário, que é justamente a questão. Portanto, a permanência da alma só pode ser provada na vida do homem (prova que certamente nos será presenteada) e não depois da morte (e é isso que nos interessa propriamente), e isso pelo motivo universal, porque o conceito de substância, enquanto deve ser considerado como necessariamente ligado ao conceito de permanência, só o pode ser em virtude de um princípio de experiência possível e, portanto, só em vista desta experiência. (É na verdade muito curioso que os metafísicos tenham deslizado sempre, sem preocupação, sobre o principio de permanência das substâncias, sem tentar jamais uma prova disto; sem dúvida porque, logo que iniciavam com o conceito de substância, sentiam-se abandonados por todos os meios de prova. O entendimento comum, sabendo que sem este pressuposto não é possível uma ligação das percepções na experiência, suprimiu esta falta com um postulado; pois da experiência não pôde mais tirar este princípio, em parte porque ela não pode seguir as matérias (substâncias) em todas as suas transformações e decomposições, para encontrar a matéria sempre intacta, em parte porque o princípio contém necessidade, que é sempre a marca de um principio a priori. Eles aplicaram então, confiadamente, este princípio da alma como uma substância e concluíram a permanência necessária da mesma depois da morte do homem (principalmente porque a simplicidade desta substância,• deduzida da indivisibilidade da consciência, servia-lhe de garantia contra a decadência por decomposição). Se eles tivessem encontrado a verdadeira fonte deste princípio, o que exige investigações mais profundas do que as por eles iniciadas, teriam visto que aquela lei da permanência das substâncias só acontece em função da experiência e, por conseguinte, só pode valer para as coisas enquanto estas são conhecidas na experiência e ligadas a outras, nunca, porém, para elas, independentemente de toda experiência possível, nem, portanto, para a alma depois da morte. Nota do Autor). 49 Que às nossas percepções externas não só corresponda, mas deva corresponder algo real, fora de nós, não pode da mesma maneira ser demonstrado como uma conexão das coisas em si mesmas, mas como tendo em vista a experiência. Isto vale tanto como dizer: podemos muito bem demonstrar que algo está fora de nós de modo empírico, por conseguinte, como fenômeno no espaço; pois nada temos a ver com outros objetos que não aqueles que pertencem a uma experiência possível, justamente porque não nos podem ser dados em nenhuma experiência e, portanto, nada são para nós. É empírico fora de mim aquilo que, intuído no espaço e, como este, juntamente com todos os fenômenos que contém, pertence às representações, cuja conexão, segundo leis da experiência, demonstra do mesmo modo sua verdade objetiva, como a conexão dos fenômenos do sentido interno a realidade de minha alma (como um objeto de sentido interno), assim eu, mediante a experiência externa, tenho consciência tanto da realidade dos corpos como fenômenos externos no espaço, como, por meie da experiência interna, a tenho da experiência de minha alma no tempo, que eu apenas conheço como objeto do sentido interno, através de fenômenos, que constituem um estado interno e cujo ente em si mesmo, que é o fundamento destes fenômenos, me é desconhecido. O idealismo cartesiano distingue apenas experiência externa do sonho, e a regularidade, como um critério da verdade da primeira, da desordem e da falsa aparência da última. Pressupõe em ambos os espaço como condições da existência dos objetos dos sentidos externos podem ser realmente encontrados no espaço, onde os colocamos em guarda, assim como o objeto do sentido interno, a alma, está realmente no tempo, isto é, se a experiência carrega consigo seguros critérios que a distingam da imaginação. Aqui pode surgir facilmente a dúvida e nós a levantamos constantemente na vida cotidiana, quando, em ambos os casos, examinamos a conexão dos fenômenos segundo leis universais da experiência e não podemos duvidar se a representação das coisas externas se harmoniza perfeitamente com estas, que elas constituem uma experiência verídica. O idealismo material, já que fenômenos são considerados fenômenos apenas segundo sua conexão na experiência, é fácil de ser refutado, e é uma experiência tão segura o fato de os corpos existirem fora de nós (no espaço), como o de eu existir segundo a representação do sentido interno (no tempo); pois o conceito: fora de nós significa apenas a existência no espaço. Mas como o eu na proposição: eu sou significa não só o objeto da intuição interna (no tempo), mas o sujeito da consciência, assim corpo não significa apenas a intuição externa (no espaço), mas também a coisa em si mesma, o que serve de fundamento a este fenômeno; assim, pode a pergunta, se os corpos (como fenômenos do sentido externo) existem como corpos fora de meus pensamentos, ser negada sem hesitação na natureza: o mesmo sucede com a pergunta, se eu mesmo existo como fenômeno do sentido interno (alma, segundo a psicologia empírica) fora de meu poder de imaginação no tempo, pois isto deve ser negado da mesma maneira. Assim fica tudo decidido e certo, quando referido a seu verdadeiro significado. O idealismo formal (por mim denominado transcendental) deixa realmente de lado o material ou cartesiano. Pois se o espaço não é senão uma forma de minha sensibilidade, então ele é em mim tão real quanto eu mesmo e a questão é só decidir sobre a verdade empírica dos fenômenos no mesmo. Mas não sendo assim, porém sendo o espaço e os fenômenos nele existentes fora de nós, então todos os critérios da experiência fora de nossa percepção não podem ser demonstrados como realidade destes objetos fora de nós. II. Ideias cosmológicas (Crítica, p. 405 ss.) 50 Este produto da razão pura em seu uso transcendente é o mais notável fenômeno da mesma, o qual age com a maior força entre todos para despertar a filosofia de seu sono dogmático e levá-la a ocupar-se com a difícil tarefa da crítica da razão. Denomino esta ideia cosmológica porque ela retira seu objeto sempre e somente do mundo sensível, não necessita de nenhum outro que não seja um objeto dos sentidos, por conseguinte, enquanto imanente e não transcendente, ainda não é ideia; ao contrário, pensar a alma como substância simples significa tanto como pensar um objeto (o simples) que não pode ser representado nos sentidos. Mas, mesmo assim, a ideia cosmológica amplia tanto a conexão do condicionado (seja ele matemático ou dinâmico) que a experiência nunca pode seguir-se a ela e é sempre, com relação a este ponto, uma ideia, cujo objeto nunca pode ser dado adequadamente em nenhuma experiência. 51 Primeiramente, mostra-se aqui um sistema das categorias tão clara e inequivocamente que, se faltassem outras provas, esta seria suficiente para apresentar sua indispensabilidade no sistema da razão pura. Estas ideias transcendentes não são mais do que quatro, tantas quantas as classes das categorias; em cada uma delas referem-se apenas à absoluta inteireza da série de condições para um condicionado dado. De acordo com estas ideias cosmo lógicas, existem quatro afirmações dialéticas da razão pura que, como são dialéticas, provam por isso mesmo que a cada uma delas se opõe, segundo princípios aparentes da razão pura, um outro princípio contraditório, cuja contradição nenhuma arte metafísica, da mais sutil distinção, pode impedir, mas que obriga o filósofo a remontar às primeiras fontes da própria razão. Esta antinomia, não inventada a gosto, mas fundada na natureza da razão humana, por conseguinte, inevitável e infinita, contém as seguintes quatro proposições com suas contraproposições. 1. Proposição O mundo tem um princípio (limite) segundo o tempo e o espaço Contraproposição O mundo é infinito segundo o tempo e o espaço 2. Proposição Tudo no mundo é constituído do simples Contraproposição Nada é simples, mas tudo é composto. 3. Proposição Há no mundo causas dotadas de liberdade Contraproposição Não há liberdade, mas tudo é natureza. 4. Proposição Na série das causas do mundo, há um ente necessário qualquer. Contraproposição Nada nesta série é necessário, mas tudo é contingente. 52 Aqui está, pois, o estranho fenômeno da razão humana, do qual não pode ser dado nenhum exemplo em qualquer outro uso da mesma. Quando nós, como acontece comumente, pensamos os fenômenos do mundo sensível como coisas em si mesmas, quando tomamos os princípios de sua ligação como universalmente válidos com relação às coisas em si mesmas e não apenas com a experiência, como vulgarmente se faz e até é inevitável sem a nossa crítica: surge, então, um conflito inesperado, que nunca pode ser eliminado pelo caminho dogmático habitual, porque tanto proposição como contraproposição podem ser estabelecidas por provas igualmente evidentes, claras e irrefutáveis - pois respondo pela correção de todas estas provas -, e a razão vê-se assim dividida em si mesma, um estado que alegra o cético, mas que coloca o filósofo crítico em reflexão e intranquilidade. 52 b Na metafísica é possível trabalhar-se mal de muitas maneiras, sem receio de ser colhido em erro. Pois, se não se cai em contradições, o que é bem possível em proposições sintéticas, apesar de totalmente inventadas, então não podemos ser contraditos pela experiência em nenhum caso, onde os conceitos que conectamos são simples ideias, que não podem ser dadas (por seu conteúdo) na experiência. Pois, como pretenderíamos saber, pela experiência, se o mundo existe desde a eternidade ou tem um princípio, se a matéria pode ser infinitamente dividida em partes ou é constituída de partes simples; tais conceitos não são dados nem pela maior experiência possível, por conseguinte, a inexatidão da proposição afirmada ou negada não pode ser descoberta por esta pedra de toque. O único caso que a razão poderia, contra a sua vontade, deixar entrever, já que ela considera erradamente sua dialética dogmática, seria quando fundasse uma afirmação num princípio universalmente aceito e deduzisse de outro, igualmente aceito e com o maior rigor dedutivo, justamente o contrário. Este caso é real aqui, e isto em relação às quatro ideias naturais da razão, de onde derivam de um lado quatro afirmações e, de outro lado, outras tantas contra-afirmações, cada uma com exata consequência dos princípios universalmente admitidos deixando assim clara a ilusão dialética da razão pura no uso destes princípios, que de outra forma ficariam eternamente ocultos. Aqui está, pois, uma tentativa decisiva que nos deve mostrar necessariamente uma inexatidão, oculta nas pressuposições da razão. (Por isso desejo que o leitor crítico se ocupe principalmente com esta antinomia, porque parece que a própria natureza a estabeleceu, para desconcertar a razão em suas pretensões temerárias e levá-la a examinar a si mesma. Considero-me responsável por todas as provas que dei tanto para a tese como para a antítese, e a mostrar assim a certeza da inevitável antinomia da razão. Se, portanto, o leitor for levado por este estranho fenômeno a voltar a examinar o pressuposto que lhe serve de fundamento, sentir-se-á obrigado a investigar comigo, mais a fundo, a base primeira de todo o conhecimento da razão pura. Nota do Autor). Duas proposições que se contradizem não podem ser ambas falsas, a não ser que o conceito, que lhes serve de fundamento, seja ele mesmo contraditório; por exemplo, as duas proposições: um círculo quadrado é redondo, e um círculo quadrado não é redondo, são ambas falsas. Pois, no que se refere à primeira, é falso que o círculo em questão seja redondo, porque ele é quadrado; mas também é falso que não seja redondo, isto é, que seja quadrado, porque é um círculo. Pois nisto consiste precisamente a característica lógica da impossibilidade de um conceito, ou seja, que duas proposições que se contradizem sejam ao mesmo tempo falsas sob a mesma pressuposição, por conseguinte, não sendo possível pensar entre elas uma terceira, nada pode ser pensado por intermédio daquele conceito. 