Johann Gottlieb Fichte – Comunicado Claro como o Sol ao Grande Público Onde se Mostra em Que Consiste Propriamente a Novíssima Filosofia – Um Ensaio Para Forçar o Leitor à Inteligência - 1801 PREFÁCIO Certos amigos do idealismo transcendental, ou mesmo do sistema da doutrina da ciência, atribuíram a esse sistema o nome de novíssima filosofia. Essa denominação chega a soar como uma alcunha jocosa e parece pressupor, em seus autores, a busca de uma filosofia neonovíssima. Além disso, o autor desse sistema, quanto a sua pessoa, está convencido de que só há uma única filosofia, assim como só há uma única matemática, e de que, tão logo seja encontrada e reconhecida essa única filosofia possível, não surgirá nenhuma filosofia mais nova e todas as até agora assim chamadas filosofias só terão valor como tentativas e preliminares. Não obstante, preferiu empregar, a todo risco, em se tratando do título de um escrito popular, aquela expressão usual, para evitar o emprego da denominação impopular de idealismo transcendental ou de doutrina da ciência. Um comunicado sobre os esforços mais recentes para elevar a filosofia à condição de ciência, dirigido ao grande público que não fez •do estudo da filosofia sua ocupação própria, é, por muitas razões, algo necessário e conveniente. É certo que nem todos os homens devem dedicar a vida às ciências, longe disso; e, justamente por isso, tampouco devem dedicá-la ao fundamento de todas as outras ciências, a uma filosofia científica. E também, para penetrar nas investigações de tal filosofia, seria preciso ter uma liberdade de espírito, um talento e uma dedicação que apenas se encontram em poucos. Entretanto, todo aquele que pretende ter uma formação espiritual universal deveria saber universalmente o que é a filosofia; apesar de não tomar parte em suas investigações, saber o que ela investiga; apesar de não penetrar em seu domínio, conhecer os limites que o separam do domínio em que ele próprio se encontra - para que não venha a temer, daquele mundo inteiramente outro e totalmente alheio para ele, algum perigo para este mundo em que ele se encontra. Deveria sabê-lo, pelo menos para não ser injusto para com os homens de ciência com os quais, como ser humano, tem de conviver; e para não aconselhar erradamente àqueles que confiam nele, levando-os a se afastarem de algo cuja negligência poderia um dia vingar-se amargamente deles. Por todas essas razões, todo homem de boa formação deveria, no mínimo, saber o que a filosofia não é, o que ela não visa, o que ela não é capaz de realizar. E produzir em si mesmo essa compreensão não é somente possível; é algo que nem sequer é difícil. A filosofia científica, muito embora se eleve acima da visão natural das coisas e acima do entendimento comum, tem, contudo, seu pé firmado no domínio deste último; e tem nele seu ponto de partida, embora depois o abandone livremente. Ver esse seu pé assentado sobre o território do modo de pensar natural e observar como ela se desprende desse ponto de partida é algo que está ao alcance de todo aquele que possui apenas entendimento comum e é capaz da atenção habitual, que se presume em todo homem de boa formação. Um comunicado informativo, como o que foi anunciado, é indispensável, em particular, para um sistema como este - considero aqui o sistema kantiano e o novíssimo como um só porque, pelo menos em sua pretensão à cientificidade, ambos estão incontestavelmente de acordo - para um sistema como este, digo eu, que foi precedido cronologicamente por outro, o sistema eclético, que ainda perdura, que renunciou formalmente a toda pretensão à ciência, a toda preparação e estudo científicos, e que convidava para suas investigações qualquer pessoa que fosse capaz de somar dois com dois. Indispensável em um tempo em que o público não científico aceitou de muito bom grado esse convite e não quer absolutamente desfazer-se da opinião de que a filosofia é algo tão natural quanto o comer e o beber e de que, sobre objetos filosóficos, tem voz ativa todo aquele que, de modo geral, for dotado da capacidade de falar. Em um tempo em que essa opinião já provoca grande prejuízo e em que proposições e expressões cuja inteligência e apreciação só são possíveis no interior de um sistema filosófico científico foram apresentadas diante do tribunal do entendimento não científico e do desentendimento, o que não contribuiu para diminuir a má reputação da filosofia. Em um tempo em que, mesmo entre os escritores filosóficos efetivos, talvez não se possa encontrar sequer meia dúzia que saiba o que é propriamente a filosofia e outros, que parecem sabê-lo, elevam um ganido lamentoso para dizer que a filosofia... justamente não passa de filosofia. Em um tempo em que os mais profundos dentre os críticos literários ainda acreditam ter infligido não pequeno opróbrio à novíssima filosofia quando asseguram que ela é excessivamente abstrata para poder jamais tornar-se um modo de pensar universal. O autor nunca descuidou de difundir tais comunicados informativos, já diversas vezes, nas mais diferentes formulações, dirigidos a seus pretensos colegas de oficio. Mas não deve ter tido êxito completo nisso, pois ainda continua a ouvir, de todos os lados, a velha cantilena. Vai agora tentar melhor êxito com o público chamado, pelo menos na terminologia do autor, de não filosófico. Vai tentar mostrar mais uma vez, da maneira mais universalmente compreensível que estiver em seu poder, aquilo que já mostrou algumas vezes e, como acredita, em algumas de suas obras de maneira muito compreensível. Talvez por essa via tenha também algum êxito, pelo menos mediatamente, com seus companheiros de faculdade. Talvez o homem reto e imparcial, que não tenha nenhuma celebridade de professor ou escritor filosófico para preservar, se convença de que para a filosofia são requeridas certas abstrações, especulações e intuições, que não se lembra absolutamente de jamais ter empreendido, e em que, se tentar empreendê-las, nunca terá êxito. Talvez perceba que essa filosofia absolutamente não fala ou pensa sobre aquilo em que ele pensa e fala, que ela não o contradiz porque absolutamente não fala com ele, nem dele, nem sobre ele; que todas as palavras, que ela acaso utilize em comum com ele, adquirem um sentido inteiramente outro, totalmente ininteligível para ele, tão logo entram no círculo mágico dessa ciência. Talvez esse homem reto e imparcial se abstenha, de agora em diante, de falar sobre filosofia, com a mesma tranquilidade com que se abstém de falar sobre trigonometria ou álgebra, se não aprendeu essas ciências; e, todas as vezes que encontrar algo de filosofia, dirá com imparcialidade: Deixemos que os filósofos decidam entre si, pois eles não aprenderam mais nada; isso não me compete; eu cuido tranquilamente de minha ocupação. Talvez, depois que surgir entre os leigos o exemplo dessa justa abstenção, os teóricos não se indignem mais tão amargamente com a proibição, repetida sempre com maior rigor, de falar sobre aquilo que, entretanto, evidentemente... nem sequer leram. Em suma, a filosofia é inata no homem - essa é a opinião comum, e por isso cada um se considera autorizado a julgar sobre objetos filosóficos. O que possa ser essa filosofia inata é algo que aqui deixo totalmente de lado; e afirmo apenas quanto à novíssima, quanto à minha, que eu mesmo devo conhecer melhor do que ninguém: ela não é inata, mas tem de ser aprendida, e, por isso, só pode julgar sobre ela aquele que a aprendeu. Vou mostrar o primeiro ponto: o segundo decorre por si mesmo do primeiro. É certo que parece duro - e sempre foi recebido com cenhos franzidos - negar ao entendimento comum o direito de emitir seu juízo sobre as matérias que também são consideradas como o alvo último da filosofia: Deus, a liberdade, a imortalidade. E justamente por isso também não se quer aceitar o exemplo alegado, tirado da matemática ou de alguma outra ciência positiva dependente de aprendizado, e se considera esse exemplo inadequado. Suponhamos mesmo que aqueles conceitos estejam fundados no modo de pensar natural e comum do homem; portanto, de certo ponto de vista, que são mesmo inatos. – Aqui, em vista da novíssima filosofia, deve-se lembrar e considerar apenas o seguinte: esta não nega ao entendimento comum o direito de julgar sobre esses objetos mas, pelo contrário, lhe confere esse direito mais vigorosamente, ao que me parece, do que qualquer uma das filosofias precedentes; só que exclusivamente para sua esfera e em seu próprio domínio; mas não de maneira filosófico científica, pois este é um território que absolutamente não existe para o entendimento comum como tal. Raciocinar sobre esses objetos, o entendimento comum raciocinará, talvez, muito bem; mas não filosofar, pois disto não é capaz quem não o tenha aprendido e exercitado. Se contudo não quiserem, a nenhum preço, renunciar à querida expressão - filosofia - e à glória de ser uma cabeça filosófica, ou um jurista, historiador, jornalista filosófico, e outras coisas dessa ordem, aceitem então aquela proposta, igualmente já feita outrora, de não mais chamar a filosofia científica de filosofia, mas, por exemplo, de doutrina da ciência. Uma vez assegurado a ela esse nome, esta última abdicará do outro, de filosofia, e o cederá solenemente àquele raciocínio sortido. Assim, o grande público e todo aquele que não a estudou a fundo pode considerar a doutrina da ciência como uma ciência recém-descoberta, desconhecida, assim como, por exemplo, a teoria combinatória de Hindenburg na matemática, e acreditar em nossa declaração de que essa ciência não coincide em nenhum ponto com aquilo que eles poderiam chamar de filosofia; que ela não a nega, mas também não pode ser negada por ela. Assim, sua filosofia pode ficar com todas as suas honras e dignidades. Só devem permitir-nos, de acordo com nossa reivindicação da liberdade natural a todos os homens, não nos dedicar a ela, assim como lhes suplicamos que, nessa sua filosofia, não tomem conhecimento da doutrina da ciência. Logo, o fim próprio deste escrito é o seguinte: Ele não visa para a novíssima filosofia nenhuma conquista, mas apenas uma justa paz no interior de seus limites. Ele próprio, este escrito, não é filosofia, no sentido rigoroso da palavra, mas exclusivamente raciocínio. Quem o tiver lido até o fim e compreendido integralmente - não possui ainda, com isso, nem um único conceito filosófico, ou proposição filosófica, e coisas dessa ordem; mas adquiriu um conceito da filosofia. Não avançou nem um passo, do domínio do entendimento comum para o território da filosofia; mas chegou até a demarcação do limite comum a ambos. Se de agora em diante quiser estudar efetivamente essa filosofia, sabe pelo menos a que deve dirigir sua atenção nessa operação, e do que deve desviá-la. Se não o quiser, pelo menos ganhou consciência clara de que não o quer e nunca o quis ou o fez efetivamente e de que, portanto, tem de desistir de todo juízo sobre objetos filosóficos. Ganhou a convicção de que nenhuma filosofia propriamente dita interferirá no círculo que compete a ele, nem lhe causará dano. INTRODUÇÃO Meu leitor, Antes que tu - pois te peço permissão para tratar-te com o familiar "tu" -, antes que tu inicies a leitura deste escrito, vamos entrar em um acordo prévio um com o outro. Aquilo que lerás de agora em diante é certamente algo que eu pensei; mas pouco importa para ti ou para mim que agora também saibas o que eu pensei. Por mais que possas estar habituado a ler escritos meramente para saber o que os autores desses escritos pensaram ou disseram, eu desejaria, entretanto, que com este não procedesses assim. Não me dirijo à tua memória, mas a teu entendimento: meu fim não é que notes o que eu disse, mas que tu próprio penses e que, se assim o quiserem os céus, penses exatamente como eu pensei. Logo, se durante a leitura destas folhas acontecer contigo o que às vezes acontece com os leitores de hoje, que continues a leitura sem contudo continuar o pensamento, que apreendas as palavras sem captares seu sentido, volta então atrás, redobra tua atenção e lê mais uma vez a partir do ponto em que ela te escapou; ou mesmo deixa de lado o livro por hoje e continua a leitura amanhã, com a força de teu espírito intata. Exclusivamente dessa condição da tua parte depende o cumprimento da orgulhosa promessa feita no título, de forçar-te à inteligência. É preciso apenas que ponhas efetivamente em campo teu entendimento e que o contraponhas ao meu para o combate; e é claro que a isso não te posso forçar. Se o guardares para ti, eu já perdi a parada. Não entenderás nada, do mesmo modo que não vês nada quando fechas os olhos. Mas se te acontecer que, a partir de certo ponto, não puderes, de maneira nenhuma e à custa de nenhuma meditação, convencer-te da correção de minhas afirmações, deixa então inteiramente de lado este livro, a partir desse momento, e não o leias por um bom tempo. Continua a seguir com teu entendimento a marcha que ele seguiu até agora, da maneira habitual, sem pensar nele; talvez, por puro acaso, ao visares algo totalmente outro, a condição para entendê-lo te advenha por si e tu, depois de algum tempo, percebas muito bem e facilmente aquilo que agora não consegues conceber, apesar de todo esforço. Coisas dessa ordem também aconteceram a nós, que atualmente nos atribuímos alguma capacidade de pensamento. Só peço que honres a Deus, calando-te inteiramente sobre esse objeto enquanto não te advier a condição do entendimento e o entendimento efetivo. Minha marcha é integralmente demonstrativa, constitui uma única cadeia ininterrupta de raciocínio. Tudo aquilo que se segue, de cada vez, só é verdade para ti sob a condição de que tenhas encontrado como verdadeiro aquilo que, de cada vez, o precede. A partir daquele ponto que não tivesses encontrado como verdadeiro, não poderias mais pensar como eu pensei e a continuação da leitura, nessas circunstâncias, não teria para ti nenhum outro proveito, senão saberes o que eu havia pensado. Mas esse proveito é algo que sempre considerei muito insignificante, e sempre me espantei com a modéstia da maioria dos homens em atribuírem um valor tão alto ao pensamento dos outros e tão pequeno aos seus próprios, que preferem gastar a vida na frequentação dos primeiros a engendrar por si mesmos alguns; uma modéstia que eu, em relação a meus pensamentos, proíbo terminantemente. Passemos agora ao assunto! 1. Pela observação do mundo fora dele e de sua própria mente, todo homem dotado de instrumentos sensoriais sãos adquire uma provisão de conhecimentos, de experiências e de fatos. Além disso, é capaz de renovar livremente em si esse dado da percepção imediata, mesmo sem percepção efetiva, meditar sobre ele, manter o diverso da percepção em confronto, procurar as igualdades dos dados singulares, assim como suas diferenças; e, dessa maneira, basta que tenha o entendimento são habitual para que seu conhecimento se torne mais claro, mais determinado, mais utilizável; se torne cada vez mais uma posse na qual ele pode reinar à vontade, com plena liberdade; mas por essa meditação esse conhecimento não é, de nenhum modo, aumentado; só é possível meditar sobre o observado; só este, assim como é observado, pode ser comparado entre si, mas de nenhum modo é possível criar, pelo mero pensamento, novos objetos. Essa provisão de conhecimentos e certa elaboração mais superficial ou mais acurada destes pela meditação livre, possuímos tu e eu, e todos os nossos semelhantes; e é sem dúvida a isso que se refere quem fala de um sistema, ou de pronunciamentos do entendimento comum e são. 2. Ora, houve uma filosofia que pretendia poder ampliar por mera inferência o âmbito que acaba de ser descrito, e segundo a qual o pensamento era, não somente, como acaba de ser descrito, um desmembramento e uma recomposição do dado, mas, ao mesmo tempo, também uma produção e criação de algo inteiramente novo. Nesse sistema, o filósofo encontrava-se na posse exclusiva de certos conhecimentos, sem os quais o entendimento comum teria de passar. Nele o filósofo podia criar pelo raciocínio um Deus e uma imortalidade para si, e tornar-se sábio e bom por silogismo. Se tais filósofos quisessem ser consequentes, teriam de declarar o entendimento comum como incompetente para a ocupação de viver, pois do contrário seu sistema ampliador se tornaria supérfluo; teriam de olhá-lo de cima, com desprezo; teriam de convidar tudo que tem forma humana a se tomar tão grandes filósofos quanto eles próprios o eram, para poderem tornar-se tão sábios e virtuosos quanto esses filósofos. 3. Parece-te, meu leitor, que um sistema filosófico como o que foi descrito honra o entendimento comum e é conforme a seus interesses: um sistema segundo o qual este tem de curar-se de sua cegueira inata na Escola do filósofo e ir buscar lá, para socorrer sua luz natural, uma luz artificial? Se agora se contrapusesse a esse sistema outro, que se propusesse a refutar pelo fundamento essa pretensão de conhecimentos novos, produzidos pelo raciocínio e ocultos ao entendimento comum, a demonstrar com evidência que não temos em geral nada de verdadeiro e real, a não ser a experiência, que é acessível a todos; nada para a vida, a não ser o sistema do entendimento comum descrito acima; que só se trava conhecimento com a vida pela vida mesma, mas não pela especulação, e que não é possível tornar-se sábio e bom por silogismo, mas unicamente pela vida - tu, pensado como representante do entendimento comum, considerarias este último sistema como teu inimigo ou como teu amigo? Acreditarias que ele quer forjar para ti novas cadeias e não, pelo contrário, que ele quer libertar-te das que te impuseram até agora? E se agora fossem apresentadas diante de ti queixas sobre este último sistema, como hostil, mal-intencionado, capaz de te levar à ruína; se essa queixa, além disso, partisse de gente que tem toda a aparência de pertencer ao partido da filosofia descrita anteriormente; o que pensarias da honradez ou, considerando o assunto com a máxima indulgência, do conhecimento desses queixosos quanto à verdadeira disposição das coisas? 4. Tu te espantas, meu leitor, e perguntas se as queixas contra a novíssima filosofia apresentadas diante de teu tribunal estão justamente no caso que acabo de descrever! Aqui sou obrigado a passar, da pessoa do autor em geral, para minha personalidade individual. Seja o que for que se pense e diga de mim, uma coisa é certa: não sou tido por um mero recitador: e, pelo que sei, sobre este ponto a opinião do público é unânime. Vários chegam a fazer-me a honra, muitas vezes recusada de me considerar como o criador de um sistema inteiramente novo, inédito antes de mim; e o homem que poderia parecer o juiz mais competente quanto a isto, Kant, eximiu-se publicamente de toda e qualquer participação neste sistema. Seja isto como for, pelo menos não aprendi de nenhum outro aquilo que estou ensinando; não o encontrei em nenhum livro antes de tê-lo ensinado, e, pelo menos segundo a forma, isto é integralmente propriedade minha. Logo, eu deveria ser quem melhor sabe daquilo que eu mesmo ensino. E também, sem dúvida, devo querer dizê-la. Pois de que poderia servir-me encarecer aqui diante do grande público algo cujo contrário poderia ser mostrado pelo primeiro que tivesse melhor conhecimento de meus outros escritos? Logo, declaro aqui publicamente que o espírito mais íntimo e a alma de minha filosofia é que o homem não tem em geral nada além da experiência e que ele chega a tudo aquilo a que chega somente pela experiência, pela vida mesma. Todo o seu pensamento, seja avulso ou científico, comum ou transcendental, parte da experiência e visa de novo a experiência. Nada tem valor e significado incondicionados, a não ser a vida; todo o demais pensamento, invenção, saber, só têm valor na medida em que, de uma maneira qualquer, se referem ao que é vivo, partem dele e visam refluir para ele. Essa é a tendência de minha filosofia. Essa mesma é a da de Kant, que pelo menos sobre este ponto não me renegará; esta é a de um reformador da filosofia, contemporâneo de Kant, Jacobi, que, se quisesse entender-me, mesmo que fosse unicamente sobre este ponto, não faria mais tantas queixas sobre meu sistema. Logo, é a tendência de toda filosofia mais nova que entende a si mesma e sabe com determinação o que quer. Não devo aqui defender nenhuma das outras, falo apenas da minha, da assim chamada novíssima. Há, no ponto de vista dessa- filosofia, em sua marcha, em sua forma inteira, razões que induzem a acreditar que ela absolutamente não leva ao resultado estabelecido acima, mas, pelo contrário, ao resultado oposto. A saber, desde que se desconheça seu ponto de vista específico e se considere aquilo que é dito unicamente para esse ponto de vista como válido para o ponto de vista da vida e do entendimento comum. - Logo, basta-me descrever escrupulosamente esse ponto de vista e separá-lo rigorosamente do ponto de vista do entendimento comum, para que se verifique que minha filosofia não tem outra tendência, a não ser a que foi apresentada. Tu, meu leitor, caso queiras permanecer no ponto de vista do entendimento comum, manterás, neste, a mais completa segurança contra minha filosofia, ou contra toda outra filosofia; ou, caso queiras elevar-te ao ponto de vista da filosofia, obterás a introdução mais acessível possível a este último. Gostaria de ser finalmente entendido, de uma vez por todas, sobre os pontos que tenho de tratar aqui; pois estou cansado de repetir sempre o que já foi dito tantas vezes. Mas tenho de solicitar a paciência do leitor para um raciocínio contínuo, no qual só poderei vir em auxílio de sua memória pela repetição das proposições já demonstradas, quando tiver de inferir a partir delas. PRIMEIRA LIÇÃO Não estranhes, meu leitor, se pareço começar com algo muito elementar. Faço questão de tornar inteiramente claros para ti alguns conceitos que no futuro terão muita importância; não em vista desses próprios conceitos, que em si são comuns e triviais, mas em vista das consequências que pretendo tirar deles. Também não desenvolvo esses conceitos mais do que na medida em que preciso deles para meu fim; é isto que podes responder ao crítico literário, que poderia porventura esperar aqui algum virtuosismo analítico. Em primeiro lugar, sabes por certo distinguir o real efetivo, aquilo que é o verdadeiro estado de coisa de tua experiência e de tua vida presentes - aquilo que efetivamente vives e vivendas -, do não efetivo, meramente imaginado e afigurado. - Estás, por exemplo, agora, sentado aí, seguras este livro em tuas mãos, vês suas letras, lês suas palavras. Este é sem dúvida o acontecimento efetivo e a determinação do presente momento de tua vida. Podes, enquanto estás sentado aí e continuas a segurar o livro, lembrar-te de uma conversa que tiveste ontem com um amigo, imaginar esse amigo como se ele estivesse vivendo diante de ti, ouvi-lo falar, fazê-lo repetir aquilo que dizia ontem, e assim por