Immanuel Kant – A Religião Dentro dos Limites da Simples Razão PRIMEIRA PARTE DA DOUTRINA FILOSÓFICA DA RELIGIÃO DA INERÊNCIA DO MAU PRINCÍPIO AO LADO DO BOM OU SOBRE O MAL RADICAL NA NATUREZA HUMANA Que o mundo vai de mal a pior é uma queixa tão velha como a história, ou mesmo como a velha arte poética, tão velha quanto a mais velha entre todas as poesias, a religião dos sacerdotes. Todas deixam o mundo começar, da mesma maneira, a partir do bem: da época áurea, da vida no paraíso, ou de uma ainda mais feliz em comunidade com seres divinos. Mas esta felicidade deixam desaparecer em breve como um sonho; e apressam, então, a decadência para o mal (o moral, com o qual o físico anda sempre em pares iguais) com uma queda acelerada: tanto que agora (este agora é tão velho quanto a história) vivemos na última época, em que o último dia e a ruína do mundo se aproximam, e em algumas regiões do Industão o juiz do mundo e destruidor Ruttren (também chamado Siba ou Siwen) é agora louvado como Deus poderoso, depois que o amparo do mundo Wischnu, cansado, renunciou a seu cargo, depois de séculos, cargo este que assumira em lugar do criador do mundo Brahma. Mais nova, mas não tão difundida, é a opinião heroica contrária, que só encontrou um lugar entre os filósofos e, em nossa época, principalmente entre os pedagogos: que o mundo, ininterruptamente, move-se justamente na direção contrária, a saber, do mal para o melhor (apesar de imperceptivelmente), que pelo menos a disposição para isto é encontrada na natureza humana. Mas esta opinião não tiraram certamente da experiência, quando se fala do moralmente bom ou mau (não da civilização); pois aí fala a história de todos os tempos contra ela; porém é, decerto, um pressuposto benévolo dos moralistas, de Sêneca a Rousseau, para estimular o cultivo infatigável do germe, que talvez esteja em nós, para o bem, se para isso se pudesse contar com uma base natural no homem. A isso se acrescentaria ainda: que, como devemos considerar o homem (como ele comumente é concebido) por natureza sadio, segundo o corpo, não há uma causa para não considerá-lo, segundo a alma, também por natureza sadio e bom. Que a própria natureza nós ajude a formar em nós esta disposição moral para o bem. Sanabilibus aegrotamus malis, nosque in rectum genitos natura, si sanari velimus, adiuvat, diz Sêneca. Mas porque poderia muito bem acontecer que nos tivéssemos enganado na experiência dada a ambos, surge então a pergunta: não seria pelo menos um meio-termo possível, a saber, não poderia ser o homem em seu gênero nem bom, nem mau, ou, em todo caso, tanto um como o outro, em parte bom, em parte mau? - Não se diz, porém, que um homem é mau porque pratica ações más (contrárias à lei), mas porque elas são de tal maneira constituídas que deixam entrever máximas más nele existentes. Ora, podem-se notar ações contrárias à lei pela experiência, também (pelo menos em si mesmas), que são conscientemente ilegais; mas não podemos observar as máximas, nem mesmo em si mesmas, nem por conseguinte, fundar com segurança na experiência o juízo de ser réu um homem mau. Dever-se-ia, portanto, deduzir de algumas, ou melhor, de uma única má ação consciente, a priori a respeito de uma máxima fundamentalmente má e a partir desta a respeito de um fundamento, inerente ao sujeito em geral, de todas as máximas moralmente más, fundamento este que por sua vez é máxima, a fim de chamar um homem de mau. Mas para não se tropeçar imediatamente na expressão natureza, a qual, se devesse significar (como o faz comum ente) o contrário do fundamento das ações a partir da liberdade, estaria justamente em contradição com os predicados moralmente bom ou mau; é então de se notar que aqui se entende sob natureza do homem apenas o fundamento subjetivo do uso de sua liberdade em geral (sob leis morais objetivas), que antecede todo ato que cai nos sentidos; este fundamento pode estar onde quiser. Mas este fundamento subjetivo deve ser sempre ele mesmo um ato da liberdade (do contrário, o uso ou abuso do arbítrio do homem, com relação à lei moral, não poderiam ser-lhe imputados, nem o bem ou o mal nele poderiam ser, qualificados de moral). Por conseguinte, o fundamento do mal não poderá ser encontrado em nenhum objeto determinante do arbítrio por inclinação, nem num instinto natural, mas somente numa regra, que o arbítrio fornece a si mesmo para o uso de sua liberdade, isto é, numa máxima. Desta nada mais deve ser perguntado a respeito do fundamento subjetivo de sua aceitação no homem, nem tampouco a respeito das máximas opostas. Pois, se finalmente este fundamento não fosse mais uma máxima, mas um simples instinto natural, o uso da liberdade poderia agora remontar inteiramente a uma determinação por coisas naturais, o que, porém, a contradiz. Donde que quando dizemos: o homem é bom por natureza, ou que ele é mau por natureza, isto significa somente que ele contém um princípio primeiro (Que o primeiro fundamento subjetivo da aceitação de máximas morais seja insondável, podemos por enquanto perceber pelo fato de esta aceitação ser livre e o fundamento da mesma (porque, por exemplo, aceitei uma máxima má e não, muito antes, uma boa) não deve ser procurado no motivo da natureza, mas sempre numa máxima; e como isto também deve ter seu fundamento e que fora da máxima não se deve, nem se pode indicar qualquer fundamento de determinação do livre arbítrio, é-se sempre reenviado mais longe, até ao infinito, na série dos fundamentos de determinação subjetivos, sem poder chegar ao primeiro fundamento. Nota do Autor) (insondável para nós) de aceitação de boas ou de aceitação de más máximas (contrárias à lei), e isto universalmente como homem, por conseguinte, de maneira que expressa por ela também o caráter de sua espécie. Diremos, pois, de um destes caracteres (da distinção do homem de outros entes racionais possíveis): é inato a ele; mas nos resignaremos sempre ao fato de que não é a natureza a culpada (se ele é mau), nem tem o mérito (se ele é bom), mas que o próprio homem é o autor disto. Mas, como o primeiro fundamento da aceitação de nossas máximas, que deve, por sua vez, estar sempre no livre arbítrio, não pode ser um fato que poderia ser dado na experiência, o bem ou o mal no homem (como o subjetivo primeiro princípio da aceitação desta ou daquela máxima, com vistas à lei moral) é inato apenas no sentido, que o põe como fundamento antes de todo o uso da liberdade dado na experiência (da primeira juventude remontando ao nascimento), e que é representado como existente no homem desde seu nascimento e não que o nascimento seja justamente a causa disto. Observação O conflito das duas hipóteses apresentadas tem como fundamento uma proposição disjuntiva: o homem é (por natureza) moralmente bom ou moralmente mau. Mas é fácil a cada um perguntar se esta disjunção é exata e se alguém não poderia afirmar que o homem, por natureza, não é nenhuma destas duas coisas, outro, porém: ele é ambas ao mesmo tempo, a saber, em algumas partes bom, em outras mau. A experiência parece comprovar este meio-termo entre os dois extremos. Entretanto, importa muito à doutrina dos costumes em geral não concordar com nenhum meio-termo moral, nem em ações (adiaphora), nem em caracteres humanos, dentro da medida do possível; porque em tal ambiguidade todas as máximas correm o risco de perder sua determinação e solidez. Comumente denominamos aqueles que estão vinculados a está severa maneira de pensar (denominação que deve exprimir uma censura, mas que na verdade é um elogio): rigoristas; quanto a seus antípodas, podemos denominar latudinários. Estes são, pois, ou latudinários da neutralidade, e podem ser denominados indiferentistas, ou da coalizão, e podem ser denominados sincretistas. (Se o bem = a, o que se lhe opõe contraditoriamente é o não bem. Este é, pois, o resultado da simples carência de um fundamento do bem = O, ou de um fundamento positivo de seu contrário = -a. No último caso, o não bem pode chamar-se mal positivo. (Com vistas ao prazer e à dor, existe um meio-termo, assim que o prazer = a, a. dor = -a e o estado, onde nenhum dos dois é encontrado, a indiferença, = O.) Ora, se a lei moral em nós não fosse um motivo do arbítrio, então seria (harmonia do arbítrio com a lei) = a, o não bem = O, isto é, porém, a mera consequência da falta de um motivo moral = a x O. Ora, há em nós um motivo = a; consequentemente, a falta de acordo do arbítrio com o mesmo (=0) não é possível senão como consequência duma determinação, em realidade contrária, do arbítrio, isto é, uma repugnância da mesma = -a, isto é, somente por um mau arbítrio; entre uma boa e uma má intenção (princípio interno das máximas), segundo a qual também deve ser julgada a moralidade da ação, não há meio-termo. Uma ação moralmente indiferente (adiaphoron morale) seria meramente uma ação resultante de leis naturais, que não estão em qualquer relação com a lei moral, como lei da liberdade, enquanto não é um fato e em relação a si não acontece, nem é necessária, nem como mandamento, nem como proibição, nem mesmo como permissão (autorização legal). Nota do Autor). A resposta à questão precedente, segundo a maneira rigorista de decidir, (O Professor Schiller julga desfavoravelmente em sua dissertação redigida magistralmente (Thalia, 1793. 