John Stuart Mill – Sistema de Lógica Dedutiva e Indutiva Exposição dos Princípios da Prova e dos Métodos de Investigação Científica (Seleção) Índice Prefácio à Primeira Edição Introdução 1. É a lógica a arte e a ciência do raciocínio? 2. A lógica trata de inferências, não de verdades intuitivas 3. Relação da lógica com as outras ciências LIVRO I DOS NOMES E DAS PROPOSIÇÕES CAP. I - Da necessidade de começar por uma análise da linguagem 1. Teoria dos nomes, parte necessária da lógica 2. Primeiro passo na análise das proposições CAP. II - Dos nomes 1. Os nomes são nomes de coisas, não de nossas ideias 2. Palavras que não são nomes, mas partes de nomes 3. Nomes gerais e nomes singulares 4. Nomes concretos e nomes abstratos 5. Nomes conotativos e não-conotativos CAP. III - Das coisas denotadas pelos nomes 1. A necessidade de uma enumeração das coisas nomeáveis. As categorias de Aristóteles I - SENTIMENTOS OU ESTADOS DE CONSCIÊNCIA 2. Sentimentos ou estados de consciência 3. Deve-se distinguir os sentimentos de seus antecedentes físicos. A percepção 4. As volições e as ações 5. Substância e atributo II - AS SUBSTÂNCIAS 6. Corpo 7. A mente III - DOS ATRIBUTOS E PRIMEIRAMENTE DAS QUALIDADES 8. Qualidades IV - RELAÇÕES 9. Relações 10. Semelhança V - QUANTIDADE 11. Quantidade VI – CONCLUSÃO SOBRE OS ATRIBUTOS 12. Todos os atributos dos corpos são fundados em estados de consciência 13. Igualmente todos os atributos da mente VII - CONCLUSÕES GERAIS 14. Recapitulação CAP. IV - Da significação das proposições 1. Teoria da proposição como expressão de uma relação entre duas ideias 2. A proposição consiste em conferir algo a, ou excluir algo de, uma classe 3. O que (a proposição) realmente é 4. [A proposição] afirma (ou nega) uma sequência, uma coexistência, uma simples existência, uma causação 5. Ou uma semelhança 6. Proposições cujos termos são abstratos CAP. V - Das proposições meramente verbais 1. Toda proposição essencial é proposição idêntica 2. Os indivíduos não têm essências 3. As proposições reais, distintas das proposições verbais 4. Duas maneiras de expressar a significação de uma proposição real CAP. VI - Da natureza da classificação e dos cinco predicáveis 1. A classificação, associada ao ato de nomear 2. As espécies têm uma existência real na natureza CAP. VII - Da definição 1. O que é uma definição 2. Pode-se definir todo nome cuja significação é suscetível de análise 3. As definições são distintas elas descrições 4. O que se chama as definições das coisas são definições de nomes implicando a suposição da existência de coisas que lhes correspondem 5. As definições, embora (sejam) apenas de nomes, devem fundamentar-se no conhecimento das coisas correspondentes LIVRO III DA INDUÇÃO CAP. I - Observações preliminares sobre a indução em geral 1. A importância de uma lógica indutiva 2. A lógica da ciência é também a da vida humana e da prática CAP. II - Das induções, assim impropriamente chamadas 1. As induções, distintas das transformações verbais 2. - E das descrições 3. Exame da teoria da indução do dr. Whewell CAP. III - Do fundamento da indução 1. Axioma da uniformidade do curso da natureza 2. Posição da questão da lógica indutiva CAP. IV - Das leis da natureza 1. A regularidade geral da natureza é um tecido de regularidades parciais chamadas leis 2. A indução científica deve ser fundada em induções prévias espontâneas 3. Há induções próprias para servir de critério para todas as demais? CAP. V - Da lei de causalidade universal 1. A lei universal dos fenômenos sucessivos é a Lei de Causalidade 2. - isto é, à lei de que todo consequente tem um antecedente invariável 3. A causa de um fenômeno é a reunião de suas condições 4. A causa não é o antecedente invariável, mas o antecedente invariável incondicionado 5. Do conceito de uma causa permanente, ou agente natural primitivo CAP. VI - Da composição das causas 1. Dois modos da ação combinada das causas, o mecânico e o químico 2. A composição das causas é a regra geral; o inverso é a exceção CAP. VII - Da observação e da experiência 1. O primeiro degrau na pesquisa indutiva é a decomposição mental dos fenômenos complexos em seus elementos 2. O segundo é a separação atual desses elementos CAP. VIII - Dos quatro métodos de pesquisa experimental 1. Método de concordância 2. Método de diferença 3. Relação mútua destes dois métodos 4. Método unido de concordância e diferença 5. Método dos resíduos 6. Método de variações concomitantes 7. Limitações deste último método CAP. IX - Diversos exemplos dos quatro métodos 1. Objeções do dr. Whewell aos quatro métodos CAP. X - Da pluralidade das causas e da mistura dos efeitos 1. Um efeito pode ter várias causas 2. - daí a imperfeição característica do método de concordância 3. Concurso de causas que não produzem efeitos compostos 4. Dificuldades da pesquisa quando os efeitos das causas concorrentes são compostos 5. Três modos de investigação das leis dos efeitos complexos 6. O método de observação pura inaplicável 7. O método experimental puro inaplicável CAP. XI - Do método dedutivo 1. Primeiro passo. Determinação por uma indução direta das leis das causas separadas 2. Segundo passo. Conclusões tiradas das leis simples dos casos complexos 3. Terceiro passo. Verificação pela experiência específica CAP. XII - Dos limites da explicação das leis da natureza, e das hipóteses 1. Todas as sucessões na natureza são redutíveis a uma única lei? 2. As leis primitivas não podem ser menos numerosas que os senti mentos 3. Em que sentido os fatos primitivos podem ser explicados 4. Do uso próprio das hipóteses cientificas 5. Sua necessidade 6. Das hipóteses legítimas, e de como se distinguem das ilegítimas CAP. XIII - Das leis empíricas 1. Definição de lei empírica 2. As leis derivadas comumente dependem das colocações 3. As colocações de causas permanentes não são redutíveis a uma lei 4. De onde se segue que as leis empíricas não valem senão nos limites da experiência atual CAP. XIV - Do acaso e sua eliminação 1. A prova das leis empíricas depende da teoria do acaso 2. Definição e explicação do acaso CAP. XV - Do cálculo do acaso 1. Fundamento da teoria das probabilidades dos matemáticos 2. A teoria defensável 3. Sobre que fundamento a teoria realmente existe 4. Sua dependência, em última análise, da causalidade CAP. XVI - Da prova da lei da causalidade universal 1. A lei da causalidade não se apoia em um instinto 2. - mas em uma indução por simples enumeração 3. Em que casos essa indução é admissível Prefácio à Primeira Edição Este livro não tem a ambição de dar ao mundo uma nova teoria das operações intelectuais. Sua única pretensão, se é que tem alguma, é a de ser uma tentativa, não de substituir, mas de reunir e sistematizar as melhores ideias que foram publicadas por estudiosos, ou, ainda, as ideias afins mencionadas por pensadores exatos em suas pesquisas científicas. Ligar os fragmentos dispersos de um assunto até agora nunca tratado como um todo; harmonizar as partes verdadeiras de teorias discordantes por meio de elos intermediários do pensamento necessários para uni-las; e desembaraçando-as dos erros com os quais estão sempre mais ou menos misturadas; tudo isso requer necessariamente uma soma considerável de especulação original. Além desta, o presente trabalho não tem nenhuma outra pretensão de originalidade. No estágio atual de desenvolvimento das ciências, haveria uma prevenção muito forte contra quem quer que ousasse imaginar ter realizado uma revolução na teoria da investigação da verdade ou acrescentado algum processo fundamentalmente novo para a sua aplicação. O único aperfeiçoamento passível de se processar nos métodos de filosofar (e o autor acredita que eles têm muita necessidade de aperfeiçoamento) consiste apenas em executar com mais vigor e cuidado operações, pelo menos em sua forma elementar, familiares ao entendimento humano em uma ou outra de suas aplicações. Na parte da obra que trata do raciocínio, J autor não julgou necessário entrar em detalhes técnicos que se acham expostos de forma tão perfeita nos tratados que fundamentam a lógica das escolas. Ver-se-á que ele não participa, de modo algum, do desprezo de alguns filósofos modernos pela arte silogística, embora a teoria científica na qual sua defesa está baseada lhe pareça errônea. E sua visão sobre a natureza e as funções do silogismo fornecerá, talvez, os meios de conciliar os princípios desta arte com o que ela fundou nas doutrinas e nas objeções dos adversários. A mesma abstinência de detalhes poderá não se observar no Primeiro Livro, que trata dos nomes e das proposições, porque muitos princípios e distinções úteis consagrados na lógica antiga foram gradualmente eliminados dos escritos dos seus últimos mestres; e pareceu desejável tanto relembrá-los como reformar e racionalizar seus fundamentos filosóficos. Os primeiros capítulos deste Livro preliminar parecerão, consequentemente, a alguns leitores, desnecessariamente elementares e escolásticos. Mas aqueles que conhecem a obscuridade em que a natureza do nosso conhecimento - e dos processos pelos quais é obtido - é muitas vezes envolvida, em virtude da apreensão confusa da significação das diferentes classes de palavras e asserções, não considerarão essas discussões nem frívolas nem estranhas às matérias tratadas nos Livros seguintes. Quanto à indução, a tarefa a ser cumprida era generalizar os modos de investigação da verdade e de estimativa da prova pelos quais tantas leis da natureza, importantes e ocultas, têm sido, nas diversas ciências, ajuntadas ao tesouro do conhecimento humano. Que esta não é uma tarefa fácil, pode-se presumir do fato de que, mesmo numa época muito recente, escritores eminentes (entre os quais é suficiente citar o arcebispo Whately, e o autor de um célebre artigo sobre Bacon na Edinburgh Review) não hesitaram em declará-la impossível. (Nas últimas edições de sua Lógica, o arcebispo Whately observa que não quer dizer que as "regras" para a investigação indutiva da verdade podem ser estabelecidas, ou que não possam ser de "grande serventia"; ele crê somente que elas "serão sempre comparativamente vagas e gerais, e incapazes de serem formuladas em uma teoria demonstrativa regular como a do silogismo" (Livro IV, capo IV, §3). E complementa que inventar um sistema com essa finalidade, capaz de ser "construído de forma científica", seria um empreendimento de alguém "mais otimista do que possuidor do espírito científico" (Livro IV, capo 11, § 4). Ora, como este é expressamente o objeto da parte da presente obra que trata da indução, reconhecer-se-á que não há, aqui, nenhum exagero das divergências entre o arcebispo Whately e eu). O autor empenhou-se em combater essa teoria da mesma maneira pela qual Diógenes refutou os raciocínios céticos contra a possibilidade do movimento, e lembrando que o argumento de Diógenes teria sido igualmente concludente, embora suas deambulações não se devessem estender para além da circunferência de sua própria barrica. Qualquer que seja o valor que o autor conseguiu estabelecer nesta parte do assunto, é sua obrigação reconhecer que deve grande parte dele a diversos tratados importantes, seja históricos, seja filosóficos, sobre as generalidades e os métodos da ciência física, que têm sido publicados nos últimos anos. A esses tratados e seus autores ele se empenhou em fazer justiça no corpo da obra. Mas, como frequentemente teve ocasião de expressar opiniões divergentes com um desses escritores, o dr. Whewell, é incumbência do autor, mais particularmente, declarar aqui que, sem a ajuda dos fatos e ideias contidos no livro deste senhor, History of the Inductive Sciences, a parte correspondente desta obra provavelmente não teria sido escrita. O último Livro é uma tentativa de contribuir para a solução de uma questão à qual a decadência de velhas ideias e a agitação que perturba a sociedade europeia até suas íntimas profundezas dão tanta importância nos dias atuais para os interesses práticos da vida humana quanto ela teve, em todos os tempos, segundo o ponto de vista de nosso conhecimento especulativo, a saber: se os fenômenos morais e sociais são verdadeiramente exceções à invariabilidade e uniformidade do curso geral da natureza; e em que medida os métodos pelos quais tantas leis do mundo físico foram classificadas entre as verdades irrevogavelmente conquistadas e universalmente aceitas poderiam servir como instrumentos para a formação de um corpo de doutrina similar na ciência moral e política. Introdução 1. É a lógica a arte e a ciência do raciocínio? A lógica é frequentemente chamada a arte do raciocínio. Um escritor (o arcebispo Whately), que fez mais do que qualquer outro para recolocar em sua dignidade esta disciplina que tinha perdido a estima da classe culta em nosso próprio país, adotou a definição acima, com uma emenda, porém. Para ele, a lógica é a ciência e. a arte do raciocínio, entendendo, pelo primeiro termo, a análise da operação mental que se realiza sempre que raciocinamos, e, pelo segundo, as regras fundadas nesta análise para conduzir corretamente a operação. Não pode haver nenhuma dúvida quanto à propriedade da emenda. Uma correta compreensão do processo mental em si, de suas condições e dos seus degraus, é a única base possível de um sistema de regras apropriadas para dirigi-lo. A arte pressupõe necessariamente o conhecimento; a arte, mesmo na sua infância, pressupõe o conhecimento científico; e se nenhuma arte possui o nome de uma ciência, é somente porque várias ciências são frequentemente necessárias para estabelecer os princípios fundamentais de uma única arte. São tão complicadas as condições que governam nossa atividade prática que, para tornar alguma coisa factível, muitas vezes é indispensável conhecer a natureza e as propriedades de grande número de outras. A lógica, portanto, inclui a ciência do raciocínio tanto quanto uma arte fundada nessa ciência. Mas a palavra "raciocínio", como muitos outros termos científicos de uso popular, é cheia de ambiguidades. Em uma de suas acepções, significa o processo silogístico, ou seja, o modo de inferência que pode ser denominado (com suficiente exatidão para o nosso propósito) como "concluir do geral para o particular". Em outro sentido, raciocinar é, simplesmente, inferir qualquer asserção de asserções previamente admitidas; e, aqui, a indução pode ser chamada, tanto quanto as demonstrações de geometria, de raciocínio. Os autores de lógica geralmente preferem a primeira dessas acepções; pretendo adotar a segunda, que é mais ampla. Faço isso pelo direito, que reclamo para qualquer autor, de dar como provisória a definição que lhe agrade a respeito de seu próprio assunto. Mas razões suficientes deverão, creio, esclarecer por si mesma, durante o desenrolar desta obra, por que esta deveria ser a definição não apenas provisória, mas definitiva. Isso não implica, em todo caso, nenhuma escolha arbitrária da significação do termo, pois, de acordo com o uso geral da língua inglesa, a significação ampla é melhor do que a restrita. 2. A lógica trata de inferências, não de verdades intuitivas ( ... ) Conhecemos as verdades através de duas vias: algumas diretamente por si mesmas; outras, por meio de outras verdades. As primeiras são objetos de intuição ou de consciência (Emprego estes termos indiscriminadamente porque, para o presente objetivo, não há nenhuma necessidade de distingui-los. Mas os metafísicos geralmente restringem o termo intuição para o conhecimento direto que supomos ter das coisas exteriores, e consciência para o conhecimento de nossos próprios fenômenos mentais); as segundas, de inferência. As verdades conhecidas pela intuição são as premissas originais das quais todas as demais são inferidas. Sendo nosso assentimento à conclusão baseado na verdade das premissas não poderíamos chegar a nenhum conhecimento pelo raciocínio, a não ser que alguma coisa pudesse set conhecida antes de qualquer raciocínio. Exemplos de verdades imediatamente conhecidas pela consciência são nossas próprias sensações corporais e afecções mentais. Eu sei diretamente, e pelo meu próprio conhecimento, que ontem fiquei irritado, ou que tenho fome hoje. Exemplos de verdades que conhecemos apenas pela via da inferência são os fatos que acontecem na nossa ausência, os acontecimentos contados na História, ou os teoremas da matemática. Inferimos os dois primeiros de testemunhos, ou de vestígios ainda existentes de acontecimentos passados; o último, de premissas estabelecidas em livros de geometria sob o título de axiomas e definições. Tudo o que somos capazes de conhecer deve pertencer a uma ou outra dessas classes; deve ser um dos dados primitivos ou uma das conclusões que podem ser tiradas deles. A lógica, no sentido em que a entendo, não deve ocupar-se com esses dados originais ou essas últimas premissas do nosso conhecimento, com o seu número ou natureza, o modo pelo qual são obtidos ou os caracteres que podem nos fazer distingui-los, pelo menos de maneira direta. Essas questões em parte não são objeto de nenhuma ciência, em parte o são de ciência bastante diferente. Para tudo o que conhecemos através da consciência, não há possibilidade de dúvida. Do que vemos e sentimos, corporal ou mentalmente, estamos necessariamente seguros. Nenhuma ciência é exigida para o estabelecimento de tais verdades; nenhuma regra de arte pode tornar nosso conhecimento a respeito delas mais certo do que é em si mesmo. Não há nenhuma lógica para esta parte do nosso conhecimento. Mas podemos supor que vemos ou sentimos o que, na realidade, inferimos. Uma verdade, ou uma suposta verdade, que é, na realidade, o resultado de uma inferência muito rápida, pode parecer ter sido apreendida intuitivamente. Desde muito tempo, pensadores das escolas mais opostas concordam que esse engano realmente se dá no ato tão familiar da visão. Não há nada que nos pareça mais diretamente consciente do que a distância de um objeto em relação a nós. Já se reconheceu que o que é percebido pelos olhos é apenas uma superfície de cores variadas; que quando cremos ver a distância, na realidade tudo o que vemos são certas variações de tamanho aparente dos objetos e os graus de enfraquecimento das cores; que nossa estimativa da distância dos objetos em relação a nós é, em parte, o resultado de uma inferência rápida fundada nas sensações musculares que acompanham o ajuste da distância focal do olho aos objetos mais ou menos afastados de nós, e, em parte, o resultado da comparação (feita com tanta rapidez que não temos consciência dela) entre o tamanho e a cor do objeto, como aparecem no momento, e o tamanho e a cor do mesmo objeto ou de objetos similares, tais como aparecem quando próximos de nós, ou quando o grau de distância é constatado de alguma outra maneira. A percepção da distância pelo olho, que parece uma intuição, na realidade é uma simples inferência baseada na experiência - que aprendemos a fazer e que fazemos cada vez mais corretamente, conforme tenhamos mais experiência -, embora em circunstâncias comuns ela aconteça com tanta rapidez que nos parece exatamente igual às percepções da visão, realmente intuitiva: nossas percepções de cor. (Esta importante teoria foi posta há pouco tempo em questão por um escritor de merecida reputação, o Sr. Samuel Bailey; não creio, porém, que suas objeções tenham abalado em nada os fundamentos de uma doutrina reconhecidamente estabelecida há um século. Já expus, em outro lugar, o que me pareceu necessário para responder aos seus argumentos (Westminster Review, outubro de 1842; reimpresso em Dissertations and Discussions, vol. II). Consequentemente, a parte essencial da ciência que trata das operações do entendimento humano na procura da verdade é a pergunta: Quais são os fatos objetos da intuição ou consciência, e quais os que apenas inferimos? Esta indagação, porém, nunca foi considerada como parte da lógica. Seu lugar é em outra parte, inteiramente distinto da ciência, a que se dá mais particularmente o nome de metafísica, ou seja, aquela parte da filosofia que procura determinar o que, no conhecimento, pertence própria e originalmente ao espírito, e o que é elaborado com materiais trazidos de fora. A esta ciência pertencem as grandes e tão debatidas questões da existência da matéria, da existência do espírito e de sua distinção; da realidade do tempo e do espaço enquanto coisas independentes da mente e distinguíveis dos objetos que dizemos existirem dentro deles. É, pois, quase universalmente aceito, no estágio atual da discussão dessas questões, que a existência da matéria ou do espírito, do espaço e do tempo, é absolutamente indemonstrável, e que, se se sabe algo deles, deve ser através da intuição imediata. À mesma ciência pertencem o estudo da concepção, da percepção, da memória e da crença; todas são operações do entendimento em exercício na investigação da verdade. Mas a lógica como tal não tem nada a ver tanto com elas, enquanto fenômenos da mente, quanto com a possibilidade ou não de decompor qualquer uma delas em fenômenos mais simples. À mesma ciência, ainda, devem se referir as questões seguintes e todas as análogas: em que medida nossas faculdades intelectuais e nossas emoções são inatas, em que medida são o resultado de associação? Se Deus e o dever são realidades cuja existência nos é manifesta a priori pela constituição da nossa faculdade racional, ou se nossas ideias a respeito deles são noções adquiridas, cuja origem e formação somos capazes de assinalar e explicar; e se a realidade desses objetos em si mesmos nos fosse revelada não na consciência ou intuição, mas por prova e raciocínio? O domínio da lógica deve se restringir à parte do nosso conhecimento que se compõe de interferências tiradas de verdades previamente conhecidas, quer esses dados antecedentes sejam proposições gerais, quer sejam observações e percepções particulares. A lógica não é a ciência da crença, mas da prova ou da evidência. Quando uma crença alega estar fundamentada em provas, o dever da lógica é fornecer um teste para verificar se a crença está ou não bem fundamentada. A lógica não tem nada a ver com as razões que uma proposição tem para crer somente na prova da consciência - isto é, sem prova, no sentido rigoroso da palavra. 