52 c As duas primeiras antinomias, as quais denomino matemáticas, porque ocupam-se com a adição ou divisão de homogêneos, têm por fundamento tal conceito contraditório; a partir daí, explico o que acontece: tanto tese como antítese são em ambas falsas. Quando falo de objetos no tempo e no espaço, não falo de coisas em si mesmas, porque nada sei a respeito delas, mas de coisas no fenômeno, isto é, da experiência, como um modo de conhecimento particular dos objetos, só permitido ao homem. Do que penso no espaço ou no tempo, não devo afirmar: que existe por si mesmo, sem meu pensamento, no espaço e no tempo; estaria contradizendo a mim próprio, pois o espaço e o tempo, juntamente com todos os fenômenos neles contidos, não são algo existente em si mesmos e fora de minhas representações, mas apenas modos de representação, e parece ser contraditório afirmar que exista um simples modo de representação fora de nossa representação. Portanto, os objetos dos sentidos existem apenas na experiência; por isso, dar-lhes sem a mesma ou antes dela uma existência própria, subsistente por si, é o mesmo que imaginar que a experiência seja real sem experiência, ou antes da experiência. Se questiono sobre a grandeza do mundo no espaço e no tempo, é impossível para todos os meus conceitos afirmarem que ele é infinito ou finito. Pois nenhum dos dois pode estar contido na experiência, porque a experiência de um espaço infinito não é possível, nem de um tempo de curso finito, nem a limitação do mundo por um espaço vazio; isto são apenas ideias. Portanto, a grandeza do mundo, determinada de um ou de outro modo, deveria estar em si mesma separada de toda experiência. Mas isto contradiz o conceito de um mundo sensível, que é um simples complexo de fenômenos, cuja existência e conexão acontecem apenas na representação, a saber, na experiência, pois não é uma coisa em si, mas apenas maneira de representar. Daqui se conclui que, sendo o conceito de um mundo sensível existente por si e contraditório em si, a solução do problema, pela sua grandeza, será sempre falsa, quer se tente esta solução afirmativa ou negativamente. O mesmo vale para a segunda antinomia, que se refere à divisão dos fenômenos. Pois estas são simples representações e as partes existem apenas na representação das mesmas, por conseguinte, na divisão, isto é, numa experiência possível, onde são dadas, donde se segue que a divisão só vai até onde a experiência alcança. Admitir que um fenômeno, por exemplo, o do corpo, contenha, antes de toda experiência, todas as partes em si mesmo, às quais só pode chegar experiência possível, significa: atribuir a um simples fenômeno, que só pode existir na experiência, uma experiência própria anterior à experiência, ou afirmar que existem representações antes que sejam encontradas na capacidade de representação, o que se contradiz e, por conseguinte, exclui também toda a solução do problema mal posto, quer se diga que os corpos constam em si de um número infinito de partes ou de um número finito de partes simples. 53 Na primeira classe das antinomias (das matemáticas), a falsidade da pressuposição consistia em que o que se contradiz (ou seja, fenômeno como coisa em si mesma) era apresentado como conciliável num conceito. Mas no que se refere à segunda classe das antinomias, a saber, à dinâmica, a falsidade da pressuposição consiste em que o conciliável é apresentado como contraditório, consequentemente, enquanto no primeiro caso ambas as afirmações contrárias eram falsas, aqui, entretanto, ambas, sendo opostas por simples equívoco, podem ser verdadeiras. A conexão matemática pressupõe, na verdade, necessariamente, a homogeneidade do conectado (no conceito de grandeza), a dinâmica, entretanto, não exige isto. Quando se trata da grandeza do extenso, então todas as partes devem ser homogêneas entre si e com o todo; na conexão de causa e efeito, ao contrário, pode ser também encontrada homogeneidade, mas não é necessária; pois o conceito de causalidade (por meio do qual é posta alguma coisa inteiramente diferente de outra coisa) não a exige. Se os objetos do mundo sensível fossem tomados por coisas em si mesmas, e as leis da natureza acima citadas por leis das coisas em si mesmas, então seria inevitável a contradição. Do mesmo modo, se o sujeito da liberdade fosse apresentado, como os outros objetos, como simples fenômeno, não poderia ser evitada a contradição, pois, em tal caso, poder-se-ia afirmar ou negar a mesma coisa, do mesmo objeto, num mesmo sentido. Mas se a necessidade natural refere-se apenas a fenômenos e a liberdade apenas a coisas em si mesmas, não surge contradição se se admite ou aceita imediatamente ambas as formas de causalidade, por difícil ou mesmo impossível que pareça tornar compreensível a da última espécie. No fenômeno, todo o efeito é um acontecimento ou algo que acontece no tempo; a ele deve preceder, segundo a lei universal da natureza, uma determinação da causalidade de sua causa (um estado da mesma), à qual sucede segundo uma lei constante. Mas esta determinação da causa para a causalidade deve ser algo que suceda ou aconteça; a causa deve ter começado a agir, pois do contrário não seria possível pensar uma sucessão de tempo entre ela e o efeito. O efeito teria existido sempre, assim como a causalidade da causa. Pelo que, entre os fenômenos, a determinação da causa a agir deve ter surgido, e, por conseguinte, deve ser do mesmo modo que seu efeito, um acontecimento, que por sua vez também deve ter uma causa, e assim por diante; consequentemente, a necessidade da natureza é a condição pela qual são determinadas as causas eficientes. Mas, se a liberdade deve ser uma propriedade de certas causas dos fenômenos, então deve ser relativamente aos últimos, enquanto acontecimentos, um poder de começá-los por si mesma (sponte), isto é, sem ser preciso que a própria causalidade da causa comece, e, com isso, sem precisar de outro fundamento que determine seu início. Mas então a causa, segundo sua causalidade, não deveria estar entre as determinações de tempo de seu estado, isto é, não deveria ser de modo algum fenômeno, ou seja, deveria ser considerada coisa em si mesma e somente os efeitos deveriam ser considerados fenômenos. (A ideia da liberdade verifica-se apenas na relação do intelecto como causa com o fenômeno como efeito. Por isso não podemos atribuir liberdade à matéria no que diz respeito à sua atividade incessante, apesar de esta atividade acontecer segundo um princípio interno, Tampouco podemos admitir que seja atribuído a entes do entendimento puro um conceito de liberdade, Deus, por exemplo, enquanto sua ação é imanente. Pois sua ação, apesar de independente de causas externamente determináveis, é, entretanto, determinada em sua razão eterna, por conseguinte, em sua natureza divina. Só quando algo deve começar, mediante uma ação, por conseguinte, o efeito deve ser encontrado na sequência de tempo, logo, no mundo dos sentidos (por exemplo, o início do mundo), então surge a pergunta, se a causalidade da própria causa deve ter tido um início, ou se a causa pode originar um efeito, sem que sua própria causalidade tenha um começo. No primeiro caso, o conceito desta causalidade é um conceito da necessidade da natureza, no segundo caso, da liberdade. Por aqui verá o leitor que, ao considerar a liberdade um poder de iniciar por si um acontecimento, encontrei justamente o conceito que é o problema da metafísica. Nota do Autor) Se é possível conceber sem contradições tal influência dos entes inteligíveis sobre os fenômenos, haverá, então, em toda a conexão de causa e efeito no mundo sensível, uma necessidade natural, mas poderá ser concedida liberdade a esta causa, que em si não é fenômeno (embora lhe sirva de fundamento), e atribuir, sem contradição, natureza e liberdade à mesma coisa, noutra relação, uma vez como fenômeno, outra vez como coisa em si mesma. Temos em nós um poder que está em conexão não apenas com os fundamentos subjetivamente determinantes, causas naturais de seus atos, e assim o poder de um ente pertencente aos fenômenos, mas que além disso se refere a fundamentos objetivos, que são simples ideias, na medida em que podem determinar este poder e tal conexão é expressa pelo termo dever. Este poder chama-se razão, e enquanto observarmos um ente (o homem) unicamente por esta razão objetivamente determinável, não pode ser considerado um ente sensível, mas a propriedade pensada não é a propriedade de uma coisa em si mesma, o que nunca aconteceu e como poderia ser causa de atos cujo efeito é fenômeno no mundo sensível, não podemos compreender. Entretanto, a causalidade da razão em relação aos efeitos do mundo sensível seria liberdade, enquanto tal causalidade for considerada como determinante por fundamentos objetivos, ou seja, ideias. Pois, neste caso, sua ação não dependeria de condições subjetivas, por conseguinte, de condições temporais e tampouco de leis naturais, que servem para determinar as últimas, porque os fundamentos da razão determinam as ações universalmente, a partir de princípios, sem influência de circunstâncias de tempo ou de lugar. O que aqui exponho vale apenas como exemplo para a compreensão e não pertence necessariamente à nossa questão, que deve ser resolvida por simples conceitos, independentemente das propriedades que encontramos no mundo real. Logo, posso dizer, sem entrar em contradição: todas as ações de entes racionais, enquanto fenômenos (encontrados em qualquer experiência), estão sujeitas à necessidade da natureza; mas as mesmas ações, consideradas apenas em relação com o sujeito racional e com sua capacidade de agir apenas pela razão, são livres. Pois o que é exigido para a necessidade da natureza? Nada mais que a determinabilidade de cada acontecimento do mundo sensível por leis constantes, por conseguinte, uma relação de causa no fenômeno, permanecendo desconhecida a coisa em si mesma que lhe serve de fundamento e sua causalidade. Mas afirmo: a lei da natureza permanece, quer seja o ente racional causa dos efeitos no mundo sensível a partir da razão e, por conseguinte, pela liberdade, quer não os determine por fundamentos racionais. Pois, no primeiro caso, a ação se dá por máximas, cujo efeito no fenômeno sempre acontecerá segundo leis constantes; no segundo, a ação não acontece segundo princípios da razão e não está sujeita a leis empíricas da sensibilidade e em ambos os casos os efeitos estão relacionados segundo leis constantes; não exigimos mais que isto para a necessidade da natureza, nem mesmo conhecemos mais a respeito dela. Mas no primeiro caso é a razão a causa destas leis da natureza, e, portanto, livre, no segundo caso ocorrem os efeitos segundo meras leis da natureza da sensibilidade, porque a razão não exerce influência sobre eles: ela, a razão, não é por isso determinada pela sensibilidade (o que é impossível), sendo, pois, neste caso, livre. A liberdade não tolhe, portanto, a lei natural dos fenômenos, tampouco esta impede a liberdade do uso prático da razão, que está relacionado às coisas em si mesmas, como princípios determinantes. Com isto é salva a liberdade prática, a saber, aquela na qual a razão tem causalidade segundo fundamentos objetivamente determinantes, sem que a necessidade da natureza em relação aos mesmos efeitos, como fenômenos, seja prejudicada. Justamente isto pode servir para o esclarecimento daquilo que tínhamos a dizer acerca da liberdade transcendental e sua conciliação com a necessidade da natureza (no mesmo sujeito mas não tomado numa única relação). Pois, com respeito a isto, cada início da ação de um ente por causas objetivas, relativas a estes fundamentos determinantes, é sempre um primeiro início, embora esta mesma ação seja na série de fenômenos apenas um início subalterno, ao qual deve preceder um estado de causa que o determine, sendo ele mesmo determinado por outro antecedente: deste modo, podemos pensar, sem cair em contradição com as leis naturais, uma capacidade para os entes racionais em geral - enquanto sua causalidade é neles determinada como coisas em si mesmas - de iniciar espontaneamente uma série de estados. Pois a relação da ação com princípios racionais objetivos não é uma relação de tempo: aqui o que determina a causalidade não precede a ação no tempo, porque tais fundamentos determinantes não representam a relação dos objetos com os sentidos, por conseguinte, com causas no fenômeno, mas causas determinantes, como coisas em si mesmas, que não estão sujeitas às condições de tempo. Assim, a ação só pode ser considerada como um primeiro início em relação à causalidade da razão, como um início meramente subordinado com relação à série de fenômenos e qualificar-se de livre, sem contradição, desde o primeiro ponto de vista, mas desde o segundo (já que é simples fenômeno) como sujeito à necessidade da natureza. No que se refere à quarta antinomia, ela é resolvida da mesma maneira como o é o conflito da razão consigo mesma na terceira. Pois, quando a causa no fenômeno é distinguida da causa do fenômeno, enquanto pensada como coisa em si mesma, então ambas as proposições podem estar uma ao lado da outra, a saber, que não há causa do mundo sensível (de acordo com leis semelhantes da causalidade) cuja existência seja absolutamente necessária, e, por outro lado, que este mundo está ligado a um ser necessário como sua causa (mas de outra espécie e segundo outra lei); a incompatibilidade destas duas proposições está fundada exclusivamente no equívoco de estender o que é válido apenas para os fenômenos às coisas em si mesmas e confundir ambas, em geral, num conceito. 