3ª parte) sobre a graça e a dignidade na moral desta maneira de representação da amabilidade, como que comportando uma mentalidade de cartuxo; todavia não posso, no momento em que estamos de acordo sobre os princípios mais importantes, admitir um desacordo quanto a isto. - Concordo com prazer que ao conceito de dever não posso associar nenhuma graça, justamente por sua dignidade. Pois ele contém uma obrigação incondicional, com a qual a graça está diretamente em oposição. A majestade da lei (semelhante à de Sinai) inspira o respeito (não medo que repulsa, nem charme que convida à familiaridade) que excita a consideração do subordinado contra seu mestre e, neste caso, como este está em nós o sentimento do sublime de nossa própria determinação, o que nos entusiasma mais que toda a beleza. - A virtude, todavia, isto é, a intenção bem fundamentada, de cumprir exatamente seu dever e, em suas consequências igualmente benfeitora, mais do que tudo que podem produzir no mundo a natureza ou a arte; e a magnífica imagem da humanidade, apresentada nesta sua forma, tolera muito bem a corte das graças, que, porém, mantém-se respeitosamente à distancia, quando se trata apenas da questão do dever. Todavia, se considerarmos as graciosas consequências que a virtude espalharia no mundo, se encontrasse em todo lugar acolhida, neste caso, a razão que dirige a moral coloca também no seu jogo a sensibilidade (por meio da imaginação). Só depois de ter domado os monstros é que Hércules torna-se Musaget, diante destes trabalhos suas boas irmãs recuam frementes. Estas companheiras de Venus Urania são cortesãs no cortejo da Venus Dione, tão logo se imiscuem no problema de determinação do dever e queiram dar os motivos para isto. - Ora, se perguntamos: de que espécie é a constituição estética, como o temperamento da virtude, corajoso, portanto, alegre, ou abatido pelo medo e desencorajada? Assim mal é necessária uma resposta. A última disposição servil do ânimo não pode nunca acontecer senão com um ódio secreto à lei e o coração alegre no seguimento de seu dever (não a comodidade em reconhecimento à mesma) é um sinal da autenticidade da intenção virtuosa, mesmo na devoção que não consiste na mortificação que o pecador arrependido inflige a si mesmo (a qual é dúbia e comumente apenas reprovação interior por ter transgredido a regra de prudência), mas na firme resolução de fazê-lo melhor no futuro, encorajada pelos bons resultados, ela pode fazer nascer uma intenção alegre no ânimo, sem a qual não se sabe jamais se se ganhou afeição pelo bem, isto é, tê-lo aceito em sua máxima. Nota do Autor). funda-se na observação importante para a moral: a liberdade do arbítrio é de uma constituição tão particular que ela não pode ser determinada à ação por nenhum motivo, a menos que o homem a tenha admitido em sua máxima (tornando-a para si regra universal, segundo a qualquer comportar-se); só assim pode um motivo, seja ele qual for, coexistir com a absoluta espontaneidade do arbítrio (da liberdade). Somente a lei moral é motivo para si mesma no julgamento da razão, e quem fizer dela sua máxima é moralmente bom. Mas se a lei não determina o arbítrio de alguém com vistas a uma ação que se relacione com esta lei, então deve um motivo contrário a ele ter influência sobre seu arbítrio; e como isto só pode acontecer pelo pressuposto de o homem admitir este motivo (por conseguinte, também o desvio da lei moral) em sua máxima (em tal caso ele é um homem mau), sua intenção com vistas à lei moral não é nunca indiferente (jamais nenhum dos dois nem bom, nem mau). Mas ele tampouco pode ser em algumas partes moralmente bom e noutra ao mesmo tempo mau. Pois, se ele é uma parte bom, então admitiu em sua máxima a lei moral; se fosse ao mesmo tempo numa outra parte mau, como a lei moral do seguimento do dever em geral é uma única e universal, seria universal a máxima com ela relacionada, mas ao mesmo tempo apenas uma máxima particular, o que se contradiz. (Os velhos filósofos morais, que esgotaram quase tudo o que pode ser dito a respeito da virtude, também nunca deixaram intocáveis as duas perguntas acima. A primeira expressaram assim: se a virtude deve ser aprendida (isto é, o homem é por natureza indiferente ao vício e à virtude)? A segunda era: se existe mais do que uma virtude (por conseguinte, se não acontecia algo que fizesse do homem em parte virtuoso, em parte vicioso)? Ambas foram negadas por eles com rigorosa certeza e com razão, pois consideravam a virtude em si na ideia da razão (como o homem deve ser). Mas quando se quer julgar moralmente este ente moral, o homem, no fenômeno, isto é, como a experiência nos faz conhecê-lo, então ambas as perguntas apresentadas podem ser respondidas afirmativamente, pois aí ele não é julgado sobre a balança da razão pura (diante de um tribunal divino), mas segundo medidas empíricas (diante de um juiz humano). O que será ainda tratado a seguir. (Nota do Autor). Possuir por natureza uma ou outra intenção como constituição inata não significa aqui que ela não possa ser adquirida pelo homem que a cultiva, isto é, que ele não seja o autor, mas que ela não é apenas adquirida no tempo (que o homem é um ou outro desde sua juventude e sempre). A intenção, isto é, o primeiro fundamento subjetivo da aceitação das máximas, só pode ser uma única e se refere universalmente a todo o uso da liberdade, Ela própria, entretanto, deve ter sido admitida por livre arbítrio, pois do contrário não poderia ter sido imputada. Desta aceitação não pode ser conhecido o fundamento subjetivo ou a causa (apesar de ser inevitável a sua busca; porque do contrário deveria ser produzida uma máxima, na qual fosse admitida esta intenção, que por sua vez também deve ter um fundamento). Como não podemos derivar esta intenção, ou melhor, seu fundamento supremo, de qualquer ato primeiro do arbítrio no tempo, então a denominamos uma constituição do arbítrio que vem a ele por natureza (apesar de ele, na verdade, estar fundado na liberdade). Que nos seja permitido entender por homem, do qual dizemos ser por natureza bom ou mau, não um indivíduo singular (pois que um poderia ser considerado bom e outro mau por natureza), mas toda a espécie, só pode ser demonstrado mais adiante, quando a investigação antropológica mostrar que os fundamentos que nos autorizam a atribuir a um homem um dos dois caracteres como inato .são de tal modo constituídos que não há fundamento em excluir um homem, e vale, portanto, para a espécie. I. Da disposição original para o bem na natureza humana Podemos colocá-la, em relação a seu fim, muito bem em três classes, como elementos da determinação do homem: 1) a disposição do homem à animalidade, como ente vivo; 2) sua disposição à humanidade, como ente vivo e ao mesmo tempo racional; 3) à sua personalidade, como ente racional e ao mesmo tempo responsável. (Não se pode considerar esta disposição como contida no conceito da anterior, mas se deve considerá-la necessariamente uma disposição particular. Pois segue-se daí que um ente possui razão e de modo nenhum que esta contém um poder para determinar incondicionalmente arbítrio pela simples representação da qualificação de suas máximas para a legislação universal e, por consequência, para ser prática para si mesma: pelo menos tanto quanto podemos entender. O mais racional entre todos os entes do mundo poderia necessitar, entretanto, sempre de certos motivos, que vêm a ele dos objetos da inclinação, para determinar seu arbítrio, mas aplicar, além disso, a mais racional reflexão, bem como o que se refere à maior soma de motivos e também os meios, a fim de alcançar, assim, o objetivo determinado, sem nem sequer pressentir a possibilidade de algo como é a lei moral que ordena absolutamente o que se anuncia como o próprio, e mesmo supremo, motivo. Se esta lei não estivesse dada em nós, não a produziríamos, como tal, por nenhuma sutileza da razão, nem a imporíamos ao arbítrio: e no entanto esta lei é a única coisa que nos torna conscientes da independência de nosso arbítrio da determinação por intermédio de todos os outros motivos (de nossa liberdade) e com isto, ao mesmo tempo, da capacidade de imputação de todas as nossas ações. Nota do Autor). 1) A disposição para a animalidade no homem pode ser colocada sob o título geral de amor-próprio físico e meramente mecânico, isto de um que não exige razão. Esta é tripla: em primeiro lugar, para a conservação de si próprio; em segundo lugar, para a propagação da espécie pelo instinto sexual, e para a conservação do que é procurado por esta união; em terceiro lugar, para a comunidade com outros homens, isto é, o instinto de sociedade. - Nesta disposição, podem ser enxertados todos os tipos de vícios (mas não os que provêm espontaneamente daquela disposição como de uma raiz). Eles podem ser denominados vícios da grosseria da natureza e são chamados, no maior desvio do fim da natureza, vícios bestiais: a gula, a volúpia e a anarquia selvagem (em relação com os outros homens). 2) As disposições para a humanidade podem ser postas, na verdade, sob o título de amor-próprio físico, mas comparativo (para o que é necessária a razão); a saber, julgar-se feliz ou infeliz apenas pela comparação com os outros. Dele é que provém a inclinação de se granjear certo valor na opinião de outros; originariamente, sem dúvida, somente um valor de igualdade: não conceder a ninguém superioridade, ligada a uma constante preocupação, que outros a ambicionem; donde resulta, pouco a pouco, uma ânsia injusta de adquiri-Ia para si por sobre os outros. - Sobre isto, a saber, sobre ciúme e rivalidade, podem ser enxertados os maiores vícios de hostilidades patentes e secretas contra todos que consideramos estranhos; estas inclinações não provêm, na realidade, espontaneamente da natureza como sua raiz, mas do temor que temos de que outros tentem adquirir sobre nós uma superioridade que nos é odiosa, inclinações estas que nos fazem procurar como medida de precaução, em razão da segurança, a superioridade sobre os outros, já que a natureza somente poderia precisar da ideia de tal rivalidade (que não exclui em si o amor recíproco) como motivo para a cultura. Os vícios, enxertados nesta inclinação, podem por isso ser chamados de vícios da cultura, denominados, no mais alto grau de maldade (já que são apenas a ideia de uma máxima do mal que ultrapassa a humanidade), vícios diabólicos, por exemplo, a inveja, a ingratidão, a alegria proveniente do mal de outrem, etc. 3) A disposição para a personalidade é a suscetibilidade ao respeito para com a lei moral, como um motivo para si suficiente do arbítrio. A suscetibilidade ao simples respeito para com a lei moral em nós seria o sentimento moral, o qual ainda constitui para si um fim da disposição da natureza, porém apenas enquanto motivo do arbítrio. Mas como este somente é possível ao ser admitido pelo livre arbítrio em sua máxima, assim é constituição de tal arbítrio o bom caráter, o qual, como em geral todo caráter do livre arbítrio, é algo, que unicamente pode ser adquirido, para cuja possibilidade, entretanto, deve haver uma disposição em nossa