3. Relação da lógica com as demais ciências Sem dúvida, a maior parte do nosso conhecimento, tanto as verdades gerais quanto os fatos particulares, consiste reconhecidamente em inferências; é evidente, então, que a totalidade, não apenas da ciência mas também do comportamento humano, está sob a autoridade da lógica. Diz-se que fazer inferências é a maior ocupação da vida. Temos, a cada dia, a cada hora, a cada momento, necessidade de constatar fatos que não observamos diretamente, não com o propósito geral de aumentar a soma de nossos conhecimentos, mas porque os fatos em si mesmos têm importância para os nossos interesses ou ocupações. O papel do magistrado, do comandante militar, do navegador, do médico, do agricultor, é apenas julgar pela evidência e agir de acordo com ela. Todos têm que se assegurar de alguns fatos, para em seguida aplicar certas regras de conduta imaginadas por eles mesmos ou prescritas por outros; e, na medida em que fazem isso bem ou mal, cumprirão bem ou mal seus deveres. Esta é a única ocupação à qual a mente se dedica sempre, e pertence ao domínio do conhecimento em geral, não da lógica. A lógica, entretanto, não é o mesmo que conhecimento, embora seu campo seja tão extenso quanto o do conhecimento. A lógica é o juiz comum e o árbitro de todas as investigações particulares. Ela não se encarrega de encontrar a prova, mas decide se ela foi encontrada. A lógica não observa, nem inventa, nem descobre, mas julga. Não é sua incumbência informar ao cirurgião quais são os sinais de uma morte violenta. Isto ele deve aprender de sua própria experiência e observação, ou das de seus predecessores nessa atividade específica. A lógica, porém, julga e decide se esta experiência garante suficientemente suas regras, e se suas regras justificam suficientemente sua prática. Ela não lhe dá provas, mas ensina-lhe como e por que são provas e como deve julgá-las; não ensina que determinado fato particular prova algum outro, mas estabelece as condições às quais todos os fatos devem submeter-se, para poderem provar outros fatos. Decidir se um determinado fato preenche essas condições ou se podem ser encontrados fatos que as preencham num determinado caso cabe exclusivamente à arte ou ciência interessada nesta investigação. É neste sentido que a lógica é o que tão expressivamente foi denominado pelos escolásticos e por Bacon: ars artium, a ciência da própria ciência. Toda ciência compõe-se de dados e conclusões desses dados, de provas e de coisas provadas. Ora, a lógica estabelece que relações devem existir entre os dados e o que quer que seja concluído a partir deles, entre as provas e a coisa a ser provada. Se há relações tão indispensáveis, e se elas podem ser determinadas com precisão, qualquer ramo particular da ciência, assim como qualquer homem na orientação de sua própria conduta, têm que se submeter a tais relações, sob pena de fazer inferências falsas, de tirar conclusões que não estejam fundamentadas na realidade das coisas. Tudo o que, em qualquer época, foi justamente concluído, todo conhecimento não-intuitivo, dependem da observação das leis estabelecidas pela lógica. Se as conclusões são rigorosas, e o conhecimento real, é porque essas leis, conhecidas ou não, foram observadas. LIVRO I DOS NOMES E DAS PROPOSIÇÕES "A escolástica, que produziu na lógica, como na moral e em uma parte da metafísica, uma sutileza, uma precisão de ideias, cujo hábito era desconhecido dos antigos, contribuiu mais do que se acredita para o progresso da boa filosofia." (Condorcet, Vie de Turgot.) "É aos escolásticos que as línguas modernas devem em grande parte sua precisão e sutileza analítica." (Sir William Hamilton, Discussions in Philosophy.) CAPÍTULO I Da necessidade de começar por uma análise da linguagem 1. Teoria dos nomes, parte necessária da lógica É tão disseminado o costume estabelecido por autores de lógica de começar os seus tratados por algumas poucas observações gerais (em muitos casos, na verdade, bem estéreis) a respeito dos termos e suas variedades, que talvez raramente exigir-se-á de mim, segundo apenas o uso comum, que entre nas explicações particulares que se espera comumente daqueles que disso se desviam. Esse uso, na verdade, é motivado por considerações tão óbvias que não há necessidade de uma justificativa formal. A lógica é uma parte da arte de pensar; a linguagem é, evidentemente, e pelo consenso de todos os filósofos, um dos principais instrumentos ou auxiliares do pensamento; e qualquer imperfeição no instrumento ou modo de empregá-lo está, evidentemente, sujeita, mais ainda do que em qualquer outra arte, a confundir e entravar a operação e destruir qualquer confiança em seus resultados. Uma mente que, previamente não-versada na significação e no uso correto das várias espécies de palavras, empreendesse o estudo dos métodos de filosofar seria como alguém que quisesse tornar-se um observador em astronomia sem nunca antes ter aprendido a ajustar a distância focal dos seus instrumentos ópticos para poder ver distintamente. Desde que o raciocínio, ou inferência, o principal objeto da lógica, é uma operação que geralmente se efetua por meio das significações das palavras, e em casos complexos não pode se realizar de nenhuma outra maneira, aqueles que não têm perfeito conhecimento da significação e do valor dos termos correrão o risco quase certo de raciocinar ou inferir incorretamente. Também os lógicos geralmente sentem que, a não ser que tenham removido já no primeiro estágio essa fonte de erros, a não ser que tenham ensinado seus alunos a jogar fora as lentes que distorcem o objeto e a usar as que, mais adequadas, ajudem sua visão sem confundi-la, não estariam em condições de tirar algum proveito do restante do ensino. Eis por que a investigação crítica sobre a linguagem, tanto quanto é necessária para evitar os erros que ela origina, sempre foi considerada uma introdução necessária ao estudo da lógica. Há, porém, outra razão, ainda mais fundamental, pela qual o valor das palavras deveria ser o primeiro objeto de consideração dos lógicos; porque, sem isso, não poderão conhecer o valor das proposições. Ora, a proposição é o primeiro objeto que se apresenta no limiar mesmo da ciência da lógica. O objeto da lógica, tal como foi definido na Introdução, é determinar como obtemos esta parte do nosso conhecimento (quase a maior parte) não-intuitiva, e que critério seguimos, em assuntos não-evidentes em si, para distinguir o que é digno do que não é digno de crédito. Entre as várias questões que se apresentam à nossa inteligência, algumas recebem resposta imediata e direta da consciência; outras só podem ser resolvidas através da prova. A lógica trata apenas destas últimas. Assim, antes de investigar o modo de resolver as questões, é necessário perguntar-se: quais são estas questões? Quais são concebíveis? quais a humanidade resolveu, ou julgou possível resolver? Para tudo isso, o exame e a análise da proposição são o melhor guia. 2. Primeiro passo na análise das proposições A resposta a qualquer questão possível deve estar contida numa proposição ou asserção. Tudo o que possa ser objeto de crença ou mesmo de descrença deve, quando expresso em palavras, assumir a forma de uma proposição. Toda verdade e todo erro estão na forma de proposições. O que, por um abuso cômodo de um termo abstrato, chamamos verdade significa apenas uma proposição verdadeira; e erros são proposições falsas. Conhecer a significação de todas as proposições possíveis seria conhecer todas as questões que podem ser postas, todas as questões suscetíveis de serem ou não aceitas. Quantos tipos de perguntas podem ser propostos? Quantas espécies de juízos podem ser feitas? e quantas espécies de proposições podem ser formuladas? Todas essas são formas diferentes de uma mesma questão: Desde que os objetos de qualquer crença e de qualquer investigação se exprimem em proposições, um cuidadoso exame das proposições e de suas variedades nos informará quais espécies de questões a humanidade realmente fez, e quais, segundo a natureza das respostas, pensou realmente ter fundamento para aceitar. Agora, um primeiro exame sobre a proposição mostra que ela se constitui pela reunião de dois nomes. Uma proposição, de acordo com a definição simples e comum, suficiente para o nosso propósito, é um discurso em que algo é afirmado ou negado de algo. ( ... ) Toda proposição tem três partes: sujeito, predicado e cópula. O predicado é o nome que denota o que é afirmado ou negado. O sujeito é o nome que denota a pessoa ou coisa de que algo é afirmado ou negado. A cópula é o sinal que denota que há uma afirmação ou negação, e desse modo possibilita ao ouvinte ou leitor distinguir uma proposição de qualquer outra espécie de discurso. ( ... ) Deixemos de lado por enquanto a cópula, de que falaremos longamente adiante. Toda proposição consiste, então, de pelo menos dois nomes; ela une dois nomes de maneira especial. Este é, já, o primeiro passo em direção ao que investigamos. Daí conclui-se que para um ato de crença não é suficiente um objeto; o simples ato de crença supõe e se vincula sempre a dois objetos, ou, para dizer o mínimo possível, a dois nomes e (desde que os nomes devem ser nomes de alguma coisa) a duas coisas nomeáveis. Um grande número de pensadores resume o assunto dizendo duas ideias. (...) Mas não temos ainda condições para decidir sobre isso; saber se esse é o modo correto de descrever o fenômeno é uma consideração posterior. A conclusão com a qual devemos nos contentar agora é: em todo ato de crença está implicada a representação de dois objetos, de maneira que não pode haver nenhuma crença afirmada ou questão proposta que não contenha dois objetos distintos (quer materiais, quer espirituais) do pensamento, cada um dos quais suscetível ou não de ser concebido por si mesmo, mas não-suscetível nem de afirmação, nem de negação. ( ... ) CAPÍTULO II Dos nomes 1. Os nomes são nomes de coisas, não de nossas ideias "Um nome", diz Hobbes (Computation or Logic, cap. II), "é uma palavra tomada ao acaso para servir como marca que possa suscitar em nossa mente um pensamento semelhante a outro que tínhamos anteriormente, e que, sendo pronunciada diante de outras pessoas, possa ser para elas um sinal da ideia que o interlocutor possuía (no original: "tinha ou não tinha”: Abstive-me de citar estas últimas palavras, já que envolvem um subtítulo estranho ao objeto de nosso estudo) em sua mente antes de proferi-lo." A simples definição do nome como uma palavra (ou conjunto de palavras) que preenche o duplo propósito de um símbolo para suscitar em nós a semelhança de uma ideia anterior e um signo para fazê-la conhecida de outras pessoas parece irrefutável. Na verdade, os nomes fazem muito mais do que isso, mas qualquer outra coisa que façam provém e é o resultado desta dupla propriedade, como se verá adiante. Os nomes são, mais propriamente, os nomes das coisas, ou os nomes de nossas ideias das coisas? A primeira dessas significações é a expressão de uso comum; a segunda é de alguns metafísicos que julgaram, adotando-a, estar introduzindo uma distinção sumamente importante. O pensador eminente, acima citado, parece partilhar da segunda opinião. "Mas, desde que", continua ele, "nomes ordenados no discurso (como está definido) são signos de nossos conceitos, é claro que não são signos das próprias coisas; pois, se o som da palavra pedra devesse ser o signo de uma pedra, só poderia ser entendido desta maneira: que aquele que o ouve infere que aquele que o pronuncia pensa numa pedra." Se somente se quer dizer que o conceito apenas, e não a própria coisa, é evocado pelo nome ou comunicado ao ouvinte, não há condição para que seja negado. Todavia, parece haver boas razões para se aderir ao uso comum, e designar (como na verdade o próprio Hobbes faz em outros lugares) com a palavra solo nome do sol e não o nome de nossa ideia do sol. Pois os nomes não têm tão-só a finalidade de fazer o ouvinte conceber o que concebemos, mas também de informá-lo do que cremos. Ora, quando uso um nome com o propósito de expressar uma crença, é da crença que diz respeito à coisa em si, e não da crença na minha ideia a respeito dela, que quero falar. Quando digo "O sol é a causa do dia", não quero dizer que a minha ideia do sol causa ou provoca em mim a ideia do dia, ou, em outras palavras, que pensar no sol me faz pensar no dia. O que quero dizer é que um certo acontecimento físico, denominado a presença do sol (que, em última análise, se reduz a sensações, não ideias), provoca outro fenômeno físico, denominado o dia. Parece apropriado considerar uma palavra como o nome daquilo que pretendemos seja entendido através dela quando a usamos; daquilo que deve ser entendido de algum fato que afirmamos; daquilo, em suma, com respeito ao qual, quando empregamos a palavra, pretendemos informar. Os nomes, portanto, deverão sempre ser mencionados nesta obra como os nomes das próprias coisas e não meramente de nossas ideias das coisas. Surge agora, porém, a pergunta: de que coisas? Para respondê-la, é necessário levar em consideração as diferentes espécies de palavras. 2. Palavras não são nomes, mas partes de nomes É costume, antes de examinar as várias classes em que os nomes são comumente divididos, começar por distinguir, dos nomes de qualquer espécie, aquelas palavras que não são nomes, mas apenas partes de nomes. Entre estas estão as consideradas partículas, como de, para, verdadeiramente, frequentemente; as inflexões de nomes substantivados (pronomes indiretos), como me, lhe: e mesmo adjetivos, como grande, pesado. Essas palavras não exprimem coisas de que algo possa ser afirmado ou negado. Não podemos dizer: "Pesado caiu", ou: "Um pesado caiu", "Um verdadeiramente foi dito", ou: "Um frequentemente foi afirmado"; "De", ou: "Um de estava na sala". É preciso aceitar, entretanto, os casos em que se fala das palavras consideradas gramaticalmente, como quando dizemos: "Verdadeiramente é uma palavra portuguesa", ou "Pesado é um adjetivo". Nesse caso, são nomes completos - isto é, nomes desses sons particulares, ou desse conjunto particular de caracteres escritos. Este emprego da palavra para denotar apenas as letras e sílabas de que é composta foi denominado pelos escolásticos suppositio materialis da palavra. Em qualquer outro sentido, não podemos inserir essas palavras como sujeito de uma proposição, a não ser em combinação com outras palavras, como: "Um corpo pesado caiu", "Um fato verdadeiramente importante foi afirmado", "Um membro do Parlamento estava na sala". Todavia, um adjetivo é capaz de manter-se por si mesmo como o predicado de uma proposição, como quando dizemos: "A neve é branca" e ocasionalmente, mesmo, como o sujeito, pois podemos dizer: "O branco é uma cor agradável". O emprego do adjetivo é, dessa maneira, uma elipse gramatical: "A neve é branca", em vez de "A neve é um objeto branco"; "Branco é uma cor agradável", em vez de ·"A cor branca", ou "A cor branca é agradável". Os gregos e romanos admitiam, pelas regras de suas línguas, o emprego ilimitado dessa elipse tanto no sujeito quanto no predicado de uma proposição. Em português e inglês, isso não pode, de modo geral, ser feito. Podemos dizer: "A terra é redonda", mas não: "Redondo é muito móvel"; devemos dizer: "Um objeto redondo". Esta distinção, de resto, é mais gramatical do que lógica. Desde que não há nenhuma diferença de sentido entre redondo e objeto redondo, é apenas o costume que prescreve, em uma dada ocasião, o uso de um e não do outro. Iremos, portanto, sem escrúpulos, falar de adjetivos como nomes, quer em seu sentido direto, quer representando as formas mais indiretas de expressão exemplificadas acima. As outras classes de palavras auxiliares não têm qualquer direito de serem consideradas nomes. Um advérbio ou um caso acusativo não podem, em qualquer circunstância (exceto quando se menciona apenas suas letras e sílabas), figurar como um dos termos de uma proposição. As palavras que não podem ser usadas como nomes, mas apenas como partes de nomes, foram chamadas, por alguns escolásticos, de termos sincategoremáticos - de syn (com) e kategoréo (afirmar) - porque apenas com alguma outra palavra podem ser afirmados e atribuídos. A palavra que pode ser usada quer como sujeito quer como predicado de uma proposição, sem ser acompanhada de nenhuma outra palavra, chamava-se termo categoremático. A combinação de uma ou mais palavras categoremáticas e uma ou mais sincategoremáticas, como "Um corpo pesado", ou "Uma corte de Justiça", geralmente se designava por termo misto. Mas isto parece uma multiplicação desnecessária de expressões técnicas. Um termo misto, apenas no sentido útil da palavra, é categoremático. Pertence à classe daquilo que tem sido chamado de nomes complexos. Pois, assim como uma palavra frequentemente não é um nome, mas parte de um nome, assim um número de palavras muitas vezes compõe um único nome. Estas palavras: "O lugar que a sabedoria ou política da Antiguidade destinou para a residência dos príncipes abissínios" formam, na opinião dos lógicos, um só nome, um termo categoremático. Um modo de determinar se um conjunto de palavras forma um só nome ou mais que um é predicar algo dele e observar se, por essa predicação, fazemos apenas uma ou várias asserções. Assim, quando dizemos: "John Nokes, que era o prefeito da cidade, morreu ontem", fazemos apenas uma asserção; donde conclui-se que "John Nokes, que era o prefeito da cidade" é um só nome. É verdade que, nesta proposição, ao lado da asserção "John Nokes morreu ontem" está incluída uma outra asserção, "John Nokes era prefeito da cidade". Mas esta última asserção já estava feita; não a fizemos acrescentando o predicado "morreu ontem". Suponhamos, enfim, que as palavras fossem: "John Nokes e o prefeito da cidade"; elas formariam, então, dois nomes em vez de um. Pois, quando dizemos "John Nokes e o prefeito da cidade morreram ontem", fazemos duas asserções: uma, "John Nokes morreu ontem"; outra, "o prefeito da cidade morreu ontem". Seria desnecessário falar mais acerca dos nomes complexos. Prossigamos com as distinções que têm sido estabelecidas entre os nomes, não quanto às palavras de que são compostos, mas quanto à sua significação. 3. Nomes gerais e nomes singulares Todos os nomes são nomes de alguma coisa, real ou imaginária, mas nem todas as coisas têm nomes próprios e individuais. Para alguns objetos individuais necessitamos e, consequentemente, separamos nomes distintivos; há um nome para cada pessoa e para qualquer lugar notável. Não designamos por seus próprios nomes outros objetos de que não temos ocasião de falar com tanta frequência; mas, quando o fazemos, juntamos várias palavras, cada uma das quais, isoladamente, poderia, e é efetivamente usada para, denotar um número indefinido de outros objetos. Assim, quando dizemos "Esta pedra", "esta" e "pedra" são nomes que podem se aplicar a muitos outros objetos além do que se denota atualmente, embora o único objeto para o qual as duas palavras podem ser usadas naquele momento, consequentemente com sua significação, possa ser o de que quero falar. Se fosse esta a única finalidade pela qual os nomes que são comuns a mais de um objeto podem ser empregados; se apenas servissem, limitando-se mutuamente, para a designação de todos os objetos individuais que não têm nomes próprios; então, poderiam ser classificados somente como artifícios de linguagem. Mas é evidente que esta não é sua única função. É por suas significações que somos capazes de afirmar proposições gerais, afirmar ou negar um predicado qualquer de uma infinidade de coisas ao mesmo tempo. A distinção, portanto, entre nomes gerais e nomes individuais ou singulares é fundamental, e pode ser considerada como a primeira grande divisão dos nomes. O nome geral é usualmente definido como aquele suscetível de ser afirmado verdadeiramente, no mesmo sentido, de uma entre um número indefinido de coisas. O nome individual ou singular é aquele suscetível de ser afirmado verdadeiramente, no mesmo sentido, de uma só coisa. Assim, homem é suscetível de ser afirmado verdadeiramente de João, Jorge, Maria e outras pessoas, indefinidamente, e é afirmado de todos no mesmo sentido, pois a palavra homem exprime certas qualidades, e, quando a atribuímos àquelas pessoas, afirmamos que todas possuem essas qualidades. Mas João é suscetível de ser afirmado verdadeiramente apenas de uma única pessoa, pelo menos no mesmo sentido. Pois, embora haja muitas pessoas que usem esse nome, ele não lhes foi conferido para indicar alguma qualidade ou alguma coisa que lhes pertença em comum, e não se pode dizer que lhes é afirmado em algum sentido qualquer; consequentemente, não no mesmo sentido. "O rei que sucedeu a Guilherme, o Conquistador" é também um nome individual. Pois o sentido das palavras implica que ele não pode se aplicar a mais de uma pessoa. Mesmo "o rei", quando a ocasião ou o contexto do discurso definem o indivíduo pelo qual se entende, pode justamente ser considerado um nome próprio. Diz-se, também, como explicação do que se entende por nome geral, que é um nome de classe. Mas esta expressão, embora conveniente para alguns propósitos, é passível de objeção como definição, pois explica o mais claro entre duas coisas pelo mais obscuro. Seria mais lógico inverter a proposição e transformá-la na definição da palavra classe: "Uma classe é a multidão indefinida de indivíduos denotados por um nome geral". É necessário distinguir nomes gerais de nomes coletivos. Nome geral é aquele que pode ser predicado de cada indivíduo de uma multidão; o nome coletivo não pode ser predicado de cada indivíduo separadamente, mas apenas quando tomados em conjunto. "O septuagésimo sexto regimento de infantaria do exército britânico" é um nome coletivo, não geral; é também individual, pois, embora possa ser predicado de uma multidão de soldados individuais tomados conjuntamente, não pode ser predicado de cada soldado separadamente. Podemos dizer: "Jones é um soldado, e Thompson é um soldado, e Smith é um soldado", mas não podemos dizer: "Jones é o septuagésimo sexto regimento, Thompson é o septuagésimo sexto regimento, e Smith é o septuagésimo sexto regimento", etc. Podemos apenas dizer: "Jones, e Thompson, e Smith, e Brown, e assim por diante (enumerando todos os soldados), são o septuagésimo sexto regimento". "O septuagésimo sexto regimento" é um nome coletivo, mas não um nome geral; "um regimento" é ao mesmo tempo um nome coletivo e geral - geral no que se refere a todos os regimentos individuais, coletivo no que se refere aos soldados individuais que compõem qualquer regimento. 