54 Esta é, pois, a exposição e a solução de toda a antinomia, na qual a razão se acha envolvida quando aplica seus princípios no mundo sensível; só esta exposição seria considerável ganho para o conhecimento da razão humana, mesmo que a solução deste conflito não satisfizesse plenamente o leitor, que deve combater aqui uma ilusão natural, que só recentemente lhe foi apresentada como tal e que até agora havia considerado verdadeira. De tudo isto, é inevitável uma consequência, a saber, que, por ser completamente impossível desvencilhar-se deste conflito da razão consigo mesma, enquanto os objetos do mundo sensível forem considerados coisas em si mesmas e não pelo que são na realidade, ou seja, simples fenômenos, o leitor sentir-se-á obrigado a retomar mais uma vez a dedução de todo o nosso conhecimento a priori e o exame daquela que eu apresentei do mesmo, para chegar a uma decisão. Mais do que isto não exijo por enquanto; pois, se ele agora meditou e ocupou-se em chegar mais fundo na natureza da razão pura, ter-se-á familiarizado mais com os conceitos pelos quais só é possível a solução do conflito da razão, sem o que não posso esperar inteiro aplauso, nem sequer do leitor mais atento. III. Ideia teológica (Crítica, p. 571 e ss.) 55 A terceira ideia transcendental que dá matéria ao mais importante uso da razão, mas que, se exercido apenas especulativamente, torna-se exaltado (transcendente) e, por conseguinte, dialético, é o ideal da razão pura. Como a razão não começa, como a ideia psicológica e cosmológica, pela experiência, nem é desviada, pela progressão dos fundamentos, onde possível, a aspirar a uma inteireza absoluta de sua série, mas age por si só, e, partindo de simples conceitos daquilo que deveria constituir a inteireza absoluta de uma coisa em geral, por conseguinte, mediante a ideia de um ser originário sumamente perfeito, desce até a determinação da possibilidade, e também da realidade das demais coisas: o mesmo acontece aqui com a mera pressuposição de um ente, que, embora não da série de experiência, é pensado em favor da experiência para a compreensão da conexão, da ordem e da unidade da última, isto é, a fim de distinguir mais facilmente a ideia do conceito do entendimento, como nos casos precedentes. Pelo que era mais fácil desvendar a ilusão dialética, que surge daí, por tomarmos as condições subjetivas de nosso pensar por condições objetivas das coisas em si e uma hipótese necessária à satisfação de nossa razão por um dogma. Nada mais tenho a lembrar sobre as pretensões da teologia transcendental, pois o que a Crítica diz a este respeito é compreensível, esclarecedor e decisivo. 56. Observação geral sobre as ideias transcendentais Os objetos que nos são dados pela experiência são sob muitos aspectos incompreensíveis e muitas perguntas, a que nos conduz a lei da natureza, podem permanecer insolúveis, quando elevadas a certo grau, mas sempre em conformidade com esta lei, por exemplo, a atração mútua dos corpos. Se só abandonarmos completamente a natureza ou ultrapassarmos toda experiência possível no processo de sua conexão, por conseguinte, nos aprofundarmos em simples ideias, mesmo assim não podemos afirmar que um objeto nos é incompreensível e que a natureza das coisas nos coloca questões insolúveis; pois nada temos a ver com a natureza ou, em geral, com objetos dados, mas tão somente com conceitos, que só têm a sua origem em nossa razão, e com simples entes do pensamento, em relação aos quais todas as tarefas, que devem surgir do conceito dos mesmos, podem ser solucionadas, porque a razão pode e deve dar inteira conta de seu próprio procedimento. (O Sr. Platner diz, pois, com agudeza, em seus Aforismos, 728, 729: "Se a razão é um critério, então não pode haver nenhum conceito que não seja entendido pela razão humana. Só no real verifica-se incompreensibilidade. Aqui a incompreensibilidade provém da insuficiência das ideias adquiridas". - Parece paradoxal mas não é estranho afirmar que na natureza há muita coisa incompreensível a nós (por exemplo, o poder negativo), mas, se nos elevarmos mais alto, para além da natureza, tudo se nos torna compreensível; pois então abandonamos os objetos, que nos podem ser dados, e nos acupamos apenas com ideias, nas quais podemos compreender a lei que, por elas, a razão prescreve ao entendimento para o seu uso na experiência, porque este é o próprio produto da razão. Nota do Autor). Por serem as ideias fisiológicas, cosmológicas e teológicas meros conceitos da razão, que não podem ser dadas em nenhuma experiência, assim as questões, que a razão nos propõe em relação a elas, não por meio de objetos, mas por simples máximas da razão para sua própria satisfação, e devem ser todas resolvidas de maneira satisfatória, o que também acontece ao se mostrar que elas são princípios, destinados a trazer ao nosso uso do entendimento inteireza e unidade sintética, e que são válidos para a experiência, mas apenas para a experiência como totalidade. Embora seja impossível uma totalidade absoluta da experiência, contudo a ideia de um todo do conhecimento, segundo princípios em geral, é a única coisa capaz de criar uma espécie particular de unidade, a saber, a de um sistema, sem a qual nosso conhecimento nada mais é que um fragmento inútil para o fim supremo (que sempre é o sistema de todos os fins); não entendo com isto somente o uso prático da razão, mas também o fim supremo do uso especulativo. As ideias transcendentais expressam, portanto, a determinação própria da razão, a saber, como um princípio da unidade sistemática do uso do entendimento. Mas, quando se considera esta unidade do modo de conhecimento como inerente ao objeto do conhecimento, quando unidade puramente reguladora a tomarmos por constitutiva, e nos convencermos de poder ampliar nosso conhecimento por meio desta ideia além de toda experiência possível, por conseguinte, de modo transcendente, sendo que a razão só serve para levar a experiência nela mesma tão próximo quanto possível da inteireza, isto é, não limitar com nada seu progresso, o que não pode pertencer à experiência, então isto tudo é um simples engano no julgamento da verdadeira determinação de nossa razão e de seus princípios e uma dialética, que em parte confunde o uso da razão, em parte introduz nela um dissídio. 57. Conclusão da determinação dos limites da razão pura Depois das mais claras provas que fornecemos acima, seria absurdo esperar conhecer mais de um objeto do que o que pertence à experiência possível dos mesmos, ou de uma coisa qualquer, da qual admitimos não ser ela um objeto de uma experiência possível, a fim de determinar como é em si mesma, segundo sua constituição. Pois, como queremos conseguir esta determinação, se o tempo e o espaço e todos os conceitos do entendimento, com maior razão os conceitos derivados da intuição empírica, ou percepção no mundo sensível, não têm nem podem ter outro uso a não ser o de tornar possível a experiência, e se nós mesmos deixamos esta condição fora dos conceitos de entendimento puro, estes não determinam mais nenhum objeto, nem têm qualquer sentido. Mas, de outro lado, seria absurdo ainda maior não admitir nenhuma coisa em si mesma ou pretender que nossa experiência seja o único modo possível de conhecer as coisas, por conseguinte, que nossa intuição do espaço e do tempo seja a única intuição possível, que nosso entendimento discursivo seja o protótipo de todo entendimento possível, por conseguinte, que os princípios da possibilidade da experiência sejam as condições universais das coisas em si mesmas. Nossos princípios, os quais limitam o uso da razão somente à experiência possível, poderiam se tornar transcendentes e pôr os limites da nossa razão como limites das coisas em si, como disso podem servir de exemplo os diálogos de Hume, se uma cuidadosa crítica não guardasse os limites de nossa razão também em relação ao uso empírico, nem colocasse um termo a suas pretensões. O ceticismo teve sua origem primeira na metafísica e em sua dialética indisciplinada. No início, queria apenas condenar como nulo e ilusório, em favor do uso empírico da razão, tudo o que o ultrapassa, mas, pouco a pouco, ao verificar-se que justamente os mesmos princípios a priori aplicados na experiência são os que, imperceptivelmente, e como parecia, com o mesmo direito, levavam mais além dos limites da experiência, começou-se a duvidar mesmo dos princípios da experiência. Com isto não houve prejuízo, pois o entendimento sadio afirmará sempre seus direitos; contudo, surgiu daí certa confusão na ciência, que não pode determinar até onde e por que somente até lá e não mais adiante se pode confiar na razão; esta confusão, porém, só pode ser remediada por princípios deduzidos da determinação formal dos limites de nosso uso do entendimento, evitando, assim, qualquer recaída futura. É verdade que não podemos, além de toda experiência possível, dar um conceito definido do que possam ser as coisas em si mesmas. Mas não conseguimos livrar-nos completamente de procurá-las, pois a experiência nunca satisfaz totalmente a razão; leva-nos constantemente, na solução do problema, de volta a um termo longínquo e nunca nos deixa satisfeitos, como pode ver cada um pela dialética da razão pura, que tem justamente por isso seu bom fundamento subjetivo. Quem pode suportar que cheguemos da natureza de nossa alma até a clara consciência do sujeito e ao mesmo tempo a convicção de que seus fenômenos não podem ser explicados materialisticamente, sem se interrogar o que seja realmente a alma e se nenhum conceito da experiência for aqui suficiente, sem admitir, ao menos para este fim, um conceito da razão (de um ente material simples), apesar de não podermos demonstrar sua realidade objetiva? Quem pode contentar-se com o simples conhecimento empírico em todas as questões cosmológicas a respeito da duração e da grandeza do mundo, da liberdade ou necessidade da natureza, uma vez que, seja como for que iniciemos, toda resposta dada conforme as leis da experiência suscita sempre uma nova questão, que também exige uma resposta e demonstra claramente a insuficiência de todas as maneiras físicas de esclarecimento para satisfazer a razão? Finalmente, quem não vê ser impossível que nos atenhamos à constante causalidade e dependência de tudo que se pode pensar e admitir segundo princípios da experiência e não nos sintamos forçados, sem levar em conta toda a proibição, a nos perdermos em ideias transcendentes, a buscar paz e satisfação, além de todos os conceitos que a experiência pode justificar, no conceito de um ente, cuja ideia em si mesma não pode ser demonstrada na possibilidade, nem tampouco refutada, porque se refere a um simples ente de entendimento, sem o qual a razão permaneceria sempre insatisfeita? Limites (em entes extensos) pressupõem sempre um espaço, que é encontrado fora de um lugar determinado e o compreende; barreiras não necessitam disso, mas são meras negações que afetam uma grandeza, enquanto ela não possuir inteireza absoluta. Nossa razão vê, entretanto, da mesma forma, ao redor de si, um espaço para o conhecimento das coisas em si mesmas, se bem que nunca possa ter delas conceitos determinados e se limite apenas a fenômenos. Enquanto o conhecimento da razão não é homogêneo, não se podem pensar limites determinados do mesmo. A razão humana conhece, na verdade, na matemática e na ciência da natureza barreiras, mas não limites, isto é, que há algo fora dela, algo que nunca poderá alcançar, mas não que em seu processo interior esteja em alguma parte completa. A ampliação do conhecimento na matemática e a possibilidade de descobrir sempre algo novo vão até o infinito; o mesmo se dá com a descoberta de novas propriedades da natureza, novas forças e leis, através de experiência contínua e ligação da mesma na razão. Do mesmo modo, não se pode deixar de ver aqui barreiras, pois a matemática refere-se apenas a fenômenos, e o que não pode ser um objeto da intuição sensível, como os conceitos da metafísica e da moral, fica fora de sua esfera, e ela nunca pode conduzir até lá; mas nem sequer necessita deles. Não há, pois, progresso contínuo e aproximação destas ciências, nem tampouco um ponto ou linha de contato. A ciência da natureza não nos mostrará jamais o interior das coisas, isto é, aquilo que não é fenômeno, mas que pode servir de fundamento supremo de esclarecimento dos fenômenos; mas ela também não necessita disto para suas explicações físicas; mesmo que de outra maneira lhe fosse oferecido algo semelhante (por exemplo, a influência de entes imateriais), então ela deve descartá-lo e não o levar à série de suas explicações, mas sempre fundá-las naquilo que pertence à experiência como objeto dos sentidos e pode ser relacionado com nossas percepções reais segundo leis da experiência. Ao invés disto, a metafísica leva-nos a limites nas suas tentativas dialéticas da razão pura (que não são iniciadas arbitrariamente ou por capricho, mas tem sua razão de ser na própria natureza da razão), e as ideias transcendentais, justamente por não se poder chegar até elas, pois não se deixam realizar, servem não só para nos mostrar realmente os limites do uso da razão pura, mas também a maneira de determiná-los, e estes são também o fim e a utilidade desta disposição natural de nossa razão que gerou a metafísica, como seu filho predileto, cuja procriação, como qualquer outra no mundo, não deve ser atribuída a mero acaso, mas a um germe primitivo, organizado sabiamente para grandes fins. Pois a metafísica, talvez mais do que outra ciência, está, já pela própria natureza de seus traços principais, predisposta em nós e não pode ser considerada como um produto de uma escolha arbitrária ou como ampliação casual no progresso das experiências (das quais se separa totalmente). A razão não encontra por si satisfação através de todos os seus conceitos e leis do entendimento, que lhes são suficientes para o uso empírico e, por conseguinte, dentro do mundo sensível; pois a repetição infinita das mesmas questões tira-lhe toda esperança para uma solução perfeita. As ideias transcendentais, que têm por objetivo tal completude, constituem estes problemas da razão. Ora, ela vê claramente: o mundo dos sentidos não pode conter esta completude, nem, por conseguinte, todos aqueles conceitos, que servem apenas para a