natureza, sobre a qual não pode ser enxertado nada de mau. Não se pode denominar disposição para a personalidade só a ideia da lei moral com o respeito inseparável dela; ela é a própria personalidade (a ideia de humanidade considerada de um ponto de vista totalmente intelectual). Mas como aceitamos este respeito para com o motivo em nossas máximas, parece que o fundamento subjetivo para isto é um acréscimo para a personalidade e merece por esta razão o nome de disposição em seu proveito. Se considerarmos as três citadas disposições segundo as condições de sua possibilidade, encontraremos que a primeira não tem qualquer gênero de razão por raiz, que a segunda, é verdade, tem por raiz a razão prática, subordinada apenas a outros motivos, só a terceira tem como raiz a razão prática para si mesma, isto é, incondicionalmente legisladora. Todas estas disposições no homem não são apenas (negativamente) boas (não se opõem à lei moral), mas também disposição para o bem (elas promovem o seguimento do mesmo). Elas são originais, pois pertencem à possibilidade da natureza humana. O homem, é verdade, pode precisar das duas primeiras inoportunamente, mas não pode exterminar nenhuma das mesmas. Sob disposição de um ente entendemos tanto as partes constituintes necessárias como as formas de sua conjunção para ser tal ente. São originais se pertencem necessariamente à possibilidade de tal ente; mas contingentes se o ente fosse possível sem as mesmas. Deve-se ainda observar que não falamos aqui de outras disposições que não as que se relacionam imediatamente com o poder de apetição e com o uso do arbítrio. II. Da propensão para o mal na natureza humana Por propensão (propensio) entendo o fundamento subjetivo da possibilidade de uma inclinação (apetite habitual, concupiscentia), enquanto contingente para a humanidade em geral. (Propensão é, na verdade, apenas a predisposição para o desejo de um prazer que, quando o sujeito tiver feito a experiência disto, produz inclinação para tal. Assim, todos os homens rudes têm uma propensão às coisas embriagadoras; pois, apesar de muitos deles não conhecerem a embriaguez, e, portanto, não terem nenhum desejo pelas coisas que a provocam, é suficiente que os deixemos prová-las apenas uma vez para despertar neles um desejo difícil de ser exterminado. - Há ainda entre a propensão e a inclinação, a qual pressupõe um conhecimento com o objeto do desejo, o instinto, que é uma necessidade de fazer ou gozar algo, do qual ainda não se tem um conceito (como o impulso habilidoso nos animais, ou impulso sexual). A partir da inclinação há, finalmente, ainda um grau do poder do desejo, a paixão (não o afeto, pois este pertence ao sentimento do prazer e do desgosto), que é uma inclinação que exclui o domínio sobre si mesma. Nota do Autor). Ela distingue-se de uma disposição por poder ser inata, mas não deve ser representada como tal, mas também como adquirida (quando é boa), ou (quando é má) como contraída pelo próprio homem. Trata-se aqui, porém, da propensão para o mal propriamente dito, isto é, para o mal moral; ora, como ela não é possível senão como determinação do livre arbítrio e, por outro lado, este só pode ser julgado bom ou mau por suas máximas, deve consistir no fundamento subjetivo da possibilidade de desviar-se das máximas da lei moral e, se esta propensão deve ser admitida como universal para o homem (portanto, como caráter de sua espécie), será denominada propensão natural do homem para o mal. - Pode-se ainda acrescentar que a capacidade ou a incapacidade do arbítrio provenientes da propensão natural de aceitar a lei moral em sua máxima, ou não, podem ser chamadas de bom ou mau coração. Podemos pensar em três diferentes graus da propensão. Em primeiro lugar, é a fraqueza do coração humano em seguir máximas adotadas em geral, ou a fragilidade da natureza humana; em segundo lugar, a propensão para a mistura de motivos imorais com morais (mesmo quando em boa intenção e sob o nome de máximas do bem), isto é, a impureza; em terceiro lugar a propensão para a aceitação de máximas más, isto é, maldade da natureza humana ou do coração humano. Em primeiro lugar, a fragilidade (fragilitas) da natureza humana está expressa mesmo na queixa de um apóstolo: vontade é certo que tenho, mas falta a realização, isto é, acolho o bem (a lei) na máxima de meu arbítrio; mas este bem, que na ideia (in thesi) é objetivamente um motivo invencível, é subjetivamente (in hypothesi), quando a máxima deve ser seguida, o mais fraco (em comparação com a inclinação). Em segundo lugar, a impureza (impuritas, improbitas) do coração humano consiste em que a máxima, segundo o objeto (seguimento intencional da lei), é sem dúvida boa e talvez até suficientemente enérgica para a execução, mas não moralmente pura, isto é, não como deveria ser, acolhendo em si mesma só a lei como motivo suficiente, mas necessita, na maior parte do tempo (talvez sempre), de outros motivos para determinar por eles o arbítrio com vistas do que o dever exige. Com outras palavras, as ações conformes ao dever não são executadas, puramente por dever. Em terceiro lugar, a maldade (vitiositas, pravitas), ou, se se preferir, a corrupção (corruptio) do coração humano, é a propensão do arbítrio para as máximas que coloquem os motivos da lei moral depois de outros (não morais). Pode também ser chamada de perversidade (perversitas) do coração humano, porque inverte a ordem moral com vistas aos motivos de um livre arbítrio, e, mesmo que assim possam ainda subsistir ações legalmente boas (legais), a maneira de pensar fica pervertida em sua raiz (no que se refere à intenção moral), e por esta razão o homem é designado mau. Notar-se-á que a propensão para o mal é aqui atribuída ao homem, mesmo ao melhor (de acordo com as ações), o que deve acontecer se deve ser demonstrada a universalidade da propensão para o mal entre os homens, ou, o que aqui significa o mesmo, que o mal é entrelaçado à natureza humana. Não há diferença (pelo menos não deve haver) entre um homem de bons costumes (bene moratus) e um homem moralmente bom (moraliter bonus) no que concerne à concordância das ações com a lei; só que num as ações não possuem sempre, talvez nunca, a lei por motivo único e supremo, enquanto que no outro o possuem sempre. Do primeiro pode-se dizer: ele segue a lei segundo a letra (isto é, no que se refere à ação, que a lei ordena); do segundo, entretanto: ele a observa segundo o espírito (o espírito da lei moral consiste unicamente no fato de esta lei ser suficiente para o motivo). O que não acontece a partir desta fé é pecado (relativamente à maneira de pensar). Pois se outros motivos que a própria lei são necessários para determinar o arbítrio às ações conformes à lei (por exemplo, a ambição, o amor-próprio em geral, mesmo um instinto benevolente como a piedade), então é apenas contingente a concordância destas ações com esta lei, pois estas poderiam muito bem impelir à transgressão. A máxima segundo cuja bondade todo o valor moral da pessoa de ser apreciado é, por consequência, contrária à lei, e o homem, mesmo que pratique apenas boas ações, é sempre mau. A explicação que se segue é necessária para determinar o conceito desta propensão. Toda a propensão é, ou física, isto é, pertence ao arbítrio do homem como ente natural, ou moral, isto é, pertence ao arbítrio do mesmo como ente moral. - No primeiro sentido, não há propensão para o mal moral, pois este deve resultar necessariamente da liberdade; uma propensão física (fundada sobre os impulsos sensíveis) para um uso qualquer da liberdade, seja para o bem ou para o mal, é uma contradição. Assim, uma propensão ao mal só pode ser vinculada ao poder moral do arbítrio. Ora, nada é moralmente mau (isto é, imputável) que não seja nosso próprio ato. Ao contrário, entende-se pelo conceito de uma propensão um fundamento subjetivo de determinação do arbítrio, anterior a qualquer ato, por conseguinte, não é ainda um ato; como no conceito de uma simples propensão para o mal haveria uma contradição, se esta expressão não pudesse ser tomada de qualquer maneira em duas significações diferentes todas as duas conciliáveis com o conceito de liberdade. Donde a expressão de um ato em geral pode aplicar-se muito bem àquele uso da liberdade pelo qual a máxima suprema (conforme ou contrária à lei) é acolhida no arbítrio, como também àquele de executar conformem ente a esta máxima as próprias ações (segundo sua matéria, isto é, referente aos objetos do arbítrio). A propensão para o mal é, pois, ato na primeira significação (peccatum originarium) e ao mesmo tempo o fundamento formal de todo ato contrário à lei no segundo sentido, o qual relativamente à matéria se opõe à lei, e é chamado vício (peccatum derivatum); e a primeira falta permanece, mesmo que a segunda (proveniente de motivos que não consistem na própria lei) fosse muitas vezes evitada. A primeira é um ato inteligível conhecível apenas pela razão sem qualquer condição de tempo; a outra é sensível, empírica, dada no tempo (factum phaenomenon). A primeira denomina-se, principalmente em comparação com a segunda, uma simples propensão, inata porque não pode ser extirpada (para isto, com efeito, a máxima suprema deveria ser a do bem, mas naquela mesma propensão é admitida como má); principalmente, porém, porque não podemos explicar por que o mal em nós corrompeu precisamente a máxima suprema, apesar de isso ser nosso próprio ato, nem tampouco podemos indicar a causa de uma propriedade fundamental que pertence à nossa natureza. Encontrar-se-á no que agora foi dito a razão de termos procurado, logo no início desta seção, as três fontes do mal moral unicamente no que, segundo as leis da liberdade, afeta o fundamento supremo em virtude do qual aceitamos ou seguimos nossas máximas e não no que afeta a sensibilidade (como receptividade). III. O homem é mau por natureza Vitiis nemo sine nascitur. (Horácio.) A proposição: o homem é mau não pode querer dizer outra coisa, depois do que a precede, senão: ele tem consciência da lei moral e admitiu em sua máxima o afastamento (ocasional) da mesma. Ele é mau por natureza significa que isto vale para ele considerado em sua espécie; não que tal qualidade