4. Nomes concretos e nomes abstratos A segunda divisão geral dos nomes compõe-se de concretos e abstratos. Nome concreto é o que representa uma coisa; nome abstrato é o que representa o atributo de uma coisa. Assim, João, o mar, esta mesa, são nomes de coisas. Branco também é o nome de uma coisa, ou melhor, de coisas. Brancura, por outro lado, é o nome de uma qualidade ou atributo dessas coisas. Homem é o nome de muitas coisas; humanidade é o nome de um atributo dessas coisas. Velho é um nome de coisas; velhice é o nome de um de seus atributos. Usei as palavras concreto e abstrato no sentido que lhes deram os escolásticos, que, não obstante as imperfeições de sua filosofia, foram inigualáveis na construção da linguagem técnica, e cujas definições, pelo menos em lógica, embora um pouco superficiais, foram raras vezes alteradas, a não ser para pior. Estabeleceu-se o hábito, todavia, nos tempos modernos - que, se não introduzido por Locke, entrou em uso geral principalmente pelo seu exemplo -, de aplicar a expressão "nomes abstratos" a todos os nomes que são resultado de uma abstração ou generalização e, consequentemente, a todos os nomes gerais, ao invés de limitá-la aos nomes dos atributos. Os metafísicos na escola de Condillac - cuja admiração por Locke, passando por cima das especulações mais profundas desse gênio "Original, geralmente se fixa com zelo especial em seus pontos mais fracos - levaram tão longe este abuso de linguagem, que hoje se torna difícil restabelecer a significação original da palavra. Raramente deparamos com uma alteração mais arbitrária do sentido de uma palavra, pois a expressão nome geral - cujo equivalente exato existe em todas as línguas que conheço - já significava o que abstrato quer dizer, nesta prática viciosa. Esse uso incorreto deixa a importante classe de palavras, os nomes dos atributos, sem nenhuma denominação distintiva e concisa. A acepção antiga, todavia, não caiu tão completamente em desuso que prive aqueles que ainda a adotem de qualquer possibilidade de serem compreendidos. Por abstrato, então, deverei sempre, no sentido estritamente lógico, entender o oposto de concreto; por nome abstrato, o nome de um atributo; por nome concreto, o nome de um objeto. Os nomes abstratos pertencem à classe dos nomes gerais ou dos nomes singulares? Alguns são, certamente, gerais. Refiro-me àqueles que são nomes não de um atributo único e definido, mas de uma classe de atributos. Assim é a palavra cor, que é o nome comum de brancura, vermelhidão, etc. O mesmo vale também para a palavra brancura, com relação aos diferentes tons de brancura aos quais é empregada; a palavra magnitude, quanto aos vários graus de magnitude e às várias dimensões do espaço; a palavra peso, com relação às várias graduações de peso. Assim também é a própria palavra atributo, nome comum de todos os atributos particulares. Mas quando apenas um atributo, não-variável em graduação nem em espécies, é designado pelo nome - como visibilidade, tangibilidade, igualdade, quadratura, a brancura do leite -, difícilmente poderá ser considerado geral; pois, embora denote o atributo de muitos objetos diferentes, o atributo em si é sempre concebido como um, não múltiplo. Para evitar logomaquias desnecessárias, o melhor caminho seria, provavelmente, não considerar esses nomes gerais nem individuais, e colocá-los numa classe à parte. Pode-se objetar à nossa definição de nome abstrato que não apenas os nomes que temos chamado de abstratos, mas os adjetivos que colocamos na classe dos nomes concretos, são nomes de atributos; que branco, por exemplo, é nome de cor tanto quanto de brancura. Porém (conforme notamos acima), uma palavra deve ser considerada como o nome do que pretendemos que seja entendido por ela quando a colocamos em sua função principal, isto é, em predicação. Quando dizemos "a neve é branca", "o leite é branco", "o linho é branco", não queremos dizer que a neve, o linho ou o leite são uma cor, mas que são coisas que têm cor. O inverso ocorre no caso da palavra brancura; o que afirmamos ser brancura não é a neve, mas a cor da neve. Brancura, portanto, é o nome exclusivamente da cor; branco é o nome de qualquer coisa que tenha essa cor; o nome, não da qualidade brancura, mas de todo objeto branco. Este nome foi dado a todos esses diferentes objetos por causa da qualidade, e podemos, portanto, dizer, sem impropriedade, que a qualidade faz parte de sua significação; mas só se pode dizer que um nome representa ou é um nome das coisas quando pode ser predicado delas. Ora, veremos que todos os nomes que têm alguma significação, e que, aplicados a um objeto individual, fornecem alguma informação a respeito desse objeto, implicam algum atributo. Mas eles não são os nomes do atributo; este tem seu nome específico e abstrato. 5. Nomes conotativos e não-conotativos Isto nos leva à terceira grande divisão dos nomes, em conotativos e não-conotativos, estes últimos muitas vezes, mas impropriamente, chamados absolutos. Esta é uma das mais importantes distinções que teremos ocasião de estabelecer e uma das que penetram mais fundo na natureza da linguagem. Termo não-conotativo é aquele que denota um sujeito somente, ou um atributo apenas. Conotativo é o termo que denota um sujeito e implica um atributo. Por sujeito é preciso entender qualquer coisa que possua atributos. Assim, João, Londres ou Inglaterra são nomes que denotam um sujeito apenas. Brancura, comprimento, virtude, denotam um atributo apenas. Nenhum desses nomes, portanto, é conotativo. Mas branco, comprido, virtuoso, são conotativos. A palavra branco denota todas as coisas brancas, como neve, papel, a espuma do mar, etc., e implica, ou, na linguagem dos escolásticos, conota (Notare: indicar; connotare: indicar junto com; indicar alguma coisa com ou em acréscimo a outra), o atributo brancura. A palavra branco não se predica do atributo, mas dos sujeitos: neve, etc.; mas, quando a predicamos deles, exprimimos que o atributo brancura lhes pertence. Pode-se dizer o mesmo das demais palavras citadas acima. Virtuoso, por exemplo, é o nome de uma classe que inclui Sócrates, Howard, o Homem de ROSS, e um número indefinido de outros indivíduos, passados, presentes e futuros. Apenas pode-se dizer com propriedade desses indivíduos, tomados em conjunto ou separadamente, que são denotados pela palavra; deles apenas pode-se dizer que a palavra (virtuoso) é um nome. Mas esse nome lhes é aplicado em consequência de um atributo que supostamente possuem em comum, chamado virtude. É aplicado a todos os seres que se consideram possuidores desse atributo, e a nenhum que não seja assim considerado. Todos os nomes concretos gerais são conotativos. A palavra homem, por exemplo, denota Pedro, João e um número indefinido de outros indivíduos dos quais, tomados como uma classe, ela é o nome. Mas lhes é aplicada porque possuem, e para indicar que possuem, certos atributos, entre eles a corporeidade, a vida animal, a regionalidade e uma certa forma exterior que, para diferenciá-la bem, chamamos de humana. Toda criatura existente possuidora de todos esses atributos chamar-se-á homem; e qualquer ser que não possua nenhum deles, ou apenas um, ou dois, ou mesmo três sem o quarto, não será chamado daquela maneira. Por exemplo, se no interior da África se descobrisse uma raça de animais possuidores de razão, como os seres humanos, mas com a forma de um elefante, não se chamariam homens. Não se daria tal nome ao Houyhnhnm de Swift. Ou se tais seres, recentemente descobertos, possuíssem a forma humana sem qualquer vestígio de razão, é provável que algum outro nome afora o de homem lhes fosse dado. Veremos adiante por que poderia haver dúvida neste caso. A palavra homem, portanto, designa todos os atributos e todos os sujeitos aos quais estes atributos pertencem; pode-se, pois, predicá-los apenas dos sujeitos. O que chamamos de homens são os sujeitos, os indivíduos Stiles e Nokes, nunca as qualidades que constituem sua humanidade. O nome, portanto, representa os sujeitos diretamente e os atributos indiretamente; ele denota os sujeitos e contém, ou implica, ou indica, ou, conforme diremos daqui para diante, conota os atributos. É um nome conotativo. Nomes conotativos são também chamados denominativos, porque o sujeito que denotam é denominado pelo atributo que conotam. A neve e outros objetos recebem o nome branco porque possuem os atributos que constituem a brancura. Pode-se dizer, portanto, que o atributo, ou os atributos, denominam esses objetos ou lhes dão um nome comum. (O arcebispo Whately, que, nas últimas edições de seus Elementos de Lógica, ajudou a restabelecer a importante distinção indicada no texto, propõe o termo "atributivo" como substituto para "conotativo" (p. 22, 9.ª edição). A palavra é, em si, apropriada; mas, como não tem a vantagem de estar associada a nenhum verbo de caráter tão acentuadamente distintivo como "conotar", não me parece adequada para preencher o lugar da palavra "conotativo" no uso científico) Vimos que todos os nomes concretos gerais são conotativos. Mesmo nomes abstratos, embora apenas nomes de atributos, podem ser considerados, em alguns casos, conotativos; pois os próprios atributos podem ter atributos, e uma palavra que denota atributos pode conotar o atributo desses atributos. Dessa espécie, por exemplo, são palavras como defeito, equivalente a má qualidade. Esta palavra é um nome comum a muitos atributos e conota maldade, atributo daqueles vários atributos. Quando, por exemplo, dizemos que a lentidão num cavalo é um defeito, não queremos indicar que o movimento lento, a vagarosa mudança de lugar atual do cavalo, é uma coisa má, mas que a característica ou a peculiaridade do cavalo, da qual o nome deriva (a lentidão de movimentos), é uma peculiaridade indesejável. Deve-se fazer uma distinção com respeito aos nomes concretos que não são gerais, mas individuais. Nomes próprios não são conotativos; denotam os indivíduos a quem dão o nome, mas não afirmam nem implicam qualquer atributo como pertencente a esses indivíduos. Quando chamamos uma criança de Paulo ou um cachorro de César, esses nomes são simples sinais usados para indicar esses indivíduos como sujeitos possíveis de um discurso. Pode-se dizer, na verdade, que deve ter havido alguma razão para lhes dar esses nomes em vez de qualquer outro, e é verdade; mas o nome, uma vez dado, é independente do motivo. Um homem pode se chamar João porque este era o nome de seu pai; uma cidade pode se chamar Dartmouth porque é situada na foz do rio Dart. Mas não há, na significação da palavra João, nada que implique que o pai da pessoa assim chamada tinha o mesmo nome; nem mesmo a palavra Dartmouth implica que esta cidade esteja situada na foz do Dart. Se a areia obstruísse a foz do rio ou um terremoto mudasse o seu curso e o afastasse da cidade, o nome da cidade não seria necessariamente mudado. Esse fato, portanto, não pode fazer parte da significação da palavra; pois, se, caso contrário, o fato cessasse reconhecidamente de ser verdadeiro, ninguém mais pensaria em chamá-lo do mesmo nome. Os nomes próprios estão vinculados aos objetos em si e não dependem da permanência de qualquer atributo do objeto. Há, porém, uma espécie de nomes que, embora individuais - isto é, predicáveis apenas de um objeto -, na realidade são conotativos. Pois, ainda que possamos dar a um indivíduo um nome completamente insignificante, ou não-significativo, chamado nome próprio, nome que basta para designar a coisa de que estamos falando - mas não o de informar qualquer coisa a respeito dela -, ainda assim, um nome próprio não é necessariamente dessa espécie. Pode significar algum atributo ou conjunto de atributos que, não sendo possuídos por nenhum objeto exceto um, determinam exclusivamente o nome para esse indivíduo. "O sol" é um nome dessa espécie; "Deus", quando usado por um monoteísta, é outro. Estes, entretanto, são apenas exemplos do que estamos agora tentando ilustrar, sendo, a rigor, nomes gerais, não individuais. Pois, embora possam ser predicáveis de fato apenas de um objeto, não há nada na significação das palavras em si que o indique; consequentemente, quando estamos imaginando e não afirmando, podemos falar de muitos sóis; e a maior parte da humanidade acreditou, e ainda acredita, que há muitos deuses. Mas é fácil encontrar exemplos perfeitos de nomes individuais conotativos. Pode fazer parte da significação do próprio nome conotativo o seguinte: só pode existir um indivíduo que possui o atributo que o nome conota. Como, por exemplo, "O único filho de John Stiles"; "O primeiro imperador de Roma". Ou o atributo conotado pode exprimir uma relação com algum acontecimento determinado, e esta relação pode ser de tal espécie que exista apenas para um indivíduo; ou pode estar implícito na forma da expressão. "O pai de Sócrates" é um exemplo do primeiro caso (já que Sócrates não pode ter tido dois pais); "O autor da Ilíada”: "O assassino de Henrique IV", do segundo. Pois, embora se possa conceber que mais de uma pessoa pode ter participado da autoria da Ilíada ou do assassinato de Henrique IV, o emprego do artigo o implica que, de fato, não era este o caso. O que aqui é dado pela palavra o resulta em outros casos do contexto; assim, "O exército de César" é um nome individual se do contexto resulta que o referido exército é aquele que César comandou numa determinada batalha. As expressões ainda mais gerais "O exército romano" ou "O exército cristão" podem ser individualizadas de maneira semelhante. Outro caso de ocorrência frequente, e já mencionado, é o seguinte: O nome, de muitas palavras, pode se formar, em primeiro lugar, de um nome geral, suscetível, mas encontrar-se, em segundo lugar, tão limitado pelas outras palavras ligadas a ele que a expressão inteira só pode ser predicada de um objeto, consequentemente com a significação do termo geral. Exemplo: "O atual primeiro-ministro da Inglaterra". "Primeiro-ministro da Inglaterra" é um nome geral; os atributos que ele conota podem ser possuídos por um número indefinido de pessoas, sucessivamente, porém não simultaneamente, já que o sentido da palavra implica (entre outras coisas) que só pode haver uma pessoa assim chamada de cada vez. Sendo este o caso, e sendo a aplicação do nome limitada depois pelo artigo e pela palavra atual aos indivíduos que possuem os atributos num momento indivisível de tempo, ele se torna aplicável a apenas um indivíduo. E, como isto resulta somente da significação do nome, sem nenhuma demonstração extrínseca, este nome é estritamente individual. Das observações precedentes facilmente se concluirá que sempre que os nomes dados aos objetos contenham alguma informação sobre o objeto - isto é, sempre que tenham propriamente alguma significação -, esta significação reside não no que eles denotam, mas no que conotam. Apenas os nomes de objetos que não conotam nada são nomes próprios; e estes não têm, a rigor, nenhuma significação. (Um escritor, que intitula seu livro Filosofia, ou a Ciência da Verdade, me ataca logo na primeira página (referindo-se no rodapé a esta passagem) afirmando que os nomes gerais não têm propriamente nenhuma significação. E repete essa afirmação muitas vezes no decurso de seu livro, com comentários nada lisonjeiros a esse respeito. É bom de vez em quando lembrar-se a quanto uma citação errônea e maldosa (pois, por estranho que pareça, não acredito que o escritor seja desonesto) muitas vezes pode chegar. Faço uma advertência aos leitores: quando virem um autor acusado, com volume e página citados e a garantia aparente das aspas, de afirmar algo mais do que um simples absurdo, não devem dar crédito irrestrito à asserção sem verificar a referência). Se, como o ladrão nas Mil e Uma Noites, fazemos uma marca com giz numa casa para podermos reconhecê-la novamente, a marca tem uma finalidade, mas não tem propriamente nenhuma significação. O giz não nos ensina nada a respeito da casa; ele não diz: "Esta é a casa de uma tal pessoa", ou "Esta é a casa que contém o butim". O objetivo da marca é apenas fazer uma distinção. Digo a mim mesmo: "Todas estas casas são tão semelhantes que, se perdê-las de vista, não serei capaz de distinguir novamente das outras a que olho no momento; devo, portanto, achar um meio de tornar a aparência desta casa diferente das outras, para poder depois reconhecer, quando vir a marca, não algum atributo da casa, mas simplesmente que será a mesma casa que olho agora". Morgana marcou todas as outras de maneira idêntica e frustrou o plano. Como? Simplesmente eliminando a diferença entre aquela casa e as demais. O giz ainda estava lá, mas não mais preenchia a finalidade de marca distintiva. Quando impomos um nome próprio, realizamos uma operação até certo ponto análoga à que o ladrão pretendeu marcando a casa com giz. Colocamos uma marca não no objeto em si, mas, por assim dizer, na ideia do objeto. Um nome próprio não é mais do que uma marca sem significação que juntamos em nossas mentes à ideia do objeto, a fim de que sempre que a marca encontrar nossos olhos ou ocorra aos nossos pensamentos, possamos pensar naquele objeto individual. Não sendo ligado à coisa em si, o nome próprio não nos torna capazes, como o giz, de distinguir o objeto quando o vemos, mas serve-nos para distingui-lo quando é mencionado, seja nos registros de nossa própria experiência, seja no discurso de outros, e para reconhecer que o que é afirmado por qualquer proposição de que é o sujeito, é afirmado da coisa individual por nós previamente conhecida. Quando predicamos o nome próprio de alguma coisa; quando dizemos, apontando para um homem: "Este é Brown ou Smith", ou apontando para uma cidade: "É York", não transmitimos, apenas fazendo isto, ao leitor qualquer informação sobre eles, exceto que aqueles são seus nomes. Tornando-o, porém, capaz de identificar os indivíduos, ligamos os nomes com uma informação que ele possuía anteriormente. Dizendo: "Esta é York", podemos informá-lo de que ela contém a catedral de Minster. Mas isto em virtude do que ele ouviu anteriormente a respeito, de York, e não por algo implícito no nome. O contrário ocorre quando objetos são mencionados por nomes conotativos. Quando dizemos: "A cidade é construída de mármore", damos ao ouvinte uma informação que pode ser inteiramente nova, e isto apenas pela significação do nome conotativo complexo "construída de mármore". Tais nomes não são simplesmente signos dos objetos, servindo somente para designá-los individualmente, mas signos que acompanham um atributo, uma espécie de uniforme com o qual o atributo veste todos os objetos aos quais ele pertence. Não são meras marcas, mas marcas significativas, e é a conotação que constitui sua significação. Assim como um nome próprio é apenas o nome de um indivíduo do qual se predica, assim (tanto pela importância da analogia a seguir como por outras razões apontadas anteriormente) deve-se considerar nome conotativo o nome de todos os vários indivíduos dos quais é predicável, ou, em outras palavras, que denota, e não do que conota. Mas, descobrindo de que coisas ele é o nome, não tomamos conhecimento da significação do nome; pois para a mesma coisa podemos aplicar, com igual propriedade, muitos nomes, não equivalentes em significação. Assim, chamamos um determinado homem pelo nome Sofronisco; chamamo-lo também por outro nome: o pai de Sócrates. Ambos são nomes do mesmo indivíduo, mas sua significação é diferente. São aplicados àqueles indivíduos com dois propósitos diferentes: um, apenas para distingui-lo de outras pessoas; o outro, para indicar um fato relativo a ele, ou seja, de que Sócrates era seu filho. Além disso, aplico-lhe estas outras expressões: um homem, um grego, um ateniense, um escultor, um velho, um homem honesto, um homem valente. Todos esses são, ou podem ser, nomes de Sofronisco, não, é claro, dele apenas, mas dele, e de cada um de um número indefinido de outros seres humanos. Cada um desses nomes é aplicado a Sofronisco por uma razão diferente, e cada um ensina a quem compreende sua significação um fato relativo à sua pessoa; mas aqueles que não conheciam nada a respeito dos nomes, exceto que eram aplicáveis a Sofronisco, ignorariam por completo sua significação. É possível, ainda mesmo, que se pudesse conhecer cada indivíduo isoladamente cujo nome pudesse ser afirmado com verdade, e ainda não se poderia dizer que conhecesse a significação do nome. Uma criança conhece quem são seus irmãos e irmãs muito antes de ter qualquer concepção definida da natureza dos fatos envolvidos na significação destas palavras. Em alguns casos, não é fácil determinar precisamente quanto uma determinada palavra conota ou não; isto é, não conhecemos exatamente (não tendo surgido o caso) que grau de diferença no objeto iria ocasionar uma diferença no nome. Assim, é claro que a palavra homem, além de animalidade e racionalidade, conota também uma certa forma exterior, mas seria impossível dizer precisamente que forma, isto é, determinar que grau de desvio da forma ordinária seria suficiente para negar o nome homem a uma raça recentemente descoberta. Já que a racionalidade é, também, uma qualidade que comporta graus, nunca foi estabelecido qual o grau mais baixo dessa qualidade que daria o direito a qualquer criatura de ser considerada um ser humano. Em todos os casos semelhantes, a significação do nome comum até agora é incerta e vaga; a humanidade não chegou a nenhum consenso positivo. Quando tratarmos da classificação, mostraremos sob que condições essa falta de precisão pode existir sem inconveniência prática, e aparecerão casos em que os objetivos-limites da linguagem são melhor promovidos por essa imprecisão do que por uma precisão absoluta: na história natural, por exemplo, reunião de indivíduos ou espécies de caráter não muito demarcado a outros caracterizados de maneira mais acentuada, com os quais, em todas as suas propriedades tomadas em conjunto, eles têm mais semelhança. Essa incerteza parcial na conotação dos nomes, porém, pode se ver livre de graves inconvenientes apenas quando guardada por precauções rigorosas. Na verdade, uma das principais fontes de hábitos negligentes de pensar é o costume de usar termos conotativos sem conotação distintivamente determinada, e com uma noção de sua significação tão precisa quanto a que se pode coletar observando quais objetos costuma denotar. É assim que