diante. Ora, este último acontecimento, a aparição do amigo, é, exatamente como o primeiro, teu estar-sentado aí e segurar o livro, o acontecimento efetivo e verdadeiro do presente momento de tua vida? O LEITOR - De modo nenhum. O AUTOR - Entretanto, eu poderia opinar que pelo menos algo, também neste último estado, seria um acontecimento efetivo e real de tua vida: pois, diz-me, não continuas a viver enquanto isso, tua vida não continua a transcorrer enquanto isso, não está ela preenchida por algo? O LEITOR - Acho que tens razão. - O acontecimento verdadeiro de minha vida, neste último estado, é justamente que eu projeto o amigo diante de mim, o faço falar, e assim por diante - mas não que ele está aí. É com essa projeção que preencho o tempo que vivo enquanto isso. O AUTOR - Em teu estar-sentado e segurar o livro, e assim por diante - e em teu projetar o amigo que viste ontem, em teu representar sua conversa, e assim por diante, deve haver, desse modo, algo em comum, em decorrência do qual julgas, a respeito de ambos, que se trata de um acontecimento efetivo e real de tua vida. Aquela presença efetiva ontem de teu amigo, sua conversa efetivamente ocorrida ontem, como tu ainda hoje as julgas, não devem ter, no contexto temporal em que as colocas hoje, aquele algo em decorrência do qual as considerarias como efetivas; talvez mesmo um oposto desse algo, em decorrência do qual não as consideras como acontecimentos efetivos hoje. O LEITOR - Certamente tem de ser assim. Meu juízo deve ter um fundamento; um juízo igual deve ter um fundamento igual; um juízo oposto, a ausência do primeiro fundamento ou a presença de um fundamento dessa oposição. O AUTOR - Qual poderia ser esse fundamento? O LEITOR - Não sei. O AUTOR - Entretanto, tu julgas a cada instante sobre a efetividade e a não efetividade, e julgas corretamente, de acordo contigo mesmo e com outros seres racionais. Logo, o fundamento daqueles juízos tem de estar constantemente presente para ti; só que, ao julgares, não tens consciência clara dele. - De resto tua resposta: "Não sei", nada mais quer dizer do que: "Ninguém ainda me contou isso", Mas, mesmo que alguém contasse, de nada adiantaria; tens de encontrá-lo tu mesmo. O LEITOR - Por mais que procure por todos os lados, não consigo atinar como isso é possível. O AUTOR - Também não é esse o caminho certo, procurar por todos os lados e fazer suposições no vazio. Por essa via surgem sistemas vãos e sem conteúdo. Tampouco é possível inferi-lo, Mas bastará que tenhas consciência bem intimamente de teu procedimento naquele juízo sobre a efetividade e a não efetividade, e que olhes para dentro de ti mesmo, para teres consciência, ao mesmo tempo, do fundamento de teu procedimento, e o intuíres interiormente. - Tudo o que se pode fazer por ti, neste ponto, é guiar-te para que acertes; e servir assim de guia é, de modo geral, tudo o que é capaz de fazer um ensinamento filosófico, seja qual for. Mas é sempre pressuposto que tu mesmo tens efetivamente em teu interior aquilo a que o outro te guia, que tu o intuis e contemplas. Sem isso, obterias apenas a narrativa de uma observação alheia, mas não da tua própria; e, além do mais, uma narrativa ininteligível; pois aquilo de que se trata não pode ser completamente descrito por palavras, como se fosse algo composto de coisas já bem conhecidas por ti, mas é algo pura e simplesmente desconhecido, que só se torna conhecido pela própria intuição interior e só é designado por analogia com algo sensível conhecido; signo este que só adquire pela intuição sua significação perfeita. Que isto te seja dito de uma vez por todas, também para casos semelhantes no futuro; e procura passá-lo adiante, para uso dos escritores filosóficos que não o sabem e por isso se fazem ouvir tão inabilmente sobre a relação da filosofia com a linguagem. Mas vamos ao assunto! - Quando estás absorvido na leitura deste livro, na contemplação deste objeto, na conversa com teu amigo, pensas em teu ler, em teu contemplar, ouvir, ver, sentir o objeto, em teu falar, e assim por diante? O LEITOR - De modo nenhum. Nessa ocasião não penso em mim, de modo geral; esqueço-me inteiramente no livro, no objeto, na conversa. É por isso que também se diz: Estou absorvido nisto; também: Estou mergulhado nisto. O AUTOR - E isso, aliás - lembremos de passagem -, tanto mais quanto mais íntima, mais plena e mais viva é tua consciência do objeto. Aquela semiconsciência, sonhadora e dispersiva, aquela desatenção e falta de pensamento que é um traço característico de nossa época e o mais forte empecilho para uma filosofia fundamentada, é justamente o estado de quem não se embrenha inteiramente no objeto, não se enterra e não se esquece nele, mas fica vacilando por todos os lados e titubeando entre o objeto e si mesmo. Mas o que ocorre no caso de projetares diante de ti um objeto não julgado como efetivo neste contexto temporal- por exemplo, tua conversa de ontem com teu amigo? Há, também nesse caso, algo em que te embrenhas e no qual te esqueces? O LEITOR - Oh, sim! Justamente esse projetar diante de mim o objeto ausente é aquilo em que esqueço a mim mesmo. O AUTOR - Ora, disseste acima que no primeiro estado é a presença do objeto, no segundo, o representar de novo o objeto, o verdadeiro real em tua vida. Agora dizes que em ambos esqueces a ti mesmo; logo, o fundamento que procurávamos para teus juízos sobre efetividade e não efetividade estaria encontrado. O autoesquecimento seria o caráter da efetividade; e, em cada estado da vida, o foco em que te embrenhas e esqueces a ti mesmo e o foco da efetividade seriam um e o mesmo. Aquilo que te arrebata de ti mesmo seria aquilo que acontece efetivamente e preenche o momento de tua vida. O LEITOR - Ainda não te entendo inteiramente. O AUTOR - Eu tinha de estabelecer desde já esse conceito, e designá-lo tão claramente quanto fosse possível. De resto, limita-te a manter-te em diálogo atento comigo, e espero em breve ser inteiramente claro para ti. Podes também representar, por sua vez, esse representar de teu diálogo de ontem com teu amigo, que acabas de desempenhar? O LEITOR - Sem dúvida. Aliás, foi exatamente isso que fiz agora, durante nossa reflexão sobre aquela representação. Não representei propriamente aquela conversa, mas um representar daquela conversa. O AUTOR - O que consideras agora, nesta representação do representar, como sendo propriamente fático, como aquilo que preenche o momento de tua vida que transcorre? O LEITOR - Justamente o representar do representar. O AUTOR - Retoma agora comigo a um momento anterior e inferior. - Na representação da conversa de ontem - mas toma consciência bem intimamente dela e olha dentro de tua consciência -, que relação mantinha esta última, a conversa, com tua consciência e com o propriamente fático que a preenchia? O LEITOR - A conversa, como já foi dito, não era o acontecimento efetivo; o acontecimento era o imaginar a conversa. Entretanto, este último não era um imaginar em geral, era o imaginar uma conversa, e aliás esta determinada conversa. O imaginar, como o principal, tinha a conversa como seu acessório; esta última não era o efetivo, mas apenas a modificação, a determinação completa do efetivo. O AUTOR - E no representar dessa representação? O LEITOR - O representar da representação era o acontecimento efetivo; e a representação era a nova determinação daquele primeiro, na medida em que não somente se representava em geral, mas era representada uma representação; além disso, a conversa era a nova determinação da representação (representada), na medida em que não era representada uma representação em geral, como também seria perfeitamente possível, mas uma representação determinada de uma conversa determinada. O AUTOR - Logo, a realidade, de cada vez, o acontecimento efetivo e verdadeiramente vivido seria aquilo em que esqueces a ti mesmo, e este é o começo, o ponto de combustão, o foco próprio da vida, sejam quais forem as novas determinações subordinadas que esse foco - pois só uma vez este pode ser exatamente tal - traga consigo. - Desejo e espero ter-me tornado inteiramente claro para ti agora, desde que, durante esta investigação, tenhas estado junto de ti mesmo, intuído intimamente a ti mesmo e prestado atenção a ti. Enquanto representavas a conversa de ontem com teu amigo ou - para, de preferência, não admitir nada fictício e acompanhar-te exatamente no verdadeiro estado presente de tua mente - enquanto raciocinavas comigo como raciocinaste acima, preenchendo com isso tua vida e embrenhando nisso teu eu, consideras que durante esse tempo, mesmo fora de ti e de tua mente, transcorriam e aconteciam muitas outras coisas? O LEITOR - Certamente. Assim, por exemplo, enquanto isso o ponteiro de meu relógio avançou; o sol avançou; e coisas semelhantes. O AUTOR - Então viste esse avançar, o experimentaste, o viveste? O LEITOR - Como poderia fazê-lo, se estava raciocinando contigo e havia embrenhado meu eu inteiro nesse raciocinar, preenchendo-o com ele? O AUTOR - Como sabes então do avanço do ponteiro de teu relógio? - para ficarmos com este exemplo. O LEITOR - Anteriormente, olhei efetivamente para meu relógio e percebi a posição em que se encontrava o ponteiro. Agora olho outra vez para ele e não encontro o ponteiro na mesma posição, mas em outra posição. Infiro, a partir do funcionamento do relógio, que também conhecia anteriormente pela percepção, que o ponteiro, durante o tempo em que eu raciocinava, avançou gradualmente. O AUTOR - Admites que, se em vez de raciocinar comigo tivesses olhado durante o mesmo tempo para o ponteiro de teu relógio, terias percebido efetivamente seu avanço? O LEITOR - Certamente o admito. O AUTOR - Portanto, ambos, tanto teu raciocinar quanto o avanço do ponteiro de teu relógio, são, a teu ver, no mesmo momento, acontecimentos verdadeiros e efetivos; este último decerto não acontecimento de tua vida, pois durante esse tempo vivias algo outro. Entretanto, teria podido ser um acontecimento de tua vida, e o seria necessariamente, se tivesses prestado atenção ao relógio? O LEITOR - Assim é. O AUTOR - E o ponteiro, sem teu saber e sem tua intervenção, avançou efetivamente e de fato? O LEITOR - Assim admito. O AUTOR - Acreditas que, se não tivesses raciocinado, assim como não olhaste para o relógio, teu raciocínio teria avançado sem teu saber e sem tua intervenção, assim como o ponteiro do relógio? O LEITOR - De modo nenhum: meu raciocínio não avança por si mesmo; eu tenho de levá-lo avante para que ele prossiga. O AUTOR - Desse ponto de vista, o que se passa com o representar da conversa de ontem? Também esta advém sem tua intervenção, como o movimento do ponteiro, ou tu mesmo tens de produzi-la, como ao raciocínio? O LEITOR - Se reflito bem sobre isso - não sei. É certo que desta vez tenho perfeita consciência de, a pedido teu, ter engendrado ativamente em mim aquela representação. Mas como, em outras ocasiões, passam-me pela cabeça, sem minha intervenção ciente, imagens que se deslocam e dissolvem umas às outras, do mesmo modo que o ponteiro avança, não posso saber se aquela representação, mesmo sem teu pedido e sem minha intervenção, não teria vindo por si. O AUTOR - Com todo o respeito que um autor deve a seu leitor e que efetivamente tenho por ti, devo entretanto confessar-te que essa tua declaração é pouco significativa para o êxito de meu diálogo contigo. Considero que só durante o sono é permitido sonhar, mas durante a vigília não se deve deixar passar pela cabeça imagens que vêm por si. Essa absoluta liberdade de dar voluntariamente a seu espírito a direção determinada e mantê-lo nessa direção é condição exclusiva, não somente do pensamento filosófico, mas mesmo do pensamento comum que seja são e correto. Contudo, na esperança de que, pelo menos durante este diálogo resistirás àquela cega inclinação da associação de ideias c impedirás aquelas imagens e pensamentos alheios, deixarei de lado esse ponto duvidoso, e me aterei à declaração que fizeste acima sobre a liberdade do raciocínio. Segundo aquela declaração, há duas ordens de efetividade, ambas igualmente efetivas, mas das quais uma faz a si mesma e a outra tem de ser feita por aquele para quem ela deve estar aí e, sem esse seu fazer, não é absolutamente nada? O LEITOR - Assim parece. O AUTOR - Reflitamos ainda, um pouco mais atentamente, sobre o assunto. - Portanto, o ponteiro de teu relógio avançou efetivamente durante teu raciocinar, dizes tu. Poderias dizê-lo, saberias disso, se não tivesses alguma vez, depois de teu raciocinar, prestado atenção de novo ao ponteiro, e se agora não tivesses feito tua inferência, partindo da percepção efetiva de que ele está em outra posição que anteriormente? O LEITOR - Sem dúvida, não o saberia nesse caso. O AUTOR - Não te esqueças disso. É importante para mim. Toda realidade da primeira espécie - ainda que possa, para ti, sem nenhum saber ou intervenção de tua parte, prosseguir seu caminho e estar aí em si, isto é, sem referência a alguma consciência possível, ponto este que aqui absolutamente não estamos discutindo - só é, digo eu, para ti, e como acontecimento de tua vida, na medida em que alguma vez lhe prestas atenção, transportas para ela teu eu e manténs aquela realidade em tua consciência. Depois de refletir bem sobre isto, tua afirmação de que o ponteiro, da primeira percepção que tiveste dele até uma segunda percepção, sem a qual ele jamais chegaria novamente à tua consciência, avançou nesse meio tempo, em que não o percebeste - só pode querer dizer: Tu o terias percebido como avançando, nesse meio tempo, se lhe tivesses prestado atenção. Logo, por tua afirmação de um acontecimento fora de tua vida, afirmas, entretanto, apenas um acontecimento possível de tua própria vida, um modo possível dessa vida transcorrer e ser preenchida entre a primeira percepção do ponteiro e a segunda; tu suplementas e introduzes uma série de observações possíveis entre os extremos das duas percepções efetivas. Se eu te der minha palavra de que aqui, por toda parte, só quero falar de uma realidade para ti, e que, em parte nenhuma, quero pôr no lugar desta uma realidade sem referência a ti, nem quero afirmar e dizer nada desta última, tu me permitirás, sob essa condição, considerar aquela progressão de uma realidade exterior, sem tua intervenção, exclusivamente como uma progressão de tua própria consciência e vida possíveis, uma vez que já viste que só dessa maneira ela se torna realidade para ti? UM LEITOR (que também poderia ser um filósofo célebre, em seu lugar) - Não me venhas com isso. Ainda não te cansaste de me ouvir dizer que isso é a maior extravagância? Eu sempre parto de uma realidade em e para si, um ser absoluto. Acima disto não posso nem quero ir. A distinção que fazes entre uma realidade em si e uma realidade para nós, e a abstração da primeira, que empreendes e que, pelo que eu noto, é a pedra angular de teu edifício - é preciso, antes, que tu a... demonstres. O AUTOR - Então é assim? És capaz de falar de uma realidade, sem saberes dela, sem a teres, pelo menos obscuramente, em tua consciência e sem referi-la a esta? És capaz de mais do que eu. Deixa de lado este livro: não foi escrito para ti. UM SEGUNDO LEITOR, mais equitativo - Tolerarei tua restrição de só falar de uma realidade para nós, sob a condição de permaneceres fiel a ela e não mencionares a real idade em si em circunstância nenhuma. Mas, tão logo transgredires teus limites e fizeres alguma inferência em prejuízo deles, deixarei também de te ouvir. O AUTOR - Estás sendo apenas equitativo! Logo, pressupondo que só se trata de nossa referência à realidade e à efetividade, a situação de nossa consciência seria a seguinte: Toda realidade, qualquer que seja seu nome, surgiria para nós por um mergulho e esquecimento de nosso eu em certas determinações de nossa vida; e esse esquecimento de nosso eu em geral seria justamente aquilo que daria a essas determinações, em que nos esquecemos, o caráter de realidade, e que daria a nós, em geral, uma vida. Haveria, em primeiro lugar, certas determinações primeiras e fundamentais - pela oposição que será feita logo em seguida ficará clara esta expressão, sobre a qual te solicito que reflitas maduramente -, certas determinações primeiras e fundamentais de nossa vida, a verdadeira raiz dessa vida, que fazem a si mesmas e avançam por si mesmas, às quais basta que nos abandonemos, deixando nosso eu ser arrebatado por elas, para apropriar-nos delas e fazer delas nossa vida efetiva; cuja cadeia contínua, mesmo se for deixada em algum ponto, pode ser retomada à vontade, de tal modo que se pode, a partir de cada ponto, suplementar o transcorrido para trás e para diante. Basta abandonar-nos a elas, disse eu; pois arrebatar-nos irresistivelmente para si, mesmo essas determinações fundamentais não são capazes de fazer. Temos, além disso, a faculdade de desvencilhar dessas determinações nosso eu esquecido nelas, elevá-lo acima delas, e preparar livremente para nós, a partir de nós mesmos, uma série superior de vida e de efetividade. Podemos, por exemplo, pensar-nos e captar-nos como o consciente naquela consciência fundamental, o vivente naquela vida fundamental. - Esta é a segunda potência da vida, se chamo de primeira potência aquele repouso nas determinações fundamentais. É possível, por sua vez, captar-se como o pensante naquele pensar de saber originário, como o intuinte de sua própria vida naquele pôr dessa vida - e isto daria uma terceira potência; e assim por diante, ao infinito. Toda a diferença entre aquela primeira potência e as potências superiores - entre a vida- como que pressuposta e doada a nós, que nos basta admitir para fazermos dela nossa vida efetiva, e a vida não dada, que só pode ser produzida por autonomia - poderia ser exclusivamente a seguinte: de cada uma das potências superiores é possível olhar para baixo e descer para uma potência inferior; mas da última potência não se vê nada mais do que ela mesma, e não se pode descer mais fundo, a não ser para cair no reino do não ser; logo, quanto à via descendente, estamos restringidos e aprisionados por ela, embora absolutamente não o estejamos quanto à via ascendente, por reflexão; logo, ela é, por essa razão, o verdadeiro pé e a raiz de toda outra vida. Por isso as chamei acima de determinações primeiras e fundamentais de toda vida. Que nos seja suficiente aqui, em decorrência de nosso acordo, considerar essa esfera da primeira potência como a esfera de tais determinações fundamentais de nossa vida, mas, de modo nenhum, como a esfera de coisas em e para si, pois aqui não tomamos em consideração essa perspectiva. Ainda que essas determinações fossem, em e para si mesmas, também a esfera das coisas, para nós elas só são, a nós elas só chegam, como determinações de nossa vida, quando as vivemos e vivenciamos; e aqui contentamo-nos em falar delas apenas em referência a nós. Costuma-se chamar, de preferência, aquilo que está nessa esfera, de realidade, fato da consciência. Também se chama a isto de experiência. Fica sabendo, meu leitor, que de agora em diante se refletirá mera e exclusivamente sobre esse sistema da primeira potência; não te esqueças disso em nenhum instante; separa tudo o que está nas potências superiores e desvia delas teu olhar. Conto como pertencente a esse sistema da primeira potência tudo aquilo que, por um lado, percebemos pelos sentidos externos no espaço, e, por outro lado, descobrimos pelo sentido interno em nossa mente. Quanto a este último ponto, cai também nessa esfera aquilo que chamei de potências superiores, decerto não segundo seu conteúdo, mas certamente a propósito da forma, isto é, das leis segundo as quais se conduz e é estabelecido precisamente assim como é estabelecido. - Pois essas leis pertencem aos fatos do sentido interno e, se nos observamos bem por ocasião daqueles desempenhos da mente, são percebidas. - O principal propósito do presente diálogo contigo, meu leitor, era que tu - de resto arbitrariamente e somente em vista de meu futuro fim - dividisses tudo aquilo que se passa em tua consciência em duas classes e concebesses claramente a diferença entre aquilo que cai em uma ou outra dessas classes; separasses aquilo que é produto da liberdade e pertence às potências superiores e o deixasses de lado na investigação seguinte, para, em contrapartida, pensares exclusivamente naquilo que chamei de primeira potência e só olhares para esta última. Somente na medida em que viste essa distinção e a fixaste, não misturando de novo o que foi separado, captarás corretamente aquilo sobre o qual dialogaremos em seguida. SEGUNDA LIÇÃO O AUTOR - Não te esqueças, meu leitor, da distinção que fizemos entre duas determinações fundamentais de toda consciência possível, e guarda em tua memória que nesta dissertação sempre se tratará apenas da primeira, que chamamos de determinação primeira e fundamental de toda vida. E agora, sem te preocupares com a maneira como retomaremos nosso caminho, dispõe-te de novo a entrar em conversação comigo. Consideremos o interior de um artefato mecânico, de um relógio, por exemplo. Neste vês rodas de muitas espécies, ajustadas umas às outras, molas, correntes, e assim por diante. Observando, percorres a diversidade da obra, vês uma roda depois da outra. Importa-te, nessa observação, se apreendes as partes singulares da máquina de cima para baixo, ou se começas de baixo, do lado direito para o esquerdo ou do lado esquerdo para o direito? O LEITOR - De modo nenhum. Posso perfazer a- apreensão das partes segundo todas essas direções. O AUTOR - Ou, talvez, se nessa apreensão não segues a ordem da contiguidade, mas porventura te orientas segundo outras perspectivas, por exemplo: segundo a igualdade e semelhança exteriores entre as partes. O LEITOR - Tudo isso é indiferente para meu fim. O AUTOR - Entretanto, se é certo que apreendeste as partes singulares, desempenhaste essa apreensão segundo alguma série; vou supor que seguiste a contiguidade de cima para baixo. Por que, então, já que contudo eram possíveis várias sequências da apreensão, escolheste exatamente esta, e não uma outra? O LEITOR - Nem sequer posso dizer, de modo geral, que a escolhi. Absolutamente não pensei que seriam possíveis várias sequências de apreensão. Essa foi a que me ocorreu imediatamente. Foi o acaso - esse é o nome que uso quando não é possível indicar nenhum fundamento - que dispôs assim. O AUTOR - É certo que o diverso das determinações fundamentais da consciência em geral, descritas acima, se sucede em tua consciência também segundo certa série? O LEITOR - Sem dúvida. Eu observo, no mundo que está diante de mim, agora isto, depois aquilo, depois algo outro, e assim por diante. O AUTOR - Achas, à primeira vista, que exatamente essa série de tuas observações é necessária; ou julgas que outras também teriam sido possíveis? O LEITOR - Julgo que outras também teriam sido possíveis. Julgo, além disso, que aquelas, dentre as várias séries possíveis, que