pudesse ser deduzida de seu conceito de espécie (de um homem em geral- pois então seria necessária), mas que, na medida em que o conhecemos por experiência, não pode ser julgado de outro modo, ou podemos pressupô-lo como subjetivamente necessário em todo homem, mesmo no melhor. Como esta propensão deve ser ela mesma considerada como moralmente má, por conseguinte, não como disposição da natureza, mas como algo que pode ser imputado ao homem, deve consistir, consequentemente, em máximas do arbítrio contrárias à lei; estas, porém, por causa da liberdade, devem ser consideradas contingentes, o que, por sua vez, não estaria de acordo com a universalidade deste mal se seu fundamento supremo subjetivo de todas as máximas não estivesse, de uma maneira qualquer, entrelaçado com a própria humanidade e como que enraizado nela; poderemos denominar esta propensão uma propensão natural para o mal, e como deve ser sempre ele mesmo culpado, um mal radical, inato na natureza humana (nada menos que por nós próprios contraído ). Ora, que tal propensão perversa deva estar enraizada no homem é um fato para o qual podemos poupar-nos da prova formal, com a quantidade de exemplos gritantes que a experiência nos presenteia nos atos dos homens. Se quisermos tirá-los deste estado, no qual alguns filósofos esperavam encontrar sobretudo a bondade natural da natureza, a saber, do assim chamado estado natural, não temos senão de comparar as cenas de crueldade não provocadas que oferecem os dramas sangrentos de Tofoa, Nova Zelândia, Ilha dos Navegadores e as incessantes cenas dos longínquos desertos ao noroeste da América (citadas pelo capitão Hearne, onde ninguém tira a menor vantagem), (Como a permanente guerra entre os índios Athabascos e Costas de Cão não tem outra intenção que a de matar. Em sua opinião, a bravura guerreira é a suprema virtude dos selvagens. Mesmo no estado civilizado ela é um objeto de admiração e um fundamento de sumo respeito, que aquela classe exige, na qual é o único mérito; e isto não sem todo o fundamento na razão. Pois que o homem possa ter algo e fazer disto um fim, algo este que preza mais que a sua vida (a honra), renunciando a todo o proveito próprio, prova, pois, certa sublimidade em sua disposição. Mas se vê na satisfação com que os vencedores celebram as façanhas (da destruição, da derrubada sem poupar, etc.), que se regalam meramente com sua superioridade e com a destruição que puderam efetuar, sem outro objetivo. Nota do Autor). com aquela hipótese, e temos, então, os vícios de barbárie, mais do que necessários, para nos desviarmos desta opinião. Mas se estamos de acordo com aquela opinião, que a natureza humana se deixa conhecer melhor no estado civilizado (no qual suas disposições podem desenvolver-se mais completamente), ouvir-se-á uma longa e melancólica litania de queixas da humanidade: de falsidade secreta, mesmo na amizade mais íntima, de maneira que uma confiança medida em confidências recíprocas dos melhores amigos é contada como máxima geral de prudência no convívio; de uma propensão para odiar aquele a quem se está obrigado, coisa para a qual deveria estar sempre preparado um benfeitor; de uma boa vontade cordial, que permite a observação: "Há na infelicidade de nosso melhor amigo algo que não nos desagrada de todo"; de muitos outros vícios ocultos sob a aparência de virtude, para não falar de outros que estão mais ocultos, porque consideramos bom aquele que é um homem mau da classe geral; e ele terá vícios suficientes da cultura e da civilização (os mais ofensivos de todos) para desviar, de preferência, os olhos da conduta dos homens, para que não contraia um outro vício, a saber, o ódio pelos homens. Mas se ainda não está satisfeito com isso, só pode levar em consideração o estado exterior dos povos, composto estranho de dois fatores, já que povos civilizados encontram-se contrários uns aos outros em relação ao grosseiro estado natural (ao estudo de guerra permanente), tendo posto firmemente na cabeça não sair jamais daí; e notará que os princípios das grandes sociedades, chamadas Estados, (Se considerarmos esta sua história meramente como o fenômeno da disposição, na maior parte das vezes oculta para nós, interna da humanidade, podemos tomar conhecimento de certa marcha mecânica da natureza, segundo fins que não são seus fins (dos povos), mas fins da natureza. Cada estado almeja, enquanto tem outro a seu lado, o qual pode esperar dominar, engrandecer-se com esta subordinação; almeja, portanto, a monarquia universal, uma Constituição, onde deveria desaparecer toda a liberdade e com ela (o que é a sua consequência) virtude, gosto e ciência. Todavia, este monstro (no qual as leis perdem pouco a pouco sua força), depois de ter devorado todos os vizinhos, desagrega-se, enfim, por si mesmo e divide-se, por intermédio de insurreição e discórdia, em muitos Estados menores que, ao invés de almejarem uma liga de Estados (república de povos livres aliados), iniciam, por sua vez, novamente o mesmo jogo, a fim de não deixar a guerra acabar (este flagelo da espécie humana), se bem que ela não seja tão incuravelmente nefasta como a tumba da tirania universal (ou também uma liga de povos, a fim de não deixar desaparecer o despotismo em nenhum Estado), mas, como dizia um antigo, faz mais homens maus do que os mata. Nota do Autor). contradizem diretamente as alegações públicas que até agora não é possível dividir, e que nenhum filósofo conseguiu pôr em acordo com a moral, nem sugerir melhores (o que é mais grave) que pudessem ser conciliados com a natureza humana; de sorte que o quiliasma filosófico, que almeja um estado de paz perpétua, fundada sobre uma liga de nações como república mundial, é universalmente motivo de riso, como fanatismo, bem como o teológico, que espera uma melhora moral de todo o gênero humano. O fundamento deste mal não pode, pois, 1) ser colocado, como comumente se faz, na sensibilidade do homem e nas inclinações naturais daí derivadas. Pois não só porque elas não têm uma relação direta com o mal (muito antes com o que a intenção moral pode provar em sua força, dão ocasião para a virtude); assim, não devemos ser responsáveis por sua existência (nem o podemos; por serem inatas, não somos nós os autores), mas sim a propensão para o mal, que ao se referir à moralidade do sujeito, por conseguinte, é encontrado nele, como num ente que age livremente, deve poder ser-lhe imputado como sendo sua própria culpa; malgrado a raiz profunda da mesma no arbítrio, contra a qual deve-se dizer que se encontra, por natureza, no homem. - O fundamento deste mal não pode tampouco 2) ser colocado numa perversão da razão moralmente legisladora, mesmo que esta pudesse extirpar a consideração da própria lei e negar a obrigação pura com a mesma; pois isto é inteiramente impossível. Pensar-se um ente que age livremente e mesmo assim desligado da lei que lhe cor responde (da lei moral) seria tanto quanto pensar uma causa agindo sem qualquer lei (pois a determinação segundo leis da natureza fica de lado por causa da liberdade), o que se contradiz. - Para dar, portanto, um fundamento do moralmente mau no homem, a sensibilidade contém muito pouco; pois ela torna o homem meramente bestial, ao retirar os motivos que se podem originar na liberdade; mas uma razão, que libera da lei moral, mas ao mesmo tempo maligna (uma vontade absolutamente maligna), contém, ao contrário, demais, porque mediante isto a oposição à própria lei será elevada a motivo (pois sem qualquer motivo não pode ser determinado o arbítrio) e o sujeito tornar-se-ia um ente diabólico. - Nenhum dos dois é aplicável ao homem. Mas ainda que a existência desta propensão para o mal na natureza humana pudesse ser demonstrada por provas de experiências tiradas da oposição efetiva do arbítrio humano à lei, no tempo, elas não nos ensinariam a verdadeira constituição da mesma e o fundamento desta oposição; porém esta, porque se refere a uma relação do livre arbítrio (portanto, de um, cujo conceito não é empírico) com a lei moral como motivo (no qual o conceito, da mesma maneira, é puramente intelectual), deve ser conhecida a priori do conceito do mal, enquanto possível segundo leis da liberdade (da obrigação e da imputabilidade). O que se segue é o desenvolvimento do conceito. O homem (mesmo o pior) não renuncia, quaisquer que sejam as máximas, a lei moral, nunca de maneira rebelde (com recusa da obediência). Esta impõe-se, muito antes, a ele, de uma maneira irresistível; e se nenhum outro motivo age em contrário, acolhê-la-á também na máxima suprema, como fundamento suficiente de determinação do arbítrio, isto é, ele seria bom moralmente. Todavia, depende também, por causa de sua disposição natural igualmente inocente, dos motivos da sensibilidade e os acolhe (segundo o princípio subjetivo do amor-próprio) em sua máxima. Se, entretanto, os acolhe como suficientes unicamente por si mesmos para a determinação do arbítrio, em sua máxima, sem voltar-se para a lei moral (que ele tem em si), então seria moralmente mau. Mas como admite naturalmente a ambos em sua máxima; como as encontraria, cada um por si, mesmo que fosse só, suficiente para a determinação da vontade, seria ao mesmo tempo bom e mau, se a diferença das máximas dependesse apenas da diferença dos motivos (da matéria das máximas), a saber, se a lei ou o impulso dos sentidos fornecem um tal motivo; o que se contradiz (segundo a introdução). Por consequência, a diferença entre o homem bom e o homem mau deve encontrar-se necessariamente não na diferença dos motivos que eles admitem em suas máximas (não na sua matéria), mas na sua subordinação (sua forma): qual dos dois faz o homem a condição do outro. Por consequência, o homem (mesmo o melhor) só é mau se reverte a ordem moral dos motivos ao acolhê-los em sua máxima; acolhe nas mesmas a lei moral assim como a lei do amor-próprio; todavia, apercebendo-se de que uma não pode subsistir ao lado da outra, mas deve ser subordinada à outra, como à sua condição superior, faz dos motivos do amor-próprio e de suas inclinações a condição de obediência à lei moral, já que muito antes esta última deveria ser acolhida como condição suprema da satisfação das outras na