compreensão do sensível: espaço e tempo e tudo aquilo que mencionamos sob a denominação de conceitos do entendimento puro. O mundo dos sentidos nada mais é do que uma corrente de fenômenos conectados segundo leis universais, não tem, pois, consistência por si, não é propriamente a coisa em si mesma e refere-se necessariamente àquilo que contém o fundamento deste fenômeno, a entes, que podem ser conhecidos não como simples fenômenos, mas como coisas em si mesmas. Somente no conhecimento destes pode a razão esperar ver uma vez satisfeita sua aspiração de alcançar a inteireza no progresso do condicionado às suas condições. Mostramos acima (33,34) as barreiras da razão em relação a todo conhecimento de simples entes do pensamento; agora que as ideias transcendentais nos fazem ir necessariamente até elas e só nos levaram até ao contato do espaço pleno (da experiência com o vazio do qual nada podemos saber, dos noumena), podemos também determinar os limites da razão pura; pois em todos os limites há algo de positivo (por exemplo, a superfície é o limite do espaço corpóreo, no entanto, também ela é um espaço, que é o limite da superfície, o ponto o limite da linha, mas sempre um lugar no espaço), ao passo que as barreiras só contêm negações. As barreiras mencionadas nos parágrafos citados não são suficientes, depois de termos encontrado além delas ainda alguma coisa (apesar de nunca podermos conhecer o que é em si mesma). Surge então a questão: como se comporta nossa razão nesta conexão entre o que conhecemos e o que não conhecemos e jamais conheceremos? Aqui há uma conexão real do conhecido com o inteiramente desconhecido (como sempre permanecerá) e, mesmo que este desconhecido não devesse nunca tornar-se mais conhecido - o que na verdade nem é de se esperar -, então o conceito desta conexão pode ser definido e tornado claro. Devemos, pois, pensar um ente imaterial, um mundo do entendimento e um ente supremo (puros noúmena), pois a razão só encontra neles, como coisas em si mesmas, completude e satisfação, o que nunca pode esperar encontrar ao derivar os fenômenos de seus fundamentos homogêneos, e porque estes se referem realmente a algo distinto deles (por conseguinte, totalmente heterogêneo), enquanto os fenômenos pressupõem sempre uma coisa em si mesma e, portanto, levam continuamente a ela, quer a conheçamos melhor ou não. Mas como jamais podemos conhecer estes entes de entendimento por aquilo que podem ser em si mesmos, isto é, determinados, mas devemos, entretanto, admiti-los na relação ao mundo dos sentidos e conectá-los pela razão, podemos ao menos pensar esta conexão por meio de tais conceitos, que expressam sua relação com o mundo dos sentidos. Pois, se pensamos o ente de entendimento só por meio de conceitos do entendimento puro, então na realidade não pensamos nada de determinado, por conseguinte, nosso conceito carece de significação; se o pensamos por meio de propriedades derivadas do mundo dos sentidos, então ele não é mais ente de entendimento, mas é pensado como um dos fenômenos e pertence ao mundo dos sentidos. Vamos tomar como exemplo o conceito do ente supremo. O conceito deista é um conceito inteiramente puro da razão, o qual representa apenas uma coisa que contém toda a realidade, sem poder determinar uma única delas, pois para isto o exemplo deveria ser derivado do mundo dos sentidos e, neste caso, eu só teria a ver com um objeto dos sentidos e não com algo inteiramente heterogêneo, o que não pode ser um objeto dos sentidos. Pois eu lhe atribuiria o entendimento; pois eu não tenho nenhum conceito de um entendimento, a não ser daquele que é como o meu, ou seja, de um entendimento ao qual devem ser dadas intuições através dos sentidos e que se ocupa em submetê-las a regras da unidade da consciência. Mas mesmo assim os elementos de meu conceito estariam sempre no fenômeno; fui, entretanto, obrigado, pela insuficiência dos fenômenos, a ir, para além deles, ao conceito de um ser não dependente dos fenômenos e ligado a eles como condições de sua determinação. Mas, se separo o entendimento da sensibilidade para obter um entendimento puro, nada mais resta a não ser a simples forma do pensar sem intuição, pelo que não posso conhecer nada determinado, portanto, nenhum objeto. Eu: deveria, por fim, pensar outro entendimento que intuísse os objetos, mas não tenho a mínima noção do mesmo, porque o entendimento humano é discursivo e só pode conhecer por conceitos gerais. De fato, isto me acontece quando atribuo vontade ao ente supremo; pois só tenho este conceito ao abstraí-lo de minha experiência interna, enquanto que esta se funda na dependência de minha satisfação com respeito a objetos, de cuja existência necessitamos e, por conseguinte, na sensibilidade, o que contradiz totalmente o conceito puro do ente supremo. As objeções de Hume contra o deísmo são fracas, atingem somente as provas, nunca, porém, a proposição da própria afirmação deística. Mas, com relação ao teísmo, que se deve constituir por uma determinação mais precisa de nosso conceito anterior meramente transcendente do ente supremo, elas são muito fortes e até, conforme a maneira em que se estabelece este conceito, irrefutáveis em certos casos (de fato, em todos os comuns). Hume insiste sempre no fato de que pelo simples conceito de um ente primitivo, ao qual não atribuímos nenhum predicado a não ser os predicados ontológicos (eternidade, onipresença, onipotência), não podemos pensar realmente nada determinado, mas devem ser acrescentadas propriedades capazes de fornecer um conceito em concreto; não é suficiente afirmar que ele é uma causa, mas especificar como é constituída sua causalidade, a saber, pelo entendimento ou pela vontade; aqui começam seus ataques à própria coisa, a saber, ao teísmo, pois anteriormente havia atacado apenas as provas do deísmo, o que não acarreta um perigo muito especial. Seus argumentos perigosos referem-se todos ao antropomorfismo, que, em sua opinião, é inseparável do teísmo, tornando-o contraditório em si mesmo, deixando, porém, de lado o antropomorfismo, também sucumbe ao mesmo golpe o teísmo e nada mais resta a não ser um deísmo, que para nada serve e não nos pode ser de utilidade, nem sequer constituir os fundamentos da religião e dos costumes. Se fosse certa esta inevitabilidade do antropomorfismo, então poderiam ser quaisquer as provas da existência de um ente supremo e todas concatenadas, mas o conceito deste ente supremo não poderia nunca ser determinado por nós, sem que caíssemos em contradição. Se conectarmos ao preceito de evitar todos os juízos transcendentes da razão pura o preceito, contrário na aparência, de remontar aos conceitos que estão fora do campo do uso imanente (empírico), veremos que os dois podem existir ao mesmo tempo, mas justamente até o limite de todo o uso legítimo da razão; pois esta pertence tanto ao campo da experiência como ao dos entes de pensamento, e somos ensinados deste modo, como tais ideias notáveis servem para apenas determinar o limite da razão humana, a saber, para de um lado não estender ilimitadamente o conhecimento da experiência, de maneira que nada nos restasse para conhecer senão o mundo, por outro lado não sair dos limites da experiência e querer julgar coisas fora dela como coisas em si mesmas. Apoiamo-nos, porém, neste limite quando confinamos nosso juízo à relação que o mundo pode ter com um ente, cujo próprio conceito está além de todo conhecimento de que somos capazes dentro do mundo. Neste caso, não atribuímos ao ente supremo em si mesmo nenhuma das propriedades, através das quais pensamos objetos da experiência, evitando assim o antropomorfismo dogmático, todavia, as atribuímos à relação do mesmo com o mundo e nos permitimos um antropomorfismo simbólico, que de fato só diz respeito à linguagem e não ao próprio objeto. Quando digo: somos obrigados a ver o mundo como se ele fosse a obra de um entendimento e de uma vontade suprema, não digo na realidade mais do que: assim como um relógio, um navio, um regimento, se referem ao relojoeiro, ao construtor, ao comandante, assim o mundo sensível (ou tudo que constitui o fundamento deste complexo de fenômenos) refere-se ao desconhecido, que através disso conheço não pelo que é em si mesmo, mas o que é para mim, a saber, em relação ao mundo, do qual sou parte. 58 Um conhecimento desta espécie o é por analogia, que não é, como comumente se entende, uma semelhança imperfeita entre duas coisas, mas significa uma semelhança perfeita de duas relações entre duas coisas completamente dessemelhantes. (Há, pois, analogia entre a relação jurídica das ações humanas e a relação mecânica das forças motrizes: eu nunca posso fazer nada contra alguém sem dar-lhe o direito de fazer o mesmo contra mim, sob as mesmas condições; da mesma forma, nenhum corpo pode agir sobre outro com sua força motriz sem que com isso o outro aja sobre ele da mesma maneira. Aqui o direito e a força motriz são coisas bem distintas, mas em sua relação há absoluta semelhança. Por meio desta analogia posso dar um conceito de relação das coisas que me são totalmente desconhecidas. Por exemplo, como se relaciona a promoção da felicidade das crianças = a com o amor dos pais = b, como a prosperidade do gênero humano = c com o desconhecido em Deus = x, o que denominamos amor; não que este tenha a mínima semelhança com qualquer inclinação humana, mas porque podemos pôr sua relação com o mundo como semelhante com a que as coisas do mundo têm entre si. Mas o conceito de relação é aqui simples categoria, a saber, o conceito de causa, que nada tem a ver com sensibilidade. Nota do Autor) Por meio desta analogia resta-nos um conceito do ente supremo suficientemente determinado para nós, embora tenhamos de deixar de lado tudo que poderia determiná-la absolutamente em si mesmo; pois nós o determinamos respectivamente ao mundo e a nós, e não necessitamos mais do que isto. Os ataques feitos por Hume àqueles que querem determinar estes conceitos absolutamente, retirando para isto os materiais de si mesmos e do mundo, não nos atingem; também não nos pode alegar que nada nos restaria ao se suprimir o antropomorfismo objetivo do conceito do ente supremo. Se nos for concedido inicialmente (como o faz Hume em seus Diálogos na pessoa de Filo contra Kleanth), como uma hipótese necessária, o conceito deísta do ente primitivo, no qual se pensa o ente primitivo apenas por predicados ontológicos, de substância, causa, etc. (o que se deve jazer, porque a razão, levada ao mundo dos sentidos por simples condições, que sempre são condicionadas, sem que possa haver qualquer satisfação, e o que também se pode jazer de pleno direito, sem cair no antropomorfismo, que transfere predicados do mundo dos sentidos para um ente bem diferente do mundo, uma vez que tais predicados são meras categorias, que não dão, na verdade, e justamente por isso, nenhum conceito do mesmo limitado a condições de sensibilidade); assim, nada nos pode impedir de atribuir a este ente uma causalidade por meio da razão com relação ao mundo e assim passar ao teísmo, sem sermos, entretanto, obrigados a atribuir-lhe esta razão nele mesmo, como uma propriedade a ele inerente. Pois, no que se refere ao primeiro, é o único caminho possível para elevar o uso da razão ao mais alto grau, com relação a toda experiência possível, e em constante acordo consigo mesmo no mundo dos sentidos, quando se aceite uma razão suprema como uma causa de todas as conexões no mundo: tal princípio lhe é sempre necessariamente vantajoso, sem jamais a prejudicar em seu uso da natureza. Em segundo lugar, a razão não é transposta como propriedade ao ente originário em si mesmo, mas à relação do mesmo com o mundo dos sentidos, evitando-se desta maneira totalmente o antropomorfismo. Pois aqui é considerada apenas a causa da forma da razão que se encontra em toda parte no mundo, e ao ente supremo, enquanto contiver o fundamento desta forma da razão do mundo, é atribuída à razão, mas só por analogia, isto é, enquanto esta expressão mostrar apenas a relação existente entre a causa suprema, que nos é desconhecida, e o mundo, para nele determinar tudo no mais alto grau de razão. Assim é evitado que não utilizemos a propriedade da razão para pensar Deus, mas conseguimos por meio dele pensar o mundo, como é necessário, para termos o maior uso possível da razão segundo um princípio. Deste modo confessamos que o ente supremo, seja ele como for em si mesmo, nos é imperscrutável e até inconcebível de maneira determinada e ficamos impedidos, pelos conceitos que possuímos da razão como uma causa eficiente (por meio da vontade), de fazer um uso transcendente para determinar a natureza divina por propriedades que são sempre derivadas da natureza humana, perdendo-nos assim em considerações grosseiras ou visionárias; por outro lado, ficamos também impedidos de sufocar a consideração de mundo, referindo a Deus conceitos de natureza humana, com explicações de ordem hiperfísica e desviá-la de sua verdadeira determinação, pela qual ela deve ser um estudo da simples natureza através da razão e não uma derivação temerária de seus fenômenos de uma razão suprema. A expressão mais adequada a nossos fracos conceitos será: pensamos o mundo de tal maneira como se ele derivasse de uma razão suprema sua existência e determinação interna, pela