efetivamente se apresentam, não as escolhi com liberdade, mas que, do mesmo modo que a sequência de minha apreensão do diverso do relógio, elas me ocorreram assim por acaso. O AUTOR - Voltemos agora a nossa máquina e a tua apreensão de suas partes singulares! Ao considerares cada peça singular, esta roda, esta mola, sozinha e por si, e encontrares cada uma delas completamente determinada de certa maneira, com esta forma determinada, com este tamanho determinado, e assim por diante, parece-te impossível que ela pudesse ser de outro modo, ou podes perfeitamente pensar que poderia estar conformada das mais diversas maneiras, ser maior ou menor? O LEITOR - Julgo que a peça singular, considerada em si e por si, e como peça singular, poderia, sem dúvida, ser infinitamente outra. Mas todas as peças devem agir em conjunto e sua unificação deve produzir um resultado único; e, se levo isso em conta, todas as peças, a meu juízo, têm de ajustar-se, engrenar-se umas nas outras, todas elas têm de agir sobre cada uma delas, e cada uma delas reagir sobre todas. Se levo isso em conta, teria sido certamente possível, a meu juízo, fazer outro todo, por exemplo, um relógio maior ou um relógio que, além das finalidades do relógio efetivamente presente, tivesse também outros dispositivos; e nesse outro todo a roda singular que considero não só poderia ser de outro modo, mas até deveria sê-la. Mas, uma vez que está aí esse todo, o relógio de tal tamanho, tendo tais dispositivos, então seria pura e simplesmente necessário que esta peça singular, esta roda aqui, que eu considero, fosse exatamente como é e nem um fio de cabelo diferente, porque o todo é assim, isto quer dizer, aqui: porque todas as demais peças, além dessa roda, são como são. Ou, se minha consideração partir desta peça singular: uma vez posta esta peça, como peça de tal artefato, é necessário que todas as outras peças sejam tais como são, se é que devem ajustar-se exatamente a tal peça, em tal artefato. O AUTOR - Logo, dizes que basta entenderes convenientemente o mecanismo do artefato para absolutamente não teres necessidade, como pusemos acima, de apreender as partes da máquina, uma após a outra, pela percepção efetiva; e que basta teres visto e entendido corretamente uma delas para complementares a percepção a partir dela, sem outra percepção, e substituí-la por meras inferências; e, pressupondo que a máquina preencha sua determinação, poderias prever, por meras inferências, quais partes se adaptam ainda à parte dada. O LEITOR - Sem dúvida. O AUTOR - Para esse fim, é indiferente para ti qual das partes singulares da máquina eu te dou? O LEITOR - Totalmente indiferente; pois a cada peça possível todas as restantes têm de ajustar-se; logo, a partir de cada parte possível pode-se inferir como todas as demais, na medida em que são determinadas pelo mero mecanismo da obra, têm de ser constituídas. O AUTOR - Agora supõe este caso possível: Que - em certo âmbito e de certo ponto de vista, cuja determinação mais minuciosa não cabe aqui - há, no diverso do sistema fundamental de toda consciência, que foi descrito acima, tal conexão, semelhante à mecânica, de tal modo que cada parte singular tem de ajustar-se a tudo e tudo a cada parte singular e cada uma é determinada pelo todo. Nesse caso, não se poderia descobrir, a partir de cada parte singular da consciência efetiva, por mera inferência, como se disporá e terá de dispor-se toda consciência restante, sem que essa consciência restante se apresentasse efetivamente; do mesmo modo que, a partir da consideração de uma roda singular, te aventuras a descobrir, por mera inferência, como têm de ser constituídas todas as rodas restantes? Supõe, além disso, que a filosofia ou, se preferes, a doutrina da ciência consiste justamente em procurar esse diverso da consciência, pela via da inferência do dado ou não dado, e terias desde já um conceito bem claro dessa ciência. Ela é a demonstração, a derivação da consciência inteira - entende-se, sempre: segundo suas determinações primeiras e fundamentais - a partir de uma determinação qualquer dada na consciência efetiva, do mesmo modo que podes perfeitamente pensar uma demonstração do relógio inteiro a partir de uma única roda dada; uma demonstração da consciência, independente da percepção efetiva dessa consciência, do mesmo modo que absolutamente não precisas ver as partes restantes do relógio para saber como são, e como são com toda certeza na efetividade, se é que o relógio cumpre sua determinação. O LEITOR - Oh! Sim! Contanto que eu pense o que dizes apenas assim superficialmente e me restrinja à sua semelhança com aquilo ao qual o comparas. Mas, se medito sobre isso um pouco mais profundamente, teu conceito me parece contradizer-se em si mesmo. A doutrina da ciência deve proporcionar-me uma consciência das determinações fundamentais de minha consciência, sem que essas determinações apareçam efetivamente em minha consciência. Mas como pode fazer isso? Então não tomo consciência daquilo que a doutrina da ciência ensina? O AUTOR - Sem dúvida: do mesmo modo que tomas consciência das rodas cuja existência na máquina tu meramente inferes. Mas não tomas consciência delas como tomarias ao vê-las e senti-las. - Já deveria ter-se tornado claro para ti, a partir de nossa primeira investigação, que pode haver uma distinção no modo de tomar consciência. Mais adiante, vamos explicitá-la fartamente para nosso caso, ainda com mais clareza. Logo, não deixes que essa dificuldade te impeça de acompanhar nossa pressuposição. O LEITOR - Seriamente, não tenho disposição nenhuma para acompanhar o que se seguiria se o meramente possível fosse efetivo ou se o impossível fosse possível. E tua pressuposição de uma conexão sistemática das determinações fundamentais de nossa consciência parece-me certamente fazer parte das impossibilidades. O AUTOR - Espero poder desfazer tuas objeções contra a possibilidade de minha pressuposição. Por enquanto, tira comigo daquela pressuposição apenas uma única consequência, que convém tirar o mais rapidamente possível, para eliminar mal-entendidos de outra espécie e suprimir em tua mente a secreta sequência de seus efeitos. Se apreendes e consideras uma única peça daquele relógio e inferes, segundo as leis da mecânica que conheces, quais partes são ainda requeridas para dar a esse elemento percebido por ti a inteira determinação e efetividade que encontras nele - acaso, nessa função de inferir, vês efetivamente essas partes, tocas nelas, apresentam-se elas diante de algum de teus sentidos externos? O LEITOR - De modo nenhum. Referindo-me a teu exemplo utilizado no primeiro diálogo: elas não estão em relação com minha consciência como este livro que tenho na mão, mas como a representação da conversa de ontem com meu amigo; levando-se em conta, é claro, as diferenças. O propriamente fático nessa operação, aquilo no qual empenho e perco meu eu, não é o estar-aí de tais rodas, mas meu representar - não propriamente a afiguração, mas a prefiguração de tais rodas. O AUTOR - Tu, ou qualquer homem racional, tomas tal representação, o traçado e delineamento interior de tal máquina, pela máquina efetiva, em funcionamento, desempenhando suas funções na vida? E acaso alguém te diz, depois de ter descrito e demonstrado, por exemplo, um relógio de bolso: agora fica com este relógio de bolso para ti; ele funcionará corretamente; podes tirá-lo do bolso quando quiseres e ver nele que horas são? O LEITOR - Não, que eu saiba; a não ser que seja um completo idiota. O AUTOR - Cuidado, não fales assim. Pois é assim, e não de outro modo, que procedia o sistema filosófico de que te falei na introdução e contra o qual o sistema mais novo é propriamente dirigido. Ele fazia passar a demonstração de um relógio, que além do mais era incorreta, por um relógio efetivo, e por um relógio excelente. Mas se alguém, a quem tivesses demonstrado um relógio de bolso, te dissesse ao terminares: De que pode me adiantar tudo isso? - não vejo como possa chegar com isso a um relógio de bolso nem ver em tua demonstração que horas são; ou te acusasse de, com tua demonstração, teres avariado seu relógio efetivo, ou de o teres demonstrado para fora de seu bolso; o que dirias de tal pessoa? O LEITOR - Que é um idiota, tanto quanto o primeiro. O AUTOR - Cuidado, não fales assim. Pois é exatamente isso - essa exigência do relógio efetivo quando só lhes havia sido prometida uma demonstração dele - a censura mais profunda que até este momento foi feita contra a filosofia mais nova, por parte dos teóricos mais respeitáveis e dos pensadores mais profundos de nosso tempo. Nessa confusão entre a coisa efetiva e a demonstração dessa coisa é que se fundam, afinal, todos os mal-entendidos com que deparou essa filosofia. Somente nela se fundam todas as objeções e mal-entendidos - digo-o com determinação. Pois o que me impede de, em vez de todas as pressuposições quanto ao que poderia ser a ciência a ser descrita, indicar desde logo, historicamente, o que ela efetivamente é para seus criadores, que sem dúvida devem conhecê-la! 1) A filosofia ou - já que essa denominação poderia dar ocasião a polêmicas - a doutrina da ciência, em primeiro lugar, deixa totalmente de lado, exatamente como se presumiu que tu, meu leitor, fizeste até agora, aquilo que caracterizamos acima como potências superiores da consciência, e restringe-se, com a afirmação que logo estabeleceremos, exclusivamente às determinações primeiras e fundamentais da consciência, exatamente no sentido que explicamos acima e em que tu o concebeste. 2) Nessas determinações fundamentais ela faz ainda uma nova distinção entre aquilo que todo ser racional afirma que é exatamente assim para todo outro ser racional e tem de valer para toda razão; e aquilo que cada um tem de admitir que está aí apenas para nossa espécie, para nós homens, ou mesmo apenas para nós, como este indivíduo particular. Este último ela deixa igualmente de lado, e assim só resta para sua investigação o âmbito do primeiro. Mesmo que algum leitor possa ficar em dúvida quanto ao fundamento e aos limites desta última distinção, e não possa tornar esta distinção inteira tão clara para si quanto se tornou, segundo nossa pressuposição, a primeira distinção indicada acima, isso não é significativo para nenhuma das inferências que pretendemos fazer neste escrito, e não traz prejuízo para a formação de um conceito da doutrina da ciência tal como o visamos aqui. No sistema efetivo, em que não é nosso intento aqui introduzir o leitor, aquilo que é determinado meramente pela espécie e pela individualidade separa-se já por si mesmo. Acrescentemos isto de passagem, para o leitor familiarizado com a terminologia filosófica: o primeiro, válido para toda razão, nas determinações fundamentais da consciência, somente com o qual a filosofia tem de ocupar-se, é o a priori kantiano, ou o originário; o segundo, determinado apenas pela espécie e pela individualidade, é o a posteriori desse mesmo escritor. A doutrina da ciência não precisa pressupor essa distinção anteriormente a seu sistema, na medida em que ela é feita e fundada no próprio sistema, e, para ela, aquelas expressões, a priori e a posteriori, têm uma significação inteiramente outra. 3) A doutrina da ciência pressupõe, apenas para ganhar acesso a si mesma e obter uma tarefa determinada, que, no diverso daquelas determinações fundamentais, segundo o âmbito indicado, pode haver uma conexão sistemática, em decorrência da qual, se um elemento é, todo o restante tem de ser e de ser exatamente como é; logo, que - e isto está contido na pressuposição - aquelas determinações fundamentais, segundo o âmbito indicado, constituem um sistema perfeito e fechado em si mesmo. Isto, digo eu, ela pressupõe anteriormente a si mesma. Em parte, ela mesma ainda não é isso: com isso ela apenas se torna possível; em parte, isso também é apenas pressuposto, ainda não é demonstrado. Aquelas determinações são, eventualmente, conhecidas daquele que faz doutrina da ciência, e não vem ao caso aqui saber de onde são conhecidas. Ele chega - igualmente não vem ao caso aqui saber como - ao pensamento de que entre elas pode bem haver uma conexão sistemática. Agora ele ainda não afirma essa conexão, nem tem pretensões de prová-la imediatamente, e muito menos de provar algo outro a partir da pressuposição dela. Seu pensamento pode ser uma mera suposição, uma inspiração casual, que não deve significar nada mais do que qualquer outra inspiração casual. 4) Em decorrência dessa pressuposição, o elaborador da doutrina da ciência faz então a tentativa de derivar, de uma determinação fundamental da consciência, que ele conhece - não cabe aqui dizer de qual-, todas as demais, como necessariamente vinculadas com a primeira e determinadas por ela. Se a tentativa falhar, com isso ainda não estará provado que não terá êxito de outra vez, portanto não estará provado que aquela pressuposição de uma conexão sistemática é falsa. Conserva, depois como antes, sua validade como problema. Se essa tentativa tiver êxito, se efetivamente todas as determinações fundamentais da consciência - além da já conhecida - se deixam derivar, derivar completamente e esgotar, com isso a pressuposição estará demonstrada pelo fato. Mas até mesmo essa pressuposição, doravante elevada à condição de proposição estipulada, é alheia para nós na descrição da doutrina da ciência. A operação dessa derivação, por si só, é a própria doutrina da ciência: onde começa essa derivação, esta começa, e onde aquela se perfaz, esta está perfeita. Portanto, meu leitor, deixa que isto fique estipulado e firme entre nós, e tem-rio sempre em mente: a doutrina da ciência é a derivação sistemática de algo efetivo, da primeira potência da consciência; e está para a consciência efetiva assim como a demonstração do relógio, descrita acima, está para o relógio efetivo. Como mera doutrina da ciência, ela não quer ser mais que isso, de nenhum ponto de vista possível - por exemplo, ao lado disso, e coisas semelhantes; e absolutamente não quer ser nada, se não puder ser isso. Todo aquele que a faz passar por algo outro ou por mais que isso, desconhece-a inteiramente. Em primeiro lugar, seu objeto são as determinações fundamentais de uma consciência, como tais: como determinações de uma consciência; de modo nenhum, por exemplo, como coisas existentes efetivamente fora da consciência. Que ambas, nela e para ela, bem poderiam ser o mesmo, mas que - e por que - a ciência só pode adotar a primeira perspectiva, é o que veremos mais adiante. Aqui é suficiente indicar apenas que é assim. Ora, essas determinações fundamentais da consciência, tais como a doutrina da ciência as tem por objeto, a percepção também as tem em si; ou, mais ainda, aquelas determinações fundamentais da consciência são a própria percepção; mas ambas têm o mesmo por objeto de maneira diferente. Assim como, acima, a consciência da presença efetiva de teu amigo estava para a representação dessa presença, assim como o relógio efetivo estava para a demonstração do relógio - assim está a consciência efetiva para a doutrina da ciência. Não é naquelas próprias determinações fundamentais da consciência, mas na afiguração e no delineamento dessas determinações que, no filosofar, o eu está mergulhado. Logo, a doutrina da ciência deriva, a priori, sem nenhuma consideração pela percepção, aquilo que, segundo ela, deve aparecer justamente na percepção, portanto, a posteriori. Logo, para ela, essas expressões não significam objetos diferentes, mas apenas um modo de ver diferente de um e o mesmo objeto; assim como, por exemplo, o mesmo relógio, na demonstração dele, é empregado a priori e, na percepção efetiva, a posteriori. Esta determinação a doutrina da ciência deu a si mesma, desde que está aí, e já a traz claramente impressa na fronte, pelo seu nome. É quase impossível conceber por que não se quis acreditar nela quanto ao que ela é. Restringindo-se a essa determinação, ela pode deixar toda outra filosofia ser tudo o que quiser ser: diletantismo da sabedoria, sabedoria, sabedoria do mundo ou "mundisapiência", sabedoria da vida, e ainda quantas espécies de sabedoria possa haver. Só faz a exigência, sem dúvida equitativa, de não ser considerada como igual às outras, julgada e refutada a partir delas; assim como aqueles que a elaboram só pedem que não sejam obrigados a colaborar com outras filosofias e a tomar conhecimento delas. Não toma parte na controvérsia quanto ao que possa parecer a este ou aquele que seja a filosofia, ou ao que lhe parecer que foi considerado até agora como filosofia. Invoca seu direito de dar a si mesma sua tarefa; e, se filosofia for algo outro que não a solução dessa tarefa, deseja não ser filosofia. Espero, meu leitor, que esta descrição da doutrina da ciência, como mera descrição histórica, seja inteiramente clara e inteligível, e não deixe persistir nenhuma ambiguidade. Resta-me apenas solicitar que a tenhas em mente e que não a esqueças de novo na primeira ocasião; e que queiras acreditar em mim quando te digo que, de minha parte, aquela descrição é levada inteiramente a sério, que ela deve permanecer inabalável e que tudo aquilo que a contradisser será repudiado por mim. TERCEIRA LIÇÃO O LEITOR - Acredito agora ter captado bem tua opinião sobre a doutrina da ciência e, historicamente, saber muito bem o que pensas dela. Também posso, enquanto não me afasto da mera semelhança entre ela e a demonstração de um artefato mecânico, pensar sua possibilidade, desse modo aproximado e geral. Mas, assim que considero a diferença necessária entre ambas e a distinção característica dos objetos de cada uma delas, uma ciência como a que tu descreves me parece totalmente impossível. O conceito da vinculação sistemática do diverso no artefato, para a produção do resultado visado, já estava no espírito do artesão antes de haver o artefato; e este só foi instituído, na efetividade, por esse conceito e segundo esse conceito. Nós outros nada mais fazemos do que reimaginar aquele conceito do artesão, reinventar, depois do artesão, o artefato. E, assim, tem muito significado dizer, neste caso, que o diverso está em uma conexão sistemática. Essa conexão sistemática se encontra no conceito do artesão e de todos aqueles que se pensam como artesãos. Será que a tua afirmação de que, no diverso da consciência, há uma conexão sistemática, significa, da mesma maneira: essa consciência foi instituída, segundo o conceito de tal conexão, por algum artesão; e quem faz doutrina da ciência reinventa, depois dele, esse conceito? Onde está esse artesão? Como e a partir de que ele instituiu a consciência? O AUTOR - E se não quisesse dizer isso, e a semelhança com o termo de comparação não devesse ser estendida até esse ponto? E se a proposição que aparece como ambígua quisesse dizer apenas isto: pode-se considerar o diverso da consciência, entre outras coisas, também como estando em uma conexão sistemática. Ou então: há duas maneiras de considerar e apreender as determinações de uma consciência: de um lado, uma maneira imediata, justamente quando nos abandonamos a essas determinações e as encontramos tais como se dão; de outro lado, uma maneira mediata, quando derivamos sistematicamente a maneira como elas têm de se dar, em decorrência dessa conexão sistemática. Portanto, este modo de ver só poderia ser assumido depois que a consciência efetiva existisse, embora sem levar em consideração o conteúdo desta, mas não anteriormente à existência dessa consciência. E esse modo de ver só existiria naquele que o assumisse livremente. Logo, o elaborador da doutrina da ciência, e somente ele, seria o artesão da consciência, se é que deve haver um artesão aqui. Ele é propriamente o reinventor da consciência, sem que entretanto fosse pressuposto e admitido seriamente um primeiro mestre de obra originário e um conceito segundo o qual este tivesse instituído sua obra. O LEITOR - Devo, portanto, pensá-lo da seguinte maneira, se te entendi corretamente: Há uma consciência como determinação fundamental da vida, tão certo quanto eu mesmo sou, e pronto. Essa consciência aparece como um diverso sem conexão, e pronto. Que consciência é essa, eu o sei justamente porque a tenho e, desse ponto de vista, não tenho de perguntar por mais nada. É possível ainda, além disso, derivar sistematicamente esse diverso, como tendo de ser exatamente assim como é, se é que há consciência. Esse modo de ver, essa derivação, essa conexão sistemática que se verifica na derivação, só são para aquele que capta esse modo de ver e absolutamente para ninguém mais; e, também deste segundo ponto de vista, não se pergunta por mais nada. O AUTOR - Assim o entendo. O LEITOR - Seja. Embora, aqui, mais uma vez, eu apreenda apenas historicamente tua opinião, em vez de concebê-la; e embora ainda restem para mim muitas perguntas. Mas vamos adiante. O artesão, que traça o conceito de um artefato mecânico, reconduz o diverso, nesse conceito, à unidade de um resultado. O artefato deve cumprir tal ou tal fim determinado; o diverso e a ação conjunta desse diverso contêm, segundo o conceito do artesão, as condições sem as quais a obra não pode cumprir esse fim; e essa unidade é anterior ao artefato, e mesmo anterior ao conceito do diverso. Este último só surge pelo conceito da unidade, em função dela, e é determinado por ela. É preciso exatamente tal diverso porque esse fim deve ser alcançado. Tal conceito da unidade me parece inseparável do conceito de uma conexão sistemática, Logo, teu elaborador da doutrina da ciência necessariamente teria de ter o conceito de tal unidade, de tal fim e resultado de toda consciência, ao qual reconduziria o diverso, como sua condição. O AUTOR - Sem dúvida. O LEITOR – E, alia, não pode encontrar essa unidade já no sistema, mas tem de tê-la antes de começar sua derivação sistemática; assim como o artesão tem de saber qual é o fim que deve ser alcançado por sua obra, antes de poder procurar os meios para esse fim. O AUTOR - Sem dúvida, o elaborador da doutrina da ciência tem de ter esse conceito da unidade anteriormente ao sistema. O LEITOR - O artesão pensa com liberdade esse fim: ele o cria por seu pensamento, já que tanto a existência do artefato quanto sua constituição dependem exclusivamente do artesão. Como, segundo tuas próprias palavras, o elaborador da doutrina da ciência não precisa produzir antes a consciência, e esta está aí independentemente dele, e está aí tal como é, ele não pode excogitar livremente essa unidade; pois o diverso efetivamente existente sem intervenção do filósofo tem de se referir a ela, igualmente sem intervenção do filósofo. Tampouco ele pode, como já foi dito, encontrá-la em sua derivação sistemática; pois aquela é um pressuposto da possibilidade desta. Finalmente, tampouco pode encontrá-la, por percepção, na consciência efetiva, pois nesta, segundo a pressuposição, só aparece o diverso, mas não a unidade. Logo: como e em que medida deve ele chegar a essa