máxima geral do arbítrio, como motivo único. Com esta inversão dos motivos por sua máxima contra a ordem moral, as ações podem, ainda assim, apresentar-se em conformidade com a lei, como se derivassem de um princípio verdadeiro; é quando a razão necessita da unidade das máximas em geral, própria à lei moral, meramente para introduzir nos motivos da inclinação, sob o nome de felicidade, uma unidade das máximas que não voltariam de outra maneira a eles (por exemplo, a veracidade, se fosse aceita por princípio, para evitar a ansiedade de manter a concordância em nossas mentiras e não embrulhar-nos em suas sinuosidades); neste caso, o caráter empírico é bom, mas o inteligível é sempre mau. Ora, se há uma propensão para isto na natureza humana, então há no homem uma propensão natural para o mal; e mesmo esta propensão, que deve ser finalmente procurada no livre arbítrio, e que é, consequentemente, imputável; é moralmente má. Este mal é radical porque corrompe o fundamento de todas as máximas; ao mesmo tempo também, como propensão natural, não pode ser extirpado por forças humanas; porque não poderia ter lugar senão por intermédio de máximas boas, o que não se pode produzir quando o fundamento subjetivo supremo de todas as máximas é pressuposto como corrompido; da mesma forma, é necessário poder dominá-lo porque se encontra no homem como ente que age livremente. Por conseguinte, a malignidade da natureza humana não é, pois, maldade, se tomarmos esta palavra no sentido estrito; a saber, como uma intenção (princípio subjetivo das máximas) de admitir o mal, enquanto mal, para motivo em sua máxima (pois esta é diabólica), mas muito antes perversão do coração, o qual, portanto, denomina-se também um coração mau. Isto é compatível com uma vontade em geral boa; provém da fragilidade da natureza humana, pouco forte para seguir os princípios que adotou, unida à impureza, que consiste em não separar segundo uma norma moral os motivos (mesmo de ações bem intencionadas) uns dos outros, e finalmente, quando importa, em considerar somente se são conformes à lei moral e não se derivam do mesmo, isto é, não considerar isto motivos únicos. Se daí não resulta sempre uma ação contrária à lei e uma propensão a estas, isto é, o vício, a maneira de pensar que consiste em interpretar a ausência do vício como uma conformidade da intenção à lei do dever (como virtude) deve ser chamada já de perversão radical do coração humano (pois que não vemos aqui o motivo na máxima, mas apenas o seguimento da lei segundo a letra). Esta culpa inata (reatus), assim chamada porque se faz notar tão cedo como o uso da liberdade se manifesta no homem, e também porque deve derivar-se da liberdade e pode ser-lhe imputada, pode ser julgada em seus dois primeiros graus (a fragilidade e a impureza) como não propositada (culpa), mas no terceiro como culpa propositada (dolus); ela tem por caráter certa perfídia do coração humano (dolus malus) que engana a si mesmo sobre suas boas e más intenções e, quando só as ações não têm por consequência o mal, o que bem poderiam ter segundo suas máximas, não se inquieta por causa de sua intenção, mas por querer justificar-se perante a lei. Daí toca a serenidade da consciência tantos (em sua opinião conscienciosos) homens, contanto que nas ações onde a lei não foi consultada, ou pelo menos não foi preponderante, esquivaram-se felizmente das más consequências; se mesmo eles não se imaginavam ter mérito em não se sentir culpados de suas faltas, com as quais viam os outros se afligirem, sem sequer investigar se não seria apenas mérito da sorte e se, segundo a maneira de pensar, que poderiam descobrir em seu interior, se quisessem, tais vícios não teriam sido praticados por eles, se incapacidade, temperamento, educação, circunstâncias do tempo e do lugar que induzem à tentação (tudo coisas que não nos deveriam ser imputadas) não os tivessem impedido disso. Esta deslealdade em enganar a si próprio e que nos impede de estabelecer em nós uma intenção moral desenvolve-se exteriormente também para a falsidade e engano de outros; o que, se não deve ser denominado maldade, merece pelo menos ser chamado de baixeza, e está na maldade radical da natureza humana que (ao fazer um julgamento moral concernente à opinião que se deve fazer de um homem, torna a imputabilidade interior e exteriormente totalmente incerta) constitui a mancha podre de nossa espécie, que, enquanto não for trazida à tona, impede o germe do bem de se desenvolver, coisa que de certo faria. Um membro do Parlamento inglês fez a seguinte afirmação no calor dos debates: "Cada homem tem seu preço, pelo qual se entrega". Se isto é verdade (que cada um decida por si mesmo); se não há em parte alguma virtude, para a qual não pode ser encontrado nenhum grau da tentação capaz de ampará-la; se, para que o mau ou o bom espírito nos ganhe para si depende somente de quem oferece mais e pague mais prontamente, então deve ser verdade do homem em geral o que o apóstolo diz: "Não há aqui diferença, todos são igualmente pecadores - não há ninguém que pratique o bem (segundo o espírito da lei), nem mesmo um". (A prova verdadeira deste juízo de condenação da razão moralmente legisladora está contida não neste mas no capítulo anterior; este contém apenas a comprovação do mesmo por meio de experiência, a qual não pode jamais descobrir a raiz do mal na máxima suprema do livre arbítrio em relação à lei, pois esta precede toda a experiência como ato inteligível. - Daqui, quer dizer, da unidade da máxima suprema, na unidade da lei à qual se relaciona, pode-se entender bem por que a proposição da exclusão do meio-termo entre bem e mal deve servir de fundamento ao julgamento puro intelectual do homem; todavia, que a proposição pode ser subordinada ao julgamento empírico de um ato sensível (dos verdadeiros atos); que haja um meio-termo entre estes extremos, de um lado um negativo da indiferença, antes de toda a formação, de outro lado um positivo da composição, para ser em parte bom, em parte mau. Mas o último é apenas julgamento da moralidade do homem no fenômeno, e está subordinado ao primeiro juízo final. Nota do Autor). IV. Da origem do mal na natureza humana A origem (primeira) é a proveniente de um efeito de sua primeira, isto é, daquela causa, que não é, por sua vez, efeito de outra causa da mesma espécie. Ela pode ser considerada, seja de origem racional, seja de origem temporal. A primeira significação não leva em consideração senão a existência do efeito, a segunda o acontecimento do mesmo, por conseguinte, como acontecimento relacionado à sua causa no tempo. Quando o efeito é relacionado com uma causa que está a ele ligada segundo leis da liberdade, como é o caso com o mal moral, a determinação do arbítrio para produzir não é mais pensada como unida a seu fundamento de determinação no tempo, mas apenas na representação da razão, e não pode ser derivada de um estado qualquer precedente; o que, ao contrário, deve acontecer, quando a ação má é relacionada, como acontecimento no mundo, com sua causa natural. Procurar das ações livres, como tais, a origem temporal (como que de efeitos naturais), é, pois, uma contradição; por conseguinte, da constituição moral do homem, enquanto considerada como contingente, porque esta significa o fundamento do uso da liberdade que deve ser procurado unicamente nas representações da razão (assim como o fundamento de determinação do livre arbítrio em geral). Como quer que seja constituída a origem do mal moral no homem, é a mais inadequada de todas as maneiras de representação da difusão e da continuação do mesmo por todos os membros de nossa espécie e em todas as gerações: representamo-la a nós mesmos como vinda dos primeiros pais até nós por hereditariedade; podemos, pois, dizer do moralmente mau a mesma coisa que o poeta diz do bom: - Genus, et proavos, et quae non fecimus ipsi, vix ea nostra puto. (As três faculdades chamadas superiores (nas universidades) explicar-se-iam, cada uma à sua maneira, esta hereditariedade, a saber, ou como doença hereditária, ou culpa hereditária, ou pecado hereditário, I) A faculdade de medicina representar-se-ia o mal hereditário como a tênia, da qual opinam alguns naturalistas que, como ela não pode ser encontrada nem num elemento fora de nós, nem (da mesma espécie) em nenhum outro animal, deveria ter já estado nos primeiros pais, 2) A faculdade de direito considerá-lo-ia como a consequência legítima de entrar na posse de uma herança que eles nos deixaram, mas carregada de uma grave falta (pois nascer não é mais do que adquirir o uso dos bens da terra, enquanto indispensáveis para a nossa duração), Devemos, portanto, pagar (expiar) um ônus e somos despojados no fim (pela morte) da posse, Como é justo pela lei! 3) A faculdade de teologia consideraria este mal como participação pessoal de nossos primeiros pais na defecção de um agitador abjeto, que nós mesmos (apesar de agora inconscientes disto) tenhamos então participado disto, ou apenas agora, nascidos sob seu domínio (como príncipes deste mundo), nos agradamos mais dos bens do mesmo do que o comandante supremo da soberania divina e não possuímos suficiente fidelidade para descartar-nos disto, mas em compensação devemos dividir com ele, no futuro, sua sorte. Nota do Autor). Deve-se ainda notar que, quando investigamos a respeito da origem do mal, não avaliamos inicialmente a propensão para isto (como peccatum in potentia), mas consideramos apenas o mal de ações dadas, segundo sua possibilidade interior e o que deve ser acrescentado para o uso da mesma no arbítrio. Cada ação má, quando se procura a origem da mesma na razão, deve ser considerada como se o homem tivesse chegado imediatamente a ela, saído do estado da inocência. Pois, seja como tiver sido seu comportamento anterior, e sejam quais forem as causas da natureza que agem sobre ele, pouco importa se se encontram dentro ou fora dele, sua ação é livre e de modo nenhum determinada por alguma destas causas; pode, portanto, e deve sempre ser julgado como um uso originário de seu arbítrio. Deveria tê-las abandonado, quaisquer que tivessem sido as circunstâncias de tempo e as conjunções onde ele se encontrava, pois nenhuma causa no