adquirimos, inevitavelmente, nosso primeiro conhecimento da língua vernácula. Uma criança aprende a significação das palavras homem ou branco ouvindo-as aplicadas a um grande número de objetos individuais, e descobrindo, por um processo de generalização e análise que não seria capaz de descrever, o que aqueles diferentes objetos têm em comum. No caso dessas duas palavras, o procedimento é tão fácil que não requer nenhum exercício, já que os objetos chamados homens e os objetos chamados brancos diferem de todos os outros por qualidades bem definidas e óbvias. Mas, em muitos outros casos, os objetos trazem tal semelhança geral uns com os outros, que os leva a serem classificados usualmente sob um nome comum, embora seja necessária uma faculdade de análise bem superior à que a maior parte dos homens possui para determinar imediatamente esses atributos comuns a todos, de que depende especificamente sua semelhança geral. Neste caso, todo mundo usa o nome sem qualquer conotação reconhecida, isto é, sem nenhuma significação precisa; fala-se, consequentemente, pensa-se vagamente, e contenta-se em atingir o mesmo grau de significação, em suas próprias palavras, que uma criança de três anos atinge para as palavras irmão e irmã. A criança, pelo menos, raramente fica perplexa com o surgimento de novos indivíduos aos quais ela não sabe se confere ou não o mesmo nome, porque geralmente há uma autoridade próxima competente para resolver todas as dúvidas. Mas, na maior parte dos casos, não existe um recurso desses, e, quanto aos novos objetos que se apresentam continuamente aos homens, às mulheres e às crianças, todos são obrigados a classificá-los próprio motu. Consequentemente, eles o fazem somente pelo princípio da similitude superficial, dando a cada novo objeto o nome daquele objeto familiar cuja ideia têm mais prontamente, ou que, num exame superficial, lhes parece mais semelhante. Assim, uma substância encontrada no solo será chamada, conforme sua textura, terra, areia ou pedra. Dessa maneira, os nomes passam de objeto a objeto até que os traços de uma significação comum muitas vezes desaparecem, e a palavra acaba por denotar um sem-número de coisas não apenas independente de qualquer atributo comum, mas que, na realidade, não possuem nenhum atributo comum, ou nenhum senão o que é compartilhado por outras coisas às quais o nome é caprichosamente recusado. Mesmo os sábios têm colaborado para esta perversão da linguagem ora porque, como o vulgo, não conhecem nada melhor, e ora por uma aversão às novas palavras, o que induz os homens, em todos os assuntos não-técnicos, a tentar fazer com que a reserva primitiva de nomes sirva, com pouquíssimos acréscimos, para exprimir um número cada vez maior de objetos e distinções, e, consequentemente, para exprimi-los de maneira cada vez mais imperfeita. A que ponto essa maneira vaga de classificar e denominar objetos tornou o vocabulário da filosofia moral inadequado para os propósitos de um pensar correto, é o que sabe muito bem aquele que meditou bastante sobre o estado atual deste ramo do conhecimento. De qualquer modo, já que a introdução de uma nova linguagem técnica como veículo de especulações sobre assuntos pertencentes ao domínio da discussão é extremamente difícil de realizar, e não estaria livre de obstáculos se realizada, o problema para o filósofo - e um dos de mais difícil resolução - é como atenuar, mantendo a atual terminologia, suas imperfeições. Isso só pode se efetuar dando a cada nome geral concreto uma conotação definida e fixa, de modo que o nome de um objeto deixe exatamente conhecer quais são os atributos que se quer afirmar deste objeto. Trata-se de questão muito delicada saber como dar essa conotação fixa a um nome mudando o menos possível os objetos habitualmente designados para denotá-los, com o mínimo desarranjo possível, seja adicionando, seja subtraindo, no grupo de objetos que, embora de maneira imperfeita, o nome serve para circunscrever e juntar, e com a mínima adulteração da verdade de quaisquer proposições comumente admitidas como verdadeiras. Esse propósito - dar uma conotação fixa onde ela é deficiente - é o fim visado sempre que se tenta dar uma definição de um nome já em uso, já que toda definição de um nome conotativo consiste numa tentativa, ou de meramente declarar, ou de declarar e analisar a conotação do nome. E o fato de que nenhuma questão surgida nas ciências morais tem sido objeto de controvérsias mais acaloradas do que as definições de quase todos os termos principais é uma prova da extensão do mal que assinalamos. Não se deve confundir os nomes de conotação indeterminada com os nomes que têm mais de uma conotação, isto é, as palavras ambíguas. Uma palavra pode ter muitas significações, mas todas fixas e reconhecidas, como a palavra posto, por exemplo, ou a palavra caixa, cujos diferentes sentidos seria exaustivo enumerar. E a falta de nomes existentes comparada à demanda pode muitas vezes tornar aconselhável, e mesmo necessário, manter um nome com essa multiplicidade de acepções, distinguindo-as com tal clareza que se evite que sejam confundidas umas com as outras. Tal palavra pode ser considerada como dois ou mais nomes, acidentalmente escritos ou pronunciados da mesma forma. ( ... ) (Antes de deixar a questão dos nomes conotativos, é oportuno observar que o primeiro escritor que, em nossos tempos, adotou a palavra conotar dos escolásticos, o Sr. James Mill, no seu livro Analysis of the Phenomena of the Human Mind, a emprega com uma significação diferente da que é aqui empregada. Usa a palavra no sentido co-extensivo à sua etimologia, aplicando-a a todos os casos em que um nome, designando diretamente uma coisa (o que, consequentemente seria sua significação), inclui também a referência tácita a alguma outra coisa. No caso citado no texto, o dos nomes gerais concretos, sua linguagem é o oposto da minha. Considerando (muito justamente) que a significação do nome está no atributo, entende que a palavra nota o atributo e conota as coisas que possuem o atributo. E descreve os nomes abstratos como sendo propriamente nomes concretos cuja conotação é suprimida, ao passo que, no meu ponto de vista, é a denotação que seria suprimida, e toda a significação residiria no que era antes conotado. Adotei uma terminologia em desacordo com o que uma tão alta autoridade - e que eu, mais do que qualquer outra pessoa, seria incapaz de subestimar - deliberadamente sancionou. Fui obrigado a tal pela necessidade urgente de encontrar um termo exclusivamente apropriado para exprimir a maneira pela qual um nome geral concreto serve para indicar os atributos envolvidos na sua significação. Essa necessidade só pode ser sentida em toda a sua força por alguém que descobriu, através da experiência, quão vã é a tentativa de comunicar ideias claras sobre a filosofia da linguagem sem tal palavra. Não é exagero afirmar que alguns dos erros mais frequentes com que a lógica tem sido contaminada, e uma grande parte da obscuridade e confusão de ideias que a tem envolvido, teriam sido, com toda probabilidade, evitados se se utilizasse um nome usual para exprimir exatamente o que eu quis significar pelo termo conotar. E foram os escolásticos, aos quais devemos a maior parte da nossa linguagem lógica, que nos deram também este termo, e no seu verdadeiro sentido. Pois, embora algumas de suas expressões gerais permitam o uso da palavra na acepção mais ampla e vaga em que é tomada pelo Sr. Mill, mesmo quando tiveram que defini-la especificamente como um termo técnico e fixar sua significação como tal com a precisão admirável que caracteriza suas definições, explicaram claramente que nada é conotado a não ser formas, palavra que pode geralmente, em seus escritos, ser entendida como sinônimo de atributos. Agora, se a palavra conotar, tão adequada ao propósito para o qual a aplicaram, é desviada desse propósito a fim de satisfazer a um outro para o qual não me parece absolutamente conveniente, sou incapaz de encontrar uma expressão para substituí-la a não ser algumas empregadas comumente num sentido muito genérico. Seria, pois, inútil tentar associá-las especificamente a essa ideia precisa. Tais são as palavras: envolver, implicar, etc. Empregando estes termos, não conseguiria atingir o único objetivo do nome, isto é, distinguir este modo especial de envolver e implicar de todos os outros, e assegurar-lhe assim toda a atenção que sua importância requer). CAPÍTULO III Das coisas denotadas pelos nomes 1. A necessidade de uma enumeração das coisas nomeáveis. As categorias de Aristóteles Voltando ao início de nossa investigação, tentemos medir o caminho percorrido. Constatamos que a lógica é a teoria da prova. Mas prova supõe algo provável, que deve ser uma proposição ou asserção, já que só uma proposição pode ser objeto de crença ou, consequentemente, de prova. A proposição é um discurso que afirma ou nega uma coisa de uma outra coisa. Este é o primeiro passo; deve, portanto, haver duas coisas implicadas em todo ato de crença. Quais são, porém, essas coisas? Só podem ser as significadas pelos dois nomes, que, unidos por uma cópula, constituem a proposição. Se, portanto, soubéssemos o que todos os nomes significam, conheceríamos todas as coisas que, no atual estado do conhecimento humano, são suscetíveis de ser sujeitos de afirmação ou negação ou de serem elas mesmas afirmadas ou negadas de um sujeito. Examinamos, portanto, no capítulo precedente, as diversas espécies de nomes, para verificar o que cada uma delas significa. E levamos esse exame a um ponto que nos torna capazes, agora, de calcular seus resultados e exibir uma enumeração de todas as espécies de coisas suscetíveis de se tornarem predicados, ou de terem alguma coisa predicada delas; depois disso, não será difícil determinar a importância da predicação (atribuição), isto é, das proposições. ( ... ) I - SENTIMENTOS OU ESTADOS DE CONSCIÊNCIA 2. Sentimentos ou estados de consciência Sentimento e estado de consciência são, em linguagem filosófica, expressões equivalentes. Tudo aquilo de que a mente tem consciência, tudo o que ela sente, ou, em outras palavras, o que faz parte de sua própria existência sensível, é um sentimento. Em linguagem popular, sentimento nem sempre é sinônimo de estado de consciência; é usado mais particularmente para significar aqueles estados pertencentes ao lado sensitivo ou afetivo (emocional) de nossa natureza; e, algumas vezes, num sentido ainda mais restrito, ao lado emocional apenas, distinguindo-o do que se considera pertencente ao estágio perceptivo ou intelectual puro. Mas isto é um abuso de linguagem consagrado, assim como, por uma perversão popular análoga, a palavra mente é privada de sua justa generalidade de significação e restrita ao intelecto. Não há necessidade de se aludir mais particularmente à perversão ainda maior que muitas vezes confina o sentimento não apenas às sensações corporais, mas ainda às sensações de um único sentido, o tato, por exemplo. Sentimento, no sentido próprio do termo, é um gênero do qual sensação, emoção e pensamento são as espécies. Na palavra pensamento deve-se incluir tudo aquilo de que temos interiormente consciência quando pensamos - desde a consciência que temos quando pensamos na cor vermelha sem tê-la diante de nossos olhos até as mais profundas meditações do filósofo e do poeta. Observemos, contudo, que por pensamento deve-se entender o que se passa na própria mente, e não algum objeto que lhe seja exterior. Alguém pode pensar em sol e Deus, mas sol e Deus não são pensamentos; contudo, sua imagem mental do sol e sua ideia de Deus são pensamentos, estados de sua mente, não dos próprios objetos, e assim é também sua crença ou descrença na existência do solou de Deus. Mesmo objetos imaginários (que se diz existirem apenas em nossas ideias) devem ser distinguidos das ideias que temos deles. Posso pensar num lobisomem, assim como posso pensar no pão que comi ontem ou na flor que deverá desabrochar amanhã. Mas o lobisomem que nunca existiu não é a mesma coisa que minha ideia de um lobisomem, assim como o pão que existiu uma vez não é o mesmo que minha ideia de pão, ou a flor, que ainda não existe, mas que existirá, não é o mesmo que minha ideia de flor. Essas coisas não são pensamentos, mas objetos do pensamento, embora no momento presente todos esses objetos sejam igualmente inexistentes. Da mesma maneira, uma sensação deve ser cuidadosamente distinguida do objeto que a causa: nossa sensação de branco, do objeto branco, assim como do atributo brancura, que atribuímos ao objeto por excitar essa sensação. Infelizmente, para a clareza e discriminação adequadas nestes assuntos, nossas sensações raramente têm nomes distintos. Temos um nome para os objetos que produzem em nós uma certa sensação, a palavra branco. Temos um nome para a qualidade que nesses objetos é considerada a causa da sensação, a palavra brancura. Mas, quando falamos da sensação em si (já que não temos ocasião de fazê-lo, exceto em nossas especulações científicas), a linguagem, que em grande parte se adapta apenas aos usos comuns da vida, não nos forneceu nenhuma designação imediata ou através de uma só palavra. É preciso empregar uma circunlocução: "a sensação de branco", ou "a sensação de brancura"; devemos denominar a sensação a partir ou do objeto ou do atributo que a excita. Todavia, dever-se-ia conceber a existência da sensação independente de qualquer coisa que a excitasse, embora isso nunca aconteça. Podemos concebê-la como surgindo espontaneamente na mente. Mas, se isso acontecesse, não teríamos nenhum nome para denotá-la que não fosse designação incorreta. No caso das sensações auditivas, estamos melhor providos; temos a palavra som e todo um vocabulário para denotar as várias espécies de sons. Pois, assim como frequentemente estamos conscientes dessas sensações na ausência de qualquer objeto perceptível, podemos também conceber mais facilmente a possibilidade de sua aparição na ausência de todo e qualquer objeto. Precisamos apenas fechar os olhos e ouvir música para termos a concepção de um universo em que não haja nada além dos sons e de nós mesmos, que os ouvimos. Ora, o que facilmente pode ser concebido distintamente também facilmente obtêm um nome distinto. Mas, em geral, nossos nomes de sensações denotam indiscriminadamente a sensação e o atributo. Assim, cor significa as sensações de branco, vermelho, etc., como também a qualidade do objeto colorido. Mencionamos as cores das coisas como uma das suas propriedades. 3. Deve-se distinguir os sentimentos de seus antecedentes físicos. A percepção. No caso das sensações, deve-se ter em vista também uma outra distinção, que muitas vezes se esquece, nunca sem graves consequências. É a distinção entre a própria sensação e o estado dos órgãos corporais que precede a sensação e que constitui o mecanismo físico pelo qual é produzida. Uma das fontes de confusão neste assunto é a divisão usual dos sentimentos em corpóreos e mentais. Filosoficamente, não há qualquer fundamento para essa distinção; mesmo as sensações são estados da mente sensível, e não estados do corpo distintos dele. Quando vejo a cor azul, tenho consciência de um sentimento da cor azul; a imagem em minha retina e o fenômeno de natureza até agora misteriosa que se dá no meu nervo óptico ou no meu cérebro são outras coisas de que não estou absolutamente consciente, e que somente uma investigação científica poderia me informar. Estes são estados do meu corpo, mas a sensação de azul, que é a consequência desses estados do corpo, não é um estado do corpo; quem percebe e tem consciência é a mente. Quando se chamam as sensações de sentimentos corpóreos, é apenas como sendo a classe de sentimentos imediatamente causados pelos estados corpóreos; ao passo que as outras espécies de sentimentos, os pensamentos, por exemplo, ou as emoções, não são imediatamente excitados por nenhuma ação sobre os órgãos corpóreos, mas por sensações ou pensamentos anteriores. Todavia, esta não é uma distinção com relação a nossos sentimentos, mas ao mecanismo que os produz; todos eles, quando realmente produzidos, são estados da mente. Além da afecção externa dos órgãos corpóreos e da sensação produzida na mente, muitos autores admitem um terceiro elo na corrente dos fenômenos, que chamam de percepção, e que consistiria no reconhecimento de um objeto exterior como causa determinante da sensação. Esta percepção, dizem, é um ato da mente, procedente de sua própria e espontânea atividade, enquanto numa sensação a mente é passiva, uma vez que é apenas influenciada pelo objeto exterior. E, de acordo com alguns metafísicos, é por um ato da mente, semelhante à percepção - exceto o fato de que não é precedido de nenhuma sensação -, que a existência de Deus, a alma e outros objetos hiperfísicos é reconhecida. Penso que esses atos da percepção, qualquer que seja a ideia definitiva a respeito de sua natureza, devem ser colocados entre os vários sentimentos ou estados da mente. Classificando-os assim, não tenho a menor intenção de declarar ou insinuar uma teoria qualquer quanto à lei de que podem depender essas operações mentais, nem de determinar as condições sob as quais possam ser legitimados ou infirmados. Muito menos pretendo (como o Dr. Wewell, num caso análogo, parece supor que se deve sustentar (Philosophy of the Inductive Sciences, vol. I, p. 40) demonstrar que, como são "apenas estados da mente", é supérfluo investigar suas peculiaridades distintivas. Abstenho-me desta pesquisa por ser irrelevante para a ciência da lógica. Nas assim chamadas percepções ou recognições diretas pela mente dos objetos, quer físicos, quer mentais, exteriores a ela, só posso ver fatos de crença, mas de uma crença intuitiva, ou independente da evidência externa. Quando uma pedra se encontra diante de mim, tenho consciência de certas sensações que recebo dela; mas, se digo que essas sensações me chegam de um objeto exterior que eu percebo, a significação destas palavras é a seguinte: recebendo as sensações, acredito intuitivamente que existe uma causa exterior dessas sensações. As leis da crença intuitiva e as condições que a legitimam são assuntos que, como já observei tantas vezes, não pertencem à lógica, mas à ciência das leis gerais e superiores da mente humana. À mesma área de especulação pertence tudo o que se refere à distinção que os metafísicos alemães e seus seguidores franceses e ingleses tão cuidadosamente formularam entre os atos da mente e seus estados meramente passivos; entre o que ela tira e o que dá aos materiais brutos de sua experiência. Reconheço que, com respeito à visão que tais autores tiraram dos elementos primitivos do pensamento e do conhecimento, esta distinção é fundamental. Mas, para o propósito presente - ou seja, examinar não o fundamento primitivo do nosso conhecimento, mas o modo de aquisição do conhecimento derivado -, a diferença entre estados ativos e passivos da mente é de importância secundária. Para nós, todos são estados da mente; todos são sentimentos, pelos quais, digamo-lo uma vez mais, não pretendemos implicar a passividade desses fenômenos, mas simplesmente que são fatos psicológicos, fatos que se dão na mente, e devem ser cuidadosamente distinguidos dos fatos exteriores ou físicos aos quais possam estar ligados, quer como efeitos, quer como causas. 4. As volições e as ações Todavia, entre os estados ativos da mente existe uma espécie que merece atenção especial, porque constitui uma parte capital da conotação de algumas classes de nomes muito importantes. Refiro-me às volições, ou atos da vontade. Quando falamos de seres sensíveis por meio de nomes relativos, uma grande parte da conotação do nome geralmente consiste nas ações desses seres; ações passadas, presentes ou futuras, possíveis ou prováveis. Tomemos, por exemplo, as palavras "soberano" e "súdito". Que significação têm senão a de inúmeras ações praticadas ou a serem praticadas pelo soberano e os súditos reciprocamente em vista uns dos outros? Da mesma forma com as palavras "médico" e "paciente", "líder" e "adepto", "tutor" e "pupilo". Em muitos casos, as palavras conotam também ações que deveriam, sob certas circunstâncias, ser praticadas por outras pessoas que não as denotadas, como as palavras mortgagor e mortgagee, obligor e obligee, (Mortgagor: aquele que hipoteca uma terra como garantia de uma dívida; mortgagee: o credor hipotecário. Obligor: aquele que se compromete, por um documento, a pagar a soma emprestada; obligee: aquele em cujo favor o documento é subscrito) e muitas outras que exprimem relações jurídicas, que conotam o que uma corte de justiça deveria fazer para impor o cumprimento da obrigação legal, quando não cumprida. Há também palavras que conotam ações previamente praticadas por pessoas que não as denotadas, quer pelo próprio nome, quer por um seu correlativo, como a palavra "irmão". Desses exemplos pode-se ver quão grande parte da conotação dos nomes consiste em ações. Agora, o que é uma ação? Não é uma única coisa, mas um composto de duas coisas: o estado da mente chamado volição, e o efeito que o segue. A volição, ou intenção de produzir o efeito, é uma coisa; o efeito produzido como consequência da intenção é outra coisa; os dois juntos constituem a ação. Quero mover imediatamente o braço; esta vontade é um estado de minha mente. O braço (não estando atado ou paralisado) obedece e se move; este é um fato físico, consequência de um estado da mente. A intenção seguida pelo fato, ou (se preferirmos a expressão) o fato quando precedido e causado pela intenção, chama-se a ação de mover meu braço. 