unidade? O AUTOR - Para ti é suficiente admitir que isso ocorre simplesmente por uma inspiração feliz. Ele adivinha essa unidade. Isto, sem dúvida, lhe dá apenas uma suposição; e ele deve começar a construir seu sistema contando com a sorte. Se se encontrar nessa investigação que efetivamente todo o diverso da consciência se deixa reconduzir àquele suposto, como à sua unidade, então, com isso, mas somente com isso, está demonstrado que sua pressuposição era correta. Ela está demonstrada pelo fato, pela execução do sistema. O LEITOR - Seja também isso. - Mas vamos adiante, ainda uma vez. - O artesão conhece, antes de seu conceito do artefato, as leis necessárias e imutáveis do mecanismo, com as quais conta na vinculação do diverso para a produção do resultado visado como fim; conhece materiais e suas propriedades, a partir dos quais quer formar o diverso e com cuja imutabilidade também conta em seu conceito. Do mesmo modo, o filósofo, antes de sua derivação, teria de conhecer leis imutáveis segundo as quais o diverso da consciência produziria seu resultado capital pressuposto, e, se não estou enganado em tudo, algo material, que já estaria determinado segundo essas leis; estaria, digo eu, sem intervenção do filósofo. Vamos que eu fique apenas com o primeiro ponto - de onde obtém o filósofo o conhecimento dessas leis? Acaso também as adivinha somente por uma inspiração feliz; até que se verifique que são as corretas porque, a partir delas, o resultado capital pressuposto pode ser derivado do diverso da consciência; assim como, inversamente, se verifica que o resultado pressuposto era o correto porque é precisamente esse resultado que advém segundo essas leis? O AUTOR - Estás zombando da doutrina da ciência; e com mais perspicácia do que é usual. - Não, a doutrina da ciência não procede assim como admites; isso seria um círculo vicioso. Não te afastes das comparações escolhidas. Seja o elaborador da doutrina da ciência o artesão, que constrói o artefato da consciência; que contudo já está aí, como ele próprio afirma - portanto, apenas o reinventa; contudo inventa puramente na medida em que durante seu trabalho não dirige os olhos para o artefato já existente. Mas a grande diferença é que o fabricante de uma obra mecânica está às voltas com a matéria morta, que ele põe em movimento, o filósofo com uma matéria viva, que move a si mesma. Não engendra propriamente a consciência, mas a deixa engendrar-se sob seus olhos. Ora, se a consciência é regida por leis, então sem dúvida ela se dirigirá segundo essas leis em seu autoengendramento; ele observará e, nessa ocasião, descobrirá também, ao mesmo tempo, essas leis, muito embora nem sequer tenha de se ocupar com essas leis, mas exclusivamente com seu resultado, a consciência completa. O LEITOR - Uma consciência que engendra a si mesma e que apesar disso não é a consciência efetiva, outorgada a todos nós e conhecida de todos? O AUTOR - De modo nenhum; pois essa não se engendra sistematicamente, seu diverso só está vinculado pelo mero acaso. O que se engendra sob os olhos do filósofo é apenas uma figuração da consciência efetiva. O LEITOR - Uma figuração, que engendra a si mesma? Agora não entendo mais nada; e não te entenderei enquanto não me deres um breve resumo de teu procedimento. O AUTOR - Pois bem. A pressuposição de que partimos é que o resultado último e supremo da consciência, isto é, aquilo para o qual todo o diverso dela está, assim como a condição está para o condicionado, ou como as rodas, molas e correntes no relógio - estão para o ponteiro das horas, nada mais é do que a clara e completa autoconsciência, assim como tu, eu e todos nós temos consciência de nós mesmos. Eu digo: assim como tu, eu e todos nós; e justamente com isso, de acordo com uma observação feita acima, excluo puramente todo individual, que, segundo a pressuposição, não pode absolutamente ser incluído em nosso sistema. Aquilo que atribuis apenas a ti, e não a mim, e aquilo que eu, de meu lado, atribuo apenas a mim e não a ti, permanece excluído; exceto o fato de em geral atribuíres a ti mesmo algo que não pode caber a nenhum outro; assim como eu e todos nós. Ora, isto - que a autoconsciência completa é o resultado supremo e último de toda consciência - é, como foi dito, uma mera pressuposição, que espera sua confirmação do sistema. E é dessa autoconsciência em sua determinação fundamental que parte então a derivação. O LEITOR - Em sua determinação fundamental? Que quer dizer isso? O AUTOR - Naquilo que, nela, não é condicionado por nenhuma outra consciência; logo, naquilo que não poderia ser encontrado na derivação, mas do qual, pelo contrário, esta tem de partir. O diverso da consciência contém as condições da autoconsciência completa - esse é o pressuposto. Mas então poderia haver, nessa autoconsciência, algo que não estaria condicionado por nenhum outro. É isto que deve ser estabelecido, e com ele começa a derivação. O LEITOR - E como o encontras? O AUTOR - Também somente por uma inspiração feliz; mas que, uma vez encontrada não precisa de mais nenhuma prova, nem é suscetível de prova, mas é imediatamente evidente por si mesma. O LEITOR - Mesmo que, provisoriamente, eu não exija de ti uma prestação de contas sobre essa evidência imediata, o que é imediatamente evidente naquilo que é estabelecido? O AUTOR - Que o estabelecido é o absolutamente incondicionado e característico da autoconsciência. O LEITOR - Não te entenderei enquanto não me indicares esse imediatamente evidente, de que partes, esse absolutamente incondicionado e característico da autoconsciência. O AUTOR - É a egoidade, a sujeito-objetividade, ou não é absolutamente nada; o pôr do subjetivo e de seu objetivo, da consciência e daquilo de que ela tem consciência, como um; e pura e simplesmente nada mais do que essa identidade. O LEITOR - Sei, por tê-lo ouvido muitas vezes, que justamente sobre esse primeiro ponto, que entretanto deve ser para ti inteiramente claro e universalmente inteligível, já que começais dele todo o teu entendimento, foste considerado muito ininteligível, e ridículo, ainda por cima. Não queres fornecer-me, para atender a outros, meios auxiliares para tornar isso um pouco mais inteligível? De resto, não quero desviar-te com isso de teu caminho, caso também esse ponto já faça parte, apenas, da doutrina da ciência efetiva, e não pertença a um comunicado prévio. O AUTOR - Certamente pertence a este comunicado; pois é o ponto comum, já mencionado acima, da doutrina da ciência e da consciência efetiva, a partir do qual a primeira se eleva acima desta última. Quem deve adquirir um conceito completamente claro dessa ciência tem de conhecer o ponto de que ela parte; e tal conceito deve, de fato, ser engendrado por nosso comunicado. De resto, constar que não nos entenderam sobre este ponto é algo absolutamente inconcebível; pois toda criança, desde que tenha deixado de falar de si na terceira pessoa e que se chame de eu, já desempenhou aquilo de que tratamos, e pode entender-nos. Tenho de repetir, justamente, o que já disse diversas vezes: Pensa algo qualquer; por exemplo, esse livro, que seguras na mão. Ora, podes sem dúvida tomar consciência do livro, como o pensado, e de ti mesmo, como o pensante do livro. Ora, parece-te que tu e o livro são um só, ou que são dois? O LEITOR - Obviamente dois. Nunca me confundirei com o livro. O AUTOR - E, para não confundires a ti mesmo, o pensante, com o pensado, é preciso que este seja exatamente um livro, e este livro? O LEITOR - De modo nenhum; eu distingo a mim mesmo de todo objeto. O AUTOR - Logo, no pensar este livro podes deixar de lado tudo aquilo pelo qual o pensas como um livro, e como este livro, e refletir exclusivamente sobre o fato de distinguires, nesse pensar, a ti, o pensante, do pensado? O LEITOR - Sem dúvida. De fato, quando me perguntaste se me distingo do livro e eu te respondi - não refleti sobre nada mais que isso. O AUTOR - Logo, distingues todo objeto de ti, do pensante, e não há para ti nenhum objeto, a não ser mediante essa distinção? O LEITOR - Assim é. O AUTOR - Agora pensa-te. Podes, sem dúvida, também aqui tomar consciência de um pensante e de um pensado. Acaso, também aqui, o pensante e o pensado caem um fora do outro, também aqui ambos são dois? O LEITOR - Não; justamente quando penso a mim mesmo, sou decerto o pensante, pois senão eu não me pensaria, e ao mesmo tempo sou aquele que é pensado, pois senão eu não me pensaria, mas estaria pensando um objeto eventual, como o livro. O AUTOR - Agora pensaste, por certo, em primeiro lugar a ti, isto é, a este indivíduo determinado, Caio ou Semprônio, ou como quer que te chames. Mas, sem dúvida, podes deixar de levar em conta essas determinações particulares de tua personalidade, assim como pudeste, acima, não levar em conta as determinações particulares deste livro; e refletir exclusivamente sobre o coincidir do pensante e do pensado, assim como acima refletiste sobre o cindir-se de ambos. E tu o fizeste efetivamente naquele mesmo instante em que me explicavas, a respeito de teu pensar-te, que nele pensante e pensado coincidem para ti. E assim, nesse coincidir, encontras então o eu, por oposição ao objeto, em cujo pensar o pensante e o pensado se cindem para ti Logo, encontras o caráter essencial do eu, encontras aquele famigerado eu puro, com o qual os filósofos de nosso tempo há anos quebram a cabeça, continuando sempre a declará-la uma ilusão psicológica - eu escrevi: psicológica! - e a achá-la infinitamente divertido. O LEITOR - Pode ser que eles tenham acreditado que tal eu puro, uma coisa coincidente consigo e que retoma a si, mais ou menos como um canivete, deveria ser encontrado originariamente na mente, assim como a forma de "waffle" das formas dos kantianos. Procuraram fervorosamente por esse canivete, não encontraram nenhum e agora concluem que aqueles que dizem tê-lo visto se iludiram. O AUTOR - Pode bem ser que seja assim. - E tu, como encontraste então esse coincidir? O LEITOR - Ao pensar a mim mesmo. O AUTOR - As outras pessoas também pensam a si mesmas? O LEITOR - Caso não falem sem pensar, não há dúvida; pois todas elas falam de si mesmas. O AUTOR - E elas procedem, nesse pensar delas mesmas, exatamente como tu procederias? O LEITOR - Acredito que sim. O AUTOR - Podem também observar esse seu procedimento, assim como acabas de observar o teu? O LEITOR - Não duvido disso. O AUTOR - E, se o fizerem no pensar de si mesmos, igualmente encontrarão aquele coincidir; se não o fizerem, não o encontrarão: essa é nossa opinião. Aqui não se trata de encontrar algo já pronto, mas de encontrar algo que só é engendrado por um pensamento do eu. Logo todo aquele que simplesmente pensa, procede exatamente assim. Mas agora desejo de ti uma resposta decisiva. Admites seriamente que eu, e outros seres racionais, no pensar de si mesmos, procedam exatamente assim como tu, isto é, consideram o pensante e o pensado, nesse pensar, como um só? O LEITOR - Não só o admito, mas afirmo-o como inteiramente certo e considero uma exceção a isso como pura e simplesmente impossível. O pensamento do eu não pode ser instituído a não ser por esse procedimento; e esse próprio procedimento é o pensamento do eu. Logo, todo aquele que, simplesmente pensa, procede exatamente assim. O AUTOR - Eu te pergunto, meu leitor, se penetras com teu pensamento em minha alma e na alma de todos os seres racionais; e, mesmo que possas fazê-lo, se verificaste e percorreste, então, todos os seres racionais, para poder afirmar algo da alma de todos eles? O LEITOR - De modo nenhum; e contudo não posso retirar o que afirmei. E, aliás, quando observo bem a mim mesmo, encontro que ainda afirmo mais do que foi dito - afirmo ainda, além disso, que cada um, a partir de si mesmo, tem de afirmar o mesmo a propósito de todos os outros. . O AUTOR - E como podes chegar a essas afirmações? O LEITOR - Se observo bem a mim mesmo, encontro que ao meu procedimento está ligada imediatamente a mais irrefutável e inevitável convicção de que nem eu nem qualquer ser racional jamais poderá proceder de outro modo. O AUTOR - Logo, com esse procedimento, prescreves a ti e a todos os seres racionais uma lei; e tens aqui, ao mesmo tempo, um exemplo da evidência imediata mencionada acima. Mas voltemos agora ao nosso projeto! O filósofo encontra essa determinação fundamental e característica da autoconsciência ainda no exterior de sua ciência e independentemente dela. Ela não pode ser provada na ciência e, em geral, como proposição, não é suscetível de prova nenhuma. É imediatamente clara. Mas como princípio de doutrina da ciência não pode ser provada, a não ser pelo próprio fato, isto é, pelo fato de que a partir dela a derivação desejada é efetivamente possível. Ora, nessa derivação se procede da seguinte maneira: No pensar de mim mesmo, diz o elaborador da doutrina da ciência, procedo assim como acabamos de ver. Acaso, agora, se liga a este procedimento outro, de tal modo que obtivéssemos um novo traço fundamental da consciência, e a este último talvez novamente outro, e assim por diante, até chegarmos à autoconsciência completamente determinada e obtermos assim uma derivação sistemática do todo? O LEITOR - Mais uma vez não te entendo. - Perguntas se se liga algo outro, sem dúvida uma determinação da consciência. Como então deveria ligar-se, a que e em quê? Pelo menos eu não tomei consciência, no pensamento que acaba de ser desempenhado, de nada mais do que da identidade do pensante e do pensado. O AUTOR - Entretanto, conforme meu pedido e tua própria observação, não deixaste de lado muitas outras coisas, que pensavas ao mesmo tempo, no pensar de ti mesmo? É o que deverias ter feito. Acolher de novo aquilo que foi separado, no emaranhado em que se encontra, não levaria a ciência a nada. Mas mesmo naquela abstração, em que deverias apreender teu pensamento, algo se liga a este, e tu o encontrarás, desde que te observes bem. Por exemplo, esse pensar de ti mesmo não te aparece como um passar de outro estado para este estado determinado? O LEITOR - Assim é, certamente. O AUTOR - Acreditas, também quanto a isso, que o mesmo deve aparecer a todos os outros e que, se estes se observarem bem, o encontrarão do mesmo modo? O LEITOR - Certamente o creio, desde que observe bem a mim mesmo, e suponho o mesmo neles. Há aqui a mesma evidência imediata que havia acima. O AUTOR - Da mesma maneira, ajusta-se a esse fenômeno, desde que seja mantido convenientemente sob os olhos, outro, e a este, sob a mesma condição, um terceiro; e assim avança passo a passo a doutrina da ciência, até ter esgotado todo o diverso da consciência, e ter encontrado seu termo na autoconsciência determinada, completamente derivada. E assim, sob certo aspecto, é o próprio construtor da doutrina da ciência que engendra seu sistema da consciência. Entretanto, sob outro aspecto, esse sistema engendra a si mesmo. A saber, o primeiro fornece a ocasião e a condição do autoengendramento. Mas, quando pensa e constrói aquilo que visa, surge para ele algo outro, que ele absolutamente não visa, necessariamente e acompanhado da convicção evidente de que tem de surgir exatamente assim para todos os seres racionais. O elaborador da doutrina da ciência engendra com absoluta liberdade somente a origem e o primeiro termo de sua cadeia. A partir dessa origem ele é guiado; mas não impelido. Cada novo termo que surge para ele na construção do precedente, ele tem de tornar a construir, em particular, com liberdade, e então, mais uma vez, virá encadear-se a este um novo termo, com o qual ele procederá como com o precedente; e dessa maneira seu sistema se institui gradualmente para ele. Logo, nesta ligação de um diverso ao outro, manifestam-se as leis da consciência sobre as quais tu levantaste uma questão. Afinal, ele nem sequer tem de ocupar-se com a apreensão dessas leis, mas exclusivamente com seu resultado. O LEITOR - Lembro-me de ter ouvido dizer que te objetam: - Teu sistema seria perfeitamente correto e consequente, contanto que aceitasse teu princípio. - Até que ponto essa objeção faz algum sentido? O AUTOR - Se porventura o lugar e a significação do sistema inteiro, assim como do princípio, não foram totalmente equivocados e tomados em um sentido em que são incorretos, e por isso jamais poderão ser provados; em suma, se porventura não são tomados como psicológicos, então a exigência de que se demonstre a eles o princípio só pode ter as seguintes significações: Ou exigem uma prova de nosso direito de filosofar assim como o fazemos, e não assim como eles fazem. Com essa exigência eles poderiam ser sumariamente descartados, pela razão muito natural que todo mundo tem incontestavelmente o direito de fazer a ciência que quiser. Limitem-se, então, a deixar nossa doutrina da ciência valer como uma ciência particular, ainda desconhecida para eles; em contrapartida, também nós deixaremos suas filosofias valerem como tudo aquilo que eles pretendem que elas sejam. Só quando disséssemos: Suas filosofias não são absolutamente nada - como certamente o pensamos e, em seu devido lugar, também dizemos -, eles poderiam intimar-nos a uma prova. Mas essa prova só é apresentada completa e decisivamente por nossa doutrina da ciência inteira; logo, por enquanto, e até que lhes seja forneci da uma prova de legitimidade desse procedimento, eles teriam, em todo caso, de dedicar-se ao estudo desta ciência. - Ou então desejam que a proposição seja provada como princípio do sistema, antes do sistema; exigência esta que é absurda. Ou querem que a verdade do conteúdo daquela proposição seja provada por um desmembramento dos conceitos contidos nela. Isso provaria que eles não têm nem o conceito nem o senso da cientificidade, que nunca repousa sobre conceitos, mas sempre apenas sobre a intuição e a evidência imediata. Teríamos então de deixá-los de lado, sem perder mais tempo com eles. O LEITOR - Mas temo muito que é exatamente com este último ponto que eles se chocam. Se cada um pode reportar-se apenas à sua intuição, e atribuí-la a todos os outros, sem apresentar ordenadamente, a partir de conceitos, sua prova, então qualquer um pode afirmar tudo o que quiser: todo disparate tem de ficar impune, e estão abertos para todos os delírios a porta e o portal. É isso, temo eu, que eles diriam. O AUTOR - Ninguém pode impedir-lhes isso; pode ser até que aqueles que lhes são semelhantes acreditem neles. A ciência não tem mais nenhuma pretensão quanto a eles. Mas tu, meu leitor, que estás aí com imparcialidade e a quem, embora não queiras dedicar-te ao estudo da filosofia mesma e elevar-te à intuição própria dessa ciência, deve ser apresentado, apesar disso, um conceito da filosofia - para ti, nessas condições, é possível descrever, a partir de outros exemplos fáceis, a natureza e a possibilidade dessa intuição. Admites, por certo, que um triângulo está completamente determinado por dois lados e o ângulo incluído neles, ou por um lado e os dois ângulos adjacentes, isto é, que, sob a pressuposição de partes dadas, têm de ser acrescentadas exatamente aquelas outras partes que são acrescentadas, para que se forme um triângulo? O LEITOR - Admito. O AUTOR - Não temes que poderia, entretanto, ocorrer um caso em que não fosse assim? O LEITOR - Absolutamente não o temo. O AUTOR - Ou temes que um ser racional qualquer, desde que entendesse tuas palavras, te recusaria essa afirmação? O LEITOR - Também a isso não temo. O AUTOR - Experimentaste então tua proposição com todos os triângulos possíveis; ou perguntaste a todos os seres racionais possíveis se concordam contigo? O LEITOR - Como teria podido fazê-lo? O AUTOR - Como chegas então àquela convicção - que, em primeiro lugar, deve valer para ti em todos os casos absolutamente sem exceção e, em seguida, para todos os outros seres racionais, igualmente sem exceção? O LEITOR - Ficarei com o primeiro caso, em que são pressupostos dois lados e o ângulo incluso. - Se me observo bem, chego a essa convicção da seguinte maneira: Traço em minha fantasia um ângulo qualquer, com lados delimitados, pois não posso fazê-lo de outro modo, e fecho a abertura entre os lados desse ângulo com uma linha reta. Descubro que essa abertura só pode ser fechada por uma única linha reta; que essa linha reta se encontra com os dois lados dados, nas duas extremidades, em certa inclinação (formando certos ângulos); e que só pode encontrar-se com eles nessa inclinação. O AUTOR - Mas teu ângulo arbitrariamente traçado era um ângulo determinado, de tantos e tantos graus. - Ou acaso descreveste um ângulo em geral? O LEITOR - Como poderia fazê-lo? Só sou capaz de descrever um ângulo determinado, mesmo que eventualmente não saiba sua medida nem a tenha em vista. Pela mera descrição ele se torna, para mim, um ângulo determinado. O AUTOR - E assim os lados pressupostos eram igualmente determinados, de certo comprimento. -Logo, poderias dizer com razão (pois quero poupar-te muitas outras dificuldades): neste caso determinado, pressupondo-se este ângulo determinado e estes lados determinados, o triângulo só pode ser fechado por um lado possível, este lado determinado que surge para ti, e só por um determinado par de ângulos, estes ângulos determinados que surgem para ti. Pois nada mais que isso está contido em tua percepção interna, que obviamente parte de pressupostos determinados. Poderias agora experimentar com outro ângulo e outros lados, e poderias dizer o mesmo destes, se assim se verificasse na percepção; e assim por diante. Mas nunca poderias estendê-lo aos casos em que não experimentaste, e muito menos estendê-lo tão audaciosamente à infinidade de todos os casos, que é impossível esgotares com teus experimentos. Acaso não queres então corrigir tua expressão, e restringir tua afirmação aos casos em que fizeste o experimento? O LEITOR - Se me observo bem e olho para meu interior, absolutamente não. Não posso de nenhum modo deixar de atribuir à minha afirmação a validade universal, sem nenhuma exceção. O AUTOR - Bem podes elevar arbitrariamente à universalidade os muitos casos em que sempre o encontraste sem exceção, e esperar casos semelhantes somente segundo a analogia, por hábito, associação de ideias, ou como quer que ainda possas chamar a isto. O LEITOR - Não acredito nisso. Uma única tentativa basta-me perfeitamente e me obriga, tanto quanto mil, ao juízo universal. O AUTOR - Tampouco eu acredito seriamente nisso; e aquela proposição sobre a elevação arbitrária dos muitos casos encontrados à universalidade parece-me o princípio da absoluta irracionalidade. Mas agora, meu leitor, permite-me a pequena impertinência de não te deixar sair do lugar antes de me teres prestado contas de como pode ser fundada, por teu procedimento na construção do triângulo, tal como o descreveste acima, a universalidade de tua afirmação, da qual, apesar de tudo, não queres abrir mão. O LEITOR - É evidente que não levo em conta, na universalidade de minha afirmação, a determinidade do ângulo e