mundo fará com que ele cesse de ser um ente que age livremente. Diz-se com razão: são imputadas igualmente ao homem as consequências que resultam de suas ações outrora livres, mas contrárias à lei; mas com isto quer-se apenas dizer: não há necessidade de se recorrer a este subterfúgio e de estabelecer se suas consequências podem ser livres ou não, porque já na ação reconhecidamente livre, que era sua causa, há fundamento suficiente para a imputação. Todavia, se alguém fosse tão mau até uma ação livre imediatamente iminente (até o costume, como uma segunda natureza), não teria sido apenas seu dever ser melhor; mas é ainda agora seu dever tornar-se melhor: ele deve, pois, também podê-lo, e se não o faz, é, no momento da ação, também suscetível de imputação e subordinado a ela, como que se, dotado da disposição natural para o bem (que é inseparável da liberdade), tivesse passado do estado da inocência para o mal. - Não podemos, portanto, perguntar a respeito da origem temporal, mas devemos apenas perguntar a respeito da origem racional deste ato, para determinar e, se possível, explicar, a propensão, isto é, o fundamento subjetivo universal da aceitação de uma transgressão em nossa máxima. Com isto concorda bem a maneira de representação que usa a Escritura para descrever a origem do mal como um início do mesmo na espécie humana, representando-a como uma história, onde o que é natureza segundo a coisa (sem levar em consideração a condição do tempo) deve ser pensado em primeiro lugar, deve aparecer como tal, segundo o tempo. Segundo ela, o mal não inicia de uma propensão sobre a qual se fundará, pois, do contrário, o início da mesma não teria sua origem na liberdade, mas no pecado (sob este termo entende-se a transgressão da lei moral como mandamento divino), mas o estado do homem, antes de toda a propensão para o mal, denomina-se estado da inocência. A lei moral apresentou-se primeiramente como proibição, assim como no homem, como um ente não puro, mas tentado por inclinações (Gên 2,16s). Ora, no lugar de conformar-se a esta lei exatamente como motivo suficiente (o único incondicionalmente bom e que não dá lugar a escrúpulos), o homem procurou outros motivos (Gên 3,6) que não podiam ser bons senão condicionalmente (a saber, enquanto não causarem prejuízo à lei) e adotou como máxima, quando pensa a ação como decorrente conscientemente da liberdade, de não conformar-se à lei do dever pelo dever, mas por consideração a outras intenções. Em consequência, começou a duvidar do rigor do mandamento que exclui a influência de qualquer outro motivo, para fazer descer, por arrazoados sutis, a obediência a este mandamento a uma simples obediência condicionada (segundo o princípio do amor-próprio) a um meio; (Todo o respeito testemunhado contra a lei moral, mesmo sem acolhê-lo em sua máxima como motivo suficiente para si, a preponderância sobre todos os outros fundamentos determinantes do arbítrio, é hipócrita; e a propensão para ele, falsidade interior, isto é, uma propensão a enganar a si próprio na interpretação da lei moral em detrimento da mesma (III, 5); é por isso também que a Bíblia (na parte cristã) chama o autor do mal. (que está em nós mesmos) de mentiroso do início e caracteriza assim o homem com vistas ao que parece ser nele o fundamento principal do mal. Nota do Autor). donde resultou finalmente que ele admitiu em sua máxima para agir a preponderância dos impulsos sensíveis sobre o motivo da lei e cometeu o pecado (Gên 3,6). Mutato nomine de te fabula narratur. Depois do que precede, fica claro que fazemos o mesmo todos os dias, por conseguinte, "em Adão todos pecaram" e ainda pecam; só que em nós é pressuposta uma propensão inata para a transgressão, mas não tal no primeiro homem, porém, inocência, segundo o tempo; por conseguinte, a transgressão, neste caso, chama-se pecado original, enquanto que em nós é representada como resultante da maldade inata de nossa natureza. Esta propensão, todavia, não significa outra coisa do que, se quisermos explicar o mal segundo seu início no tempo, devemos necessariamente procurar as causas para toda transgressão premeditada numa época anterior de nossa vida até chegarmos àquela onde o uso da razão ainda não estava desenvolvido, por conseguinte, procurar a fonte do mal até uma propensão (como fundamento natural) para o mal que se denomina inata justamente por esta razão; o que não é necessário, nem útil, no que concerne ao primeiro homem, que já é representado com completo poder do uso de sua razão; do contrário, este fundamento (a propensão má) deveria ser inato; daí porque seu pecado é apresentado como imediatamente criado do estado da inocência. - Entretanto, não temos de procurar a origem temporal de uma constituição moral que nos deve ser imputada, por inevitável que seja, se quisermos explicar a existência contingente (é por esta razão que a Escritura, em conformidade com esta nossa fraqueza, assim a representou). Quanto à origem na razão deste desacordo em nosso arbítrio com relação à maneira de aceitar em sua máxima os motivos subordinados, dando-lhes o primeiro lugar, isto é, esta propensão para o mal permanece-nos insondável, porque, ela mesma nos deve ser imputada, consequentemente aquele fundamento supremo de todas as máximas exigiria, por sua vez, a aceitação de uma máxima má. O mal só pode ter sua origem no moralmente mau (não nos meros limites de nossa natureza); portanto, nossa disposição original é uma disposição para o bem (que ninguém além do homem mesmo pôde corromper, se esta corrupção deve ser-lhe imputada); para nós não há, pois, nenhum fundamento compreensível de onde o mal moral pudesse ter vindo até nós. - Esta incompreensibilidade, juntamente com a determinação mais precisa da maldade de nossa espécie, que a Escritura exprime em sua narração histórica, (O que foi dito aqui não deve ser considerado como um comentário da Escritura, a qual está fora dos limites da competência da simples razão, Pode-se explicar a maneira de como se utilizou moralmente um relato histórico, sem decidir se esta também foi a intenção do autor ou se apenas a atribuímos a ele; se ele é verdadeiro apenas para si e sem qualquer prova histórica, mas ao mesmo tempo é o único graças ao qual podemos tirar de uma passagem da Escritura algo que nos leve a melhorar, que de outra forma seria apenas um acréscimo infrutífero aos nossos conhecimentos históricos, Não se deve discutir sem necessidade sobre algo e sobre sua autoridade histórica, o que, seja entendido desta ou daquela maneira, não contribui em nada para tornar melhor um homem, quando o que pode contribuir para isto é conhecido sem prova histórica e deve ser conhecido sem ela, O conhecimento histórico, que não tem com ela nenhuma relação interna válida para todos, pertence aos adiáforos que cada um pode apreciar como achar útil para sua própria edificação. Nota do Autor). colocando o mal no início do mundo, não no homem, mas num espírito de determinação originariamente sublime; assim, o começo primeiro de todo o mal em geral é representado por nós como incompreensível (pois donde o mal naquele espírito?), mas o homem, por ter caído no mal, unicamente por sedução, portanto, não pervertido por fundamento (mesmo segundo a primeira disposição para o bem), mas ainda capaz de uma melhora por oposição a um espírito sedutor, isto é, um ente tal ao qual a tentação da carne não pode ser imputada como atenuante de sua culpa; assim, ao homem, que malgrado a corrupção de seu coração guarda ainda a boa vontade, reste a esperança de uma volta ao bem do qual se desviou. OBSERVAÇÃO GERAL Do restabelecimento da disposição original para o bem em sua força O que o homem é ou deve vir a ser moralmente, bom ou mau, deve fazê-lo ou sê-lo feito por si mesmo. Ambos devem ser um efeito de seu livre arbítrio; do contrário, isto não poderia ser-lhe imputado, consequentemente, não poderia ser moralmente nem bom, nem mau. Quando se diz: ele foi criado bom, isto não pode significar mais do que: ele foi criado para o bem e a disposição original no homem é boa; mas o próprio homem não o é ainda senão depois de ter aceito ou não em sua máxima os motivos contidos por esta disposição (o que deve ser totalmente deixado à sua livre escolha), é ele mesmo que faz com que se torne bom ou mau. Supondo que, para se tornar bom ou melhor, seja necessária uma cooperação sobrenatural, que consiste simplesmente na redução dos obstáculos, ou ser de ajuda positiva, o homem deve antes tornar-se digno de recebê-la e de aceitar esta ajuda (o que não é pouco), isto é, aceitar em sua máxima este acréscimo positivo; somente pelo qual é possível imputar-lhe o bem e torná-lo conhecido como homem de bem. Como, pois, é possível que um homem naturalmente mau faça de si mesmo um homem bom, isto vai além de todos os nossos conceitos; pois, como pode fornecer bons frutos uma árvore má? Entretanto, como depois da confissão anteriormente feita, uma árvore originariamente boa (segundo a disposição) produziu frutos maus (A árvore boa segundo a disposição ainda não o é segundo o ato; pois, se assim o fosse, então não poderia, de fato, produzir frutos maus; só quando o homem acolher em sua máxima o motivo para a lei moral nele será chamado um homem bom (a árvore absolutamente uma boa árvore). Nota do Autor). e não é mais compreensível a queda do bem no mal (se observarmos que o mal provém da liberdade) do que o reerguimento do mal para o bem, a possibilidade deste último não pode ser contestada. Pois, malgrado a queda, soa o mandamento: devemos tornar-nos homens melhores, sem diminuição em nossa alma; consequentemente, devemos também podê-lo, mesmo que o que podemos fazer seja em si insuficiente e que assim nos tornemos simplesmente suscetíveis de receber uma ajuda vinda do mais alto, para nós insondável. - Agora, na verdade, deve ser aqui pressuposto que um germe do bem, restante em toda a sua pureza, não pôde ser extirpado ou corrompido, o que certamente não pode ser o amor-próprio, (Palavras, que podem ter um sentido duplo, bem distinto, impedem muitas vezes, e por muito tempo, a convicção pelos mais claros fundamentos. Como o amor em geral, também o amor-próprio pode ser dividido em benevolência