5. Substância e atributo Da primeira divisão principal de coisas nomeáveis, isto é, sentimentos ou estados de consciência, começamos por reconhecer três subdivisões: sensações, pensamentos e emoções. Ilustramos as duas primeiras com numerosos exemplos; a terceira, a das emoções, não estando sujeita a semelhantes ambiguidades, não requer tantas explicações. E, finalmente, achamos necessário acrescentar a essas três uma quarta espécie, conhecida comumente pelo nome de volições. (...) Iremos agora examinar as duas classes restantes de coisas nomeáveis, sendo todas as coisas exteriores à mente consideradas como pertencentes ou à classe das substâncias ou à dos atributos. II - AS SUBSTÂNCIAS Os lógicos têm procurado definir substância e atributo, mas suas definições são menos tentativas de extrair uma distinção dentre as próprias coisas e mais instruções sobre que diferença habitualmente deve-se fazer na estrutura gramatical da proposição, conforme estejamos falando de substâncias ou de atributos. Tais definições são mais lições de inglês, grego, latim ou alemão do que filosofia mental. Um atributo, dizem os lógicos de escola, deve ser o atributo de algo; cor, por exemplo, deve ser a cor de alguma coisa; bondade deve ser bondade de algo; e, se esse algo cessar de existir ou cessar de se ligar ao atributo, o atributo não mais existirá. Uma substância, ao contrário, existe por si mesma; ao falarmos dela, não temos necessidade de colocar um de após seu nome. Uma pedra não é a pedra de algo; a lua não é a lua de alguma coisa, mas simplesmente a lua. A menos que, na verdade, o nome que escolhemos para a substância seja relativo; se este é o caso, deve, então, ser seguido pela preposição de ou por alguma outra partícula, implicando, da mesma maneira que a preposição implica, uma referência a alguma outra coisa; mas, aí, a outra característica de um atributo faltaria; a outra coisa poderia ser destruída, e a substância ainda poderia subsistir. Assim, um pai deve ser o pai de alguma coisa, e até aqui se assemelha a um atributo, já que se refere a algo além de si mesmo; se não houvesse criança, não haveria pai. Isto, porém, quando aprofundamos a reflexão, significa apenas que não devemos chamá-lo de pai. O homem chamado pai existiria ainda que não houvesse crianças, assim como ele existiu antes que houvesse uma criança, e não haveria contradição em supô-lo existente, ainda que todo o universo fosse destruído. Mas se destruirmos todas as substâncias brancas, em que se transformará o atributo brancura? Pensar a brancura sem nenhuma coisa branca é uma contradição nos termos. Eis o que há de mais próximo de uma solução da dificuldade nos tratados comuns de lógica. Esta não deve, em absoluto, ser considerada uma solução satisfatória. Se um atributo se distingue de uma substância por ser o atributo de alguma coisa, parece sumamente necessário entender o que significa este de partícula que necessita de explicação prévia para ser colocada na frente da explicação de alguma outra coisa. Quanto à existência por si da substância, é bem verdade que se pode conceber a existência de uma substância sem nenhuma outra substância; mas também um atributo pode existir sem outro atributo, e não podemos imaginar uma substância sem atributos da mesma forma que não podemos imaginar atributos sem uma substância. Todavia, os metafísicos demonstraram mais profundamente a questão e deram uma explicação da substância muito mais satisfatória. Distinguem-se comumente as substâncias em corpos e mentes. De cada um destes, os filósofos nos forneceram uma definição que parece irrefutável. 6. Corpo Corpo, de acordo com a doutrina dos metafísicos modernos, pode ser definido como a causa externa à qual atribuímos nossas sensações. Quando vejo ou toco uma peça de ouro, tenho consciência de uma sensação da cor amarela e sensações de dureza e peso; e, manipulando-a de diversas maneiras, posso acrescentar a essas sensações muitas outras inteiramente distintas delas. São todas sensações de que tenho consciência diretamente, mas as considero como produzidas por algo não apenas existente independentemente de minha vontade, mas exterior aos meus órgãos corpóreos e à minha mente. Este algo exterior, chamo-o de corpo. Pode-se perguntar, como chegamos a atribuir nossas sensações a alguma causa exterior? E há fundamento suficiente para assim atribuí-las? É sabido que alguns metafísicos levantaram uma controvérsia sobre este ponto, sustentando que não temos garantia ao atribuir nossas sensações a uma causa tal como a que entendemos pela palavra corpo, ou a qualquer causa exterior. Embora aqui não devamos nos ocupar com essa controvérsia nem com as sutilezas metafisicas ao redor das quais ela gira, um dos melhores meios para mostrar o que se entende por substância é considerar que posição é necessário assumir para manter sua existência contra os oponentes. É certo, pois" que uma parte da noção de corpo consiste na noção de um certo número de nossas próprias sensações ou de sensações de outros seres sensíveis, simultânea e ordinariamente produzidas. Minha concepção da mesa em que escrevo é composta da forma e tamanho visíveis da mesa, que são sensações complexas da visão; de sua forma e tamanho tangíveis, que são sensações complexas dos órgãos do tato e dos músculos; de seu peso, que também é uma sensação do tato e dos músculos; de sua dureza, que também é uma sensação muscular; de sua composição, que é uma outra palavra que exprime todas as variedades de sensações que recebemos sob várias circunstâncias: a madeira da qual é feita a mesa, e assim por diante. Todas, ou a maioria dessas diversas sensações, frequentemente são e, conforme aprendemos pela experiência, sempre deveriam ser experimentadas simultaneamente, ou em muitas ordens diferentes de sucessão, à nossa escolha; e, por isso, o pensamento de qualquer uma nos faz pensar nas outras, e o conjunto todo se torna mentalmente amalgamado num estado de consciência misto, que, na linguagem da escola de Locke e Hartley, é chamado de ideia complexa. Há filósofos, no entanto, que argumentam da seguinte maneira: se concebêssemos uma laranja privada de sua cor natural, sem adquirir nenhuma outra cor nova; que perdeu sua maciez sem ter-se tornado dura, sua rotundidade sem ter-se tornado quadrada ou pentagonal, ou qualquer outra figura regular ou irregular, privada de tamanho, peso, gosto, cheiro; que perdeu todas as suas propriedades mecânicas e químicas e não adquiriu nenhuma nova; que se tornou, enfim, invisível, intangível, imperceptível, não apenas para todos os nossos sentidos, mas para todos os demais seres sensíveis, reais ou possíveis; não restaria nada, dizem esses pensadores; de que natureza, então, poderia ser o resíduo? E por que indícios poderia manifestar sua presença? Para os que não raciocinam ordinariamente, sua existência parece apoiar-se na evidência dos sentidos. Mas, para os sentidos, nada aparece, exceto as sensações. Sabemos, na verdade, que essas sensações são ligadas por alguma lei; elas não se assemelham ao acaso, mas de acordo com uma ordem sistemática, que faz parte da ordem estabelecida no universo. Quando experimentamos uma dessas sensações, geralmente experimentamos também as demais, ou sabemos que está a nosso alcance experimentá-las. Mas, uma lei fixa de conexão entre as sensações não exige necessariamente, dizem esses filósofos, o chamado substrato para sustentá-las. O conceito de um substrato não é senão uma das muitas formas possíveis em que essa conexão se apresenta à nossa imaginação, um modo, por assim dizer, de realizar a ideia. Se existe tal substrato, e se o supomos instantaneamente aniquilado por milagre e deixamos as sensações ocorrerem na mesma ordem, como se sentiria a falta deste substrato? Através de que sinais seríamos capazes de descobrir que parou de existir? Não teríamos tanta razão para acreditar que ele ainda existia quanto a que temos agora? E se não tínhamos razões para estar seguros de acreditá-lo, como podemos estar agora? Um corpo, portanto, de acordo com esses metafísicos, não é algo intrinsecamente diferente das sensações produzidas em nós pelo corpo; é, em resumo, um conjunto de sensações, ou melhor, de possibilidades de sensação, reunidas de acordo com uma lei constante. As controvérsias que essas especulações levantaram e as doutrinas que se desenvolveram na tentativa de se achar uma resposta conclusiva têm sido importantes para a ciência da mente. As sensações (concluiu-se) de que temos consciência e que recebemos, não ao acaso, mas reunidas numa certa ordem uniforme, implicam não apenas uma lei ou leis de conexão, mas também uma causa exterior à nossa mente, causa essa que, por suas próprias leis, determina as leis segundo as quais as sensações são ligadas e experimentadas. Os escolásticos costumavam chamar essa causa exterior pelo nome que já temos empregado, substrato, e seus atributos (como eles se expressam) inerentes, literalmente cravados nele. A esse substrato geralmente se dá, em discussões filosóficas, o nome de matéria. Todavia, logo admitiu-se, refletindo sobre o assunto, que a existência da matéria não pode ser provada extrinsecamente. A resposta, portanto, que geralmente se dá a Berkeley e seus seguidores é que esta crença é intuitiva; que os homens, em todas as épocas, se sentiram compelidos, por uma necessidade de sua natureza, a atribuir suas sensações a uma causa exterior; que mesmo aqueles que a negam em teoria a ela sujeitam-se na prática; e que na fala, no pensamento ou no sentimento, exatamente como o vulgo, reconhecem que suas sensações são os efeitos de algo exterior a eles; portanto, essa crença, afirmou-se, é tão evidentemente intuitiva quanto a que temos em nossas próprias sensações. Aqui a questão se funde com o problema fundamental da metafísica propriamente dita, ciência à qual nós a deixamos. Mas, embora a doutrina extrema dos metafísicos idealistas - os objetos nada são senão nossas sensações e suas leis - não tenha sido geralmente adotada pelos pensadores subsequentes, o ponto de maior importância, com relação ao qual agora se admite geralmente que esses metafísicos estão de acordo, é este: tudo o que conhecemos dos objetos são as sensações que eles nos dão e a ordem de ocorrência dessas sensações. O próprio Kant, neste ponto, é tão explícito quanto Berkeley ou Locke. Embora firmemente convencido de que existe um universo de "coisas em si" totalmente distinto do universo dos fenômenos ou das coisas como aparecem aos nossos sentidos, e mesmo quando forjando uma expressão técnica (Noúmenon) para denotar o que é a coisa em si mesma, contrastando com a representação dela em nossas mentes, Kant admite que essa representação (cuja matéria, diz, é dada por nossas sensações, embora sua forma seja dada pelas leis da própria mente) é tudo o que conhecemos do objeto; e que a natureza real da coisa é e será sempre para nós, pela constituição de nossas faculdades, pelo menos no nosso estado atual da existência, um mistério impenetrável. "Das coisas absolutamente e em si mesmas", diz Sir William Hamilton (Discussions on Philosophy, etc. (apêndice I, pp.643-4)), "externas ou internas, não conhecemos nada, ou as conhecemos apenas como incognoscíveis; e ficamos cientes de sua existência incompreensível apenas enquanto esta nos é revelada, indireta ou acidentalmente, através de certas qualidades relativas às nossas faculdades de conhecer, qualidades que, por outro lado, não podem ser concebidas como incondicionais, não-relativas, existentes em si e por si. Tudo o que conhecemos, portanto, são fenômenos - fenômenos do desconhecido." (É de se lamentar que Sir William Hamilton - embora muitas vezes ardorosamente insista em sua teoria e, na passagem citada, afirme isso com uma precisão e força que não deixam nada a desejar - não tenha aderido coerentemente à sua própria teoria, mas tenha mantido ao mesmo tempo opiniões absolutamente inconciliáveis com ela. (V. o terceiro e outros capítulos de Um Exame da Filosofia de Sir William Hamilton)). A mesma doutrina é formulada em termos mais claros e fortes por Cousin, cujas observações sobre o assunto são bastante dignas de atenção, pois, em consequência do caráter ultra germânico e ontológico de sua filosofia em outros aspectos, podem ser consideradas como as admissões de um oponente. (Sabemos que há alguma coisa fora de nós, porque não podemos explicar nossas percepções sem ligá-las a causas distintas de nós mesmos; sabemos mais, que essas causas, cuja essência não conhecemos, produzem os efeitos mais variados, diversos e mesmo contrários, conforme a natureza ou disposição do sujeito. Mas, sabemos alguma coisa mais? Ou ainda, visto o caráter indeterminado das causas que concebemos nos corpos, há alguma coisa mais a saber? Há motivos para nos perguntarmos se percebemos as coisas assim como são? Não, evidentemente. (...) Não digo que o problema é insolúvel, digo que é absurdo e implica uma contradição. Nós não sabemos o que essas causas são em si, e a razão nos impede de conhecê-lo; mas é bastante evidente a priori que elas não são em si mesmas o que são em relação a nós, já que a presença do sujeito modifica necessariamente sua ação. Suprimamos todo sujeito sensível, e sem dúvida essas causas ainda agiriam, já que continuariam a existir; mas agiriam de outra forma; seriam ainda qualidades e propriedades, mas não se assemelhariam a nada do que conhecemos. O fogo não manifestaria mais nenhuma das propriedades que lhe atribuímos; que seria então? Nunca saberemos. Além do mais, talvez seja um problema que repugna não somente à natureza do nosso espírito, mas à própria essência das coisas. Mesmo se se suprimisse através do pensamento todos os sujeitos sensíveis, seria necessário ainda admitir que nenhum corpo manifestaria suas propriedades de outra forma que em relação a um sujeito qualquer, e nesse caso suas propriedades seriam apenas relativas; de modo que me parece bem razoável admitir que as propriedades determinadas dos corpos não existem independentemente de um sujeito qualquer e que, quando se pergunta se as propriedades da matéria são tais como as percebemos, seria necessário ver antes se o são enquanto determinadas e em qual sentido é verdadeiro dizer que o são." - Curso de História da Filosofia Moral no Século XVIII, 8ª Lição). Não há a menor razão para crer que o que chamamos de qualidades sensíveis do objeto é algo inerente a ele, ou que tenha alguma afinidade com a sua natureza própria. Uma causa, como tal, não se assemelha a seus efeitos; um vento leste não é semelhante à sensação de frio, nem o calor semelhante ao vapor de água fervente. Por que, então, deveria a matéria se assemelhar às nossas sensações? Por que a natureza Íntima do fogo ou da água deveria se assemelhar às impressões feitas por objetos em nossos sentidos? (Na verdade, Reid e outros tentaram estabelecer que, embora algumas das propriedades que atribuímos aos objetos existam apenas em nossas sensações, outras existem nas próprias coisas, sendo tais que não é possível que sejam cópias de alguma impressão sobre os sentidos; e indagam de que sensações nossas noções de extensão e figura derivaram. O desafio lançado por Reid foi aceito por Brown, que, com maiores poderes de análise, demonstrou que as sensações de que essas noções derivam são sensações do tato combinadas com sensações de um tipo anteriormente muito pouco estudadas pelos metafísicos: aquelas que têm sua sede em nosso sistema muscular. Sua teoria, adotada e seguida por James Mill, foi bem mais desenvolvida e aperfeiçoada pelo Professor Bain em seu profundo livro Os Sentidos e o Intelecto, e nos capítulos sobre "percepção" de uma obra eminentemente analítica: Princípios de Psicologia, de Herbert Spencer. Sobre esse ponto, Cousin pode novamente ser citado em favor de uma melhor doutrina. Ele reconhece, em oposição a Reid, a subjetividade essencial das nossas concepções do que chamamos as qualidades primárias da matéria, como extensão, solidez, etc., da mesma maneira que as de cor, calor e as demais, chamadas qualidades secundárias. Curso, op. cit., 9ª Lição). Ou sob que princípio estamos autorizados a deduzir dos efeitos algo relativo à causa, exceto que é uma causa adequada para produzir aqueles efeitos? Pode-se, portanto, estabelecer como uma verdade evidente em si e admitida por todos aqueles que atualmente necessitam levá-la em consideração, que do mundo exterior não sabemos nem podemos saber absolutamente nada, exceto as sensações que recebemos dele. (Esta doutrina, que em sua forma mais completa constitui a teoria filosófica conhecida como a relatividade do conhecimento humano, tem sido, desde o despertar recente de um ativo interesse pela especulação metafísica na Inglaterra, objeto de uma quantidade cada vez maior de discussões e controvérsias, e têm se manifestado opositores em número consideravelmente maior do que o que conhecia na época em que a passagem foi escrita. A teoria tem sido atacada de dois lados. Alguns pensadores, entre os quais recentemente o Professor Ferrier, no seu Institutes of Metaphysics, e o Professor John Grote, no seu Exploratio Philosophica, parecem negar completamente a realidade dos noumenos ou coisas em si - de um substrato incognoscível ou suporte para as sensações que experimentamos e que, de acordo com a teoria, constituem todo o nosso conhecimento do mundo exterior. Parece-me, todavia, que no caso do Professor Grote, pelo menos, a negação dos noumenos é apenas aparente e não difere essencialmente da outra classe de opositores, incluindo o Sr. Bailey no seu valioso Letters on the Philosophy of the Human Mind e (apesar da surpreendente passagem citada no texto) também Sir William Hamilton, que sustenta que temos, além das sensações, um conhecimento direto de certos atributos ou propriedades, tais como existem, não em nós, mas nas próprias coisas. Com a primeira dessas opiniões - a que nega os noumenos - não tenho, como metafísico, nenhuma rixa; mas para a lógica, decidir se é verdadeira ou falsa é irrelevante. E desde que todas as formas de linguagem estejam em contradição com esta hipótese, introduzi-la sem necessidade num tratado cujas doutrinas essenciais podem todas igualmente subsistir com a opinião oposta e mais acreditada só traria confusão. Quanto à doutrina rival - da percepção direta ou conhecimento intuitivo do objeto externo como é em si, considerado distinto das sensações que dele recebemos -, é de importância prática muito maior. Mas mesmo esta questão, que depende da natureza e das leis do conhecimento intuitivo, não pertence aos domínios da lógica. Para os motivos de minha opinião sobre esta doutrina, contento-me em reportar a uma obra já mencionada - An Examination of Sir William Hamilton's Philosophy -, de que muitos capítulos são dedicados a uma discussão completa das questões e teorias relativas à suposta percepção direta dos objetos exteriores). 7. A mente Tendo sido o corpo definido como a causa exterior, e (de acordo com a opinião mais razoável) a causa exterior desconhecida, à qual referimos nossas sensações, resta formular uma definição da mente. Depois das observações precedentes, não deverão surgir dificuldades. Assim como nossa concepção de corpo é a de uma causa desconhecida, excitante de sensações, também nossa concepção da mente é a de um recipiente ou percipiente desconhecido dessas sensações; e não só delas, mas de todos os outros sentimentos. Assim como o corpo é considerado alguma coisa misteriosa que excita a mente para sentir, também a mente é alguma coisa misteriosa que sente e pensa. É desnecessário dar, quanto à mente, como o fizemos no caso da matéria, uma exposição especial do sistema cético, pelo qual coloca em questão sua existência como uma coisa em si mesma, distinta do que se denomina seus estados. Mas é necessário observar que, a respeito da natureza íntima do princípio do pensamento, assim como sobre a natureza íntima da matéria, estamos e, com nossas faculdades, deveremos sempre permanecer, inteiramente no escuro. Tudo o que compreendemos, mesmo em nossas próprias mentes, é (nas palavras de James Mill) um certo "fio de consciência" (thread of consciousness), uma série de sentimentos, isto é, de sensações, pensamentos, emoções e volições, mais ou menos numerosos e complexos. Há alguma coisa que chamo de eu, ou minha mente, que considero distinta dessas sensações, pensamentos, etc.; alguma coisa que concebo não serem os pensamentos mesmos, mas o ser que tem os pensamentos, e que poderia subsistir eternamente num estado de quietude, sem nenhum pensamento. Mas, embora seja eu mesmo, não tenho nenhum conhecimento do que é esse ser, além da série de seus estados de consciência. Assim como os corpos manifestam-se a mim apenas através das sensações, consideradas sua causa, também o princípio do pensamento, ou a mente, em minha própria natureza, se me revela apenas pelos sentimentos de que tenho consciência. Não conheço nada a meu respeito, exceto minha capacidade de sentir ou ter consciência (incluindo, é claro, o pensamento e a vontade); e, se chegar a saber algo novo a respeito de minha própria natureza, não poderei, com minhas faculdades atuais, conceber essa nova informação como algo mais do que o fato de que tenho algumas habilidades adicionais, ainda desconhecidas de mim, de sentir, de pensar ou de querer. Assim, pois, como o corpo é a causa não-sensível à qual somos naturalmente impelidos a referir uma certa parcela de nossos sentimentos, também a mente pode ser descrita como o sujeito (no sentido escolástico do termo) sensível de todos os sentimentos; aquele que os tem ou os sente. Mas da natureza, seja do corpo, seja da mente, além dos sentimentos que o primeiro excita e que o segundo experimenta, de acordo com as melhores doutrinas existentes, não conhecemos nada; e, se sabemos algo, a lógica não tem nada a ver com isso ou com a maneira pela qual o conhecimento é adquirido. Com essa conclusão, podemos terminar esta parte de nosso tema e passar à terceira e última classe das coisas nomeáveis. III - DOS ATRIBUTOS, E, PRIMEIRAMENTE, DAS QUALIDADES 8. Qualidades O que se dirá sobre o atributo é facilmente dedutível do que já foi dito sobre a substância. Pois, se nós não conhecemos nem podemos conhecer nada dos corpos além das sensações que eles excitam em nós ou em outros, essas sensações devem ser o que podemos, na realidade, significar pelos seus atributos; e a distinção que fazemos verbalmente entre as propriedades das coisas e as sensações que recebemos delas teve ter origem mais na comodidade do discurso do que na natureza do que é significado pelos termos. Os atributos são comumente distribuídos em três classes: qualidade, quantidade e relação. Chegaremos logo às duas últimas; iremos nos restringir agora à primeira. Tomemos, então, como nosso exemplo, uma das chamadas qualidades sensíveis dos objetos: brancura. Quando atribuímos brancura a algum objeto, como, por exemplo, a neve, quando dizemos que a neve tem a qualidade brancura, o que afirmamos na realidade? Simplesmente que, quando a neve está diante dos nossos órgãos, temos uma sensação específica que estamos acostumados a chamar de a sensação de branco. Mas, como sei que a neve está presente? Obviamente