dos lados que pressupus e fechei com o terceiro lado; isso é fático e resulta da mera análise de minha afirmação. Logo, também na própria construção do triângulo, e em minha observação dessa construção, consideradas como aquilo em que se funda minha afirmação, também não devo ter levado em conta aquelas determinações, mas sem ter tomado consciência disso tão corretamente; pois, sem isso, teria necessariamente de estar na conclusão aquilo que estivesse nas premissas. Mas, se não se leva em conta toda determinidade do ângulo e dos lados, não restam ângulos nem lados, como objetos já dados; logo, não restaria absolutamente nada para minha observação; ou, se acaso chamas de percepção, como acredito ter notado, exclusivamente a observação de algo anteposto e dado, não restaria absolutamente nenhuma percepção. Ora, como entretanto deve restar uma observação, e algo para ser observado, na medida em que sem isso eu não afirmaria absolutamente nada, então aquilo que resta não pode ser nada mais do que meu mero traçar de linhas e ângulos. Logo, este seria propriamente aquilo que eu teria observado. - E com essa pressuposição concorda perfeitamente também aquilo de que tenho consciência efetiva e clara naquele procedimento. Ao descrever meu ângulo, não me propus a descrever um ângulo de tantos e tantos graus, mas apenas um ângulo em geral, nem lados de tal comprimento, mas apenas lados em geral. Tornaram-se determinados, para mim, não por meu propósito, mas pela necessidade. Justamente ao passar à descrição efetiva, eles me ocorreram determinados, e Deus sabe por que determinados exatamente assim como ocorreram. Ora, essa consciência de meu traçar a linha, que está além de toda percepção, é sem dúvida aquilo que chamas de intuição. O AUTOR - Assim é. O LEITOR - Essa intuição de meu construir um triângulo teria agora, para fundar minha afirmação universal, de trazer imediatamente consigo a convicção absoluta de que nunca e em nenhum caso eu poderia construir de outro modo; logo, na intuição eu captaria e abarcaria minha inteira faculdade de construção de uma só vez e com um só olhar, por uma consciência imediata, não deste construir determinado, mas pura e simplesmente de todo meu construir em geral, e aliás como tal. Logo, a convicção de que a proposição: Pelas três partes do triângulo estão determinadas as outras três - significaria propriamente: Por meu construir das três partes está determinado meu construir das três partes restantes; e a universalidade que ponho não teria nascido da apreensão do diverso na unidade, mas, pelo contrário, da derivação do diverso infinito a partir de sua unidade, apreendida em um único olhar. O AUTOR - Atribuis, além disso, essa proposição em sua universalidade li todos os seres racionais, com igual universalidade e sem exceção? O LEITOR - Assim faço; e dessa pretensão à validade universal para todos posso tão pouco desistir quanto daquela pretensão à validade universal de todos. Para fundá-la eu teria de admitir que naquela intuição imediata de meu procedimento eu teria intuído esse meu procedimento, não como procedimento desta ou daquela pessoa determinada, que justamente eu sou, mas como procedimento de um ser racional em geral, com a convicção imediata de que é pura e simplesmente assim. A intuição seria, portanto, a captação, que se constitui imediatamente como tal, da maneira de agir da razão em geral, de uma só vez e com um único olhar: e também essa validade universal para todas as pessoas não teria nascido da reunião de muitos sob a unidade, mas, pelo contrário, da derivação das pessoas infinitamente diversas a partir da unidade da mesma razão. Pode-se conceber como, nessa intuição, e somente nela, se funda a evidência imediata, a necessidade universal de tudo e para todos, logo, toda cientificidade. O AUTOR - Tu entendeste muito bem a ti mesmo, e desejo que possas tomar este assunto assim tão compreensível para todos os leitores, de quem és o representante. Tu mesmo podes agora julgar que valor pode ter aquela objeção contra a fundamentação de nossa ciência na intuição e em que medida se pode contar, em debates científicos, com aqueles que apresentam essa objeção. Se eu te disser agora que na intuição que acabaste de demonstrar e descrever como condição da geometria, tomada porém em sua máxima abstração, se funda a doutrina da ciência - e que esta explicita a série inteira dessa intuição - e mesmo que esta, em sua máxima abstração, é o ponto de partida dessa ciência; se eu te disser que essa intuição para si mesma - portanto, a própria razão universal captando-se em um único centro e determinando-se para sempre - é o primeiro termo em sua cadeia, e que justamente esse si mesmo, como razão captando a razão, é, portanto, o eu puro já descrito acima, no sentido mais elevado dessa palavra; e se, por outro lado, conheces a literatura de nossa época, tornar-se-á então muito compreensível para ti a razão pela qual os teóricos da segunda metade do século XVIII eram absolutamente incapazes de encontrar esse eu puro em si. Ao mesmo tempo, tornar-se-á evidente para ti que tipo de gente são aqueles que querem passar ainda além do princípio da doutrina da ciência - e eu escrevo: ainda além da intuição absoluta da razão por si mesma - e acreditam que efetivamente passaram além desse princípio. O LEITOR - Então, a doutrina da ciência apenas começa naquele eu puro, ou na intuição em sua máxima abstração; mas a cada passo que dá junta-se nela um novo termo à cadeia, cuja junção necessária é demonstrada precisamente na intuição? O AUTOR - Assim é; como também é na geometria, onde em cada nova proposição é acrescentado ao anterior algo novo, cuja necessidade, do mesmo modo, só é mostrada na intuição. Tem de ser assim em toda ciência real, que efetivamente progride, e não dá voltas em círculo. O LEITOR - Disseram-me que, a partir do conceito do eu, tomado como pressuposto, desenrolas tua ciência inteira, como quem descasca uma cebola; que não fazes mais do que analisar aquele conceito e mostrar que todos os demais conceitos que estabeleces já estavam contidos nele, embora obscuramente; e que é precisamente um tal conceito que se denomina conceito fundamental, e a proposição em que ele aparece, proposição fundamental. O AUTOR - Tu foste bem benevolente, para deixar que te impingissem algo assim. O LEITOR - Acredito agora perceber claramente como podes instituir tua ciência; vejo também em que se funda a pretensão à sua validade universal como ciência, a saber, na intuição, que é uma intuição do procedimento de toda razão e, portanto, vale para todos aqueles que procederem assim como tu, isto é, que engendrarem em si essa ciência. Em suma - o produto de tua ciência, a partir da pressuposição admitida, só pode ser instituído assim como o instituíste, do mesmo modo que o triângulo, depois de terem sido pressupostas tais três partes, só pode ser fechado por tal lado e tais ângulos. Pressupondo que podes demonstrar efetivamente na intuição aquilo que afirmas, não tenho nada contra tua pretensão, desde que apresentes o produto de tua ciência como um mero produto de tua fantasia, e nada mais; assim como o triângulo tantas vezes mencionado nada mais é do que tal produto. Mas absolutamente não te contentas com isso, como posso concluir a partir do que dissestes acima. Não te basta expor teu produto como subsistente em si mesmo e de acordo consigo mesmo. Além disso, ainda saís dele. Ele deve ser uma imagem da verdadeira consciência efetiva, existente sem nenhuma intervenção da filosofia e que todos nós temos: nessa consciência deve haver o mesmo diverso, precisamente na mesma proporção em que está no produto de teu sistema. - Embora eu confesse que eu mesmo não concebo muito bem o que propriamente afirmas sobre isto, e ainda menos como queres fundar uma nova pretensão, além da que acaba de ser-te concedida. O AUTOR - Tu dás também à geometria uma aplicação à consciência efetiva na vida, e a consideras, do mesmo modo que consideramos a doutrina da ciência, como a imagem de uma parte da consciência efetiva. Limita-te a esclarecer e fundar essa tua pretensão; talvez, precisamente com isso, também a nossa seja fundada. Traças, na geometria científica, a linha com a qual fechas teu ângulo arbitrariamente e construído com seus lados arbitrariamente traçados. Encontras, num campo, um triângulo com um ângulo determinado por si mesmo e dois lados determinados por si mesmos, e os medes. Ora, precisas ainda medir também o terceiro lado? O LEITOR - De modo nenhum; pela proporção imutável desse terceiro lado com os outros dois e com o ângulo contraposto a ele, que já conheço a partir da geometria, posso encontrar seu comprimento efetivo por mero cálculo. O AUTOR - Seu comprimento efetivo, que quer dizer isso? O LEITOR - Se acaso eu o medisse efetivamente com meus instrumentos, assim como medi os dois primeiros, dessa medição resultaria exatamente o mesmo comprimento que obtive por cálculo. O AUTOR - E disso estás firmemente convencido? O LEITOR - Estou. O AUTOR - E estás pronto a aplicar o mesmo procedimento a todos os triângulos possíveis, que possas encontrar no campo, e não temes que contudo possa aparecer um que constitua uma exceção à regra? O LEITOR - Não o temo e me é pura e simplesmente impossível temê-lo. O AUTOR - Ora, em que pode fundar-se essa tua firme convicção quanto à correção de tua determinação da medida efetiva desse terceiro lado, independentemente de toda medição efetiva do mesmo e anteriormente a toda medição efetiva? O LEITOR - Se inspeciono bem a mim mesmo, tenho de pensá-lo assim e posso enunciá-lo mais ou menos da seguinte maneira: Se duas linhas e o ângulo incluso foram pressupostos como determinados, esse ângulo só pode ser fechado por um lado determinado possível, isto é, que esteja nessa determinada proporção com as partes pressupostas. Isto vale para a construção do triângulo na livre fantasia, e se torna imediatamente claro e certo pela intuição. Agora trato, sem mais, e com a mesma certeza, o triângulo efetivo segundo as leis do triângulo apenas construído, exatamente como se também isso estivesse contido na intuição. Logo, pressuponho faticamente que o direito a essa aplicação está também contido efetivamente na intuição; considero a linha efetiva como se - eu digo: como se - ela tivesse surgido por minha livre construção, e a trato de acordo com isso. Não indago quanto ao seu surgimento de fato; pelo menos o medir é um reconstruir, um pós-construir da linha existente, e, quanto a este, sou obrigado a admitir que é perfeitamente igual a um construir originário da mesma linha, apenas comparativamente pressuposto e com cuja efetividade ou não efetividade, de resto, não me preocupo. O AUTOR - E com isso descreveste ao mesmo tempo, com muita clareza, o que se passa com a pretensão da doutrina da ciência a uma validade na consciência efetiva. Assim como na construção originária do triângulo o terceiro lado se encontra determinado pelos outros dois e pelo ângulo incluso, do mesmo modo, segundo a doutrina da ciência, certo (elemento) da consciência se encontra determinado por outro (elemento) da consciência na construção originária. Mas estas são determinações da consciência figuradas apenas por livre fantasia, e não determinações efetivas, assim como as linhas do geômetra não são as linhas no campo. Agora, apresenta-se efetivamente uma determinação da consciência, que ali havia sido figurada; assim como um ângulo e dois lados, cuja livre construção era possível, são encontrados no campo. Podes, do mesmo modo, acreditar firmemente que, ao mesmo tempo em que se apresentou essa determinação efetiva, se apresentam também na efetividade aquelas determinações que, na imagem, foram encontradas como inseparáveis da primeira - que se apresentarão determinadas assim como foram descritas ali e que, caso faças a observação, assim o encontrarás. Disso todo aquele que se eleva a esta especulação está convencido tão certamente quanto o está o geômetra de que a medição da linha efetiva confirmará seu cálculo. As determinações da consciência efetiva, às quais ele é forçado a aplicar as leis da consciência livremente construída, do mesmo modo que o geômetra tem de aplicar as leis do triângulo livremente construí do ao encontrado no campo, são para ele também como que resultados de uma construção originária, e assim são tratadas naquele julgamento. Quanto a saber se tal construção originária da consciência ocorreu efetivamente, anteriormente a toda consciência, com isso ele não se preocupa; aliás, essa questão é, para ele, totalmente sem sentido. Pelo menos o julgar é um pós-construir, assim como para o geômetra o medir. Este tem de concordar com um construir originário do julgado, comparativamente pressuposto, e concorda seguramente com ele, se se julgou corretamente. Isto, e mais nada, é o que deve significar a pretensão da doutrina da ciência a uma validade também fora de si mesma, para a consciência efetiva na vida; e assim essa pretensão, do mesmo modo que a ciência inteira, funda-se na mesma intuição imediata. E assim acredito ter-te proporcionado um conceito suficientemente claro, não somente do propósito da doutrina da ciência em geral, mas também de seu procedimento e dos fundamentos desse procedimento. Ela constrói a consciência completa, comum a todos os seres racionais, pura e simplesmente a priori, segundo seus traços fundamentais, do mesmo modo que a geometria constrói pura e simplesmente a priori as maneiras universais de delimitação do espaço, comuns a todos os seres racionais. Ela parte da determinação mais simples e mais característica da autoconsciência, a intuição ou egoidade, e prossegue, pressupondo que a autoconsciência completamente determinada é o último resultado de todas as outras determinações da consciência, até que esta esteja derivada; sendo que a cada termo de sua cadeia sempre se liga um novo termo, e se toma claro para ela, na intuição imediata, que em todo ser racional esse novo termo teria de ligar-se precisamente assim. Suponha-se que eu = A. Encontra-se, então, na intuição da construção desse A, que um B se encadeia inseparavelmente a ela; na intuição do construir desse B, que a este, por sua vez, se encadeia um C; e assim por diante, até que se chega ao último termo de A: à autoconsciência completa, que aparece completamente, e concluída por si mesma. QUARTA LIÇÃO O AUTOR - Foi dito que há certo sistema da consciência para o ser racional, desde que esse próprio ser seja. Aquilo que está contido nessa consciência pode ser pressuposto em todo homem? O LEITOR - Sem dúvida. Já está implícito imediatamente em tua descrição daquele sistema que o que está contido nessa consciência é comum a todos os homens. O AUTOR - Pode-se também pressupor que cada um julgará corretamente os objetos a partir disso, e inferirá sem erro de cada um deles o outro? O LEITOR - Se ele exerceu convenientemente a faculdade do juízo, inata em todos e igualmente pertencente àquele sistema, certamente. É até mesmo equitativo que se pressuponha, sem mais, esse exercício adequado do juízo em todos, até que seja provado o contrário. O AUTOR - Mas aquilo que não está contido naquele sistema universal, dado a todos os homens como uma espécie de dote, e que só pode ser construído por uma abstração e reflexão arbitrárias e livres, também pode ser pressuposto em cada um, sem mais, como conhecido? O LEITOR - Obviamente não. Cada um só o adquire ao empreender com liberdade a abstração requerida, e sem isso não o tem. O AUTOR - Logo, se acaso alguém quisesse emitir seu juízo sobre o eu fartamente descrito acima, do qual parte a doutrina da ciência, e procurasse esse eu na consciência comum como algo dado: poderia o que ele diz convir ao assunto? O LEITOR - Obviamente não, pois aquilo de que se trata absolutamente não é encontrado na consciência comum, mas só pode ser engendrado por uma livre abstração. O AUTOR - Além disso, o elaborador da doutrina da ciência descreve, assim como aprendemos a conhecer seu procedimento, a partir desse primeiro termo, uma série contínua de determinações da consciência, na qual a cada termo anterior da série se prende um segundo, a este um terceiro, e assim por diante. Ora, esses termos de sua cadeia são aquilo de que ele fala e sobre os quais enuncia suas proposições e afirmações. Ora, de que maneira pode alguém ir do primeiro ao segundo, deste ao terceiro, e assim por diante? O LEITOR - Segundo tua descrição, exclusivamente construindo o primeiro efetivamente em sua interioridade, inspecionando a si mesmo para ver se nessa sua construção surge um segundo e o que seja este; construindo por sua vez este segundo, e prestando atenção para ver se surge um terceiro, e qual, e assim por diante. Somente nessa intuição de seu construir ele obtém o objeto do qual algo é enunciado; e sem esse construir não há aí para ele nada daquilo de que se falou. É assim que isso deveria se passar, segundo a descrição acima; e assim, sem dúvida, queríeis que eu respondesse. Mas aqui tropeço ainda na seguinte dúvida. Essa série que o elaborador da doutrina da ciência descreve consiste em determinações separadas, particulares, da consciência. Mas também na consciência comum efetiva, que cabe a cada um sem qualquer doutrina da ciência, há diversas determinações da consciência, também separadas. Ora, se as primeiras são as mesmas que estas últimas, separadas e repartidas da mesma maneira, então os elementos da série da doutrina da ciência também são conhecidos a partir da consciência efetiva; e não é preciso intuição para torná-los cognoscíveis. O AUTOR - Aqui é perfeitamente suficiente dizer-te apenas, em resumo e historicamente, que as divisões da doutrina da ciência e as da consciência efetiva absolutamente não são as mesmas, mas são totalmente diferentes. Por certo, as da consciência aparecem igualmente na doutrina da ciência, mas apenas como último termo da derivação. No caminho de sua derivação, porém, há ainda, na construção e na intuição filosófica, elementos inteiramente outros; e somente da unificação destes surge uma totalidade, separada tal como aparece na consciência efetiva em geral. Vou dar um exemplo! - O eu da consciência efetiva é certamente também algo particular e separado: é uma pessoa entre várias pessoas, as quais, cada uma para si, também se chamam todas de eu; e é justamente até a consciência dessa personalidade que a doutrina da ciência prossegue sua derivação. Algo inteiramente outro é o eu do qual parte a doutrina da ciência; ele absolutamente nada mais é do que a identidade do consciente com aquilo de que este tem consciência; e a esta separação só é possível elevar-se por abstração de todo o restante da personalidade. - Aqueles que asseguram, neste ponto, que não conseguem separar o conceito do eu do conceito da individualidade, têm toda razão, se falam disto tal como o encontram na consciência comum; pois ali, na percepção, aquela identidade, que de hábito lhes passa totalmente despercebida, e esta individualidade, à qual não somente prestam atenção, mas que é quase a única a que prestam atenção, estão inseparavelmente unificadas. Mas se eles não são capazes em geral de fazer abstração da consciência efetiva e de seus estados de coisa, então a doutrina da ciência não tem mais nenhuma pretensão quanto a eles. Nos sistemas filosóficos até agora, que, em seu conjunto, mas sem o saberem muito claramente, visavam a descrição da mesma série que a doutrina da ciência descreve, e chegaram até mesmo a encontrá-la fragmentariamente, aparece uma parte dessas separações, e denominações para elas, como, por exemplo: substância, acidente, e coisas semelhantes. Mas, em parte, mesmo essas denominações ninguém entende sem intuição, e obtém apenas uma palavra vazia em lugar da coisa; foi assim que os filósofos sem espírito as tomaram efetivamente por coisas consistentes. Em parte, a doutrina da ciência, porque se eleva a uma abstração superior a todos aqueles sistemas, compõe aquele separado a partir de elementos muito mais simples, portanto de maneira inteiramente outra. Enfim, boa parte desses conceitos técnicos que aparecem nos sistemas existentes até agora são até incorretos. Logo, tudo aquilo de que fala esta ciência só está aí pura e simplesmente na intuição e para esta, para aquele que efetivamente constrói aquela série - e, sem essa condição, absolutamente não está aí; e todas as proposições da doutrina da ciência, sem essa construção, são absolutamente sem sentido nem significação. O LEITOR - Dizes isso com toda seriedade, e devo tomá-la em todo rigor, sem descontar algum exagero? O AUTOR - Certamente deves tomá-lo em todo rigor. Eu desejaria que, pelo menos sobre este ponto, pudessem finalmente acreditar em mim. O LEITOR - Mas, então, só seria possível, em referência à doutrina da ciência, um destes dois casos: ou entender, ou absolutamente não entender, ver o correto, ou não ver absolutamente nada. Mas são pouquíssimos os que declaram que absolutamente não vos entenderam; acreditam ter-vos entendido muito bem e acham meramente que estais errado; e vós declarais que vos entendem mal. Logo, devem certamente extrair de vossas afirmações algum entendimento; só que não o correto, visado por vós. Como é possível isso, segundo as afirmações que acabais de fazer. O AUTOR - É que a doutrina da ciência tinha de começar com um ensinamento na linguagem já existente, formada de palavras. Se tivesse podido começar desde logo por onde sem dúvida terminará, pela criação de um sistema de signos que lhe fosse inteiramente próprio, cujos signos remetessem unicamente a suas intuições e às relações destas uma à outra, e a absolutamente mais nada, não teria sido objeto de mal-entendidos, mas também jamais teria sido entendida e não teria passado do espírito de seu criador para outros espíritos. Mas agora ela tem de consistir na difícil empresa de guiar os outros, sejam quais forem os pensamentos viscerais que se quis recentemente erigir em juízes da razão, do embaraço das palavras à intuição. Por ocasião de uma palavra, cada um até agora pensou algo, e, ao ouvi-la, ele atenta para aquilo que até agora pensou por ocasião dela; e isso é sem dúvida o que deve fazer, também segundo nossa intenção. Mas, se não consegue ir além dessas palavras, que são meras linhas auxiliares, e além de toda significação que elas tiveram até agora, e elevar-se à coisa mesma, à intuição, necessariamente entende mal, mesmo quando entende da melhor maneira possível; pois aquilo, de que se trata, até agora não foi dito nem designado pela palavra, e também não se deixa dizer, mas apenas intuir. O máximo que se pode obter pela explicação da palavra é um determinado conceito; e,justamente por isso, aquilo que na doutrina da ciência é o inteiramente falso. Essa ciência descreve uma série progressiva da intuição. Todo termo seguinte encadeia-se ao que o precede, e com isso é determinado, isto é, precisamente essa conexão o explica e faz parte de sua