e complacência (benevolentiae et complacentiae), ambos devem ser também (como se entende por si mesmo) racionais. Acolher o primeiro em sua máxima é natural (pois quem não quererá que tudo lhe corra sempre bem?). Mas ele é racional, contanto que em parte visando como fim apenas o que pode coexistir com a maior complacência, em parte escolhidos os meios eficazes para cada uma das partes constituintes da felicidade. A razão ocupa aqui apenas o lugar de uma servidora da inclinação natural; mas a máxima, que se acolhe por isso, não tem qualquer relação com a moralidade. Se é, porém, feita princípio incondicionado do arbítrio, então é a fonte de um grande conflito, a perder de vista, com a moralidade. - Um amor racional de complacência em si mesmo pode ser entendido neste sentido: nós temos complacência naquelas máximas já mencionadas, que têm por fim a satisfação da inclinação natural (contanto que aquele fim seja alcançado pelo seguimento da mesma); neste caso ele é idêntico ao amor da complacência contra si mesmo; cada um agrada a si mesmo, como um comerciante ao qual resultaram bem as especulações comerciais e que, ao considerar as máximas adotadas, alegra-se com seu bom discernimento. Somente a máxima do amor-próprio da complacência incondicionada (não depende de lucro ou prejuízo como das consequências da ação) em si mesma seria o princípio interno de uma satisfação somente possível para nós sob a condição de subordinar nossas máximas à lei moral. Nenhum homem, para o qual a moralidade não é indiferente, que é consciente de tais máximas que não estão de acordo com a lei moral nele, pode ter em si uma complacência, sem que ela seja em si mesma um amargo desagrado. Este poderia ser chamado amor racional por si mesmo, o qual evita toda a mistura de outras causas da satisfação pelas causas de suas ações (sob o nome de felicidade que pode assim conseguir para si mesmo) com os motivos do arbítrio. Como isto indica o respeito incondicionado pela lei, por que querer dificultar desnecessariamente a clara compreensão do princípio pela expressão de um amor-próprio racional, mas moral somente sob a última condição, ao se andar em círculos (pois só se pode amar a si mesmo de modo moral, contanto que se esteja consciente de sua máxima, que é fazer do respeito à lei o motivo supremo de seu arbítrio)? A felicidade é para nós, segundo nossa natureza, como entes dependentes de objetos da sensibilidade, a primeira das coisas e o que incondicionalmente desejamos. Justamente a mesma não é segundo nossa natureza (se assim quisermos denominar, em geral, o que nos é inato), como ente dotado de razão e liberdade, nem de longe o primeiro, nem sequer um objeto incondicionado de nossas máximas; isto, porém, é merecer ser feliz, isto é, a concordância de todas as nossas máximas com a lei moral. No fato de ela ser objetivamente a condição sob a qual somente o desejo da primeira pode concordar com a razão legisladora, consiste toda a prescrição moral; e na intenção de desejar apenas condicionalmente, a maneira de pensar moral. Nota do Autor). que, aceito como princípio de todas as nossas máximas, é justamente a fonte de todo o mal. A restauração em nós da disposição original para o bem não é, pois, aquisição de um motivo para o bem, perdido para nós; pois este motivo, que consiste no respeito à lei moral, não poderíamos nunca ter perdido, e seria a última possibilidade, não poderíamos nunca adquiri-l o novamente. Ela é, portanto, a restauração da pureza do mesmo como fundamento supremo de todas as nossas máximas, pelas quais deve ser acolhido em nosso arbítrio, não ligado somente a outros motivos ou talvez mesmo subordinado a eles (às inclinações) como condição, mas em toda a sua pureza, na qualidade de motivo, em si suficiente, de determinação do arbítrio. O bem original é a santidade das máximas no seguimento de seu dever; por ela o homem, que aceita esta pureza em sua máxima, embora ainda não santo por isto (pois entre a máxima e o ato há um grande espaço intermediário), está, entretanto, no caminho de aproximar-se dela num progresso infinito. A firme resolução de seguir seu dever, tornada atitude, chama-se também virtude, segundo a legalidade, considerada como seu caráter empírico (virtus phaenomenon). Sua máxima constante são ações conformes à lei; o motivo, para isto necessitado pelo arbítrio, pode ser tomado de onde se quiser. É por isso que, neste sentido, a virtude é adquirida pouco a pouco e alguns a denominam um longo hábito (em observação à lei); graças a ela o homem, através de reformas progressivas de sua conduta e do fortalecimento de suas máximas, chegou da propensão ao vício e a uma propensão oposta. Para isto não é necessária uma mudança do coração, mas apenas uma mudança dos costumes. O homem considera-se virtuoso quando se sente forte em suas máximas para observar o dever; apesar de este princípio não provir dó fundamento supremo de todas as máximas, isto é, do dever; assim, a intemperança retoma à temperança para sua saúde, a mentira à verdade por honra, a injustiça à probidade burguesa por amor à paz ou ao lucro, etc. Todos segundo o caro princípio da bem-aventurança. Mas que alguém se torne um homem não só legalmente, mas moralmente bom (agradável a Deus), isto é, virtuoso segundo o caráter inteligível (virtus noumenon), por consequência um homem que, quando conhece algo como dever, não necessita de outro motivo que esta representação do próprio dever, isto não será resultado de uma reforma sucessiva, enquanto permanecer impuro o fundamento da máximas, mas unicamente de uma revolução na intenção do homem (uma passagem para a máxima da santidade) e ele não pode tornar-se um novo homem senão por uma espécie de renascimento, como que por uma nova Criação (Jo 3,5, comparado com Gên 1,2) e transformação do coração. Mas se o homem é pervertido no fundamento•de suas máximas, como é possível que faça esta revolução por suas próprias forças e torne-se, por si mesmo, um homem bom? E, no entanto, o dever nos ordena sê-lo, não nos ordena, porém, nada que não seja praticável. Não se pode chegar a uma conciliação, a não ser que a revolução deve ser necessária para a maneira de pensar e a reforma gradual para a maneira de sentir (que opõe aqueles obstáculos) e, portanto, possível ao homem. Isto é: quando ele volta ao fundamento supremo de suas máximas, pelas quais era um homem mau, graças a uma única resolução imutável (revelando um novo homem), então é, segundo o princípio e a maneira de pensar, um sujeito receptível para o bem, mas não se tornará nunca um homem bom, a não ser pelo contínuo atuar e tornar-se; isto é, só pode esperar, em virtude de tal pureza do princípio, que tomou para a máxima suprema do seu arbítrio e em virtude da solidez do mesmo, encontrar-se no bom caminho (apesar de estreito) de um progresso constante do mal ao melhor. Isto é para aquela que descobre o fundamento inteligível do coração (de todas as máximas do arbítrio), para o qual esta infinidade de progresso é unidade, isto é, para Deus, tanto quanto ser um homem realmente bom (agradável a ele) e, assim sendo, esta transformação pode ser considerada revolução; para o julgamento dos homens, todavia, que só podem apreciar a si mesmos e a força de suas máximas pela influência que ganham sobre a sensibilidade no tempo, esta transformação não pode ser considerada a não ser como um esforço sempre constante para o melhor, por conseguinte, como uma reforma gradativa da propensão para o mal, como maneira de pensar absurda. Daqui se segue que a formação moral do homem não deve começar pelo melhoramento dos costumes, mas pela transformação da maneira de pensar e pela fundação de um caráter; apesar de que ordinariamente se procede de outra maneira e se combate os vícios em particular, deixando intata sua raiz comum. Ora, mesmo o homem mais limitado é capaz de sentir um respeito tanto maior por uma ação conforme ao dever quanto mais ele tirava do pensamento outros motivos que, pelo amor-próprio, poderiam ter influência sobre a máxima de ação; mesmo as crianças são capazes de encontrar o menor vestígio de mistura de motivos impuros, pois que a ação perde para elas, momentaneamente, todo o valor moral. Cultivar-se-á incomparavelmente esta disposição para o bem ao se citar o próprio exemplo dos homens bons (o que se refere à sua conformidade à lei) e ao deixar seus aprendizes morais julgarem a impureza de certas máximas a partir dos motivos reais de suas ações e esta penetrará, assim, pouco a pouco, na maneira de pensar; de sorte que o dever por si mesmo começará a adquirir uma importância considerável em seu coração. Todavia, ensinar a admirar só as ações virtuosas, qualquer o sacrifício que possam ter custado, não é ainda a verdadeira disposição que o ânimo do aprendiz deve receber para o bem moral. Pois, por mais virtuoso que alguém seja, tudo o que pode fazer de bem é sempre meramente dever; cumprir com seu dever, entretanto, não é mais do que fazer o que é habitual na ordem moral, por conseguinte, não merece ser admirado. Esta admiração indica, muito antes, uma discordância do nosso sentimento para o dever, como se fosse algo extraordinário e digno de mérito obedecer-lhe. Mas há algo em nossa alma que, não podemos, se a fixarmos convenientemente com os olhos, cessar de contemplar com a maior admiração, e seguramente a admiração é aqui legítima ao mesmo tempo que eleva a alma, e isto é: a disposição original moral, em geral, em nós. - O que é isto em nós (podemos perguntar a nós mesmos) que nos eleva, nós que somos entes constantemente dependentes de tantas necessidades da natureza, tão alto, para além destas, até a ideia de uma disposição original (em nós), que a consideramos, em seu conjunto, como nada e nós mesmos como indignos da existência, se devemos entregar-nos ao seu gozo, só ele capaz de tornar a vida desejável para nós, contrário à lei, pela qual nossa razão ordena poderosamente, sem com isto prometer algo ou fazer ameaças? Todo homem, da mais comum capacidade, deve ter sido ensinado antes da santidade que está na ideia do dever, mas que não se eleva até a investigação do conceito da liberdade, derivado primeiramente desta lei, (Que o conceito da