pelas sensações que recebo dela, e não de outra maneira. Eu infiro que o objeto está presente porque ele me dá um certo conjunto ou série de sensações. E quando lhe imputo o atributo brancura, quero dizer apenas que, das sensações que compõem esse grupo ou série, aquela que chamo de a sensação da cor branca é uma delas. Esta é uma das maneiras de expor o fato. Mas há um ponto de vista diferente. Pode-se admitir que não conhecemos nada dos objetos sensíveis além das sensações que eles excitam em nós, que o fato de recebermos da neve a sensação específica denominada sensação de branco é a base para atribuirmos àquela substância a qualidade brancura, a única prova de que ela possui essa qualidade. Mas, por que uma coisa pode ser a única prova da existência de outra coisa, não se segue daí que as duas são a mesma coisa. O atributo brancura (pode-se dizer) não é igual ao fenômeno da sensação em nós, mas algo no próprio objeto, um poder que lhe é inerente, algo em virtude do que o objeto produz a sensação. E, quando afirmamos que a neve possui o atributo brancura, não afirmamos apenas que a presença da neve produz em nós aquela sensação, mas que ela o faz através e por causa daquele poder ou qualidade. Para os propósitos da lógica, pouco importa qual dessas opiniões adotemos. A discussão completa desse assunto pertence a outro ramo da ciência, tantas vezes citado sob o nome de metafísica; ajuntaria, porém, aqui que, para a doutrina da existência de uma espécie particular de entidades chamadas qualidades, não posso ver nenhum fundamento exceto numa tendência da mente humana que é a causa de muitos enganos. Refiro-me à tendência de, quando encontramos dois nomes que não são rigorosamente sinônimos, supor que devem ser nomes de duas coisas diferentes, enquanto, na realidade, podem ser os nomes da mesma coisa vista em dois ângulos diferentes ou em suas relações diferentes com as circunstâncias do meio. Porque qualidade e sensação não podem ser usadas indiscriminadamente uma pela outra, supõe-se que ambas não podem representar a mesma coisa, isto é, a impressão ou sentimento com que somos afetados através de nossos sentidos pela presença de um objeto, embora não seja absurdo supor que essa impressão ou sentimento idênticos possam ser chamados sensação quando considerados só em si mesmos, e qualidade quando vistos em relação a algum dos numerosos objetos cuja presença diante de nossos órgãos excita em nossas mentes aquelas sensações ou sentimentos dentre várias outras. E, se isso for supostamente admissível, resta, aos que se debatem por uma entidade per se chamada qualidade, mostrar que sua opinião é melhor fundamentada, ou na realidade é algo além de um vestígio remanescente da velha doutrina das causas ocultas, o grande absurdo que Molière, com tanta felicidade, ridicularizou quando fez um de seus médicos pedantes explicar o fato de que o ópio produz o sono porque possui "uma virtude soporífica". É evidente que, quando o médico afirmou que o ópio tem "uma virtude soporífica", não explicou, mas apenas declarou novamente o fato de que o ópio produz o sono. Da mesma maneira, quando dizemos que a neve é branca porque tem a qualidade brancura, estamos apenas reafirmando, numa linguagem mais técnica, que ela excita em nós a sensação de branco. Se se disser que a sensação deve ter alguma causa, respondo: sua causa é a presença do conjunto de fenômenos a que se dá o nome de objeto. Quando afirmamos que a sensação se dá sempre que o objeto está diante de nossos órgãos no seu estado normal, expusemos tudo o que sabemos sobre o assunto. Não é necessário, depois de apontar uma causa clara e inteligível, supor também uma causa oculta, com a finalidade de tornar a causa real apta a produzir seus efeitos. Se me perguntam por que a presença do objeto causa essa sensação em mim, não o posso dizer; posso apenas afirmar que assim são minha natureza e a natureza do objeto; que o fato representa uma parte da constituição das coisas. E no final deveremos chegar a isso, mesmo depois de intercalar a entidade imaginária. Seja qual for o número de elos de que uma corrente de causas e efeitos possa constituir-se, permanecerá igualmente inexplicável como um dos elos produz o seguinte. É tão fácil compreender que o objeto deveria produzir a sensação diretamente e de uma vez quanto supor que ele deveria produzir a mesma sensação com a ajuda de uma outra coisa chamada o poder de produzi-la. Como, porém, as dificuldades - se adotado esse novo ponto de vista sobre o assunto - não podem ser removidas sem discussões que transcendem os limites de nossa ciência, eu me contento com uma alusão geral, e adotarei, para os propósitos da lógica, uma linguagem compatível com qualquer um dos pontos de vista sobre a natureza das qualidades. Direi - o que pelo menos se admite sem discussão - que a qualidade brancura atribuída ao objeto neve é fundada no fato de que ele excita em nós a sensação do branco; e, adotando a linguagem já usada pelos lógicos escolásticos, no caso dos atributos chamados relações, designarei a sensação do branco como o fundamento da qualidade brancura. Para os propósitos da lógica, a sensação é a única parte essencial do que é significado pela palavra, a única parte que sempre estamos ocupados em provar. Quando a sensação é provada, a qualidade é provada; se um objeto excita a sensação, ele tem, naturalmente, o poder de excitá-la. IV - RELAÇÕES 9. Relações As qualidades de um corpo, como dissemos, são os atributos fundados nas sensações que a presença de um determinado corpo diante de nossos órgãos excita em nossas mentes. Mas, quando atribuímos a algum objeto a espécie de atributo chamada relação, o fundamento do atributo deve ser algo a que outros objetos além dele e do percipiente estão relacionados. Como se pode dizer com propriedade que há uma relação entre duas coisas quaisquer às quais se dão ou podem ser dados dois nomes correlativos, esperamos descobrir o que constitui uma relação em geral quando enumerarmos os casos principais aos quais os homens impuseram nomes correlativos e observar o que esses casos têm em comum. Qual é, pois, a característica comum de situações tão heterogêneas e discordantes como estas: uma coisa igual à outra; uma coisa diferente da outra; uma coisa perto de outra; uma coisa longe de outra; uma coisa antes, depois, junto de outra; uma coisa maior, igual, menor que outra; uma coisa causa de outra, o efeito de outra; uma pessoa o senhor, criado, filho, pai, devedor, credor, soberano, súdito, procurador, cliente de outra, etc.? Deixando de lado, por enquanto, o caso da semelhança (uma relação que precisa ser considerada separadamente), parece haver uma coisa comum a todos esses casos, e somente uma - que em cada um existe ou ocorre, existiu ou ocorreu, pode vir a existir ou ocorrer, algum fato ou fenômeno no qual as duas coisas que se diz estarem relacionadas entre si entram ambas como partes de um todo. Esse fato, ou fenômeno, é o que os lógicos aristotélicos denominaram o fundamentum relationis. Assim, na relação de maior e menor entre duas grandezas, o fundamentum relationis é o fato de que uma delas pode, em determinadas condições, ser incluída sem preencher completamente o espaço ocupado pela outra grandeza. Na relação senhor e servo, o fundamentum relationis é o fato de que um se comprometeu, ou é forçado, a realizar determinados serviços em benefício e obedecendo às ordens do outro. Pode-se multiplicar exemplos indefinidamente; mas já é óbvio que sempre que se diz que duas coisas estão relacionadas, há algum fato, ou uma série de fatos, de que ambos participam, e que, sempre que duas coisas estão envolvidas em um mesmo fato, ou uma série de fatos, podemos atribuir a essas duas coisas uma relação mútua fundada no fato. Mesmo se elas não têm nada em comum a não ser o que é comum a todas as coisas - o serem partes do universo -, chamamos isto de relação, e as denominamos co-criaturas, co-seres, do universo. Mais, porém, o fato em que os dois objetos entram como partes é específico, particular ou complicado, mais a relação nele fundada o será também. E há tantas relações concebíveis quanto espécies concebíveis de fatos aos quais duas coisas possam conjuntamente ser implicadas. Portanto, da mesma maneira que qualidade é um atributo baseado no fato de que uma certa sensação ou sensações são produzidas em nós pelo objeto, assim um atributo baseado num fato em que o objeto figura conjuntamente com outro objeto é uma relação entre esses objetos. Mas em ambos os casos o fato é da mesma espécie de elementos, isto é, estados de consciência. No caso, por exemplo, de uma relação legal, como a de devedor e credor, mandante e agente, tutor e pupilo, o fundamentum relationis consiste inteiramente em pensamentos, sentimentos e volições (atuais ou possíveis), seja das próprias pessoas, seja de outras pessoas envolvidas nos mesmos negócios; como, por exemplo, as intenções que poderia ter um juiz no caso de ser feita ao seu tribunal uma acusação de infração de alguma das obrigações legais impostas pela Relação e os atos que ele praticasse em consequência disso; sendo os atos (como já vimos) uma outra palavra para exprimir as intenções seguidas de um efeito, e esse efeito sendo somente outra palavra para significar sensações, ou qualquer outro sentimento, seja do próprio autor do ato, seja de outra pessoa. Não há nada no que é implicado num nome exprimindo uma relação que não seja redutível a estados de consciência; entende-se sempre que os objetos exteriores, sem dúvida, são as causas excitadoras de alguns desses estados de consciência, e as mentes, os sujeitos em que estados se produzem; mas os objetos exteriores e as mentes só se fazem conhecer pelos estados de consciência. Os casos de relação nem sempre são tão complexos quanto os mencionados acima. Os mais simples são os expressos pelas palavras antecedente e consequente, e simultâneo. Se dizemos, por exemplo, que a aurora precedeu o nascer do sol, o fato no qual as duas coisas, aurora e nascer do sol, existem conjuntamente consistiu apenas nessas duas coisas; não há uma terceira coisa envolvida no fato ou fenômeno. A não ser que, na verdade, escolhamos chamar a sucessão dos dois objetos de uma terceira coisa; mas essa sucessão não é algo acrescentado às próprias coisas, mas implicado nelas. Aurora e nascer do sol se comunicam à nossa consciência por duas sensações sucessivas. Nossa consciência da sucessão dessas sensações não é uma terceira sensação ou sentimento acrescentados a elas; não temos primeiro os dois sentimentos e depois um sentimento de sua sucessão. De qualquer maneira, ter dois sentimentos implica tê-los ou sucessivamente ou simultaneamente. Ocorrendo sensações ou outros sentimentos, sucessão e simultaneidade são as duas condições para a alternativa a que eles estão sujeitos pela natureza de nossas faculdades, e ninguém foi ou é capaz de levar mais longe a análise. 10. Semelhança Numa posição mais ou menos semelhante estão duas outras espécies de relações: semelhança e dissemelhança. Tenho duas sensações; iremos supô-las como duas sensações simples; duas sensações de branco, ou uma sensação de branco e outra de preto. Chamo as duas primeiras sensações de semelhantes, as duas últimas de dissemelhantes. Qual é o fato ou fenômeno que constitui o fundamentum dessa relação? Primeiro, as duas sensações, então o que chamamos de sentimento de semelhança, ou de falta de semelhança. Vamos nos restringir ao primeiro caso. Semelhança é evidentemente um sentimento, um estado da consciência do observador. Pode-se discutir se o sentimento da semelhança das duas cores é um terceiro estado de consciência que eu tenho depois de ter as duas sensações de cor, ou se (como o sentimento de sua sucessão) ele está envolvido nas próprias sensações. Em ambos os casos; porém, esses sentimentos de semelhança e dissemelhança são partes de nossa natureza, e partes tão pouco suscetíveis de análise que são pressupostas em toda tentativa de analisar qualquer outro de nossos sentimentos. Semelhança e dissemelhança, portanto, assim como antecedência, subsequência e a simultaneidade, devem ser colocadas à parte entre as relações, como coisas sui generis. São, pois, atributos baseados em fatos, isto é, em estados de consciência, mas em estados peculiares, irredutíveis e inexplicáveis. Mas, embora semelhança e dissemelhança não possam se resolver em nada mais, os casos complexos dessa relação podem ser decompostos em casos mais simples. Quando afirmamos que duas coisas consistem em várias partes, semelhantes umas às outras, a semelhança dos todos admite análise; é composta da semelhança mútua entre as várias partes e da semelhança de seu conjunto. Essa semelhança deve ser composta de uma variedade tão grande de semelhanças das partes que nos leva a afirmar que um retrato ou uma paisagem são semelhantes ao modelo. Se uma pessoa imita outra com algum sucesso, de quão grande quantidade de semelhanças simples deve a semelhança geral ou complexa ser composta: semelhança numa sucessão de posturas corporais; semelhança na voz, ou no timbre e entonação da voz; semelhança na escolha de palavras, nos pensamentos e sentimentos expressos quer em palavras, quer pelas atitudes, quer pelos gestos. Toda semelhança e toda dissemelhança das coisas reduzem-se a semelhança ou dissemelhança entre estados de nossa própria mente ou de alguma outra. Quando dizemos que um corpo é semelhante a outro (desde que só conhecemos dos corpos as sensações que eles excitam), na realidade queremos dizer que há uma semelhança entre as sensações excitadas pelos dois corpos, ou entre pelo menos algumas partes dessas sensações. Se dizemos que dois atributos são semelhantes um ao outro (já que dos atributos só conhecemos as sensações ou estados de sentimento nos quais eles se baseiam), na realidade afirmamos que essas sensações ou estados de sentimento se assemelham mutuamente. Podemos também dizer que essas duas relações são semelhantes. A semelhança entre relações às vezes é chamada analogia, constituindo uma das numerosas acepções dessa palavra. A relação na qual Príamo está para Heitor, isto é, de pai para filho, assemelha-se à relação na qual Filipe está para Alexandre, e se assemelha tão estreitamente que se diz que ela é a mesma. A relação na qual Cromwell está para a Inglaterra assemelha-se à relação na qual Napoleão está para a França, embora não tão estreitamente que se possa chamar a mesma relação. O significado, em ambos os exemplos, deve ser: havia uma semelhança entre os fatos que constituiu o fundamentum relationis. Essa semelhança deve existir em todas as gradações concebíveis, desde a identidade perfeita até a relação mais remota. Quando dizemos que um pensamento proposto à mente de um gênio é como uma semente lançada ao solo - porque o primeiro produz uma multidão de outros pensamentos e a outra uma multidão de outras sementes -, estamos afirmando que existe uma semelhança entre a relação de uma mente inventiva com um pensamento nela contido e a relação de um solo fértil com a semente nele contida; e semelhança real constitui-se em dois fundamenta relationis, em cada um dos quais ocorre um germe, produtor, pelo seu desenvolvimento, de uma multidão de outras coisas semelhantes a ele mesmo. E como sempre que dois objetos estão relacionados juntamente em um fenômeno constitui-se uma relação entre esses objetos, assim, se supusermos um segundo par de objetos relacionados num segundo fenômeno, a mínima semelhança entre ambos é suficiente para admitir a semelhança das duas relações, desde que, é claro, os pontos de semelhança se encontrem respectivamente naquelas partes dos dois fenômenos que são conotadas pelos nomes relativos. Quando falamos de semelhança, é necessário ter em mente uma ambiguidade de linguagem contra a qual raramente se está suficientemente prevenido. A semelhança, quando existe no mais alto grau, atingindo a indistinção, é frequentemente chamada identidade, e as duas coisas semelhantes são consideradas as mesmas. Digo frequentemente, não sempre, pois não dizemos que dois objetos visíveis, duas pessoas, por exemplo, são a mesma porque são tão semelhantes que uma poderia ser confundida com a outra, mas usamos constantemente esse tipo de expressão quando falamos de sentimentos, como quando digo que a vista de algum objeto me dá hoje a mesma sensação ou emoção que me deu ontem, ou a mesma que dá a outra pessoa. Evidentemente, este é um uso incorreto da palavra mesmo, pois o sentimento que tive ontem passou, e nunca voltará; o que tenho hoje é um outro sentimento, talvez exatamente semelhante ao anterior mas distinto dele; e é evidente que as duas pessoas diferentes não podem experimentar o mesmo sentimento, no sentido em que dizemos que ambas estão sentadas na mesma mesa. Por uma ambiguidade semelhante, dizemos que duas pessoas estão sofrendo da mesma doença; que duas pessoas ocupam o mesmo cargo; não no sentido em que dizemos que estão engajadas na mesma aventura ou viajando no mesmo navio, mas no sentido de que preenchem cargos exatamente semelhantes, embora, talvez, em lugares distantes. Produz-se uma grande confusão de ideias e muitos enganos são engendrados por não se estar suficientemente cônscio (em si nem sempre evitável) de que se usa o mesmo nome para exprimir ideias tão diferentes quanto as de identidade e de semelhança completa. Entre os escritores modernos, o arcebispo Whately é praticamente o único que chamou a atenção para esta distinção e para a ambiguidade que lhe é associada. Muitas relações, geralmente chamadas por outros nomes, são na realidade casos de semelhança. Como, por exemplo, a igualdade, que não é senão uma outra palavra para a semelhança exata, comumente chamada identidade, considerada como subsistindo entre coisas com respeito à sua quantidade. E esse exemplo fornece uma transição apropriada para a terceira e última das categorias sob as quais, como já se acentuou, os atributos geralmente são classificados. V - QUANTIDADE 11. Quantidade Imaginemos duas coisas entre as quais não há nenhuma diferença (isto é, nenhuma dissemelhança), exceto na quantidade; por exemplo, um galão de água e dez galões de água. Um galão de água, como qualquer outro objeto exterior, nos torna sua presença conhecida por um conjunto de sensações. Dez galões de água são também um objeto exterior, tornando-nos sua presença conhecida de maneira semelhante; e, como não confundimos dez galões de água com um galão de água, é claro que o conjunto de sensações é mais ou menos diferente nos dois casos. Do mesmo modo, um galão de água e um galão de vinho são dois objetos exteriores que tornam conhecida sua presença por dois conjuntos de sensações diferentes entre si. No primeiro caso, dizemos que a diferença existe quanto à quantidade; no último, há uma diferença quanto à qualidade, enquanto a quantidade da água e do vinho é a mesma. Qual é a distinção real entre ambos os casos? Não cabe à lógica analisar isso, nem decidir se é suscetível de análise ou não. Para nós são suficientes as seguintes considerações: é evidente que as sensações que recebo do galão de água e as que recebo do galão de vinho não são as mesmas, isto é, não precisamente iguais; nem são completamente diferentes; elas são em parte semelhantes e em parte dissemelhantes; e aquilo em que se assemelham é precisamente apenas aquilo em que o galão de água e os dez galões não se assemelham. Aquilo em que o galão de água e o galão de vinho são semelhantes um ao outro e no qual o galão e os dez galões de água dissemelhantes entre si é chamado sua identidade. Não pretendo explanar essa semelhança e dissemelhança mais do que qualquer outra espécie de semelhança e dissemelhança. Meu intuito é mostrar que, quando dizemos que duas coisas diferem em quantidade, exatamente como quando dizemos que diferem em qualidade, a asserção é sempre baseada numa diferença entre as sensações que excitam. Ninguém, presumo, dirá que ver, erguer ou beber dez galões de água não inclui em si um conjunto de sensações diferentes das de ver, erguer ou beber um galão, ou que ver ou manipular uma porção de uma craveira e ver e manipular uma porção que lhe seja exatamente igual são as mesmas sensações. Não me proponho a dizer qual é a diferença nas sensações. Ninguém sabe e pode explicar mais do que alguém poderia explicar o que é o branco a uma pessoa que nunca tivesse tido esta sensação. Mas a diferença, tanto quanto cognoscível pelas nossas faculdades, encontra-se nas sensações. Qualquer que seja a diferença que afirmamos existir nas coisas em si, será, neste e em todos os outros casos, baseada, exclusivamente, numa diferença nas sensações por elas excitadas. VI - CONCLUSÃO SOBRE OS ATRIBUTOS 12. Todos os atributos dos corpos são fundados em estados de consciência Assim, pois, todos os atributos dos corpos classificados sob qualidade e quantidade são fundados nas sensações que recebemos daqueles corpos, e podem ser definidos como os poderes que os corpos têm de excitar essas sensações. E a mesma explicação geral convém à maioria dos atributos usualmente classificados sob o título de relação. Eles também são fundados em algum fato ou fenômeno em que os objetos relacionados entram como partes, não tendo o fato ou fenômeno nenhum sentido ou existência para nós exceto a série de sensações ou outros estados de consciência pelos quais ele se faz conhecer e também porque a relação é simplesmente o poder ou capacidade que o objeto possui de participar com o objeto correlato na produção dessa série de sensações ou estados de consciência. Fomos forçados, na verdade, a reconhecer um tipo um pouco diferente em certas relações peculiares, as de sucessão e simultaneidade, de semelhança e dissemelhança. Estas, não sendo baseadas em nenhum fato ou fenômeno distinto dos próprios objetos relacionados, não comportam a mesma espécie de análise. Porém, essas relações, embora não sejam iguais às outras, fundadas em estados de consciência, são elas mesmas estados de consciência: semelhança nada mais é do que nosso sentimento de semelhança; sucessão nada mais é do que nosso sentimento de sucessão. Ou, se isto for contestado (e não podemos, sem transgredir os limites de nossa ciência, discuti-lo aqui), pelo menos nosso conhecimento dessas relações, ou mesmo nossa possibilidade de conhecimento, está limitado àquelas que subsistem entre as sensações, ou outros estados de consciência; pois, embora atribuamos semelhança, sucessão ou simultaneidade a objetos e atributos, sempre o será em virtude da semelhança, sucessão ou simultaneidade nas sensações ou nos estados de consciência que aqueles objetos excitam e nos quais esses atributos se fundam. 