caracterização; e somente quando intuído nessa conexão ele é corretamente intuído. Por sua vez, o terceiro está determinado pelo segundo e, como este último está determinado pelo primeiro, mediatamente também pelo primeiro, e assim por diante até o fim. Assim, tudo o que precede explica o que se segue, e vice-versa (em um sistema orgânico, cujos termos não estão em conexão por mera consequência, mas por determinação recíproca, não pode ser de outro modo), todo consequente traz novas determinações a tudo o que o precede. Pode-se então captar corretamente um termo qualquer da doutrina da ciência, sem ter captado todos os antecedentes e sem tê-los presentes na apreensão deste último? O LEITOR - Não. O AUTOR - Entende-se um termo qualquer completamente, antes de perfazer o sistema inteiro? O LEITOR - Segundo o que acabas de dizer, de modo nenhum. Só se pode julgar sobre cada ponto a partir da conexão; mas, como cada um deles está em conexão com o todo, não se pode julgar completamente sobre nenhum sem ter captado o todo. O AUTOR - Entende-se: sobre nenhum ponto da ciência efetiva. Pois sobre o mero conceito dessa ciência, sobre sua essência, seu fim e seu procedimento, pode-se julgar sem possuir a ciência mesma; na medida em que o conceito é tirado e derivado do domínio da consciência comum. Foi para travar conhecimento com esse conceito e para julgar sobre ele que te convidei, leitor popular; e isso eu não faria com nenhum dos pontos interiores do sistema. Do mesmo modo, o término do sistema, seu resultado último, cai na esfera da consciência comum, e também a propósito deste cada um pode julgar, não se está corretamente derivado, pois disso não entende nada, mas se aparece do mesmo modo na consciência comum. Portanto, as partes constitutivas e proposições deste sistema não caem no interior da consciência comum e nos limites do juízo que se deve confiar equitativamente a cada um. Não é verdade que elas só são criadas por liberdade e abstração, e são determinadas por sua conexão, e que quem não empreendeu essa abstração e construção e não a levou até seu alvo, e também não mantém sempre presente e sem vacilação o todo, não tem o menor direito de julgar sobre objetos dessa espécie? O LEITOR - Assim é, sem dúvida, como o vejo muito bem. Logo, todo aquele que quisesse dizer algo a respeito desses objetos teria de inventar por si mesmo o sistema inteiro. O AUTOR - Certamente. - Como, entretanto, se verificou que a humanidade filosofou por milênios e várias vezes, como é possível demonstrar claramente, esteve próxima por um fio de cabelo do ponto certo, sem contudo encontrar efetivamente a doutrina da ciência, e como, por isso, é de se esperar que, se agora ela se perdesse de novo, não seria inventada outra vez tão logo, poderia ser conveniente fazer de sua invenção, finalmente ocorrida por acaso, o uso seguinte: admitir provisoriamente que ela tenha sido inventada antes por outros, e, assim, re-inventá-la depois de seu criador e de seus possuidores, do mesmo modo que se faz, por exemplo, com a geometria, cuja invenção também deve ter custado muito tempo; portanto, estudar o sistema, e estudá-lo até ter feito dele sua própria invenção. Logo, não é certo que absolutamente ninguém - a não ser que prove, pelos fatos, ter inventado por si mesmo a doutrina da ciência, ou, se não estiver nesse caso, não tenha consciência de tê-la estudado até tê-la tornado sua própria invenção, ou então - pois esta é aqui a única alternativa possível - possa demonstrar outro sistema da intuição intelectual, oposto ao da doutrina da ciência - poderia emitir um juízo qualquer sobre qualquer proposição dessa ciência e, caso esta fosse a única filosofia possível, como certamente ela o afirma, sobre qualquer proposição filosófica? O LEITOR - Por mais que pense, não posso negar que seja assim. Mas, por outro lado, não posso levar a maios outros filósofos, se estes consideram com hostilidade vossas pretensões de levar todos eles de volta para a escola. Eles têm consciência de ter estudado sua ciência tão bem quanto vós; e alguns deles de já serem considerados mestres nessa ciência, em um tempo em que vós mesmo aprendíeis ainda os primeiros rudimentos. Eles pressupõem, e vós mesmo o admitis, que só através deles fostes tirado do sonho de vosso espírito. E agora deveriam, alguns deles com as barbas grisalhas, voltar à condição de alunos junto a vós, ou deixar que lhes proibais a palavra. O AUTOR - Se eles amam no mundo algo mais do que a verdade e a ciência, então, sem dúvida, seu destino é duro. Mas não pode ser alterado. Uma vez que têm perfeita consciência de nunca haver nem mesmo acreditado possuir aquilo que nós afirmamos que possuímos - uma ciência evidente - e sempre se resignaram com isso, então, por mais triste que isso possa ser para eles, têm de averiguar em que consiste propriamente esse nosso projeto inédito. - Conheces, além do estudo da doutrina da ciência, outra saída para eles, a não ser calarem-se por bem, sem precisar de advertências, e retirarem-se de cena? O LEITOR - Nesse caso eles dirão (também já ouvi cantar esse passarinho...): Vós tendes tal pretensão que exigis dos outros que desprezem a si mesmos diante de vós. O AUTOR - Isso não passa de uma distorção, tão maldosa que não ajuda em nada à causa deles. Não exigimos deles que façam pouco de seus talentos em geral e dos conhecimentos cuja posse efetiva eles, até agora, reivindicaram para si. Pelo contrário, demonstramos apreço por aqueles primeiros, ao submetermos nossa ciência à sua explicação e ao seu julgamento. O fato de termos sido nós que fizemos a invenção, e não eles, é algo que atribuímos a um feliz acaso e ao momento, e absolutamente não o consideramos como um mérito pessoal. Agora, terem de levar em conta que nós estamos na posse dessa invenção, e não eles, o que, aliás, mesmo anteriormente, nunca pretenderam; terem de ouvir nosso comunicado sobre essa invenção - é tampouco uma exigência de que se desprezem, como não nos desprezamos quando lemos seus livros, na pressuposição de que eles poderiam ter pensado algo que nós não pensamos. Todo aquele que vai instruir-se sobre algum assunto científico pressupõe que o professor sabe mais sobre esse assunto do que ele; senão, não iria instruir-se; e o professor pressupõe o mesmo; senão, não se encarregaria de ensinar. Mas o primeiro não se despreza verdadeiramente por causa disso, pois espera conceber a ciência tão bem quanto seu professor; e esse é justamente seu fim. O LEITOR - Além disso, eles não podem saber nunca de antemão se há mesmo algo por trás de vossa causa, se ela recompensará a fadiga do estudo pesado e constante que exigis deles. Tantas vezes já foram iludidos por promessas de grande sabedoria... O AUTOR - Certamente não podem sabê-lo, antes de experimentar; pois exigir que acreditem naquilo que afirmamos seria ridículo. Mas nem nós nem eles, de nenhuma ciência que aprendemos, conhecíamos de antemão a utilidade e a importância; e, apesar disso, tivemos de aventurar-nos em todas elas, com o risco de perdermos nosso tempo. Ou será que isso só lhes aconteceu enquanto estavam sob a férula de seus professores, e que nunca mais o fizeram depois que se tornaram senhores de si mesmos? Eles têm também de aventurar-se neste assunto, do mesmo modo que se aventuraram em outros. Ou, se em toda sua vida sempre tiveram medo de aventurar-se, resta-lhes a mais segura de todas as saídas: calar-se e mergulhar numa especialidade, até a qual se espere que não chegarão tão logo as pretensões daqueles que aprenderam a doutrina da ciência. O LEITOR - Se ao menos tivessem a esperança de que vós e vossa doutrina da ciência poderiam tornar-se moda. Mas, pelo contrário, vós mesmo, com vossa petulância, contra todas as advertências daqueles que tinham boas intenções para convosco, obstruístes vosso próprio caminho. Infundistes em vossos colegas de ofício demasiado pouca confiança e amor por vossa pessoa, para que estes jamais se sentissem inclinados a vos tornar moda. Não sois bastante velho. Negligenciastes os velhos e louváveis usos corporativos: não procurastes fazer-vos anunciar por um prefácio de um de vossos professores, apresentando-vos como aluno aplicado, e em seguida estabelecer vínculos; não procurastes, pelas vias corretas e convenientes, através de cartas, solicitações de conselho e de ensinamento, citando e louvando a outros, obter para vós louvor e assentimento; não vos filiastes a uma associação de resenhistas; e não vos promovestes, assim, gradualmente e sem atrair a atenção. - Não: surgistes de repente, como que brotando do chão, com todas as vossas pretensões, tão arrogante quanto sois agora. Não citastes nem louvastes quase ninguém, a não ser a vós mesmo. Mas como repreendestes, e fizestes vossa guerra! Contra todas as normas e tradições literárias: nunca solicitastes acordo e equilíbrio, refutastes em bloco todas as afirmações de vossos adversários, nunca admitistes que eles estivessem certos em algo em que estivésseis errado, não dissestes nenhuma sílaba sobre sua perspicácia ulterior; partistes para o aniquilamento. Sois capaz de negar as verdades válidas desde o começo do mundo, e de transformá-las em pó entre as mãos de um pobre adversário, e já nenhum homem honrado sabe a partir de que premissa deve discutir contra vós. Por isso também muitos decidiram, e afirmam em voz alta - que certamente não querem aprender nada de vós, porque não vale a pena aprender algo de vós; e outros chegam a duvidar que se possa pronunciar vosso nome sem desonrar-se. (Um resenhista da gazeta literária de Erlangen, antes do ingresso do segundo redator, pergunta-se se pode pronunciar meu nome sem desonrar-se. Nota do Autor) O AUTOR - Admitimos, justamente, que esses nada aprendem. Todo homem está na posse da intuição fundamental que descrevemos acima? O LEITOR - Segundo vossa descrição, necessariamente. Tão certo quanto ele, mesmo que seja somente uma vez na vida, não se limitou, porventura, a repetir, mas enunciou com convicção própria uma única proposição universalmente válida, ou exigiu absolutamente de outro que encontrasse algo exatamente assim como ele o encontrou; pois vimos que essa necessidade e universalidade partem exclusivamente daquela intuição e se fundam nela. O AUTOR - Mas também todos se elevam, além disso, à consciência clara dessa intuição? O LEITOR - Pelo menos, isso não se segue imediatamente, como a intuição mesma, do fato de uma afirmação absoluta; pois esta é enunciada como fundada pura e simplesmente, e em si mesma, sem que se pergunte por um fundamento superior, e sem consciência de tal fundamento. Para elevar-se a essa consciência, é preciso, ao que parece, refletir antes sobre aquela própria afirmação absoluta, e prestar contas dela. E isto parece estar longe de ser fundado tão universalmente e tão necessariamente na natureza do ser racional, quanto a própria afirmação absoluta, sem a qual cessaria quase toda comunicação e entendimento entre os homens. Entretanto, todos poderiam empreender a reflexão que nós, por exemplo, empreendemos na lição anterior, e assim elevar-se à consciência daquela intuição. O AUTOR - Sem dúvida todos poderiam fazê-lo; do mesmo modo que todos poderiam elevar-se por liberdade à moral idade pura ou, por outra intuição, que tem um parentesco muito próximo com a filosófico científica, elevar-se à poesia. Quanto a isso, nossa opinião - que basta apresentar te apenas historicamente - é a seguinte. Não se pode negar inteiramente a nenhum homem essa capacidade de elevar-se à consciência da intuição científica, assim como não se pode negar-lhe a faculdade de renascer moralmente ou de tornar-se poeta. Mas também não se pode - justamente porque essas capacidades e faculdades são algo de absolutamente primeiro e não fazem parte de nenhuma série contínua de fundamentos - explicar por que elas comparecem aqui e se ausentam ali. Mas isto, pelo menos, a experiência, que justamente não pode ser explicada a partir de fundamentos, ensina: que alguns homens, seja o que for que se empreenda com eles, e seja como for que sejam guiados, não se elevam a ela. Na juventude, quando o homem é ainda suscetível de receber uma formação, ele se eleva com a máxima facilidade à ciência, assim como à poesia. Se deixou passar essa juventude e se arruinou com trabalhos de memória, eruditismo e resenhismo ao longo de metade da vida, então, sem grande riscos de ser refutado pelos acontecimentos, se pode perfeitamente negar-lhe a capacidade para a ciência como para a poesia; embora não se possa demonstrar a ele sua incapacidade. Ninguém deveria levar a mal quando lhe é negado esse dom de intuir a intuição; assim como ninguém leva a mal quando lhe negam o talento poético. Quanto a este, há muito tempo já se consolam com o ditado: os poetas nascem poetas, e não se fazem; por que não se apressam então para estender essa frase consoladora ao caso da filosofia? Aqueles que pensam com equidade não o negarão a respeito desta última, do mesmo modo que até agora não o negaram no primeiro caso. Infelizmente, habituaram-se a considerar que a filosofia é meramente um assunto do juízo comum, e acreditam que, se lhes negarem talento filosófico, lhes será negado aquele primeiro. Isso seria sem dúvida ofensivo; mas na boca da doutrina da ciência aquela proposição tem, na verdade, um sentido inteiramente outro. Mas não basta ter essa capacidade no todo e universalmente; é preciso, ao mesmo tempo, possuir a faculdade de manter firme a intuição, evocá-la a cada instante, quando se precisar dela, transportar-se voluntariamente para o mundo inteiramente próprio que ela abre para nós e permanecer nele, com clara consciência de onde se está. - Não é incomum, em particular nas pessoas jovens, que a luz se faça para elas de uma só vez, e ilumine como um relâmpago a antiga escuridão; mas, quando se dá por isso, o olho se fechou de novo, a noite anterior já está de volta, e é preciso esperar o instante de uma nova iluminação. Esse estado não serve para o estudo constante e sistemático. A intuição tem de tornar-se inteiramente livre, e ficar totalmente em nosso próprio poder. Mas essa liberdade só é adquirida pelo exercício constante. Além disso, já faz parte do pensamento sistemático, como tal, a liberdade de espírito que permite dar, com arbítrio absoluto, uma direção a seu pensamento; prendê-lo a este determinado objeto e mantê-lo voltado para ele, até que tenha sido elaborado suficientemente para nosso propósito, e desviá-lo de todo outro objeto, impedindo que este se imponha a nós por si mesmo. Essa liberdade não é inata no homem, mas tem de ser imposta, por diligência e exercício, à natureza inclinada à dispersão. Ora, o pensamento transcendental é inteiramente diferente do habitual, em particular nisto: este último é sustentado e como que transportado por algo que lhe subjaz, que já deve estar separado e determinado por sua natureza, enquanto aquele primeiro não tem por objeto absolutamente nada, a não ser a si mesmo, e por isso é transportado somente por si mesmo, e somente por si mesmo é dividido, repartido e determinado. Até mesmo o geômetra tem, sobre sua mesa, as linhas e as figuras com as quais fixa sua intuição; mas quem faz doutrina da ciência não tem absolutamente nada, a não ser a si mesmo e sua livre reflexão. Tem então de transportar essa reflexão através de uma longa série e, em cada novo termo, tem de ter sempre presente todo o antecedente, completamente determinado; e, contudo, nessa firmeza, permanecer também em oscilação ao longo da série inteira, e não excluir totalmente nenhuma determinação, pois, em cada termo seguinte, terá de determinar de novo todos os antecedentes. É evidente que nele não é pressuposta apenas a faculdade habitual de atenção e autonomia do espírito, mas ao mesmo tempo também a capacidade, tornada habitual, de colocar e sustentar todo o seu espírito diante de si, distinguir nele com maior ou menor finura, compor, e redistinguir o que foi composto, com mão firme e com a certeza de que tudo permanece como foi deixado. É evidente que isto constitui, não meramente um grau superior, mas uma espécie inteiramente nova de trabalho espiritual, tal que antes não houve igual; que o exercício para esse trabalho só pode ser adquirido no único objeto que ele tem, e que mesmo aqueles pensadores fartamente exercitados e habilitados em outros setores precisarão de tempo e diligência para se firmarem nessa ciência, e absolutamente não podem, à primeira ou segunda leitura, julgar sobre ela. Deveriam então homens rudes, não científicos, que não têm nenhuma formação além da memória e nem sequer são capazes de conduzir coerentemente um raciocínio científico objetivo, ser capazes de emitir, de improviso, um juízo sobre pontos avulsos, assim como, digamos, os viram de relance num jornal; como se tivessem apenas de dizer se já haviam ouvido isso antes? Por outro lado, nada é mais fácil do que o estudo dessa ciência, desde que se acendeu em alguém a primeira centelha sobre ela. Ela absolutamente não pressupõe nenhum conhecimento prévio de qualquer espécie, mas apenas o exercício habitual do espírito. Não causa tensão de espírito, mas o fortalece e vivifica. Sua marcha é ininterrupta e seu método pode ser concebido com extrema facilidade e em pouco tempo. Cada ponto singular entendido nela abre o olho para o entendimento de todos os demais. Portanto: a doutrina da ciência não é inata no homem, assim como seus cinco sentidos, mas só se chega a ela tendo-a, alguma vez na vida, estudado ordenadamente. Disso, meu leitor, eu quis te convencer, para que tu, caso não a tenhas estudado, e também não tenhas disposição para estudá-la - do mesmo modo que evitas cair em qualquer outro ridículo, evites este, de dar tua opinião em questões desta ordem; e também para que saibas o que deves pensar quando outros, ainda que sejam, de resto, pessoas que tenham feito altos estudos, mas que entretanto pelo menos a doutrina da ciência estudaram tão pouco quanto tu, dão sua opinião sobre ela. QUINTA LIÇÃO O AUTOR - Aquilo que é derivado pela doutrina da ciência deve, de acordo com, seu propósito, ser uma figuração acertada e completa da consciência fundamental inteira. Pode então conter mais, ou menos, ou algo outro do que aparece na consciência efetiva? O LEITOR - De modo nenhum, tão certo quanto à doutrina da ciência cumpre seu fim. Toda discrepância entre ela e a consciência efetiva seria a prova mais segura da incorreção de sua derivação. O AUTOR - Portanto, em decorrência de tudo o que foi dito até agora, só poderia haver, na consciência inteira de um ser racional finito, o seguinte: Em primeiro lugar, as determinações primeiras e fundamentais de sua vida, como tais: a consciência comum, aquilo que aparece na experiência imediata, ou como quer que se denomine a isso. Este é um sistema perfeito, inteiramente fechado; e, para todos, descontadas exclusivamente as determinações totalmente individuais, é rigorosamente o mesmo. É a primeira potência, caracterizada acima. Em seguida, a reflexão sobre ela e sua representação, o livre separar, compor e julgar, ao infinito; que depende da liberdade e difere segundo seus diferentes usos. É aquilo que foi denominado acima potências superiores - por assim dizer, a região intermediária de nosso espírito. Aqui não se deve perder de vista que nada pode aparecer nessas potências superiores, que não se encontre, pelo menos segundo seus elementos, na primeira. A liberdade do espírito pode separar e vincular ao infinito aquilo que é dado na consciência fundamental, mas não pode criar nada. - Enfim, uma derivação completa da primeira potência, sem levar em consideração a experiência efetiva, a partir do mero procedimento necessário da inteligência em geral; exatamente como se a consciência fundamental fosse resultado desse procedimento. É a doutrina da ciência, como potência absolutamente suprema, acima da qual nenhuma consciência pode elevar-se. Também nesta não pode aparecer absolutamente nada que não se encontre na consciência efetiva ou na experiência, no sentido mais elevado da palavra. Logo, em decorrência de nossos princípios, de nenhum ponto de vista pode introduzir-se na consciência de um ser racional qualquer, e ter acesso a ela, algo qualquer que não se encontre, segundo seus elementos, na experiência, e na experiência de todos sem exceção. Todos receberam o mesmo dote e a mesma liberdade para desenvolver e elaborar esse dote comum; mas ninguém pode criar algo para si. Logo, nossa filosofia é certamente aquela filosofia que prometemos acima, bem intencionada quanto ao entendimento comum e que garante os seus direitos; e toda outra filosofia, que for contrária a ela a propósito disto, é uma adversária do entendimento comum. Dissemos que a doutrina da ciência deve dar uma imagem acertada da consciência fundamental. Essa imagem pode ser a coisa mesma - e se apresenta como a coisa? O LEITOR - Como aprendi convosco e vi muito bem por mim mesmo, de modo nenhum. Nas determinações da vida estabelecidas nela e por ela, tem necessariamente de faltar aquele caráter impositivo e absorvente pelo qual arrebatam nosso eu e o submergem em si. Aqui mergulhamos nosso eu exclusivamente no construir essa determinação, mas não na determinação mesma, como determinação; do mesmo modo que havia mergulhado meu eu e me esquecido na representação da presença de meu amigo ontem, e não nessa presença mesma. O AUTOR - Assim é. A doutrina da ciência se apresenta como uma mera figuração da vida, mas não como a vida mesma. Quem a toma por esta a desentende completamente. Nem um único de seus pensamentos, proposições, enunciados faz parte da vida efetiva, nem é adequado à vida efetiva. São, propriamente, apenas pensamentos de pensamentos, que se têm ou se deveriam ter, proposições de proposições, de que é preciso apropriar-se, enunciados de enunciados, que nós mesmos temos de enunciar. Se é tão difícil desacostumar-se de tomá-las por mais que isso, é porque as filosofias precedentes tinham pretensões a ser mais que isso, e não é fácil impedir-se de considerar a nova filosofia como igual àquelas. Aquelas não queriam representar a mera ciência, mas ao mesmo tempo também a sabedoria, a mundisapiência, a sabedoria da vida, ou qualquer outra tradução que davam de si mesmas; e com isso não eram nenhuma das duas. A nossa se contenta com ser ciência e desde o início abdicou solenemente, pelo próprio nome que adotou, de qualquer outra pretensão. Não pode tornar os homens sábios, bons, religiosos, por demonstração, assim como nenhuma das filosofias precedentes o podia fazer; mas sabe que não pode fazê-la e não quer fazer aquilo que sabe que não pode fazer. Quer somente fazer, daqueles que podem dedicar-se a ela, homens de ciência. Aquilo que ela diz sobre sabedoria, virtude, religião, tem primeiro de ser efetivamente vivenciado e vivido, para passar a sabedoria, virtude e religiosidade efetivas. O LEITOR - Então ela também não faz de seu estudo e de seu entendimento uma