qual conhecemos, em parte sua constituição, que lhe é dada pelo mundo, sem que com isso pretendamos determinar sua causa em si mesma, por outro lado colocamos o fundamento desta constituição (da forma da razão no mundo) na relação da causa suprema com o mundo, sem que para isto seja o mundo suficiente por si mesmo. (Eu direi: a causalidade da causa suprema é, em relação ao mundo, o que a razão humana é em relação a suas obras de arte. Com isto me permanece desconhecida a natureza da causa suprema em si: comparo apenas seu efeito para mim conhecido (a ordem do mundo) e a sua conformidade racional com os efeitos, igualmente por mim conhecidos, da razão humana, e denomino, por isso, aquela uma razão, sem todavia lhe atribuir como propriedade o que no homem entendo por esta expressão, ou qualquer coisa que me seja conhecida. Nota do Autor) Desta maneira desaparecem as dificuldades, que parecem se opor ao teísmo: ao se ligar ao princípio de Hume, de não estender o uso da razão dogmaticamente além do campo de toda a experiência possível, um outro princípio descurado por Hume, a saber, não considerar o campo da experiência possível como aquilo que se limita por si mesmo aos olhos de nossa razão. A crítica da razão assinala aqui o verdadeiro meio-termo entre o dogmatismo combatido por Hume e o ceticismo, que ele, ao contrário, pretendia introduzir um meio-termo que, não como outros meios-termos, que determinamos a nós mesmos quase mecanicamente (um pouco de um e um pouco de outro) e pelos quais ninguém aprende algo melhor, mas um que pode ser precisamente determinado por princípios: 59 Servi-me para o início desta observação da imagem sensível de um limite, para fixar as barreiras da razão em relação ao uso que lhe é apropriado. O mundo dos sentidos contém meros fenômenos, que ainda não são coisas em si mesmas, estas últimas (noúmena) devem ser admitidas pelo entendimento, justamente pelo fato de ele conhecer os objetos da experiência como simples fenômenos. Ambos são abarcados pela razão, e surge a questão: como procede a razão para limitar entendimento em relação a ambos os campos? A experiência, que contém tudo que pertence ao mundo dos sentidos, não se limita a si mesma: de cada condicionado, chega sempre só a outro condicionado. O que deve limitá-la encontra-se necessariamente fora dela, e este é o campo dos puros entes de entendimento. Mas este é para nós um espaço vazio, em se tratando da determinação da natureza destes entes de entendimento e, portanto, se temos em vista conceitos dogmaticamente determinados, não podemos ir além do campo da experiência possível. Mas como o próprio limite é algo positivo, pertencente tanto ao que está no seu interior como ao espaço fora de um complexo dado, então é um conhecimento positivo real, que a razão não adquire senão estendendo-se até este limite, sem tentar, entretanto, ultrapassá-lo, pois aí encontra um espaço vazio diante de si, no qual pode conhecer formas das coisas, mas não as próprias coisas. Mas a limitação do campo da experiência por algo, que aliás lhe é desconhecido, é um conhecimento que resta à razão neste ponto, mediante o qual ela não se encerra dentro do mundo dos sentidos, nem vagueia fora do mesmo, mas, como convém ao conhecimento do limite, circunscreve-se apenas à relação daquilo que está fora dela com o que está contido dentro do mesmo limite. A teologia natural é um conceito desta espécie no limite da razão humana, já que se vê obrigada a olhar para além da ideia de um ente supremo (e, em relação prática, também a de um mundo inteligível), não para determinar algo em relação a este simples ente de entendimento, por conseguinte, fora do mundo dos sentidos, mas apenas para dirigir o seu próprio uso dentro deste, segundo princípios da maior unidade possível (tanto teórica como prática), e para com este fim utilizar a relação deste mundo com uma razão em si subsistente, como com a causa de todas estas relações, sem por este meio inventar meramente um ente, mas, como necessariamente deve ser encontrado fora do mundo dos sentidos aquilo que só o entendimento pensa, determiná-lo desta maneira, apesar de fazê-lo, na verdade, apenas por analogia. Desta maneira permanece nossa proposição anterior, que é resultado de toda a crítica: "Que a razão nunca nos ensina mais através de seus princípios a priori do que objetos de experiência possível e também destes mais nada do que se pode conhecer na experiência"; mas esta restrição não impede que ela nos leve ao limite objetivo da experiência, a saber, à relação com algo que, não sendo o objeto da experiência, deve ser o fundamento supremo de todos os objetos da mesma, sem nos ensinar, todavia, algo a respeito dele em si mesmo, mas apenas em relação ao seu próprio e inteiro uso, dirigido ao mais alto fim, no campo da experiência possível. Este é também o proveito que se pode desejar racionalmente e com o qual podemos nos dar por satisfeitos. 60 Assim fizemos uma exposição pormenorizada da metafísica segundo sua possibilidade subjetiva, como ela é realmente dada na disposição natural da razão humana, considerada naquilo que constitui o fim essencial de sua elaboração. Por termos, entretanto, achado que este simples uso natural de tal disposição de nossa razão, quando não disciplinada da mesma, o que só é possível pela crítica científica, a freia e põe dentro de barreiras, envolve-a em conclusões dialéticas transcendentes em parte apenas ilusórias, em parte contradizendo-se a si próprias, e, além disso, esta metafísica sofista é dispensável e até prejudicial ao progresso do conhecimento da natureza, continuando sempre uma tarefa digna de investigação encontrar os fins da natureza, aos quais corresponde esta disposição de nossa razão para conceitos transcendentes, pois tudo o que se encontra na natureza deve ter sido predisposto a algum fim útil. Tal investigação é, na verdade, precária: também confesso que é apenas suposição como tudo o que se refere aos primeiros fins da natureza, isto posso dizer aqui, o que só me é permitido neste caso, pois a questão não diz respeito à validade objetiva de juízos metafísicos, mas à disposição da natureza para com os mesmos, e, portanto, está fora do sistema da metafísica na antropologia. Ao examinar todas as ideias transcendentais, cujo complexo constitui a verdadeira tarefa da razão pura natural, que a obriga a abandonar a simples observação da natureza e ir além de toda experiência possível, para por meio deste esforço realizar a coisa (saber ou sofisma) que se chama metafísica, penso descobrir que esta disposição da natureza tem por fim libertar nosso conceito das cadeias da experiência e das barreiras da simples observação da natureza, que pelo menos veja um campo abrir-se à sua frente, que contém apenas objetos da razão pura, os quais não podem ser alcançados por nenhuma sensibilidade, não com a intenção de nos ocuparmos especulativamente com eles (porque não encontramos terreno sólido onde firmar os pés), mas para que princípios práticos que, sem encontrar diante de si tal espaço para sua necessária expectativa e esperança, não podem se estender à universalidade, da qual a razão necessita absolutamente para seu fim moral. Encontro, portanto, que a ideia psicológica, por pouco que ela me faça entender a respeito da natureza pura, superior a todos os conceitos do entendimento, da alma humana, mostra ao menos com suficiente clareza a insuficiência dos últimos, desviando-me assim do materialismo, como um conceito psicológico, inútil para a explicação da natureza e que restringe a razão no sentido prático. Assim as ideias cosmológicas, através da visível insuficiência de todo o conhecimento da natureza para satisfazer à razão em suas legítimas investigações, servem para nos desviar do naturalismo, que quer apresentar a natureza como suficiente a si mesma. Finalmente, como a necessidade da natureza no mundo dos sentidos é constantemente condicionada, enquanto pressupõe sempre dependência das coisas umas das outras, e a necessidade incondicionada deve ser procurada apenas na unidade de uma causa distinta do mundo sensível, a causalidade da mesma, por seu turno, se fosse apenas natureza, não poderia nunca tornar compreensível a existência do contingente como sua consequência, assim a razão livra-se por intermédio da ideia teológica do fatalismo, seja ele pensado orno cega necessidade da natureza, sem um princípio primeiro, ou como na causalidade deste mesmo princípio, e conduz, assim, ao conceito de uma causa ela liberdade, por conseguinte, de uma inteligência suprema. Assim servem as ideias transcendentais, senão para nos ensinar positivamente, pelo menos para destruir as afirmações atrevidas do materialismo, do naturalismo e do fatalismo, que restringem o campo da razão e para, desta maneira, dar às ideias morais espaço fora do campo da especulação; isto, segundo me parece, esclareceria até certo ponto aquela disposição da natureza. O uso prático que uma ciência apenas especulativa pode ter está fora dos limites desta ciência e só pode ser considerado como um escólio, e não pertence, como todos os escólios, à própria ciência. Contudo, esta relação reside, pelo menos, dentro dos limites da filosofia, principalmente daquela que procura nas fontes puras da razão, onde o uso especulativo da razão na metafísica deve ter necessariamente uma unidade com o prático na moral. Daí que a inevitável dialética da razão pura, considerada como disposição da natureza numa metafísica, merece ser explicada, na medida do possível, não apenas como ilusão, que precisa ser dissipada, mas também como instituição da natureza segundo seu fim, embora esta tarefa não possa ser de direito exigida, por ir além de suas atribuições. Por um segundo escólio, mas mais aparentado com o conteúdo da metafísica, deveria ser considerada a solução das questões que estão na Crítica desde a p. 647 à p. 668. Pois aí são apresentados certos princípios da razão, que determinam a priori a ordem natural ou, mais ainda, o entendimento, que deve procurar suas leis pela experiência. Eles parecem ser constitutivos e legisladores em relação à experiência, pois são derivados da simples razão, a qual não deve ser tomada, com o entendimento, por um princípio de experiência possível. Se esta concordância funda-se no fato de que, como a natureza não inere aos fenômenos ou à sensibilidade, fonte dos mesmos, mas é encontrada apenas na relação dos últimos com o entendimento, então a unidade, em vista de uma experiência possível (num sistema), chega ao entendimento apenas com relação à razão, por conseguinte, também a experiência se encontra mediatamente sob legislação da razão, questão que deixo para aqueles que querem investigar a natureza da razão, fora de seu uso na metafísica, mesmo nos princípios universais que servem para sistematizar uma história da natureza em geral; pois esta questão apresentei na própria obra como importante, mas não tentei sua solução. (Foi meu constante propósito, na Crítica. não deixar nada de lado que pudesse contribuir para a inteireza da investigação da natureza da razão pura, mesmo que se encontrasse profundamente oculta. Fica, pois, à escolha de cada um levar tão longe quanto queira sua investigação, uma vez que lhe foi mostrado o que ainda há para fazer, pois é o que se pode esperar legitimamente de quem assumiu a tarefa de medir todo este campo, deixando a outros sua construção futura e a divisão segundo seu arbítrio. A isto também pertencem os dois escólios que, por sua aridez, dificilmente poderão ser recomendados a amadores e por tal motivo foram postos aqui só para entendidos. Nota do Autor) E assim finalizo a solução analítica da questão principal por mim posta: como é possível a metafísica em geral? Solução alcançada por mim, partindo dali, onde seu uso é realmente dado, pelo menos nas consequências, para ascender aos fundamentos de sua possibilidade. SOLUÇÃO DA QUESTÃO PRINCIPAL DOS PROLEGÔMENOS Como é possível a metafísica como ciência? Metafísica, como disposição da natureza da razão, é real, mas é também, por si mesma (como demonstrou a solução analítica da terceira questão principal), dialética e ilusória. Pretender tirar desta, portanto, os princípios e seguir no uso dos mesmos uma ilusão, natural, é certo, mas nem por isso menos falso, nunca pode constituir uma ciência, mas somente uma arte dialética vã, na qual uma escola supera a outra, não logrando nenhuma, porém, um aplauso legítimo e duradouro. Para que ela possa ter a pretensão de, como ciência, não apenas persuadir enganadoramente, mas de gerar o conhecimento e a convicção, é necessário que a crítica da própria razão exponha toda a série dos conceitos a priori, a divisão dos mesmos segundo suas diversas fontes, a sensibilidade, o entendimento e a razão, que além disso apresente uma tábua completa dos mesmos, e o desmembramento de todos estes conceitos, com tudo que pode ter consequências a partir deles, em seguida, mas, principalmente, a possibilidade do conhecimento sintético a priori, mediante a dedução destes conceitos, os princípios de seu uso, finalmente também os limites do mesmo, mas tudo isto num sistema completo. Portanto, a Crítica, e só ela, contém o plano inteiro bem verificado e provado, mesmo todos os meios da realização em si, pela qual a metafísica pode tornar-se uma