13. Igualmente todos os atributos da mente Na investigação precedente consideramos, para salvar a simplicidade, apenas os corpos e omitimos as mentes. Mas o que dissemos é aplicável, mutatis mutandis, às últimas. Os atributos das mentes, assim como os dos corpos, são fundados em sentimentos ou estados de consciência. Mas, no caso de uma mente, temos que considerar seus próprios estados tanto quanto aqueles que ela produz em outras mentes. Todo atributo de uma mente consiste ou em ser ela mesma afetada de uma certa maneira, ou em afetar outras mentes de uma certa maneira. Considerada em si, só podemos predicar dela a série de seus próprios sentimentos. Quando dizemos que uma mente é devota, supersticiosa, meditativa ou alegre, afirmamos que as ideias, volições ou emoções contidas nessas palavras entram, frequentemente, na série de sentimentos ou estados de consciência que preenchem a existência sensível dessa mente. Todavia, em adição a esses atributos de uma mente fundados em seus próprios estados, podem-lhe ser acrescentados outros atributos, da mesma maneira que para um corpo, fundados nos sentimentos que ela excita em outras mentes. Na realidade, uma mente não excita sensações como um corpo, mas pode excitar pensamentos ou emoções. O exemplo mais importante de atributos imputados é o emprego de termos que expressam aprovação ou censura. Quando, por exemplo, dizemos que um caráter, ou, em outras palavras, uma mente, é admirável, afirmamos que a sua contemplação excita o sentimento de admiração, e na verdade algo mais, pois a palavra implica que não apenas sentimos admiração, mas aprovamos esse sentimento em nós mesmos. Em alguns casos, sob a aparência de um único atributo, na realidade predicam-se dois: um, o próprio estado da mente; outro, um estado que afeta outras mentes quando pensam nele. Como quando dizemos que alguém é generoso. A palavra generosidade expressa um certo estado da mente, mas, sendo um termo de elogio, expressa também que esse estado da mente excita em nós um outro estado mental chamado aprovação. A afirmação feita é dupla, portanto, e do seguinte teor: certos sentimentos compõem habitualmente uma parte da existência sensível dessa pessoa, e a ideia desses seus sentimentos excita em nós ou em outros o sentimento de aprovação. Referimos atributos tanto a mentes, no campo das ideias e emoções, quanto a corpos em bases semelhantes, e não unicamente no campo das sensações: como quando falamos da beleza de uma estátua, já que esse atributo é fundado num sentimento particular de prazer que a estátua produz em nossas mentes e que não é uma sensação, mas uma emoção. VII - CONCLUSÕES GERAIS 14. Recapitulação Nosso exame das coisas nomeáveis - que foram ou são capazes de serem predicadas de outras coisas ou de elas mesmas se tornarem sujeitos de predicações - está agora concluído. Nossa enumeração começou com os sentimentos. Distinguimo-los escrupulosamente dos objetos que os excitam e dos órgãos pelos quais são, ou supõe-se que são, transmitidos. Há quatro espécies de sentimentos: sensações, pensamentos, emoções e volições. O que se chama de percepções é meramente um caso especial de crença, e crença é uma espécie de pensamento. Ações são meramente volições seguidas de um efeito. Depois dos sentimentos, passamos às substâncias. Estas são corpos ou mentes. Sem entrar no campo das dúvidas metafísicas, com respeito à existência da matéria e da mente como realidades objetivas, satisfizemo-nos com a conclusão com que a maior parte dos melhores pensadores concorda atualmente: tudo o que podemos saber da matéria são as sensações que ela nos dá e a ordem de ocorrência dessas sensações, e que, enquanto a substância corpo é a causa desconhecida de nossas sensações, a substância mente é o seu recipiente desconhecido. A última classe das coisas nomeáveis são os atributos, e estes são de três espécies: qualidade, relação e quantidade. Somente conhecemos as qualidades, como as substâncias, pelas sensações ou outros estados de consciência que elas excitam; e enquanto, de acordo com o uso comum, continuamos a falar delas como de uma classe distinta de coisas, mostramos que, ao predicá-las, predicam-se apenas aquelas sensações ou estados de consciência nos quais pode-se dizer que estão fundadas e apenas por estes aquelas podem ser definidas ou descritas. As relações, exceto nos casos simples de semelhança e dissemelhança, sucessão e simultaneidade, são igualmente fundadas em algum fato ou fenômeno, isto é, em alguma série de sensações ou estados de consciência mais ou menos complexos. A terceira espécie de atributos, a quantidade, é claramente fundada em nossas sensações ou estados de sentimento já que há uma indubitável diferença entre as sensações excitadas por uma massa maior e uma menor, ou por um grau de intensidade maior e um menor, em qualquer objeto de sentimento ou de consciência. Todos os atributos, portanto, não são mais do que nossas sensações e outros estados de sentimento, ou algo inextricavelmente incluído nisso: e mesmo para este as relações simples e especiais acima mencionadas não são exceções. Essas relações especiais, todavia, são tão importantes e - mesmo se elas pudessem com exatidão ser classificadas entre os estados de consciência - tão fundamentalmente distintas de qualquer outro desses estados que seria uma sutileza inútil colocá-las naquela descrição comum; é, pois, necessário classificá-las à parte. (O Professor Bain (Logic, I, 49) define os atributos como "pontos de comunhão entre classes". Esta definição expressa bem um ponto de vista, mas está sujeita à objeção de que se aplica apenas aos atributos de classes, embora se possa dizer que um objeto, único em sua espécie, tem atributos. Além disso, a definição não é definitiva, já que os próprios pontos de comunhão admitem e requerem uma análise ulterior; e Bain analisa-os dentro das semelhanças nas sensações ou em outros estados de consciência excitados pelo objeto). A conclusão de nossa análise, portanto, nos dá a seguinte enumeração e classificação de todas as coisas nomeáveis: 1.º Sentimentos ou estados de consciência. 2.º As mentes que experimentam esses sentimentos. 3.º Os corpos, ou objetos exteriores, que excitam alguns desses sentimentos, juntamente com os poderes ou propriedades, com que os excitam; estes últimos, pelo menos, são incluídos mais por condescendência com a opinião comum - e porque sua existência é tida como certa na linguagem comum, da qual não posso, prudentemente, desviar - do que porque o reconhecimento de tais poderes ou propriedades como existências reais pareça garantido por uma boa filosofia. 4.º As sucessões e coexistências, as semelhanças e dissemelhanças, entre sentimentos ou estados de consciência. Essas relações, quando consideradas subsistentes entre outras coisas, existem na realidade apenas entre os estados de consciência que aquelas coisas, se forem corpos, excitam, e se forem mentes, excitam ou experimentam. Isto, até que se proponha um melhor, pode servir como substituto para as categorias de Aristóteles consideradas como classificação das existências. Sua aplicação prática aparecerá quando examinarmos a teoria das proposições; em outras palavras, quando investigarmos no que a mente realmente crê quando dá o que é chamado seu assentimento a uma proposição. Já que compreende estas quatro classes, se a classificação é correta, as coisas nomeáveis (todas, ou algumas) deverão, é claro, compor a significação de todos os nomes, e delas (ou de algumas delas) compõe-se o que chamamos um fato. Para salvaguardar a distinção, todo fato composto apenas de sentimentos ou estados de consciência considerados como tais é muitas vezes chamado de psicológico ou subjetivo, enquanto todo fato composto, quer no todo, quer em parte, de algo diferente dele, isto é, de substâncias e atributos, é chamado objetivo. Podemos dizer, pois, que todo fato objetivo é fundado num fato subjetivo correspondente, e só tem sentido para nós (fora o fato subjetivo que lhe corresponde) como um nome para o processo desconhecido e inescrutável por que passa aquele fato subjetivo e psicológico. CAPÍTULO IV DA SIGNIFICAÇÃO DAS PROPOSIÇÕES 1. Teoria da proposição como expressão de uma relação entre duas ideias Um estudo da natureza das proposições deve ter um dos seguintes objetivos: analisar o estado da mente chamado crença, ou analisar o objeto desta crença. Todas as línguas reconhecem uma diferença entre uma doutrina, uma opinião e o fato de admitir a opinião ou a doutrina; entre o assentimento e o objeto desse assentimento. A lógica, tal como concebida aqui, não tem nada a ver com a natureza do ato de julgar ou crer; o estudo desse ato, como fenômeno da mente, pertence a outra ciência. Todavia, os filósofos, desde Descartes, e especialmente desde Leibniz e Locke, de maneira alguma observaram essa distinção, e teriam tratado com grande desrespeito qualquer tentativa de analisar a significação das proposições não-fundada numa análise do ato de juízo. Uma proposição, diriam, não é mais do que uma expressão em palavras de um juízo. O que importa é a coisa expressa, não a mera expressão verbal. Quando a mente assente a uma proposição, ela julga. Descubramos o que a mente faz quando julga, e só assim saberemos o que significam as proposições. De conformidade com esses pontos de vista, quase todos os autores de lógica nos dois últimos séculos, franceses, alemães ou ingleses, fizeram de sua teoria das proposições, de começo a fim, uma teoria dos juízos. Consideraram que uma proposição ou um juízo - pois usavam ambas as palavras indiscriminadamente - consiste em afirmar ou negar uma ideia de outra. Julgar era colocar duas ideias juntas, ou submeter uma ideia a outra, ou comparar duas ideias, ou perceber a concordância e a discordância entre duas ideias; e toda a teoria das proposições, juntamente com a teoria do raciocínio (necessariamente fundada na teoria das proposições), supunha que as ideias ou conceitos, ou qualquer outro termo que os autores preferissem como um nome para as representações mentais em geral, constituem essencialmente a matéria e a substância dessas operações. É verdade, naturalmente, que em alguns juízos, como por exemplo quando julgamos que o ouro é amarelo, ocorre um processo em nossas mentes do qual uma ou outra dessas teorias é uma explicação parcialmente correta. Podemos ter a ideia de ouro e a ideia de amarelo, e as duas podem-se colocar juntas em nossa mente. Mas, em primeiro lugar, é evidente que isto é apenas uma parte do que ocorre, pois podemos colocar duas ideias juntas sem qualquer ato de crença, como quando meramente imaginamos algo como uma montanha de ouro, ou quando realmente descremos; pois, mesmo para não crer que Maomé era um apóstolo de Deus, devemos colocar a ideia de Maomé e a de apóstolo de Deus juntas. Determinar o que acontece no caso de assentimento ou discordância, além de colocar duas ideias juntas, é um dos mais intrincados problemas metafísicos. Mas, qualquer que possa ser a solução, podemos nos arriscar a afirmar que isso não tem absolutamente nada a ver com a significação das proposições, pela simples razão de que as proposições (exceto em alguns casos, quando a própria mente é o objeto) não são asserções a respeito de nossas ideias das coisas, mas asserções sobre as próprias coisas. Para crer que o ouro é amarelo, devo, na verdade, ter a ideia de ouro e a ideia de amarelo, e alguma coisa referente a essas ideias deve ocorrer em minha mente; minha crença, porém, não tem relação com as ideias, mas com as coisas. O que eu creio é um fato referente à coisa exterior, ouro, e à impressão feita por essa coisa exterior sobre os órgãos humanos, não um fato relativo à minha concepção de ouro, que é um acidente de minha história mental, não um fato de natureza exterior. É verdade que, para crer nesse fato exterior, um outro fato deve ocorrer em minha mente: deve realizar-se um processo sobre minhas ideias; mas isso deve igualmente ocorrer em qualquer outra coisa que eu faça. Não posso cavar a terra sem que tenha a ideia de terra, de pá e de todas as demais coisas com as quais esteja trabalhando, e sem que ponha essas ideias juntas. (O dr. Whewell (Phisolosophy of Discovery) contesta esta afirmação, e pergunta: "Pode-se dizer que uma toupeira só pode cavar a terra se tiver ideia da terra, ou do focinho e das patas com que cava?" Não sei o que se passa na mente de uma toupeira, ou que grau de apreensão mental pode ou não acompanhar suas ações instintivas. Mas um ser humano não usa uma pá por instinto, e certamente não poderá usá-la sem ter conhecimento da pá e da terra na qual trabalhará). Seria, porém, uma descrição bastante ridícula dizer que cavar a terra é colocar uma ideia dentro de outra. Cavar é uma operação realizada nas próprias coisas, embora não possa ser realizada sem que eu tenha em minha mente as ideias dessas coisas. E, de maneira semelhante, crer é um ato que tem como objeto os próprios fatos, embora uma concepção mental prévia dos fatos seja sua condição indispensável. Quando digo que o fogo causa calor, porventura quero dizer que minha ideia de fogo causa minha ideia de calor? Não; quero dizer que o fenômeno natural fogo causa o fenômeno natural calor. Quando quero afirmar alguma coisa com respeito às ideias, dou-lhe seu próprio nome; chamo-lhes ideias, como quando digo que a ideia que uma criança tem de batalha não corresponde à realidade, ou que as ideias admitidas da divindade têm grande efeito sobre a personalidade da espécie humana em geral. A noção de que o que é de importância principal para o lógico numa proposição é a relação entre as duas ideias correspondentes a sujeito e predicado (em vez de a relação entre os dois fenômenos que eles expressam respectivamente) parece-me um dos erros mais funestos já introduzidos na filosofia da lógica, e a causa principal por que a teoria da ciência teve um progresso tão insignificante durante os dois últimos séculos. Os tratados de lógica e sobre as partes da filosofia mental relacionadas com a lógica produzidos desde a introdução desse erro capital, embora muitas vezes escritos por homens de capacidade e talento extraordinários, quase sempre contêm tacitamente a teoria de que a investigação da verdade consiste em contemplar e manipular nossas ideias ou concepções das coisas, ao invés, das próprias coisas; é uma doutrina equivalente à afirmação de que a única maneira de adquirir conhecimento da natureza é estudá-la de segunda mão, enquanto representada em nossas próprias mentes. Enquanto isso, pesquisas sobre toda espécie de fenômenos naturais iam estabelecendo incessantemente grandes e fecundas verdades em assuntos da máxima importância através de processos que essas visões da natureza do juízo e do raciocínio não elucidaram e aos quais elas não forneceram qualquer assistência. Não é de se admirar que os sabedores por experiência prática de como se chegou a essas verdades considerassem fútil uma ciência consistindo, acima de tudo, em tais especulações. O que tem sido feito para o progresso da lógica desde que essas doutrinas entraram em voga o foi não pelos ditos lógicos, mas por descobridores em outras ciências, por cujos métodos de investigação muitos princípios de lógica, anteriormente desconhecidos, vieram sucessivamente à luz. Estes, ao mesmo tempo, têm geralmente cometido o erro de supor que absolutamente nada era conhecido da arte de filosofar pelos velhos lógicos porque os seus intérpretes modernos escreveram com tão pouco proveito a esse respeito. Devemos, pois, investigar, no presente momento, não o juízo, mas os juízos; não o ato de crer, mas a coisa crida. Qual é o objeto imediato da crença numa proposição? Qual é a verdade significada por ela? A que, quando afirmo a proposição, dou meu assentimento e apelo a outros para darem os seus? O que é expresso pela forma de discurso chamada proposição, e cuja conformidade com o fato constitui a verdade da proposição? 2. A proposição consiste em referir algo a, ou excluir algo de, uma classe. Embora a teoria da predicação de Hobbes não tenha encontrado, nos termos em que foi exposta, recepção muito favorável da parte de pensadores subsequentes, uma teoria virtualmente idêntica e asseguradamente não tão claramente expressa, pode-se dizer, atingiu a posição-de uma opinião estabeleci da. A noção de predicação geralmente aceita mais decididamente é a que consiste em referir algo a uma classe, ou colocar uma classe sob outra classe. Assim, a proposição "O homem é mortal" afirma, de acordo com essa visão, que a classe homem está incluída na classe mortal. "Platão é um filósofo" afirma que o indivíduo Platão é um dos que compõem a classe filósofos. Se a proposição é negativa, em vez de colocar algo numa classe, diz-se que exclui algo de uma classe. Assim, se a proposição é "O elefante não é carnívoro", o que se afirma (de acordo com essa teoria) é que o elefante está excluído da classe carnívoro, ou não está enumerado entre as coisas que compreendem essa classe. Não há nenhuma diferença real, exceto na linguagem, entre essa, teoria da predicação e a teoria de Hobbes. Pois uma classe é absolutamente a mesma coisa que um número indefinido de indivíduos denotados por um nome geral. O nome que lhes é dado em comum faz deles uma classe. Referir algo a uma classe, portanto, é considerar esse algo como uma das coisas que devem ser chamadas por aquele nome comum. Excluí-lo de uma classe é dizer que o nome comum não lhe é aplicável. Uma prova evidente de quão largamente essas visões da predicação têm prevalecido é o fato de que são a base do célebre dictum de omni et nullo. Quando o silogismo é resolvido, por todos os que tratam dele, em uma inferência segundo a qual o que é verdadeiro para uma classe é verdadeiro para qualquer coisa que pertença a essa classe, e quando isso é afirmado por quase todos os ditos lógicos como o princípio superior ao qual todo raciocínio deve sua validade, fica claro, então, que, na opinião geral dos lógicos, as proposições de que os raciocínios são compostos só podem ser a expressão do procedimento que consiste em dividir as coisas em classes e referir cada coisa à sua própria classe. Essa teoria me parece um exemplo marcante de um erro lógico cometido muito frequentemente em lógica, o erro hysteron protéron, que consiste em explicar uma coisa por algo que a pressupõe. Quando digo que a neve é branca, posso e devo pensar a neve como uma classe, porque afirmo a proposição como verdadeira de toda neve, mas certamente não penso em objetos brancos como classe; não penso em nenhum outro objeto branco a não ser a neve, e tão-somente nela e na sensação de branco que me dá. Quando, na verdade, julguei ou concordei com a proposição de que a neve é branca e que várias outras coisas também são brancas, gradualmente comecei a pensar no objeto branco como uma classe, incluindo a neve e essas outras coisas. Mas esta é uma concepção que seguiu, e não precedeu, aqueles juízos e, portanto, não pode ser dada como explicação para eles. Em vez de explicar o efeito pela causa, essa teoria explica a causa pelo efeito, e está, acho, numa latente concepção errônea da natureza da classificação. Há um tipo de linguagem bastante predominante nessas discussões que parece supor ser a classificação uma combinação e disposição de indivíduos definidos e conhecidos, e que, quando os nomes foram impostos, o homem considerou todos os objetos individuais no universo, distribuiu-os em segmentos e em listas, e deu aos objetos de cada lista um nome comum, repetindo essa operação toties quoties, até que tivesse inventado todos os nomes comuns de que consiste a linguagem; o que, uma vez feito, se posteriormente surge a questão de se um determinado nome geral pode ser verdadeiramente predicado de um determinado objeto particular, temos apenas (como fora feito) que ler a relação dos objetos aos quais aquele nome foi aplicado e ver se o objeto em questão se encontra entre eles. Os criadores da língua teriam assim pré-determinado todos os objetos que comporiam cada classe, e teríamos apenas que recorrer ao registro de suas decisões. Tão absurda doutrina não será admitida por ninguém quando colocada assim nuamente, mas se as explicações comumente aceitas de classificação e nomenclatura não implicam essa teoria, mister se faz mostrar como poderão conciliá-la com outra qualquer. Os nomes gerais não são marcas feitas em objetos definidos; as classes não são feitas desenhando-se uma linha ao redor de um dado número de indivíduos determináveis. Os objetos que compõem uma classe são perpetuamente flutuantes. Podemos conceber uma classe sem conhecer os indivíduos, ou mesmo alguns dos indivíduos; de que ela possa ser composta; podemos fazê-lo acreditando que tais indivíduos não existem. Se pela significação de um nome geral devem-se entender as coisas das quais ele é o nome, nenhum nome geral, a não ser por acidente, tem significação fixa, ou retém a mesma significação por muito tempo. A única maneira de um nome geral ter uma significação definida é sendo nome de uma variedade indefinida de coisas, isto é, de todas as coisas conhecidas ou desconhecidas, passadas, presentes ou futuras, que possuem um determinado atributo definido. Quando - estudando não a significação das palavras, mas os fenômenos da natureza - descobrimos que esses atributos são possuídos por algum objeto que não sabíamos possuí-los (como quando os químicos descobriram que o diamante era combustível), incluímos esse novo objeto na classe, mas ele ainda não pertencia à classe. Colocamos o indivíduo na classe porque a proposição é verdadeira; a proposição não é verdadeira porque o objeto é colocado na classe. (O Professor Bain observa, em oposição à afirmação no texto (Logic, op. cit., 50) que a palavra classe tem duas significações: "A classe definida e a classe indefinida. A classe definida é uma enumeração de indivíduos reais, como os Pares do Reino, os oceanos do globo, os planetas conhecidos ... A classe indefinida é inumerável. Tais classes são as estrelas, planetas, as rochas que contêm ouro, homens, poetas, virtuosos ... Nesta última acepção da palavra, nome de classe e nome geral são idênticos. O nome da classe denota um número indefinido de indivíduos e conota os pontos de comunhão ou semelhança". A teoria controvertida no texto supõe tacitamente que todas as classes são definidas. Eu as admiti como indefinidas porque, para os propósitos da lógica, classes definidas, como tais, são quase inúteis, embora muitas vezes aproveitáveis como formas de expressão abreviada. (V. Livro III, capo II.)). Deverá aparecer, mais tarde, quando tratarmos do raciocínio, quanto a teoria desse processo intelectual viciou-se pela influência dessas noções errôneas ou pelo hábito, que elas exemplificam, de identificar todas as operações do entendimento humano que têm por objeto a verdade com processos de mera classificação e nomenclatura. Infelizmente, as mentes que se emaranharam nessa rede são precisamente as que escaparam de outro erro capital comentado no começo deste capítulo. Após a revolução que desalojou Aristóteles das escolas, os lógicos podem ser assim divididos: aqueles que consideram o raciocínio essencialmente como uma questão de ideias e aqueles que o consideram essencialmente como uma questão de nomes. 