condição da sabedoria e da boa conduta da vida? O AUTOR - Não. Tanto assim, que chega a ser uma adversária declarada daqueles que colocam toda formação e educação do homem na ilustração de seu entendimento e acreditam ter vencido em tudo ao fazerem dele um raciocinador fluente. Sabe muito bem que a vida só pode ser formada pela vida mesma, e nunca se esquece disso. O LEITOR - Também não exige que todos a estudem? O AUTOR - Não. Tanto assim, que chega a lamentar que tantas proposições filosóficas semiverdadeiras, tiradas de outros sistemas, já circulem entre o povo em geral. Mas isto - pois nada Impede de revelar desde já todas as suas pretensões, ainda que possa bem demorar um século para que se cumpram -, isto ela exige: que a possua todo aquele que faz uma ciência e, além disso, todo aquele que tem de lidar com a educação humana em seu conjunto e cuja ocupação é o governo ou a formação popular. O LEITOR - Mas, apesar dessa concordância de vossa doutrina com o entendimento comum, que nos assegurais, não podeis entretanto negar que dizeis: Tudo aquilo que está aí para nós é produzido por nós mesmos. - E isto, sem dúvida nenhuma, é uma afirmação que contradiz frontalmente a consciência comum. Não temos consciência de produzir o que está aí; só temos consciência de que está aí, de que está aí, pura e simplesmente: de que o encontramos, e o pré-encontramos. O AUTOR - Nem sequer entendo bem a afirmação que tu me atribuis; logo, não sei se devo reconhecê-la como minha ou negá-la. Em todo caso, vamos ponderá-la. Na doutrina da ciência, todo aquele que a engendra em si produz por si mesmo a imagem da consciência efetiva, portanto a série das imagens de tudo aquilo que é encontrado na consciência como estando aí, e observa como a produz. Isso está contido na descrição de nossa ciência. Mas dizer, agora, que essa série é engendrada do mesmo modo na consciência comum, não somente estaria em contradição com essa consciência imediata, mas mesmo com a afirmação própria da doutrina da ciência, e suprimiria seu sistema inteiro. Segundo essa doutrina, a consciência é um sistema completo, e nem uma de suas partes singulares pode ser, sem que todas as demais sejam, nem todas as demais podem ser, sem que cada uma seja. Logo, segundo essa mesma doutrina, não pode, na consciência comum, engendrar-se pouco a pouco, e em uma série, primeiro um A singular, em seguida um B, e assim por diante, já que nenhum destes termos é possível sem o outro, mas, se se tivesse de falar em engendramento, então o todo, com todas as suas partes singulares, teria de ser engendrado de um só lance. Mas por que quereríamos falar, também aqui, em engendramento? A consciência efetiva é; e está inteira e completamente pronta, desde que nós mesmos estamos prontos e temos a autoconsciência, com a qual, como seu último termo, a doutrina da ciência se conclui. Nosso mundo consistente está pronto, incontestavelmente segundo todos os juízos, desde que nós somos. Nossa vida efetiva nada mais pode fazer do que observar esse mundo, peça por peça, assim como o dispõe o acaso inexplicável; percorrê-lo, analisá-lo e julgá-lo. Afirmar um engendramento na vida efetiva não tem absolutamente nenhum sentido. A vida não é um engendramento, mas um achamento. É justamente o pretenso engendramento das outras filosofias que contradiz o nosso e o nega. Ora, esse absolutamente existente pode, de acordo com nossa filosofia, ser tratado e julgado na vida efetiva, como se tivesse surgido de uma construção originária, tal como a doutrina da ciência a desempenha. A vida efetiva pode ser complementada e suplementada segundo as leis de tal construção, e pode-se estar seguro de que a observação efetiva confirmará tal complementação. Não é preciso viver e vivenciar rigorosamente tudo, todos os termos intermediários; assim como, sustentados por uma geometria científica, não precisamos medir efetivamente todas as linhas, mas podemos encontrar várias delas por mero cálculo. Tomar esse como se por uma afirmação categórica, tomar essa ficção pela narrativa de um acontecimento verdadeiro, ocorrido alguma vez em um tempo qualquer, é um mal-entendido grosseiro. Acreditam então que, ao construirmos a consciência fundamental na doutrina da ciência, queremos apresentar uma estória dos estados de ação da consciência, antes de haver consciência, a biografia de um homem antes de seu nascimento? Mas como poderíamos fazê-lo, se nós mesmos declaramos que a consciência somente é, ao mesmo tempo em que todas as suas determinações; e não desejamos uma consciência antes de toda consciência e sem consciência nenhuma? Estes são mal entendidos contra os quais não se tomam precauções, porque não é possível prevê-los: não passam pela cabeça enquanto não acontecem efetivamente. Assim, todas as cosmogonias são tentativas de uma construção originária do universo a partir de seus elementos fundamentais. Então o criador de uma delas quer dizer que alguma vez aconteceu efetivamente aquilo que ele apresenta em sua cosmogonia? Certamente não, se é que entende a si mesmo e sabe o que diz. Pois, sem dúvida, o universo é para ele um todo orgânico, do qual nenhuma das partes pode ser, se todas as outras não são; que, portanto, absolutamente não pode ter surgido pouco a pouco, e, em todo o tempo em que esteve aí, teria de estar aí inteiro. Sem dúvida, o entendimento não científico, que se deveria manter no âmbito do dado e ao qual não se deveria deixar chegar pesquisas dessa espécie, acredita ouvir uma narrativa, porque não é capaz de ouvir nada mais do que narrativas. Se, no presente, tantos admitem que nós acreditamos apresentar, com nossa gnosogonia, uma narrativa, não se pode concluir, a partir disso, que esses mesmos não deixariam de sentir-se inclinados a tomar aquela cosmogonia por uma narrativa, se simplesmente não trouxesse o selo da autoridade e da antiguidade? O LEITOR - Entretanto, ouço sempre falar, mesmo agora, somente de determinações de uma consciência, que aí estão, de um sistema da consciência, que aí está, e coisas semelhantes. É justamente com isso que os outros não se satisfazem: segundo seu requisito, deve estar aí um sistema de coisas, e só a partir destas ser engendrada a consciência. O AUTOR - Estás falando dentro do espírito do filósofo de profissão, do qual eu já acreditava ter-me desvencilhado acima, e não dentro do espírito do entendimento comum e da consciência efetiva, com a qual acabo de explicar-me. Diz-me, e presta bem atenção a ti mesmo antes de me responderes: então uma coisa se introduz em ti e aparece em ti e para ti, a não ser pela consciência dela e ao mesmo tempo em que essa consciência? -- Logo, em ti e para ti, a coisa pode ser separada de tua consciência da coisa, e a consciência, desde que seja uma consciência da primeira potência que descrevemos acima, uma consciência completamente determinada, pode ser separada da coisa? - Podes pensar a coisa sem sua consciência ou uma consciência completamente determinada sem sua coisa? - A realidade surge para ti de outro modo, que não seja pela imersão da consciência em sua potência inferior; e teu pensamento não cessa inteiramente para ti, se quiseres pensar de outro modo? O LEITOR - Se presto bem atenção a mim mesmo, tenho de concordar contigo. O AUTOR - Então, agora, estás falando tu mesmo, com teu espírito e dentro do teu espírito. Portanto, não queiras saltar para fora, por sobre ti mesmo, e captar algo de outro modo, além daquele em que o podes captar: como consciência e coisa, como coisa e consciência; ou, mais propriamente, como nenhuma das duas, mas como aquilo que só posteriormente é distinguido em dois: o absolutamente subjetivo objetivo e objetivo subjetivo. Também o entendimento comum não o encontra de outro modo: ele tem sempre consciência e coisa juntas, e fala sempre a partir de sua unificação. Só o sistema filosófico do dualismo o encontra de outro modo, na medida em que separa o absolutamente inseparável, e acredita pensar com muito rigor e fundamento, depois que todo pensamento cessou para ele. Ora, essa reflexão que acabamos de fazer e essa atenção de cada um a si mesmo parece-nos tão fácil e tão natural que para isso não é preciso nenhum estudo, que isso tem de encontrar-se por si em cada um e pode ser exigido dele sem mais. Todo aquele que despertou para a lucidez e saiu do estado intermediário entre a planta e o homem, o encontra assim; e quem não pode absolutamente ser levado a encontra-lo assim, não pode ser auxiliado de maneira nenhuma. - Até já se chegou a tomar essa atenção a si mesmo pela própria doutrina da ciência. Nesse caso, nada seria mais sumário e mais fácil do que essa ciência. Mas ela é mais que isso; e essa atenção não é ela mesma, mas meramente a condição, primeira e mais simples, embora exclusiva, de seu entendimento. O que devemos pensar da cabeça daqueles que, mesmo aqui, ainda procuram como saída um ceticismo crítico e transcendental, isto é, acreditam que ainda se pode duvidar se se tem mesmo de saber efetivamente daquilo de que se fala, e colocam nessa dúvida a verdadeira ilustração filosófica! Peço-te, meu leitor, sacode esses sonhadores e diz a eles: Acaso sabeis, sem justamente terdes uma consciência; acaso podeis então sair, com todo vosso saber e - já que este, na medida em que não vos transformais em troncos de madeira, é inseparável de vosso ser -, com o vosso ser inteiro, para a fora das determinações da consciência? Se apenas uma vez percebestes isto, enraizai-vos então nessa convicção, tende-a em mente de uma vez por todas, e não deixeis que nada vos afaste dela ou vos leve a esquecê-la por um instante sequer. Sem dúvida, sabemos muito bem que, se julgardes de novo, para além daquelas determinações da consciência, e assim engendrardes uma consciência de segunda potência, esta, nessa conexão, vos aparecerá muito particularmente como consciência, e como mera consciência, destacada da coisa; e, então, aquela primeira determinação, em referência a esta mera consciência, vos aparecerá como mera coisa; do mesmo modo que a medida de vossa linha deve também ser ainda algo outro do que a própria linha. Mas não vos deixareis enganar por essa aparência, depois de saberdes uma vez que absolutamente nada pode estar aí para vós, além de determinações da consciência; logo, mesmo neste caso concebereis ainda muito bem que também aquela coisa nada mais é do que uma dessas determinações, que só em referência a uma consciência superior é chamada de coisa; assim como podeis perceber a cada instante que vossa medida da linha nada mais é do que a própria linha, apenas pensada em outra referência e com maior clareza. Tampouco ignoramos que - se deveis pensar um sistema consistente de determinações da consciência, como, sem dúvida, mesmo que seja apenas para captar o conceito da doutrina da ciência, tendes de fazer - não vos é possível fixar aquilo que está vivo, absorvido em constante agilidade e mudança, como vossa consciência aparece para vós, e projetá-lo diante de vós como algo parado e fixo. Mas, também, ninguém exige isso de vós. O que se exige é que, em seguida, aparteis de vós esse sistema, contrapondo-o à vossa consciência, como um sistema do mundo; do mesmo modo que vosso mundo todo, mesmo pensado do ponto de vista da consciência comum, não é nada mais do que aquele sistema das determinações fundamentais da consciência em geral, tacitamente pressuposto. Mas, pela atenção prévia a vós mesmos, deveis saber e lembrar que, entretanto, tão certo quanto o pensais, sabeis e falais dele - e não... não pensais, não sabeis nem falais dele -, ele só pode ser propriamente um sistema de determinações de vossa consciência. SEXTA LIÇÃO Vejo, meu leitor, que estás perplexo. - Não é nada mais que isso? - pareces pensar. - Apresentam-me uma mera figuração da vida efetiva, que não me poupa nada na vida; um decalque em escala menor, com cores esmaecidas, daquilo que tenho todos os dias na natureza diante de mim, sem nenhuma fadiga e trabalho. E para esse fim eu deveria submeter-me a um estudo cansativo e a demorados exercícios? Tua arte não me parece muito mais importante do que a do conhecido homem que passava grãozinhos de painço pelo buraco de uma agulha, o que também poderia ter-lhe custado bastante esforço. Não preciso de tua ciência, e ficarei com a vida. Segue tranquilamente esse propósito, mas atém-te bem à vida. Permanece firme e inabalável nessa resolução, e não te deixes extraviar por nenhuma filosofia, ou suspeitar dessa resolução. Com isso eu já teria alcançado uma grande parte de minha meta quanto a ti. Mas, para que não corras o perigo de desaconselhar, desvalorizar e difamar em teu âmbito, escorado por nossos próprios enunciados, um estudo ao qual não te aconselhamos a dedicar-te e ao qual nada te impele - e para que, se acaso tiveres poder para isso, não o reprimas -, ouve então qual poderia ser a influência e utilidade desse estudo. Desde sempre se recomendou a matemática, em particular a parte dela que excita mais imediatamente a intuição, a geometria, como um meio de exercitar o espírito, e frequentemente se estudou essa ciência exclusivamente sob esse aspecto, sem de resto querer fazer algum uso de seu conteúdo material. E ela é certamente digna dessa recomendação; embora, pelo seu alto desenvolvimento formal, pela sua autoridade, escorada na antiguidade, e pelo seu ponto de vista particular, situado no intermédio entre a intuição e a percepção, tenha-se tornado possível apreendê-la apenas historicamente, em vez de ré-inventá-la por si mesma, como se deveria fazer; e admiti-la pela crença, em vez de convencer-se de sua evidência; de tal modo que, com isso, a formação científica, a única que é visada, não é alcançada, e se tornou hoje em dia totalmente inseguro concluir que um grande matemático - isto é: dotado de muitos conhecimentos - seja uma cabeça científica. A saber, aqui não importa, para o uso da vida e mesmo para o progresso na ciência, que se tenham efetivamente intuído as proposições primitivas ou apenas admitido essas proposições com boa fé. Em um grau muito superior, já sob esse aspecto, a doutrina da ciência é recomendável. Sem elevação efetiva à intuição e com esta à cientificidade, é absolutamente impossível apreendê-la, pelo menos tal como é ensinada agora; e pode bem ser que demore séculos para que ela assuma uma forma em que possa ser aprendida de cor. Mas, a não ser que estejamos muito enganados, nunca se chegará a poder aplicá-la e produzir através dela outro saber, sem tê-la captado cientificamente em si mesma. Além disso, pela razão já apresentada acima - porque ela não tem absolutamente nenhum meio auxiliar, nenhum portador de sua intuição, além da própria intuição -, ela eleva o espírito humano mais alto do que toda a geometria. Dá ao espírito, não somente atenção, agilidade, firmeza, mas ao mesmo tempo absoluta autonomia, na medida em que o força a estar só consigo mesmo, a residir e reinar em si mesmo. Toda outra ocupação do espírito, comparada com ela, é infinitamente fácil; e, para aquele que se exercitou nela, nada mais é difícil. Acresce ainda que, na medida em que acompanha todos os objetos do saber humano até seu centro, ela habitua o olho a encontrar, com o primeiro olhar, em tudo aquilo que lhe aparece, o ponto certo, e a acompanhá-lo imperturbavelmente; por isso, para o elaborador exercitado da doutrina da ciência, não pode haver mais nada que seja obscuro, intricado e confuso, desde que ele conheça o objeto de que se trata. Para ele, é sempre facílimo retomar tudo do começo e construí-la de novo, na medida em que traz em si a planta para todo edifício científico; por isso, orienta-se com muita facilidade em toda construção confusa. Acresce a isto a segurança e a confiança em seu olhar, adquiridas na doutrina da ciência, tomada como guia de todo raciocínio; a inamovibilidade com a qual faz frente a todo desvio da trilha habitual e a todo paradoxo. As coisas seriam muito diferentes, em todos os assuntos humanos, se simplesmente os homens pudessem decidir-se a confiar em seus próprios olhos. Hoje, eles se informam com os vizinhos ou com os antepassados para saber o que veem propriamente, e essa desconfiança em si mesmos perpetua os erros. Contra essa desconfiança, o possuidor da doutrina da ciência está protegido para sempre. Em poucas palavras: com a doutrina da ciência, o espírito do homem retoma a si mesmo e, de agora em diante, repousa sobre si mesmo sem auxílio alheio e se torna inteiramente senhor de si mesmo, como o dançarino de seus pés ou o esgrimista de suas mãos. Se os primeiros amigos desta ciência, que até agora só pôde ser experimentada por tão poucos, não estão inteiramente enganados, essa autonomia de espírito leva também à autonomia do caráter, cuja própria disposição, por sua vez, é uma condição necessária do entendimento da doutrina da ciência. Por certo, ela não pode, assim como nenhum outro saber, fazer de alguém um homem íntegro e virtuoso; mas, a não ser que nos enganemos muito, ela tira do caminho o mais poderoso empecilho à integridade. Quem, em seu pensamento, se desvinculou inteiramente de toda influência exterior e, sob esse aspecto, se construiu de novo a partir de si mesmo, sem dúvida não irá buscar as máximas do agir ali onde desdenhou apanhar as máximas do saber. Sem dúvida, não formará mais seus sentimentos sobre felicidade e infelicidade, honra e desonra, através da influência invisível da comunidade, e não se deixará levar por sua secreta atração; mas moverá a si mesmo e procurará e engendrará as principais molas propulsoras desse movimento em seu próprio território. Essa seria a influência desse estudo, mesmo que se considere exclusivamente sua forma científica, mesmo se seu conteúdo não significasse nada e não tivesse nenhuma utilidade. Mas vejamos esse conteúdo! - Esse sistema esgota todo saber possível do espírito finito segundo seus elementos fundamentais, e estabelece esses elementos fundamentais para toda a eternidade. Esses elementos podem ser repartidos e recompostos de outro modo, ao infinito, e nisso a vida do finito encontra seu espaço de jogo; mas absolutamente nada de novo pode ser acrescentado a eles. Aquilo que, segundo seus elementos, não estiver já contido em sua descrição, é seguramente contrário à razão. Isso a doutrina da ciência mostra com clareza solar a todo aquele cujo olho se abriu para ela. Por isso, a partir do momento em que ela se tornar dominante, isto é, depois que a possuírem todos aqueles que guiam as grandes massas que não a podem possuir, absolutamente nenhum desvario da razão, nenhum delírio e nenhuma superstição poderá deitar raízes. Tudo isso terá sido atacado e exterminado em toda sua profundeza. Todo aquele que participou daquela exploração universal da razão finita sane, a cada momento, indicar o ponto em que o irracional transpõe os limites da razão e a contradiz. Sabe trazer à luz, sem demora, a contradição, para todo aquele que simplesmente tenha entendimento são e boa vontade para ser razoável. Isso quanto ao juízo na vida comum. Não é diferente quanto à filosofia, como aquela que circulou entre nós, fez reivindicações, atraiu a atenção e produziu um sem-número de confusões. Todas essas confusões, a partir do momento em que a doutrina da ciência for dominante, estarão suprimidas para sempre. A filosofia até agora quis ser, e quis ser algo que, entretanto, nem mesmo ela sabia muito bem o que era; e isto chegava a ser um dos pontos capitais que debatia. Pela exploração do domínio inteiro do pensamento e do saber finitos, verifica-se qual é a parte desse domínio que lhe compete, depois que se mostrou que todo o restante ou não é nada, ou já foi encampado por outras ciências. Também não haverá mais controvérsia sobre pontos e proposições particulares, depois que todo o pensável estiver demonstrado e determinado em uma série científica da intuição. Não é possível mais nenhum erro; pois a intuição nunca erra. A ciência que deve despertar do sonho todas as demais terá saído, a partir desse momento, de seu próprio sonho. A doutrina da ciência esgota todo saber humano em seus traços fundamentais, disse eu; ela o divide, e distingue esses traços fundamentais. O objeto de toda ciência possível está, portanto, contido nela. A maneira como deve ser tratado decorre, nela, de sua conexão com o sistema inteiro do espírito humano e das leis que valem nessa região. Ela diz ao elaborado r da ciência o que ele pode e o que não pode saber; dentro daquilo pelo qual pode e deve perguntar, dá-lhe a série das investigações a serem feitas, ensina-lhe como devem ser feitas e como deve ser conduzida sua prova. Logo, aquele tateio cego e aquela errância das ciências são igualmente suprimidos pela doutrina da ciência. Toda investigação que é feita nelas decide para sempre, desde que se possa saber com segurança se foi feita corretamente. A doutrina da ciência assegura, com tudo isto, a cultura, na medida em que a subtrai ao acaso cego e a coloca sob o poder da lucidez e da regra. Esta é sua consequência para a atividade científica, que por certo está destinada a intervir na vida e, sempre que é bem conduzida, intervém necessariamente nela; logo, mediatamente também sua consequência para a vida. Mas a doutrina da ciência atua também imediatamente sobre a vida. Embora não seja, em e para si, o próprio modo de pensar prático correto, a filosofia da vida - pois para isso lhe falta o caráter vivo e impositivo da experiência -, ela dá, entretanto, uma imagem completa dessa filosofia da vida. Se alguém possui efetivamente a doutrina da ciência, mas de resto não tem na vida o modo de pensar que ali é estabelecido como o único racional, nem age segundo ele, basta-lhe comparar seu pensamento efetivo com seu pensamento filosófico para, pelo menos, não permanecer em erro sobre si mesmo. Sabe que é um tolo, e não pode poupar a si mesmo essa denominação. Além disso, não lhe falta a faculdade de encontrar a todo momento o verdadeiro princípio de sua perversidade, assim como o verdadeiro meio de corrigir-se. Pode, com um mínimo de observação séria sobre si mesmo, saber que hábitos deve abolir, que exercícios contra estes tem de praticar. Se, de filósofo, não se torna ao mesmo tempo sábio, a culpa disso cabe exclusivamente à sua vontade e à sua preguiça: pois nenhuma filosofia é capaz de corrigir a vontade e dar força ao homem. Assim é a doutrina da ciência para aqueles que podem por si mesmos, quanto a suas pessoas, estar na posse dela. Sobre aqueles que não são capazes disso, ela influi através daqueles que são guiados por ela: os governantes e os pedagogos populares. Tão logo a doutrina da ciência seja entendida e admitida, a administração estatal, assim como as outras artes e ciências, deixará de tatear cegamente e de fazer tentativas, e ficará sob regras e princípios firmes; pois aquela ciência fornece tais princípios. Por certo, ela não é capaz de transmitir aos administradores do Estado a boa vontade, ou dar-lhes ânimo para executar aquilo que é