ciência; por outros caminhos e meios ela é impossível. Trata-se, pois, aqui, de saber não tanto como é possível esta tarefa, mas apenas como levá-la a efeito, como reconduzir espíritos clarividentes, dos trabalhos até agora errados e infrutíferos, a um trabalho seguro, e qual a melhor maneira de poder dirigir tal união para um fim comum. Algo é certo: quem uma vez provou a crítica sente náusea perante todo palavrório dogmático, com o que antes se contentava por necessidade, porque sua razão precisava de algo e não encontrava nada melhor para alimento. A crítica comporta-se para com a metafísica vulgar das escolas como a química para a alquimia, ou como a astronomia para com a astrologia divinatória. Tenho certeza que ninguém, que tenha pensado e compreendido os princípios da crítica mesmo apenas nestes Prolegômenos, jamais retomará àquela velha e sofistica ciência ilusória; muito mais olhará com certo prazer para uma metafísica que agora estará seguramente em seu poder, não necessita mais de nenhuma descoberta preparatória, e que pela primeira vez dará à razão uma satisfação duradoura. Pois esta é uma prerrogativa, com a qual somente a metafísica poderá contar, com segurança, entre todas as ciências possíveis, a saber, que ela pode ser levada à perfeição e a um estado imutável, pois não deverá mudar em nada, nem é capaz de nenhum aumento por intermédio de novas descobertas; pois aqui a razão tem as fontes de seu conhecimento não nos objetos e em sua intuição (pelos quais nada mais pode ser acrescentado ao que ela já sabe), mas em si mesma, e, quando ela tiver exposto de modo completo e determinado as leis fundamentais de seu poder contra toda falsa interpretação, nada mais resta que seja conhecido a priori pela razão pura, nem o que ela pudesse perguntar com fundamento. A perspectiva segura de um saber assim determinado e circunscrito tem em si mesma um atrativo especial, quando se deixa logo de lado todas as utilidades (a respeito das quais falarei mais tarde). Toda arte falsa, toda vã sabedoria, tem sua época; pois finalmente ela mesma se destrói, e o apogeu de sua cultura é ao mesmo tempo o início de sua decadência. Que, no que diz respeito à metafísica, tenha chegado este momento, demonstra o estado a que ela, com ardor com que são trabalhadas todas as demais ciências, decaiu em todos os povos cultos. A antiga organização dos estudos universitários conserva ainda sua sombra, uma única Academia das Ciências empenha-se ainda, propondo prêmios de quando em quando, em promover uma ou outra tentativa neste sentido, mas a metafísica não é contada entre as ciências fundamentais, e cada um pode julgar por si como um homem de talento, que se queira denominar um grande metafísico, receberia semelhante elogio, bem intencionado, mas por ninguém invejado. Mas, apesar de ter soado indubitavelmente a hora da decadência de toda a metafísica dogmática, falta ainda muito para que se possa dizer que a época de sua renascença, por intermédio de uma crítica sólida e completa da razão, já tenha surgido. Todas as transições de uma inclinação para a que lhe é contrária passam pelo estado de indiferença, e este é o momento mais perigoso para um autor, mas, segundo me parece, o mais favorável para a ciência. Pois, se, pela completa dissolução das antigas ligações, se extinguiu o espírito do partido, os ânimos se encontram na melhor disposição para, pouco a pouco, prestarem atenção a propostas de união com outro plano. Quando afirmo que espero destes Prolegômenos que eles venham talvez a provocar as pesquisas no campo da crítica e a fornecer ao espírito universal da filosofia, ao qual parece faltar alimento na parte especulativa, um novo e promissor objeto de estudos, posso imaginar antecipadamente que todos aqueles que, com relutância e mau humor, tiveram de trilhar o espinhoso caminho, por aonde os conduzi na Crítica, me perguntarão onde fundamento esta esperança. Respondo: na irrefutável lei da necessidade. Que o espírito humano venha a renunciar totalmente às investigações metafísicas, é de esperar tão pouco como se, para não mais respirar o ar impuro, renunciássemos preferível e totalmente ao ato de respiração. Existirá, portanto, sempre no mundo e, mais ainda, em todo homem, principalmente naquele que reflete, a metafísica, que, em falta de uma medida pública, será talhada por cada um à sua maneira. Pois aquilo que até agora foi denominado metafísica não pode agradar a nenhum espírito investigador, mas, como também é impossível renunciar completamente a ela, logo é mister tentar uma crítica da própria razão pura, ou, se já existe uma, investigá-la e submetê-la a uma prova universal, pois do contrário não existe outro meio de satisfazer a esta necessidade premente, que é algo mais do que simples desejo de saber. Desde que conheço a crítica, não pude deixar de perguntar ao fim da leitura de um escrito de conteúdo metafísico, que, pela determinação de seus conceitos, pela multiplicidade e ordem e uma exposição clara, tão bem agradou e instruiu: terá este autor levado a metafísica um passo adiante? Peço desculpas aos homens doutos, cujas obras me foram úteis de outra maneira e sempre contribuíram para a cultura de minhas forças espirituais, que não pude encontrar nem em suas nem em minhas tentativas de menos valor (em favor das quais fala o amor-próprio) o mínimo avanço da metafísica, e isto pelo mais natural motivo, ou seja o de a ciência não ter ainda existido e que ela também não pode ser composta de retalhos, mas que seu núcleo deve ser totalmente pré-formado na crítica. Deve-se, porém, para evitar todo engano, recordar o anterior, a saber, que o estudo analítico de nossos conceitos ajudou decerto muito o entendimento, mas a ciência (da metafísica) não foi nem o mínimo- levada adiante, porque aqueles desmembramentos dos conceitos são apenas materiais, com os quais deve ser primeiramente construída a ciência. É bom que se desmembre e determine bem o conceito de substância e acidente, isto é uma boa preparação para qualquer uso futuro. Mas, se não posso demonstrar que em tudo que existe a substância permanece e só os acidentes mudam, então mesmo por meio de todo desmembramento não terei levado a metafísica um passo sequer adiante. Ora, a metafísica não pôde ainda demonstrar validamente a priori nem esta proposição, nem o princípio de razão suficiente, muito menos qualquer proposição mais complexa, por exemplo, a de uma atinente à doutrina da alma ou à cosmologia e, em geral, nenhuma proposição sintética; portanto, com toda esta análise nada foi feito, nem produzido, nem exigido, e a ciência, após tanta agitação e barulho, está ainda exatamente ali onde estava na época de Aristóteles, se bem que os preparativos para ela, se se tiver achado apenas o guia que conduz a conhecimentos sintéticos, sejam incontestavelmente melhores que antes. Se alguém se julga com isso ofendido, pode facilmente destruir esta acusação acrescentando uma só proposição sintética pertencente à metafísica, oferecendo-se para demonstrá-la a priori, pois só quando ele tiver conseguido isto admitirei que realmente fez progredir a ciência, mesmo que esta proposição fosse suficientemente demonstrada pela experiência comum. Nenhuma exigência pode ser mais moderada e justa, e, no caso (certíssimo) de não ser satisfeita, nenhuma pretensão mais justificada do que esta: que a metafísica como ciência jamais existiu até agora. Só há duas coisas a proibir, caso minha exigência seja aceita: primeiro, o jogo de probabilidade e de conjectura, que convém tão pouco à metafísica como à geometria; segundo, a decisão por meio da varinha mágica do assim chamado sadio entendimento humano, que nem todos sabem manejar, mas que se adapta às propriedades pessoais. Pois, no que se refere ao primeiro ponto, nada mais absurdo pode ser encontrado do que pretender, numa metafísica, numa filosofia de razão pura, fundar seus juízos na probabilidade e na suposição. Tudo que deve ser conhecido a priori é por isso mesmo dado como apoditicamente certo; e deve assim ser demonstrado. Poder-se-ia, da mesma maneira, pretender fundar uma geometria ou uma aritmética sobre suposições; pois, no que se refere ao calculus probabilium da última, ele não contém juízos prováveis, mas absolutamente certos sobre o grau de possibilidade de certos casos sob semelhantes condições dadas, que na soma de todos os possíveis casos devem estar infalivelmente de acordo com a regra, se bem que esta não é suficientemente determinada em relação a cada caso particular. Suposições (por intermédio da indução e da analogia) só podem ser toleradas na ciência empírica da natureza, e isso de tal modo que pelo menos a possibilidade daquilo que admito seja inteiramente certa. Ainda pior, se possível, se se apela ao sadio entendimento humano, quando se trata de conceitos e princípios, não enquanto válidos em relação à experiência, mas ao pretenderem ser dados como válidos fora das condições da experiência. Pois o que é o sadio entendimento? É o entendimento comum, enquanto julga de maneira certa. E o que é, então, o entendimento comum? Ele é o poder do conhecimento e do uso das regras em concreto, em oposição ao entendimento especulativo, que é um poder do conhecimento das regras em abstrato. Assim será a regra do entendimento comum: tudo que acontece é determinado por meio de uma causa, mas nunca compreendido ou conhecido em sua universalidade. Exige, pois, um exemplo da experiência, e quando ouve que este nada mais significa senão o que sempre pensara, quando se lhe quebrou uma janela ou desapareceu um móvel da casa, então entende o princípio e o aceita. O entendimento comum não tem, pois, outra utilidade senão na medida em que vê suas regras (apesar de elas serem a ele inerentes realmente a priori) confirmadas na experiência, por conseguinte, a compreende a priori e independentemente da experiência, compete ao entendimento especulativo e está totalmente fora da alçada do entendimento comum. A metafísica só tem de se preocupar com a última espécie de conhecimento, e é com certeza um mau sinal do entendimento sadio apelar para uma autoridade que não pode julgar e que, de ordinário, é olhada com desdém, a não ser quando nos encontramos em apuros e não sabemos como resolver este impasse na especulação. É uma escapatória habitual de que se costumam servir os falsos amigos do comum entendimento humano (que ocasionalmente o celebram, mas via de regra o menosprezam) dizer: devem existir, afinal, algumas proposições imediatamente certas, das quais não só não temos de dar prova alguma, mas de que nem sequer temos de prestar contas, pois do contrário não chegaríamos nunca ao fim com os fundamentos de seus juízos; mas para provar tal direito não podem citar (além da proposição de contradição, que todavia não basta para demonstrar a verdade dos juízos sintéticos) alguma outra coisa indubitável, que eles possam atribuir imediatamente ao comum entendimento humano, a não ser proposições matemáticas, como, por exemplo, que 2 e 2 são 4, que entre dois pontos só pode haver uma linha reta, etc. Estes são, porém, juízos inteiramente diferentes dos da metafísica. Pois na matemática posso realizar pelo meu pensamento (construir) tudo aquilo que imagino possível por meio de um conceito: acrescento a um 2 o outro 2 e formo assim o número 4, ou traço, em pensamento, de um ponto a outro toda sorte de linhas, e posso traçar apenas uma (tanto iguais como desiguais) que seja em todas as partes semelhantes a si mesma. Mas não posso, valendo-me de todo o meu poder de pensamento, tirar do conceito de uma coisa o conceito de outra coisa, cuja existência seja necessariamente conectada com a primeira, mas preciso recorrer à experiência e, embora meu entendimento me dê a priori (mas sempre em relação com a experiência possível) o conceito de tal conexão (de causalidade), não posso, como os conceitos da matemática, representá-lo a priori na intuição e demonstrar, portanto, a priori sua possibilidade. Este conceito, juntamente com princípios de sua aplicação, necessita sempre, se ele deve ser válido a priori - como é exigido na metafísica -, de uma justificativa e de uma dedução de sua possibilidade, pois do contrário não se sabe até onde ele é válido e se pode ser usado só na experiência ou também fora dela. Portanto, não se pode, em se tratando de metafísica como ciência especulativa da razão pura, apelar para o comum entendimento humano, a não ser quando somos forçados a abandoná-la e a renunciar a todo conhecimento especulativo puro, que deve ser sempre um saber, por conseguinte, à própria metafísica e a seus ensinamentos (em certas circunstâncias), contentando-nos com uma fé racional, que só a nós é possível e suficiente para nossas necessidades (talvez até mais salutar que o próprio saber). Só então muda completamente o aspecto da coisa. A metafísica deve ser ciência, não só no todo, como em todas as suas partes, senão ela não é nada; pois, como especulação da razão pura, não pode recorrer senão a conhecimentos universais. Fora dela podem ter probabilidade e sadio entendimento humano muito bem sua aplicação útil e legítima, mas segundo princípios próprios, cuja importância depende sempre da relação com a prática. Isto é o que me considero autorizado a exigir para a possibilidade de uma metafísica como ciência. Apêndice