liberdade do arbítrio não preceda em nós à consciência da lei moral, mas apenas deduzido da determinabilidade de nosso arbítrio por meio desta lei enquanto mandamento incondicional, disto pode-se ficar logo convencido quando se pergunta a si mesmo: se se tem segura e imediatamente consciência de um poder que permite dominar todo motivo, por grande que seja, para a transgressão (Phalaris licet imperet ut sis falsus, et admoto dictet periuria lauro) por uma firme resolução. Cada um deverá concordar: ele não sabe se se apresentasse tal caso não vacilaria em sua resolução. Mas ao mesmo tempo o dever ordena-lhe incondicionalmente: deve permanecer-lhe fiel; e daqui conclui com razão: ele deve também podê-lo e, portanto, seu arbítrio é livre. Os que apresentam falsamente esta inescrutável propriedade como totalmente compreensível fazem com a palavra determinismo (à proposição da determinação do arbítrio por meio de fundamentos interiores suficientes) uma ilusão, como se a dificuldade consistisse em uni-Ia com a liberdade, no que ninguém pensa; mas como o predeterminismo, segundo o qual ações arbitrárias têm, como acontecimentos, seus fundamentos determinantes no tempo passado (que, com o que contém em si, não está mais em nosso domínio), poderia coexistir com a liberdade, segundo a qual a ação bem como seu contrário devem estar, no momento do acontecimento, no domínio do sujeito; isto é o que se quer entender, mas que nunca é entendido. Não há dificuldade alguma em se unir o conceito de liberdade com a ideia de Deus, como ente necessário, porque a liberdade não consiste na contingência da ação (que ela não é determinada por fundamentos), isto é, não no indeterminismo (que deveria ser igualmente possível para Deus fazer o bem ou o mal, se se deve chamar sua ação de livre), mas na absoluta espontaneidade, a qual só corre perigo no predeterminismo, onde está o fundamento determinante da ação no tempo passado, por conseguinte, de tal maneira que a ação de me determinar incontestavelmente não está agora mais em meu domínio, mas nas mãos da natureza; e, como não se pode pensar uma sequência de tempo em Deus, fica sanada esta dificuldade. Nota do Autor). deve sentir profundamente a importância desta questão; e mesmo a incompreensibilidade desta disposição que anuncia uma origem divina deve agir sobre o ânimo até ao entusiasmo e fortalecê-lo para os sacrifícios que somente o respeito pelo seu dever pode impor-lhe. Deve recomendar-se, como um excelente meio para despertar intenções morais, excitar no homem o sentimento da sublimidade da sua determinação moral, porque se opõe diretamente à propensão inata que tende a inverter os motivos nas máximas de nosso arbítrio, a fim de restabelecer no respeito incondicionado à lei, condição suprema de todas as máximas, a ordem moral original entre os motivos e, por conseguinte, em sua pureza, a disposição para o bem no coração humano. Mas este restabelecimento pela aplicação das próprias forças se opõe diretamente à proposição da corrupção inata do homem para com todo o bem? Certamente, no que concerne à compreensibilidade, isto é, nossa inteligência de sua possibilidade, como a tudo que deve ser representado como acontecimento no tempo (mudança) e como necessário segundo leis da natureza, e seu contrário deve ser representado, ao mesmo tempo, sob leis morais, como possível por liberdade; todavia, ela mesma não se opõe à possibilidade deste restabelecimento. Pois, se a lei moral ordena que devemos ser agora homens melhores, segue-se, inevitavelmente, também é preciso podê-lo. A proposição do mal inato não é de utilidade alguma na dogmática moral; pois suas prescrições contêm justamente os mesmos deveres e permanecem também na mesma força, esteja em nós uma propensão inata para a transgressão ou não. Na ascética moral, entretanto, esta proposição pretende dizer mais do que o que se segue, mas não o diz: não podemos, na formação moral da disposição moral inata para o bem, iniciar de uma inocência natural em nós, mas devemos necessariamente começar pela pressuposição de uma maldade do arbítrio na aceitação de suas máximas, contrárias à disposição moral original e porque a propensão para isto é impossível de ser exterminada, reagir sem cessar contra ela. Ora, como isto a nada conduz, a não ser a uma progressão, até ao infinito, do mal para o melhor, segue-se que a transformação da intenção do homem mau na de um bom deve consistir na transformação do fundamento interior supremo da aceitação de todas as suas máximas em conformidade com a lei moral, enquanto este nosso fundamento (o nosso coração) é ele mesmo imutável. O homem não pode chegar a convencer-se disto de maneira natural, nem pela consciência imediata, nem pela prova da vida que levava até aquele momento; isto porque a profundeza do coração (o fundamento subjetivo primeiro de suas máximas) permanece insondável para ele; todavia, ele deve poder esperar chegar por suas próprias forças ao caminho para lá, caminho este que lhe é indicado por uma intenção melhorada em seu fundamento; porque ele deve tornar-se um homem bom, mas só pode ser julgado moralmente bom segundo aquilo que lhe pode ser imputado como sua própria obra. Para combater esta pretensão de automelhoramento, a razão, naturalmente desencorajada para o trabalho moral, apela, pretextando uma incapacidade natural, a toda sorte de ideias religiosas impuras (entre outras, as que imaginam que o próprio Deus estabeleceu o princípio de felicidade como condição suprema de seus mandamentos). Podemos, todavia, dividir todas as religiões em duas: aquela que procura os favores (de simples culto), e a religião moral, isto é, a da vida reta (boa). Pela primeira, o homem ufana-se: Deus poderia muito bem fazê-lo feliz para sempre, sem que seja necessário tornar-se um homem melhor (pela remissão de seus pecados); ou, ainda, se isto não lhe parece possível: Deus poderia fazê-lo muito bem um homem melhor, sem que ele mesmo precise fazer outra coisa para isto do que pedir; o que para um ente que tudo vê nada mais é senão desejar, na verdade, nada teria sido feito: pois, se dependesse apenas do desejo, todo homem seria bom. Segundo a religião moral, entretanto (entre todas as públicas que já existiram, somente a cristã tem este caráter), é um princípio que cada um deve fazer tudo o que suas forças permitirem para tornar-se um homem melhor; e só então, quando tiver enterrado seu tesouro inato (Lc 19,12-16), quando tiver usado a disposição natural para o bem, a fim de se tornar um homem melhor, pode esperar que o que não está em seu poder seja completado por uma colaboração mais alta. Não é absolutamente necessário que o homem saiba em que ela consiste; talvez seja até inevitável que, se a maneira como ela acontece for revelada num certo tempo, a homens diferentes em outros tempos, cada um faria um conceito diferente e, decerto, com toda sinceridade. Mas, neste caso, vale o seguinte princípio: "Não é essencial, nem necessário, a cada um saber o que Deus faz ou fez para sua glória"; mas sim saber o que ele mesmo deve fazer para se tornar digno desta ajuda. (Esta observação geral é a primeira das quatro que foram juntadas a cada uma das partes desta obra e que poderiam ter por títulos: I) dos efeitos de graça, 2) dos milagres, 3) dos mistérios, 4) dos meios de graça. - Estes são como que parergos da religião dentro dos limites da razão pura, não são partes integrantes dela, mas confinam com ela. A razão, consciente de sua impotência em satisfazer a sua necessidade moral, estende-se até as ideias transcendentes que podem preencher aquela falta sem, entretanto, apropriar-se delas como um acréscimo a seu domínio. Não contesta a possibilidade ou a realidade dos objetos das mesmas, mas não pode admiti-Ias em suas máximas para pensar e agir. Conta até que, no insondável campo do sobrenatural, há qualquer coisa mais do que aquilo que pode tornar compreensível, o que seria necessário para a explicação da impotência moral, esta coisa, mesmo desconhecida, fornecerá sua boa vontade, graças a uma fé que poderia ser chamada (quanto à sua possibilidade) de reflexiva, porque a dogmática, que se proclama um saber, lhe parece pouco sincera ou temerária; com efeito, levantar dificuldades contra o que já está firme para si mesmo (praticamente) é, quando se refere a questões transcendentes, apenas uma ocupação secundária (parergo). No que se refere à desvantagem destas ideias moralmente transcendentes, quando quisermos introduzi-las na religião, o efeito disto é o seguinte, segundo a ordem das quatro classes citadas: 1) para a pretensa experiência interna (efeitos de graça), fanatismo; 2) para a suposta experiência externa (milagre), superstição; 3) para a suposta iluminação do entendimento com vistas ao sobrenatural (mistérios); iluminatismo, loucura de adeptos; 4) para a tentativa arriscada de agir sobre o sobrenatural (meios de graça), taumaturgia, puras aberrações de uma razão que vai além de seus limites e isto com pretensa intenção moral (agradável a Deus). - Mas o que se refere particularmente a esta observação geral para a primeira parte do presente tratado é o apelo aos efeitos de graça da última espécie e não pode ser aceito nas máximas da razão, se esta se mantém dentro de seus limites; como em geral nada sobrenatural, pois que para justamente aí todo o uso da razão. - É, com efeito, impossível torná-los conhecidos teoricamente (pois são efeitos de graça e não de natureza interna), porque nosso uso do conceito de causa e efeito não pode ser estendido para além dos objetos da experiência nem, por conseguinte, para além da natureza; a pressuposição de uma utilização prática desta ideia é ela mesma contraditória. Pois como utilização pressuporia uma regra daquilo que nós mesmos temos a ver para o bem (numa certa intenção), para alcançar algo; esperar um efeito de graça, porém, significa justamente o contrário, a saber, que o bem (o moral) não será o nosso, mas o ato de outro ente, nós podemos, pois, herdá-lo por intermédio do nada fazer, o que se contradiz. Podemos, pois, conceder-lhes que sejam algo de incompreensível, mas jamais acolhê-los em nossa máxima, quer no uso teórico, quer no uso prático. Nota do Autor).