conhecido como correto; mas, pelo menos, a partir daquele momento, estes não poderão mais dizer, se as relações humanas não se alterarem para melhor, que isso não depende deles. Todo aquele que possui a doutrina da ciência por si mesmo poderá dizer-lhes o que teriam de fazer; e se, apesar disso, eles não o fizeram, então estarão diante do mundo todo, manifestamente, como desprovidos de boa vontade. Logo, as relações humanas, a partir daquele momento, poderão ser colocadas em tal situação que não somente será facilmente possível, mas também quase necessário, para os homens, tornarem-se cidadãos honrados e amantes da ordem. Só depois de cumprida essa tarefa os educadores e pedagogos populares poderão ter a esperança de trabalhar com êxito. A condição exterior de seu fim, que não depende deles, lhes estará dada. A habilidade para alcançar esse fim eles têm em si mesmos: pois também sua ocupação é desvencilhada, pela doutrina da ciência, da tradição supersticiosa e do uso artesanal, e trazida sob leis firmes. De agora em diante, sabem com determinação de que ponto devem partir e como devem prosseguir a partir desse ponto. Em poucas palavras: pela aceitação e difusão universal da doutrina da ciência entre aqueles aos quais é destinada, todo o gênero humano será libertado do acaso cego, e para ele a fatalidade será aniquilada. A humanidade inteira será confiada às suas próprias mãos, sob a tutela de seu próprio conceito; de agora em diante, fará de si mesma, com absoluta liberdade, tudo o que quiser; basta-lhe ser capaz de querer. Tudo o que acabo de afirmar pode ser rigorosamente demonstrado e decorre do mero conceito da doutrina da ciência, tal como foi estabelecido neste escrito. Logo, só isto poderia ainda ser posto em questão: se esse próprio conceito pode ser executado. E, quanto a isto, decidirão aqueles - mas também somente aqueles - que efetivamente o executarem, que instituírem para si mesmos a doutrina da ciência - que, como afirmamos, já está aí - e a reinventarem. Mas o êxito das promessas feitas depende de que a doutrina da ciência fique no poder de todos aqueles que, como elaboradores de alguma ciência ou como educadores do povo, se elevam acima do povo; e quanto a isso as épocas futuras decidirão. Na época presente, a doutrina da ciência nada mais quer, e nada mais espera, do que não ser rejeitada sem ser ouvida e não cair de novo no esquecimento: quer apenas conquistar alguns, que sejam capazes de transportá-la para uma época melhor. Se alcançar apenas isso, o fim deste escrito, e dos escritos anteriores e futuros de seu autor, estará alcançado. PÓS-ESCRITO AOS FILÓSOFOS DE PROFISSÃO QUE ATÉ AGORA TEM SIDO ADVERSÁRIOS DA DOUTRINA DA CIÊNCIA Por certo, este texto não foi escrito para vocês. Contudo cairá em suas mãos; e, se seguirem a mesma praxe que até agora, vocês por certo não o entenderão, também não o lerão propriamente, mas certamente o resenharão. Se essa ocupação não for urgente demais, leiam então, antes de passar à resenha, pelo menos este pós-escrito destinado expressamente a vocês, e que aliás teria sido escrito em vão se vocês não o lessem. "A diferença entre as opiniões controvertidas não é tão grande assim; quem dera que os partidos em controvérsia, cada um de seu lado, abrissem mão de algo e entrassem em acordo!" - Esta é uma das fórmulas conciliatórias de nossa época tão humana, que também foi pronunciada referindo-se à minha controvérsia com vocês, quando ainda se mantinha alguma compostura. Se vocês simplesmente folhearam o texto acima, como é suficiente para uma resenha, pode ser, entretanto, que tenham notado nele pelo menos isto: que a diferença entre vocês e mim é certamente muito grande e que bem poderia ser verdade aquilo que já disse muitas vezes e vocês nunca quiseram aceitar como sendo verdadeiramente sério de minha parte: que entre vocês e mim não há absolutamente nenhum ponto em comum sobre o qual - e a partir do qual sobre algo outro - pudéssemos nos entender. Também poderia ter ficado claro para vocês o fundamento disso, o verdadeiro ponto de cisão entre o espírito de vocês e o meu. Mas como pode ser, do mesmo modo, que não o tenham podido notar e que isso não tenha ficado claro, então já indicarei mais uma vez, para vocês, esse ponto: a saber, historicamente, que é o único modo de indicar algo para vocês. Eu busco captar em sua fonte originária a ciência - não porventura meramente a forma sistemática exterior, mas a interioridade de um saber, aquilo, unicamente, sobre o qual repousa o fato de haver um saber, uma convicção, uma inamovibilidade da consciência. Vocês, ao contrário, por melhores raciocinadores que de resto possam ser segundo a forma lógica, seja qual for a glória que aqui quero reconhecer a cada um dentre vocês, em todos os graus em que queiram alegá-la - vocês não têm sequer o mais longínquo pressentimento daquela interioridade de um saber. Toda a profundidade do ser de vocês não chega até esse ponto, mas apenas até a crença histórica; e sua ocupação é continuar a dissecar com o raciocínio as tradições dessa crença. Em toda a sua vida vocês nunca souberam, e por isso não sabem como é o ânimo daquele que sabe. Vocês se lembram como riram quando se mencionou a intuição intelectual: Se alguma vez tivessem sabido, e sabido do saber, não teriam, na verdade, achado essa intuição tão risível. Mas não basta não terem nenhum pressentimento dela: chegou mesmo até vocês, em uma obscura tradição, uma sombra desse desconhecido, e segundo essa tradição vocês o consideram o mais grave dos descaminhos e o mais monstruoso dos erros em que pode cair um espírito humano. São delírios, verbalismos, fantasmagorias escolásticas, míseras sutilezas. Vocês saltam por cima delas onde quer que se encontrem, para passarem rapidamente aos... resultados (isto é, proposições que possam ser aprendidas historicamente e captadas na memória) e, como falam alguns de seus representantes, para se aterem a coisas que interessam à cabeça e ao coração. Precisamente nisto consiste a alta ilustração, a alta formação e a alta humanidade do presente século filosófico: vocês se desvencilharam desses pedantismos antiquados. Mas eu prezo exatamente aquilo e me empenho com todas as forças por aquilo que vocês desprezam e do qual fogem com todas as forças. Nós temos um modo de ver inteiramente oposto quanto àquilo que é digno de ser tomado por alvo, aquilo que é decente e louvável; e se essa oposição já não se declarou veementemente mais cedo, isso se deve exclusivamente à sua benevolente opinião de que aquela escolástica é apenas um descaminho temporário, e que no fim eu acabarei por chegar àquilo a que vocês chegam, a uma popular e edificante filosofia da vida. Bem falaram vocês dos sinais dos tempos: que parecemos estar caminhando para trazer de volta a antiga barbárie, à qual eu, sem dúvida, dou outro nome, à qual eu chamo de antiga profundidade; e que a ilustração e a bela literatura dos alemães, que eu denomino a superficialidade e a frivolidade dos alemães, que só agora acaba de ser posta em boa marcha, está ameaçada de entrar em declínio: para, com isso, presumo, tomar medidas preventivas contra esse declínio. Ficará cada vez mais evidente quão grave é a situação da doutrina da ciência quanto a este ponto e que, se fosse por ela, aquela barbárie seguramente retomaria e essa bela ilustração se arruinaria totalmente. Assim, o ser de vocês chega até a crença histórica, e não vai além. Em primeiro lugar, vocês têm aí sua própria vida, em cuja existência acreditam, justamente porque outros também acreditam nela; pois bastaria que soubessem disso, que vivem, para que, já por causa disso, as coisas fossem inteiramente diferentes com vocês. Em segundo lugar, boiam no rio dos tempos destroços naufragados da ciência de outrora. Vocês ouviram dizer que eles têm valor, e procuram pescar o máximo que podem, para mostrá-lo diante dos curiosos. Vocês são muito cuidadosos com esses destroços, para não quebrá-los, esmagá-los ou de uma maneira qualquer modificar sua forma, e assim transmiti-las ilesos a seus herdeiros e legatários, para que estes, por sua vez, possam mostrá-las diante dos curiosos da posteridade. Quando muito, vocês os limpam vez por outra. Eu surgi entre vocês, e vocês me deram a honra de considerar-me um dos seus. Procuraram prestar-me serviços colegiais, quiseram aliciar-me, advertir-me, aconselhar-me. E aqui se passou com vocês o seguinte, e é isso o que sempre se passará com vocês, se não desistirem inteiramente dessa ocupação: Em primeiro lugar, vocês tomaram por história o que eu apresentava inicialmente, por fragmentos do rio kantiano, e quiseram assim compará-la com suas coletâneas; como isso não deu certo, pelo menos por fragmentos do rio da vida empírica. Seja o que for que eu diga, assegure, encareça, seja como for que eu proteste, vocês absolutamente não podem deixar de converter minhas proposições científicas em proposições de experiência, minhas intuições em percepções, minha filosofia em psicologia. Não faz muito tempo, isso aconteceu ainda com um de vocês, na gazeta literária de Erlanger, a propósito do segundo livro de minha Destinação do Homem, em que contudo acredito ter sido verdadeiramente claro. Esse resenhista recusa ao Espírito da especulação, que lá é apresentado como falante, a mera pergunta pela consciência do ouvir, ver, e assim por diante, e descobre, já nessa pergunta, felizmente, um engano. Ele, quanto a sua pessoa, sabe por ouvir, ver, e assim por diante, sem saber do ouvir, ver, e assim por diante; e esse homem tem, em sua espécie, toda razão. - Ora, que isso tem necessariamente de se passar com vocês, sei eu muito bem; e sei também o fundamento disso. A intuição vocês não têm, nem têm meios para tê-la; por isso, só lhes resta a percepção, e, quando não devem ter a esta, não tendes absolutamente nada entre as mãos. Mas eu queria justamente que vocês não tivessem absolutamente nada, assim como lhes explicarei, ainda mais pormenorizadamente, mais adiante. Além disso, tomaram cada fragmento por uma totalidade subsistente por si, assim como acontece em suas coletâneas; acreditaram que cada um deles podia ser destacado apenas assim em sua singularidade e estabelecido na memória, e tentaram fazer esse serviço. Mas, então, as peças singulares, assim como vocês as haviam captado, não queriam ajustar-se no conjunto, e vocês exclamaram: Contradição! - Isto lhes advém de que vocês não têm absolutamente nenhum conceito de um discurso sintético-sistemático, mas conhecem somente coletâneas de enunciados dos sábios. Para vocês, todo discurso é uma tempestade de areia em que cada grãozinho subsiste e se arredonda por si, e é compreensível precisamente como um grãozinho de areia. De um discurso que se compara a um corpo orgânico e que organiza a si mesmo, vocês não sabem nada. Vocês arrancam do corpo orgânico uma peça, mostram-na diante dos paspalhos circundantes e exclamam: Para mim isto agora tem de ser liso e arredondado! - O mesmo se deu com o resenhista que acaba de ser mencionado, a propósito do livro que acaba de ser mencionado. - Saibam que meu discurso, como deve fazer todo discurso científico, parte daquilo que é o mais indeterminado, e o determina diante dos olhos do leitor; por isso, sem dúvida, na continuação são atribuídos ainda, aos objetos, predicados inteiramente outros do que os que lhes foram atribuídos no começo; que, além disso, esse discurso desenvolve e estabelece proposições que posteriormente refuta, pois progride por antíteses em direção à síntese. O resultado verdadeiro, completamente determinado, com o qual se fica, encontra-se aqui somente no fim. Vocês procuram, sem dúvida, apenas esse resultado; e o caminho pelo qual ele é encontrado não existe para vocês. Para escrever convenientemente para vocês, seria preciso dizer, com a máxima brevidade possível, que opinião se tem, para que então vocês possam rapidamente pensar se também têm a mesma opinião. Se Euclides fosse um escritor de nossos dias, como vocês teriam revelado a ele as contradições que pululam em seus escritos. "Todo triângulo tem três ângulos." - Muito bem, ficamos sabendo disso. "O conteúdo dos três ângulos em todo triângulo é igual a dois retos." - Que contradição! - clamariam vocês: de um lado, três ângulos em geral, cujo conteúdo pode perfeitamente constituir somas bem diferentes; de outro lado, apenas três ângulos tais que sua soma seja igual a dois retos! Vocês corrigiram-me as expressões, e me ensinaram a falar; pois, já que são meus juízes, entende-se que sabem falar melhor do que eu. Quanto a isso, vocês só se esqueceram de que não é possível aconselhar legitimamente a ninguém como deve dizer, antes de saber o que ele quer dizer. Vocês se mostraram preocupados com meus leitores, queixaram-se de que escrevo muito ininteligivelmente, e muitas vezes asseguraram que o público, ao qual eu destino um escrito, não o entenderá; sobre o presente livro, se seguirem a mesma praxe que até agora, assegurarão o mesmo. Mas vocês acreditavam nisso meramente porque vocês mesmos não entendiam, e pressupunham que o grande público tinha ainda muito menos inteligência do que vocês, que afinal são teóricos e filósofos. Mas nessa pressuposição vocês se enganam: durante tantos anos falei sobre filosofia, não somente com estudantes principiantes, mas também com pessoas adultas, de todos os modos de vida, das camadas instruídas, e nunca em minha vida ouvi em conversação um desentendimento igual àquele que vocês todos os dias deitam por escrito para a imprensa. Daquela diferença radical de nossos espíritos é que surgem os estranhos fenômenos que se apresentam: é assim que quando digo algo, que me parece fácil, natural, inteligível por si mesmo, vocês o acham um monstruoso paradoxo, que absolutamente não são capazes, por mais que lutem, de tomar claro; e para mim, em contrapartida, aquilo que vocês pressupõem como extraordinariamente chão e conhecido de todos, e nem mesmo sonham que alguém possa ter algo em contrário, me parece muitas vezes tão confuso, que eu teria de falar dias seguidos só para destrinçar as confusões. Essas suas proposições tão chãs vieram desaguar junto de vocês, trazidas pela tradição, e vocês acreditam entendê-las e sabê-las porque tantas vezes as ouviram, ou as disseram vocês mesmos, sem encontrar contradição. Certamente o presente escrito está também, para vocês, cheio desses monstruosos paradoxos, que vocês deitarão abaixo com uma única de suas proposições chãs. Vamos que eu, para dar um exemplo, apresente apenas um desses paradoxos, o primeiro que me vem ao pensamento. "Aquilo que se obtém pela mera explicação da palavra não é nunca na doutrina da ciência o correto, mas, com toda certeza, o incorreto", disse eu acima. Vocês, se seguirem a mesma praxe que até agora, apresentarão essa proposição como uma clara prova de quão longe vai meu não senso: "Como então, neste mundo, se poderá chegar, em algum lugar, ao entendimento, se não for pela explicação correta das palavras utilizadas?", gracejarão vocês, à sua maneira; desejarão boa sorte aos iluminados que têm disposição para elevar-se pela intuição fichtiana até esse sentido que se encontra ainda para além das palavras; assegurarão, de sua parte, que absolutamente não teriam disposição para isso; e tudo quanto ainda eventualmente lhes permitir sua veia humorística. Ora, vocês descobririam, se se dignassem prestar atenção a si mesmos, ainda que fosse durante a leitura de um jornal político, que nem sequer a este vocês entenderiam se se limitassem a captar e a analisar as palavras, que, ao contrário, mesmo nesse caso, vocês têm de delinear pela fantasia a imagem do acontecimento narrado, deixar o acontecimento aparecer diante de vocês, construí-la para vocês, para entenderem efetivamente; também que o fizeram e o fazem desde sempre, se é que jamais entenderam um jornal e que o entendem ainda. Só que vocês não notaram isso, e temo que também agora não o encontrarão assim, não obstante eu tenha chamado sua atenção para isso: pois exatamente a cegueira desse olho interior da fantasia é a enfermidade sobre a qual nós sempre os advertimos. Mas, mesmo que o tivessem notado, ou se pudessem notá-lo agora, isso, contudo, para vocês, não se aplica ao caso da ciência. Desta vocês sempre acreditaram que ela só pode ser aprendida e nunca lhes ocorreu que ela propriamente, do mesmo modo que o acontecimento narrado no jornal, tem de ser construída. Por essa razão, já fartamente explicitada, vocês até agora entenderam tão pouco a doutrina da ciência, que nenhum de vocês avistou sequer o território sobre o qual ela repousa. Entretanto, se alguém lhes diz isso, vocês se zangam. Mas por que, afinal, se zangam com isso? Devemos então não dizê-lo? Se se acreditasse que vocês a haviam apreendido e que ela tem de ser apreendida assim como vocês a apreenderam, então seria como se a doutrina da ciência nunca tivesse estado aí, e ela seria, da maneira mais simples, retirada do mundo no mais completo silêncio, e deixada de lado. Que deixássemos ocorrer isso com tanta tranquilidade, exclusivamente para que não advenha eventualmente alguma má reputação para sua faculdade de entender, é algo que, com um pouco de equidade, vocês não podem legitimamente exigir de nossa parte. Mas mesmo no futuro vocês não entenderão a doutrina da ciência. Agora, sem levar em conta que vários de vocês, pelos meios estranhos de que se serviram para provocar boatos desfavoráveis sobre esta ciência, se tomaram muito suspeitos de serem animados por outras paixões, além do entusiasmo pela filosofia - sem levar isso em conta e considerando aquela suspeita como não fundada, poder-se-ia alimentar ainda alguma esperança quanto a vocês, se simplesmente ainda não se tivessem manifestado, não tivessem manifestado em tão alta voz, não tivessem tomado pública, tão abertamente, a opinião de seu coração. Mas infelizmente vocês o fizeram. E agora deveriam mudar instantaneamente de natureza, e entrar em uma luz sob a qual as coisas que até agora alegaram e todo o seu estado espiritual - nem sou capaz de descrever quão miseráveis teriam de aparecer? Decerto já aconteceu com todos aqueles que prosseguem em silêncio sua formação, caso jamais cheguem ao entendimento, estarem agora bem firmes sobre seus sentidos e, decorrido algum tempo, olharem para trás, sorrindo melancolicamente das confusões de então. Mas que aquele que tomou o público inteiro por testemunha e que, dia após dia, tem de continuar a escrever, a resenhar, a subir na cátedra, as reconheça e retire, é um caso extremamente raro. Ora, já que tudo isto é assim, como vocês mesmos me concederão, por certo não em voz alta e publicamente, mas com toda a certeza em alguma hora tranquila, em um recanto secreto de suas almas, então não lhes resta outra saída a não ser, a partir desta hora, calarem-se inteiramente sobre tudo aquilo que se refere à doutrina da ciência e, de modo geral, à filosofia. Vocês podem adotar essa saída; pois nunca conseguirão persuadir-me de que seus órgãos vocais, mesmo sem sua intervenção, formam as palavras que vocês pronunciam e que suas penas se põem em movimento por si mesmas e assentam no papel as coisas que depois são publicadas com o nome de vocês, ou sem ele. Eu sempre acreditarei que vocês movem a ambas por sua vontade, para que façam o que fazem. E, já que vocês o podem, por que não haveriam de querê-lo? Eu refleti e ponderei tudo, e absolutamente não encontrei nenhum fundamento racional pelo qual não devessem seguir este meu conselho, ou devessem levá-lo a mal. Seu entusiasmo pela verdade e contra o erro vocês não podem alegar; pois, já que vocês, como lhes diz sua própria consciência todas as vezes que vocês a interrogam corretamente, absolutamente não sabem o que quer propriamente a doutrina da ciência e, em geral, a região inteira em que ela vive absolutamente não existe para vocês, vocês também não podem saber se é verdade ou erro aquilo que ela relata daquela região desconhecida. Logo, deixem bem tranquilamente essa ocupação aos outros, a quem ela compete, sob a responsabilidade deles: do mesmo modo que todos nós deixamos os reis regerem seus Estados e fazerem guerra e paz, inteiramente sob sua responsabilidade, sem lhes dizer nada quanto a isso. - Até agora vocês apenas se interpuseram no caminho da investigação imparcial, complicaram o que era simples, obscureceram o que era claro, puseram de cabeça para baixo o que estava em pé. Por que, então, fazem tanta questão de ficar no caminho? Ou acreditam que sua honra ficará prejudicada se vocês, que até agora foram os grandes oradores, emudecessem agora? Será que isso não é importar-se com a opinião dos que não entendem? - Pois na opinião de todos os que entendem vocês ganharão com isso. Assim, consta que o Professor Jacob, em Halle, abandonou inteiramente a especulação superior e se voltou para a economia política, área em que se pode esperar muitos trabalhos excelentes de sua notória meticulosidade e diligência. Neste caso, ele se mostrou um sábio ao desistir de ser filósofo; testemunho-lhe aqui, publicamente, minha alta consideração, e espero que todo homem de entendimento, que saiba o que é a especulação, partilhará dessa consideração. Quem dera que, do mesmo modo, os Abichte, os Buhlen, os Bouterwecke, os Heusinger, os Heydenreiche, os Snelle, os Ehrhard-Schmide desistissem de uma área na qual já importunaram à vontade, e descobrissem que não foram feitos para ela. Voltem-se para outra ocupação útil: o polimento de óculos, a administração florestal e o direito comum, a composição de versos e de romances, alistem-se na polícia secreta, estudem a arte de curar, cuidem da pecuária, escrevam edificantes meditações da morte para todos os dias do ano; e nenhum homem lhes recusará seu respeito. Mas como não posso esperar que eles e seus semelhantes, ao longo do alfabeto inteiro, seguirão um bom conselho, acrescento ainda o seguinte, para que não possam dizer que não foram advertidos sobre o que acontecerá: Esta é a terceira vez que apresento um comunicado sobre a doutrina da ciência. Não gostaria de ser obrigado a fazê-lo pela quarta vez, e estou cansado de deixar minhas palavras se depreciarem de boca em boca a ponto de eu mesmo, em pouco tempo, não as reconhecer mais. Por isso, vou pressupor que mesmo os literatos e filósofos modernos podem entender este terceiro comunicado. Além disso, há muito tempo pressuponho, porque isto eu sei, que todo homem pode saber se entende algo ou não o entende, e que nenhum deles abre a boca para falar sobre algum assunto antes de ter consciência de entendê-lo. Por isso, não deixarei este escrito assim como meus escritos científicos futuros abandonados a seu destino, mas vigiarei as manifestações que eles despertarem e as comentarei em uma publicação periódica. Mesmo que com isso não melhore essa tagarelice, espero, entretanto, tornar evidente para o grande público que espécie de gente ele tem elegido até agora, e ainda elege, para guiar sua opinião.