do que pode ser feito para tornar a metafísica real como ciência Como todos os caminhos tomados até agora não alcançaram este objetivo, coisa que também jamais será alcançada sem uma crítica precedente da razão pura, não parece de todo insensato submeter à tentativa aqui apresentada a um exame rigoroso e atento, a menos que se considere mais aconselhável renunciar totalmente a todas as pretensões de uma metafísica, neste caso, se se permanecer fiel a esta resolução, não há nada a objetar. Se se toma o curso das coisas tal como é realmente e não como deveria ser, existem dois tipos de juízos, um juízo que antecede a investigação, este é, em nosso caso, aquele que o leitor, tirando-o de sua metafísica, profere sobre a crítica da razão pura (que deve, antes de tudo, investigar a possibilidade daquela), e outro juízo que sucede a investigação, onde o leitor pode abstrair, por um tempo, das consequências resultantes destas investigações críticas, que podem chocar fortemente sua pretensa metafísica, para examinar, antes de tudo, de onde podem ter sido deduzidas aquelas consequências. Se fosse absolutamente certo o que é exposto pela metafísica comum (como a geometria, por exemplo), seria válida a primeira maneira de julgar; pois, quando as consequências de certos princípios contradizem verdades estabelecidas, então tais princípios são falsos e devem ser rejeitados sem qualquer investigação ulterior. Mas, se a metafísica não possui uma reserva de proposições (sintéticas) incontestavelmente certas, e talvez muitas destas, tão ilusórias como as melhores entre elas, mesmo em suas consequências, são contraditórias, e se de um modo geral não se pode encontrar nela um critério seguro da verdade de proposições propriamente metafísicas (sintéticas), a primeira maneira de julgar não pode encontrar aplicação, mas a investigação dos princípios da crítica deve anteceder todo juízo a respeito de seu valor ou não valor. Ensaio de um juízo sobre a crítica que deve anteceder a investigação Um juízo deste gênero encontra-se nos Göttingische gelehrten Anzeigen, terceiro artigo do suplemento, 19 de janeiro de 1782, p. 40 e ss. Quando um autor, bem familiarizado com o objeto de sua obra, que se esforçou em colocar na elaboração desta sua própria reflexão, cai nas mãos de um crítico que é, por sua vez, suficientemente perspicaz para descobrir os pontos onde estão propriamente o valor ou não valor da obra, e que, sem se deter nas palavras, vai às coisas, esmiúça e examina não apenas os princípios dos quais partiu o autor, poderá acontecer que a severidade de julgar desagrade ao último, enquanto o público permanece indiferente, pois ganha com isso; o próprio autor pode se dar por satisfeito em ter uma oportunidade para corrigir ou esclarecer seus escritos, examinados em boa hora por um conhecedor, podendo assim, se se considera no fundo com razão, tirar a tempo a pedra de choque que, no futuro, poderia ser prejudicial à sua obra. Encontro-me perante meu crítico em situação bem diversa. Ele parece não compreender ao que ,propriamente se refere a investigação com que me ocupo (com ou sem êxito) e, seja por impaciência de refletir sobre uma obra extensa, seja por enfado contra a reforma iminente de uma ciência, na qual ele desde há muito julgava ter colocado tudo a limpo, ou, o que suponho com desagrado, por culpa de um conceito realmente limitado, que não o deixa nunca ir além de sua metafísica de escola; em suma ele percorre com tumulto uma longa série de proposições, impossíveis de serem compreendidas sem suas premissas, semeia de quando em quando suas censuras, das quais o leitor vê tão pouco o fundamento, como entende as proposições censuradas, não podendo, pois, ser de utilidade para o público, nem prejudicar-me perante o julgar dos entendidos. Por este motivo, teriam deixado completamente de lado tal julgamento, se não tivesse me dado oportunidade para alguns esclarecimentos, que poderiam preservar o leitor destes Prolegômenos de uma interpretação errônea em alguns casos. O crítico, entretanto, para ter um ponto de vista desde o qual pudesse apresentar a obra sob um aspecto desfavorável ao autor, sem se preocupar com uma investigação especial, começa e termina dizendo: "Esta obra é um sistema do idealismo transcendental" (ou, como ele traduz, do superior). (De modo nenhum o superior. Altas torres, e os homens metafisicamente grandes, semelhantes a elas, em torno das quais sopra comumente muito vento, não são para mim. Meu lugar é o fértil Bathos da experiência, e a palavra transcendental, cujo sentido tantas vezes explicado por mim e nem sequer entendido pelo crítico (tão superficialmente examinou a obra) não significa o que ultrapassa a experiência, mas o que a precede (a priori), para mais nada determinado a não ser tornar possível o conhecimento da experiência. Quando tais conceitos ultrapassam a experiência, então seu uso é transcendente, distinto do imanente, isto é, o uso limitado à experiência. Na obra foram tomadas medidas suficientes para evitar falsas interpretações desta espécie; só o crítico encontrou vantagem nas falsas interpretações. Nota do Autor). Ao ler esta linha, vi imediatamente que espécie de crítica sairia dali, mais ou menos como se alguém, que nunca tivesse ouvido ou visto algo de geometria, encontrasse um Euclides e, solicitado a proferir um juízo sobre o mesmo, depois de ter esbarrado em muitas figuras durante a leitura, dissesse: "O livro é uma instrução sistemática para o desenho; o autor utiliza uma linguagem especial, para ditar normas obscuras e incompreensíveis, que afinal para nada mais servem senão para o que cada um pode fazer por intermédio de um bom golpe de vista natural, etc.". Vejamos, então, que espécie de idealismo é este que se encontra em toda a minha obra, apesar de nem de longe constituir a alma do sistema. A proposição de todos os verdadeiros idealistas, desde a escola eleática até o Bispo Berkeley, está contida nesta fórmula: "Todo conhecimento pelos sentidos e pela experiência é simples ilusão, e só nas ideias do entendimento puro e da razão há verdade". O princípio que rege e determina constantemente meu idealismo é, ao contrário: "Todo conhecimento das coisas, tirado unicamente do entendimento puro ou da razão pura, nada mais é que ilusão, só na experiência há verdade". Este é justamente o contrário daquele idealismo propriamente dito; como cheguei a utilizar-me desta expressão para uma intenção completamente oposta, e como o crítico o vê em toda parte? A solução desta dificuldade funda-se em algo, muito facilmente depreendível o conjunto da obra, se se tivesse vontade para isso. Espaço e tempo, juntamente com tudo que eles contêm, não são as coisas ou suas propriedades em si mesmas, as pertencem apenas aos fenômenos das mesmas; até aqui minha profissão é idêntica à dos idealistas. Mas estes, Berkeley em particular, tomavam o espaço por uma representação meramente empírica que, como os fenômenos nele, nos seria conhecido apenas por meio da experiência ou da percepção, juntamente com todas as suas determinações; mostro, ao contrário, em primeiro lugar, que o espaço (e da mesma maneira o tempo, ao qual Berkeley não deu atenção) pode ser conhecido por nós a priori com todas as suas determinações, porque, como o tempo, é inerente a nós antes de toda percepção ou experiência, como forma pura de nossa sensibilidade, tornando possível toda a intuição da mesma: por conseguinte, todos os fenômenos. Donde se segue que, como a verdade se funda sobre leis universais e necessárias, que são seus critérios, a experiência em Berkeley não pode ter critérios de verdade, porque nada havia sido colocado (por ele) a priori como fundamento aos fenômenos da mesma, donde se segue que ela não passa de ilusão; para nós, ao contrário, o espaço e o tempo (em ligação com os conceitos de entendimento puro) prescrevem a priori sua lei a toda experiência possível, que fornece, ao mesmo tempo, o critério certo para distinguir nela a ilusão da verdade. (O idealismo propriamente oito tem sempre uma tendência mística, nem pode ter outra; o meu, porém, serve apenas para atender à possibilidade de nosso conhecimento a priori dos objetos da experiência, problema até agora não resolvido, nem mesmo posto. Com isto cai por terra todo o idealismo místico, o qual (como já se via em Platão) argumentava de nossos conhecimentos a priori (mesmo os da geometria) a possibilidade de outra intuição diferente da sensível (a saber, intuição intelectual), porque ninguém pensara que os sentidos também deveriam intuir a priori. Nota do Autor). Meu pretenso (na verdade crítico) idealismo é, pois, de espécie muito peculiar, porque derruba o idealismo habitual, de maneira que através dele todo conhecimento a priori, mesmo o da geometria, recebe, pela primeira vez, realidade objetiva, o que, sem esta minha demonstrada idealidade de espaço e tempo, não poderia ser afirmado nem pelos mais ardentes realistas. Estando as coisas neste pé, gostaria de evitar todo e qualquer equívoco, denominando este meu conceito de maneira diversa; mas mudá-lo completamente é coisa que não se pode fazer. Que me seja, pois, permitido denominá-lo no futuro, como já o fiz anteriormente, idealismo formal, ou melhor ainda, crítico, para distingui-lo do dogmático de Berkeley e do cético de Descartes. Não encontro mais nada digno de nota na apreciação crítica deste livro. O autor da mesma julga constantemente en gros, procedimento habilmente adotado, pois não trai seu próprio saber ou ignorância; um só juízo pormenorizado que incidisse, como é justo, sobre a questão principal, teria talvez revelado meu erro talvez também o grau de perspicácia do crítico nesta espécie de investigações. Também não era um artifício mal imaginado a fim de tirar a tempo dos leitores, acostumados a formar conceitos sobre livros baseados apenas em notícias de jornais, a vontade de ler este livro, o recitar de um só fôlego, umas após as outras, as várias proposições que separadas das provas e das explicações que as acompanham (encontrando-se, principalmente como nossas, nos antípodas da metafísica das escolas) devem parecer necessariamente absurdas, levar a paciência do leitor até a náusea e, em seguida, após me ser dada a conhecer a engenhosa proposição que a constante ilusão é verdade, terminar com esta lição dura, mas paternal: por que esta querela sobre a linguagem aceita, para que e de onde vem esta distinção idealista? Juízo que coloca, por fim, toda a peculiaridade de meu livro, que devia ser antes heresia metafísica, numa simples inovação de linguagem, e demonstra claramente que meu pretenso juízo não compreendeu nem o mínimo disto tudo, nem sequer a si mesmo. (O crítico bate em si mesmo, na maior parte das vezes, com sua própria sombra. Se contraponho a verdade da experiência ao sonho, ele não pensa tratar-se apenas do conhecimento somnio obiective sumpto da filosofia de Wolff; sonho meramente formal, no qual não se leva em consideração a diferença entre o dormir e o acordar, o que de fato não pode ser encarado numa filosofia transcendental. De resto, denomina minha dedução das categorias e a tábua dos princípios do entendimento: "princípios comumente conhecidos da lógica e ontologia expressada idealisticamente", O leitor precisa apenas consultar estes Prolegômenos para se convencer de que não poderia haver juízo mais miserável, nem historicamente mais injusto. Nota do Autor). Contudo, o crítico fala como um homem consciente de seus importantes e superiores conhecimentos, que ainda mantém escondidos; pois em relação à metafísica não tomei conhecimento de nada que pudesse justificar tamanha retumbância. Mas ele comete um grande erro ao esconder do mundo suas descobertas; pois é fora de dúvida que a muitos acontece, como a mim, que, não obstante tudo de belo que se tem escrito neste assunto, não se pôde ainda encontrar algo que fizesse a ciência avançar pelo menos a espessura de um dedo. Aguçar definições, munir de novas muletas provas aleijadas, fornecer novos retalhos ao então da metafísica ou dar-lhe outro corte, isto ainda se pode encontrar, mas não é o que o mundo exige. O mundo está saturado de afirmações metafísicas. O que se pretende é examinar a possibilidade desta ciência, as fontes donde ela poderá tirar a certeza e os critérios seguros para distinguir a ilusão dialética da razão pura da verdade. O crítico deve possuir a chave para isso, do contrário, nunca teria falado em tom tão alto. Suspeito, porém, que tal necessidade da ciência nunca passou-lhe pelo pensamento, pois senão teria dirigido seu julgamento a este ponto, e mesmo uma tentativa fracassada em assunto de tanta importância deveria ter sido levada em consideração por ele. Se assim é, então somos novamente bons amigos. Que pense a metafísica a fundo, ninguém o impedirá, só que ele não pode julgar o que está fora da metafísica, ou seja, a fonte desta que está na razão. Mas que minha suspeita não é sem fundamento, posso provar pelo fato de ele não ter dito uma palavra a respeito da metafísica do conhecimento sintético a priori, que era a verdadeira tarefa sobre cuja solução se funda totalmente o destino da metafísica e à qual endereço toda a minha Crítica (bem como estes meus Prolegômenos). O idealismo, em que tropeçou e ao qual se aferrou, só havia sido admitido em meu sistema como único meio de resolver aquele problema (embora ainda haja outras razões para confirmá-lo), e aí ele deveria ter mostrado que, ou aquela tarefa carecia da importância atribuída por mim (como agora também nos Prolegômenos), ou poderia ser melhor resolvida de outra maneira; a respeito disto, entretanto, não encontrei nenhuma palavra na crítica. O crítico não entendeu, pois, nada do que escrevi e, talvez, nada tampouco do espírito e da essência da própria metafísica, a não ser que, coisa que prefiro admitir, sua participação de crítico, indignada com a dificuldade em passar por tantos obstáculos, tenha projetado uma sombra prejudicial sobre a obra que tinha diante de si, o que o impediu de conhecer as linhas essenciais da mesma. Falta ainda muito para que um jornal erudito, por melhor que, e mais cuidadosamente que, sejam escolhidos seus colaboradores, possa manter o prestígio, por sinal bem merecido, no campo da metafísica, à mesma altura que em outros campos, Outras ciências e conhecimentos têm seus próprios critérios. A matemática o tem em si mesma, a história e a teologia em livros profanos ou sagrados, a ciência da natureza e a medicina na matemática e na experiência, a jurisprudência nos códigos e até as questões de gosto nos modelos dos antigos. Mas, para julgar esta coisa que se chama metafísica, deve ser primeiro encontrado o critério (fiz uma tentativa para determiná-lo bem como seu uso). O que se deve fazer, até que seja encontrado, se é necessário emitir um juízo sobre escritos desta espécie? Se são dogmáticos, cada um que os considere como bem lhe aprouver, pois por muito tempo ninguém se arvorará mestre dos outros, sem que se encontre alguém que lhe pague na mesma moeda. Se são críticos, e não de crítica de escritos alheios, mas de crítica da própria razão, de sorte que o critério de julgamento não possa ser aceito, mas deva ser primeiro buscado, em tal caso, podem ser admitidas objeções, mas deve haver também tolerância, porque a necessidade é comum e a falta de um ponto de vista obrigatório não deixa que ninguém se arrogue direitos de juiz. Mas, para levar minha defesa ao interesse geral da comunidade filosófica, proponho uma tentativa decisiva para a maneira de dirigir todas as investigações metafísicas a seu fim comum. Não é outra coisa do que o já decerto feito pelos matemáticos para decidir por meio de um pleito a superioridade de seus métodos, a saber, proponho a meu crítico que prove, segundo seu método, mas como é de direito, segundo fundamentos a priori, uma única proposição por ele denominada verdadeiramente metafísica, isto é, sintética e conhecida a priori, mas que seja uma das mais indispensáveis, como, por exemplo, o princípio da permanência da substância, ou da determinação necessária dos acontecimentos do mundo por suas causas. Se não consegue isto (o silêncio é confissão), deve convir que, como a metafísica nada é sem a certeza apodítica desta espécie de proposições, a possibilidade ou impossibilidade das mesmas deve ser verificada, antes de tudo, numa crítica da razão pura, por conseguinte, ele se vê obrigado, ou a confessar que meus princípios da crítica estão certos, ou a demonstrar que não têm valor. Mas, como já antevejo que, embora até o presente ele se tenha abandonado à certeza de seus princípios, todavia, como se trata de uma prova rigorosa, ele não conseguirá encontrar, em todo o âmbito da metafísica, um único princípio que permita sua apresentação confiante, concedo-lhe, portanto, a mais vantajosa condição possível de ser esperada num debate, a saber, dispensá-lo do onus probandi e tomá-lo a meu encargo. Ele encontra nestes Prolegômenos e na minha Crítica, pp. 426-461, oito proposições que sempre se contradizem duas a duas, mas cada uma delas necessariamente pertence à metafísica, que deve ou aceitá-la ou refutá-la (se bem que nenhuma delas deixou de ser admitida por algum filósofo em sua época). Ora, ele tem a liberdade de escolher uma destas oito proposições a seu gosto e aceitá-la sem a demonstração com que o presenteio; mas só uma (pois ele pode perder tão pouco tempo como eu) e só então atacar a demonstração da contraproposição. Se eu conseguir salvá-la e mostrar desta maneira que, segundo princípios necessariamente aceitos por toda a metafísica dogmática, é da mesma forma fácil de demonstrar justamente o contrário da proposição por ele adotada, ficará assim provado que há um vício de origem na metafísica, o qual não pode ser esclarecido nem afastado, a não ser que se remonte à sua origem, ou seja, à razão pura; assim, minha crítica deve ser ou aceita ou substituída por outra; que seja, pois, ao menos estudada; isto é tudo o que exijo no momento. Mas se ao contrário, não consigo salvar minha demonstração, então está seguramente ao lado de meu adversário uma proposição sintética a priori, derivada de princípios dogmáticos, e que era, portanto, injusta minha acusação à metafísica comum, obrigo-me, pois, a reconhecer como legítimo o juízo desfavorável à minha Crítica (embora esta não devesse ser a consequência). Para tanto seria necessário, parece-me, sair do incógnito, pois não sei como poderia evitar, em vez de resolver uma questão, ser honrado ou atacado por adversários anônimos e, por cúmulo, incompetentes. Proposta para uma investigação da crítica, à qual pode suceder o juízo. Também sou grato ao público erudito pelo silêncio com que foi por muito tempo honrada a minha Crítica; pois prova uma suspensão do juízo e, portanto, alguma suposição que numa obra que, abandonando todos os caminhos habituais, volta-se para um novo, o qual não se pode encontrar imediatamente, haja realmente algo capaz de dar nova vida e fecundidade a um ramo importante, mas hoje morto, dos conhecimentos humanos, por conseguinte, uma cautela tomada para não quebrar ou destruir por nenhum juízo precipitado um enxerto ainda tenro. Uma prova de um juízo por tais motivos foi agora publicada no jornal Gothaische gelehrten Zeitung, cuja profundidade (sem levar em consideração meu elogio suspeito) pode ser verificada por qualquer leitor a partir da apresentação clara e fiel de um dos primeiros princípios pertencentes à minha obra. Proponho, pois, já que um vasto edifício não pode ser julgado em seu todo por uma rápida apreciação, examiná-lo a partir de seus alicerces, e isso pouco a pouco, e que, portanto, utilize estes Prolegômenos como um plano geral, com o qual a própria obra poderá ser oportunamente comparada. Se esta exigência não tivesse por fundamento senão minha presunção de importância, que a vaidade habitualmente confere a todas as nossas produções, seria imodesta e mereceria ser rejeitada com indignação. Porém, as coisas de toda a filosofia especulativa estão em tal pé que esta se encontra ameaçada de extinção, embora a razão humana se pendure a ela com inclinação inextinguível, que agora, por ser constantemente enganada, tenta, embora em vão, transformar-se em indiferença. Não se pode supor, em nossa era de reflexão, que não haja muitos homens de mérito dispostos a aproveitar toda oportunidade para colaborarem em favor do interesse comum da razão no caminho do esclarecimento, contanto que haja uma única esperança de chegar assim ao objetivo. A matemática, a ciência da natureza, as leis, as artes e mesmo a moral, etc., não preenchem totalmente a alma; permanece nela sempre um espaço vazio destinado exclusivamente à razão pura e especulativa, vácuo este que nos obriga a procurar em bagatelas, frivolidades ou devaneios, segundo a aparência, ocupação e passatempo, na realidade, porém, apenas distração para abafar o apelo importuno da razão que, em conformidade com sua determinação, exige algo que a satisfaça por si mesma e não para agir em prol de outros fins ou no interesse das inclinações. Pelo que uma meditação que se ocupe apenas com o âmbito da razão existente por si mesma, justamente porque neste domínio todos os outros conhecimentos e mesmo todos os outros fins devem se encontrar e unir numa totalidade, como o supus com fundamento, em grande atrativo para todos aqueles que tentaram ampliar seus conceitos e, eu posso muito bem dizer, um atrativo bem maior que qualquer outro saber teórico de valor muito mais baixo do daquele. Proponho estes Prolegômenos como plano e fio condutor da investigação no lugar da própria obra, porque, embora esteja ainda hoje plenamente satisfeito com o que se refere ao conteúdo, à ordem, ao método e ao cuidado aplicados a cada proposição a fim de ponderá-la e examiná-la bem, antes de expô-la (pois foram necessários anos para que ficasse inteiramente satisfeito não só com o todo, mas também com uma única proposição em relação a suas fontes), todavia não me satisfaz de todo minha exposição em algumas seções da "Doutrina Elementar", por exemplo, na da dedução dos conceitos do entendimento, ou na dos paralogismos da razão pura, onde certa prolixidade prejudica a clareza, em lugar das quais se poderá tomar como base do exame o que os Prolegômenos dizem a respeito. Os alemães gozam da fama de conseguirem ir além dos outros povos naquilo que exige perseverança e paciente aplicação. Se esta opinião tem fundamento, surge aqui uma oportunidade de levar a efeito uma tarefa de cujo término feliz é difícil de duvidar, que interessa igualmente a todos os homens que pensam, o que até agora não havia sido bem sucedido, e corroboraria aquela opinião lisonjeira; principalmente porque a ciência em questão é de espécie tão particular que pode de um só golpe ser levada à sua inteira completude e assim aquele estado de estabilidade que não admite progresso posterior, nem descobertas posteriores, nem tampouco pode ser mudada (não considero aqui o enfeite resultante, de quando em quando, de maior clareza ou de adições proveitosas sob todos os aspectos), uma vantagem que nenhuma outra ciência possui, nem pode possuir, porque nenhuma diz respeito a um poder do conhecimento tão inteiramente isolado, independente de outros e tão imune de qualquer mistura. Também não me parece de todo desfavorável o momento presente à minha pretensão, pois atualmente na Alemanha quase ninguém sabe com que se poderia ocupar a não ser com as assim chamadas ciências úteis, de modo que não se trata apenas de um passatempo, mas de ocupação séria com a qual pode ser alcançado um objetivo duradouro. Devo, porém, deixar a outros a tarefa de encontrar os meios de unir os esforços dos eruditos para tal objetivo. Não que pretenda impor a quem quer que seja uma simples adesão às minhas proposições ou que me lisonjeie com esta esperança, mas poderiam sobrevir ataques, repetições, limitações ou também confirmação, complementação e ampliação; se a coisa é investigada a partir do fundamento, não pode mais faltar agora o surgimento de um edifício, mesmo que não o meu, o que poderá ser um legado para os vindouros, ao qual terão motivos de serem gratos. Seria muito extenso de se mostrar aqui, depois de terem sido considerados os princípios da crítica, que espécie de metafísica se poderia esperar aqui em consequência daquela, e como esta não deve sentir-se de modo algum pobre e reduzida a uma pequena figura, só por ter sido despojada das falsas penas, senão que pode, sob outro ponto de vista, aparecer rica e convenientemente ornamentada; saltam imediatamente aos olhos outras grandes vantagens que tal reforma acarretaria. A metafísica comum já tinha certa utilidade ao procurar os conceitos elementares do entendimento puro, para torná-los claros por desmembramento e determinados por explicações. Com isso ela era uma cultura para a razão, qualquer que fosse a direção por onde enveredasse ulteriormente; somente isto era todo o bem que fazia. Mas destruiu este seu mérito novamente ao favorecer com afirmações gratuitas a presunção, estimular a sofistica por subterfúgios sutis e a superficialidade com que tratava as mais difíceis tarefas, valendo-se de uma sabedoria de escola, a qual é tanto mais sedutora quanto mais se encontra em situação de participar, de um lado da linguagem da ciência, e de outro lado, da popularidade, parecendo ser tudo para todos, mas na verdade não é nada. Pela crítica, ao contrário, é dado o critério ao nosso juízo, pelo qual é possível distinguir com segurança o saber do saber ilusório e, quando aplicado sem reservas na metafísica, fundamenta uma maneira de pensar, capaz de se estender beneficamente aos demais usos da razão e de influenciar pela primeira vez os genuínos espíritos filosóficos. Mas também o serviço por ela prestado à teologia não deve ser subestimado, pois libertou-a do juízo da especulação dogmática e justamente por isso colocou-a inteiramente em segurança contra os ataques de tais adversários. Pois a metafísica comum, embora lhe assegurasse muito apoio, não pôde cumprir mais tarde esta promessa, e, por chamar em sua ajuda a dogmática especulativa, nada mais fez a não ser armar seus inimigos contra si mesma. As aberrações, que não podem surgir numa época esclarecida a não ser ocultando-se por detrás de uma metafísica de escola, sob cuja proteção podem atrever-se a delirar com razão, são afastadas deste último reduto pela filosofia crítica, e, além disso tudo, não deixa de ser importante para um professor de metafísica poder dizer, com aplauso geral, que o que ele expõe é, afinal, também uma ciência e, portanto, de real utilidade para todos.