3. O que [a proposição] realmente é Seja o predicado, como dissemos, um termo conotativo e, para tomar primeiro o caso mais simples, o sujeito um nome próprio: "O cume do Chimborazo é branco". A palavra "branco" conota um atributo possuído pelo objeto individual designado pelas palavras "cume do Chimborazo", atributo que consiste no fato físico de excitar nos seres humanos a sensação que chamamos de sensação de branco. Admitir-se-á que, afirmando a proposição, queremos comunicar uma informação daquele fato físico e estamos pensando nos nomes apenas como meios necessários para efetuar essa comunicação. A significação da proposição, portanto, é que a coisa individual denotada pelo sujeito tem os atributos conotados pelo predicado. Suponhamos agora que também o sujeito seja um nome conotativo; o sentido expresso pela proposição terá avançado um grau em complexidade. Suponhamos afirmativa: "Todos os homens são mortais". Neste caso, como no outro, o que a proposição afirma (ou expressa uma crença de) é, evidentemente, que os objetos denotados pelo sujeito (homens) possuem os atributos conotados pelo predicado (mortais). Mas a característica deste caso é que os objetos não são mais designados individualmente. São indicados apenas por algum de seus atributos; são os objetos chamados homens, isto é, possuem os atributos conotados pelo nome homem, e a única coisa que se pode conhecer deles são esses atributos; na verdade, como a proposição é geral e os objetos denotados pelo sujeito são, portanto, indefinidos em número, a maioria deles não é conhecida individualmente. A afirmação, portanto, não é como antes, que os atributos conotados pelo predicado são possuídos por algum determinado indivíduo, ou por algum número de indivíduos previamente conhecidos, como João, Tomás, etc., mas que esses atributos são possuídos por cada um e todos os indivíduos que possuem determinados outros atributos; que todos os que possuem os atributos conotados pelo sujeito possuem, também, os conotados pelo predicado; que o último grupo de atributos acompanha constantemente o primeiro grupo. (À observação precedente tem-se objetado que "nós naturalmente analisamos o sujeito de uma proposição na sua extensão, e o predicado (que por essa razão pode ser um adjetivo) na sua intensidade (conotação): e que, consequentemente, a coexistência de atributos não corresponde, como a teoria oposta da igualdade de grupos, ao processo vivo do pensamento e da linguagem". Admito a distinção traçada aqui, que, na verdade, eu mesmo tinha delineado e exemplificado algumas páginas atrás. Mas, embora seja verdade que nós naturalmente "analisamos o sujeito de uma proposição na sua extensão", esta extensão, ou, em outras palavras, a extensão da classe denotada pelo nome, não é apreendida ou revelada diretamente. É apreendida e revelada apenas através dos atributos. No "processo vivo do pensamento e da linguagem", a extensão, embora neste caso realmente considerada concebida (no caso do predicado, não o é), é considerada concebida apenas através do que meu agudo e cortês crítico denomina "intensidade". Para maiores esclarecimentos sobre esse assunto. v. An Exumination of Sir William Hamilton’s Philosophy, cap. XXII). Qualquer um que tenha os atributos de homem tem o atributo da mortalidade; a mortalidade sempre acompanha os atributos do homem. Se se lembrar que todo atributo é baseado em algum fato ou fenômeno, dos sentidos ou da consciência, e que possuir um atributo é ser a causa, ou fazer parte, do fato ou fenômeno no qual o atributo é fundado, poderemos acrescentar mais um passo para completar a análise. A proposição que afirma que um atributo sempre acompanha um outro atributo na realidade afirma; com isso, que um fenômeno sempre acompanha outro fenômeno; de tal maneira que onde encontramos um, teremos certeza da existência do outro. Assim, na proposição "Todo homem é mortal", "homem" conota os atributos que atribuímos a uma determinada espécie de criaturas vivas baseados em certos fenômenos que elas exibem, que são em parte fenômenos físicos, como as impressões feitas em nossos sentidos por sua forma e estrutura corpóreas, e em parte fenômenos mentais, isto é, como a sensibilidade e a inteligência que eles próprios possuem. Isto é, que qualquer um que conhece a significação do nome entende pela palavra homem. Agora, quando dizemos "O homem é mortal", queremos entender que onde quer que esses vários fenômenos físicos e mentais forem encontrados, temos certeza de que o outro fenômeno físico e mental chamado morte não deixará de ocorrer. A proposição não afirma quando, pois, a conotação da palavra mortal não vai além da ocorrência do fenômeno em um ou outro tempo, deixando o tempo específico indeterminado. 4. [A proposição] afirma (ou nega) uma sequência, uma coexistência, uma simples existência, uma causação Já avançamos o suficiente para não apenas demonstrar o erro de Hobbes, mas também determinar a importância real da sem dúvida mais numerosa classe de proposições. O objeto da crença numa proposição, quando afirma algo mais que a significação das palavras, é geralmente, como nos casos que examinamos, ou a coexistência ou a sequência de dois fenômenos. No começo de nossa investigação, descobrimos que todo ato de crença implicava duas coisas; agora determinamos o que, no caso mais frequente, são essas duas coisas, isto é, dois fenômenos, em outras palavras, dois estados de consciência, e o que é que a proposição afirma (ou nega) subsistir entre eles, isto é, ou sucessão ou coexistência. E este caso inclui inúmeros exemplos que ninguém, antes de refletir, iria pensar que tivessem relação com ele. Seja o seguinte exemplo: "Uma pessoa generosa é digna de elogio". Quem esperaria reconhecer aqui um caso de coexistência entre fenômenos? Mas há. O atributo que induz uma pessoa a ser denominada generosa lhe é atribuído com base nos estados de sua mente e particularidades de sua conduta; ambos são fenômenos: os primeiros são fatos internos da consciência; as últimas, enquanto distintas dos primeiros, são fatos físicos, ou percepções dos sentidos. "Digna de elogio" dá margem a uma análise semelhante. Elogio, como é usado aqui, significa um estado de emoção que aprova e admira, seguido oportunamente dos atos exteriores correspondentes. "Digna de elogio" conota tudo isso, juntamente com nossa aprovação ao ato de elogio. Todos estes são fenômenos, estados de consciência acompanhados ou seguidos dos fatos físicos. Quando dizemos "Uma pessoa generosa é digna de elogio", afirmamos a coexistência entre os dois fenômenos complexos conotados respectivamente pelos dois termos. Afirmamos que sempre e onde quer que ocorram os sentimentos internos e os fatos externos implícitos na palavra generosidade, a existência e a manifestação de um sentimento interno, elogio ou honra, devem ser seguidas em nossas mentes de um outro sentimento interno, a aprovação. ( ... ) Essa, embora seja a mais comum, não é a única significação que as proposições sempre pretendem exprimir. Em primeiro lugar, sequências e coexistências não são apenas afirmadas dos fenômenos; fazemos proposições também relativas àquelas causas ocultas dos fenômenos, que se chamam substâncias e atributos. Sendo, todavia, para nós a substância apenas aquilo que causa os fenômenos ou aquilo que tem consciência deles, e o mesmo sendo verdadeiro, mutatis mutandis, com respeito aos atributos, não se pode fazer nenhuma afirmação com respeito a essas entidades desconhecidas e incognoscíveis, exceto em virtude dos fenômenos pelos quais apenas elas se manifestam às nossas faculdades. Quando dizemos "Sócrates era contemporâneo da guerra do Peloponeso", o fundamento desta afirmação, como de todas as afirmações com respeito a substâncias, é uma afirmação concernente aos fenômenos que elas exibem, isto é, que a série de fatos pelos quais Sócrates se manifestou à humanidade e a série de estados mentais que constituíram sua existência sensível se deram simultaneamente com a série de fatos conhecida pelo nome de guerra do Peloponeso. Entretanto, a proposição, como é entendida comumente, não afirma apenas isto; afirma também que a coisa em si, o noumeno Sócrates, existia e realizava ou experimentava aqueles vários fatos durante o mesmo tempo. Coexistência é sequência, portanto, podem ser afirmadas ou negadas não apenas entre fenômenos, mas também entre os numerosos, ou entre um noumeno e fenômenos. E de ambos, noumenos e fenômenos, podemos afirmar a simples existência. Mas o que é um noumeno? Uma causa desconhecida. Afirmando, portanto, a existência de um noumeno, afirmamos a causação. Temos aqui, portanto, dois tipos adicionais de fatos, suscetíveis de serem afirmados numa proposição. Além das proposições que afirmam sequência e coexistência, há algumas que afirmam a simples existência; quanto à causação, assunto do Livro Terceiro, deve ser provisoriamente considerada como uma espécie de asserção distinta e peculiar. (O Professor Bain, em sua Logic, op. Cit., p. 256, exclui a existência da lista, considerando-a um mero nome. Toda proposição, diz, que predica a simples existência "é mais ou menos abreviada, ou elíptica; quando expressa integralmente, ela cai ou sob a coexistência ou sob a sucessão. Quando dizemos que existe uma conspiração para um determinado fim, queremos dizer que no presente momento um grupo de homens se organizou numa sociedade com um objetivo particular; que é uma afirmação complexa, analisável em proposições de coexistência e sucessão (assim como causação). A afirmação de que o cisne de capelo não existe indica o fato de que este animal, uma vez conhecido em determinado lugar, desapareceu ou se extinguiu, não está mais associado à localidade; tudo isso pode ser melhor colocado sem o uso do verbo 'existir'. Há uma questão discutida: existe o éter? Porém a forma concreta seria esta: O calor, a luz e outras influências de radiações são propagados por meio etéreo difuso no espaço? que é uma proposição de causação. Da mesma maneira, a questão da existência de uma divindade não pode ser discutida dessa forma. É propriamente uma questão como para a Primeira Causa do Universo, e a aplicação contínua dessa causa na direção da providência". O Sr. Bain considera como uma "linguagem fictícia e sem sentido" apoiar a classificação da natureza num summum genus, um Ser, ou aquilo que existe, já que só se pode perceber ou apreender alguma coisa através do contraste com alguma outra coisa (uma verdade importante de que ele tem sido em nossos tempos o principal intérprete e defensor, sob o nome de Lei da Relatividade), e não temos nenhuma outra classe para opor ao Ser, ou fato para contrastar com a existência. Concordo inteiramente com a Lei da Relatividade do Sr. Bain, mas por ela não entendo que seja necessário, para sermos capazes de apreender ou ter consciência de algum fato, que devamos contrastá-lo com algum outro fato positivo. Acho que a antítese necessária à consciência não precisa ser uma antítese entre dois positivos; pode ser entre um positivo e o seu negativo. Hobbes estava indubitavelmente certo quando disse que uma única sensação indefinidamente prolongada cessaria inteiramente de ser sentida; mas uma simples interrupção, sem qualquer mudança, iria devolver-lhe a consciência. Para se ter consciência do calor, não é necessário que passemos do frio para o calor; é suficiente que passemos para o calor de um estado de nenhuma sensação, ou de uma sensação de alguma outra espécie. O oposto relativo de Ser, considerado como um summum genus, é a não-existência, ou nada; e de vez em quando temos a oportunidade de considerar e discutir coisas meramente em contraste com a não-existência. Admito que a decisão de questões de existência geralmente, se não sempre, depende de uma questão prévia ou de causação ou de coexistência. Mas a existência é, apesar de tudo, diferente de causação ou coexistência e pode ser predicada separadamente destas. A significação do nome abstrato existência e a conotação do nome concreto ser consistem, como a significação de todos os outros nomes, em sensações ou estados de consciência; sua peculiaridade é que existir é excitar, ou ser capaz de excitar, quaisquer sensações ou estados de consciência; não importa quais, mas é indispensável que sejam algumas. Foi contemplando isso que Hegel - verificando que o ser é uma abstração que se obtém eliminando-se todos os atributos particulares - chegou à proposição contraditória em si na qual fundamentou toda a sua filosofia: o ser é o mesmo que o nada. É na realidade o nome de algo, tomado no sentido mais completo da palavra). 5. Ou uma semelhança A essas quatro espécies de matérias de fato ou asserções deve ser acrescentada uma quinta: a semelhança. Esta foi uma espécie de atributo que achamos impossível analisar e à qual não se poderia designar nenhum fundamentum distinto dos próprios objetos. Além das proposições que afirmam uma sequência ou coexistência entre dois fenômenos, há também, portanto, proposições que afirmam semelhança entre eles, como "Esta cor é semelhante àquela cor", "O calor de hoje é igual ao calor de ontem". É verdade que tal asserção poderia, com alguma plausibilidade, ser colocada dentro da descrição de uma afirmação de sequência considerando-a como uma afirmação de que a contemplação simultânea de duas cores é seguida de um sentimento específico, denominado sentimento de semelhança. Mas não teríamos nada a ganhar sobrecarregando-nos, especialmente aqui, com uma generalização que poderá ser encarada como forçada. A lógica não se dedica a analisar fatos mentais em seus últimos elementos. A semelhança entre dois fenômenos é mais inteligível em si do que qualquer explicação seria capaz de fazê-lo, e em qualquer classificação deve permanecer especificamente distinta dos casos comuns de sequência e coexistência. Diz-se algumas vezes que toda e qualquer proposição, cujo predicado é um nome geral, na realidade afirma ou nega uma semelhança. Todas as proposições desse tipo afirmam que uma coisa pertence a uma classe, mas, sendo as coisas classificadas juntamente de acordo com sua semelhança, qualquer coisa, evidentemente, é classificada com as coisas com as quais se supõe mais se assemelha; e, por isso, pode-se dizer que, quando afirmamos que o ouro é um metal, ou que Sócrates é um homem, o sentido da afirmação é que o ouro se assemelha muito mais a outros metais e Sócrates a outros homens do que ambos se assemelham aos objetos contidos em qualquer outra das classes coordenadas a elas. Há algum fundamento nessa observação, mas muito tênue. A organização das coisas em classes, como a classe metal, ou a classe homem, é fundada, na verdade, em uma semelhança entre as coisas que são colocadas na mesma classe, mas não numa mera semelhança geral; a semelhança em que é fundada consiste na posse, por todas essas coisas, de certas peculiaridades comuns; e são essas peculiaridades, e não a semelhança, que os termos conotam, e que as proposições consequentemente afirmam. Pois, embora quando digo "O ouro é um metal", por implicação digo que se há outros metais quaisquer aquele deve se assemelhar a estes; mesmo se não houvesse nenhum outro metal, eu poderia ainda afirmar a proposição com a mesma significação atual, isto é; que o ouro tem as diversas propriedades implicadas na palavra metal, exatamente como se poderia dizer "Os cristãos são homens", mesmo se não houvesse homens não-cristãos. As proposições, portanto, nas quais os objetos são referidos a uma classe porque possuem os atributos constitutivos desta classe estão tão longe de afirmar apenas semelhança, que, propriamente falando, não afirmam semelhança nenhuma. Observamos há algum tempo (e as razões da observação serão mais desenvolvidas num livro subsequente) que às vezes é útil estender os limites de uma classe para nela incluir coisas que possuem num grau bem inferior algumas das propriedades características da classe - desde que se assemelhem àquela classe mais do que a qualquer outra, de tal maneira que as proposições gerais verdadeiras desta classe estarão mais perto de serem verdadeiras das coisas do que qualquer outra proposição igualmente geral. Por exemplo, há substâncias chamadas metais que têm muito poucas das propriedades pelas quais os metais são comumente reconhecidos, e quase toda grande família de plantas ou animais tem uns poucos gêneros ou espécies anômalos em seus limites, que são admitidos dentro deles por uma espécie de cortesia - tem sido objeto de discussão a que família propriamente pertenceriam. Agora, quando o nome de classe é predicado de algum objeto desse tipo, predicando-o assim nós afirmamos apenas semelhança e nada mais. E, para ser rigorosamente exato, deve-se dizer que em todos os casos em que predicamos um nome geral, afirmamos, não absolutamente que o objeto possui as propriedades designadas pelo nome, mas que ele ou possui aquelas propriedades ou, se não, de qualquer forma se assemelha mais às coisas que as possuem do que a quaisquer outras. Na maioria dos casos, contudo, não é necessário supor tal alternativa, o último dos fundamentos sendo muito raramente aquele sobre o qual a afirmação é feita; e quando o é, há geralmente uma leve diferença na forma da expressão, como: Esta espécie (ou gênero) é considerada, ou pode ser classificada, como pertencente a tal ou tal família; não se poderia afirmar positivamente que ela pertence a tal família se não possuísse inequivocamente as propriedades cientificamente designadas pelo nome de classe. Há ainda outro caso excepcional, em que, embora o predicado seja o nome de uma classe, afirmamos pura e simplesmente, predicando-o, a semelhança, uma vez que a classe é fundada não numa semelhança determinada, mas numa semelhança geral não-analisável. As classes em questão são aquelas em que nossas sensações simples, ou outros sentimentos simples, são divididos. As sensações de branco, por exemplo, são classificadas juntas não porque podemos desmontá-las e dizer que são semelhantes nisto e diferentes naquilo, mas porque são sentimentos semelhantes em conjunto, embora em diferentes graus. Quando, portanto, digo" A cor que eu vi ontem era uma cor branca", ou "A sensação que sinto é de tensão", em ambos os casos o atributo que afirmo da cor ou de outra sensação é apenas semelhança - simples similitude a sensações que tivera antes e a que tinham aqueles nomes sido conferidos. Os nomes dos sentimentos são, como os outros nomes gerais, concretos, conotativos, mas conotam uma mera semelhança. Quando predicados de algum sentimento individual, a informação que transmitem é a de sua semelhança com outros sentimentos que estamos acostumados a chamar pelo mesmo nome. Isso bastará como explicação das proposições nas quais a realidade afirmada ou negada é a simples semelhança. Existência, coexistência, sequência, causação, semelhança: uma ou outra destas é sempre afirmada ou negada em qualquer proposição que não seja meramente verbal. Esta divisão quíntupla é uma classificação exaustiva das matérias de fato, de todas as coisas que podem ser cridas ou propostas à crença, de todas as questões que possam ser apresentadas, e todas as respostas que possam retornar a elas. (...) 6. Proposições cujos termos são abstratos No exame precedente da significação das proposições, julgamos necessário analisar diretamente apenas proposições cujos termos (ou o predicado ao menos) são concretos. Mas, assim procedendo, indiretamente analisamos aquelas cujos termos são abstratos. A distinção entre um termo abstrato e seu correspondente concreto não gira em torno de nenhuma diferença no que eles significam, pois a significação real de um nome concreto geral é, como tantas vezes dissemos, sua conotação, e o que o termo concreto conota constitui a inteira significação do nome abstrato. Desde que não há nada na significação de um nome abstrato que não esteja na significação do correspondente nome concreto, é natural supor que não pode haver nada na significação de uma proposição cujos termos são abstratos, a não ser o que há em alguma proposição composta de termos concretos. Um exame mais rigoroso confirmará essa suposição. Nome abstrato é o nome de um atributo ou de uma combinação de atributos. O nome concreto correspondente é um nome dado a coisas porque elas possuem, ou para exprimir que possuem, aquele atributo ou aquela combinação de atributos. Quando, portanto, predicamos de alguma coisa um nome concreto, o atributo é o que na realidade predicamos. Ora, viu-se que, em toda proposição cujo predicado é um nome concreto, o que na realidade se predica é uma destas cinco: existência, coexistência, causação, sequência ou semelhança. Um atributo, portanto, é ou uma existência, ou uma coexistência, ou uma causação, ou uma sequência, ou uma semelhança. Quando uma proposição consiste em um sujeito e um predicado que são termos abstratos, ela consiste em termos que devem necessariamente significar uma ou outra dessas cinco. Quando predicamos um nome abstrato de alguma coisa, afirmamos que a coisa é ou um caso de existência, ou de coexistência ou de causação, ou de sequência, ou de semelhança. É impossível imaginar uma proposição expressa em termos abstratos que não possa ser transformada em uma proposição exatamente equivalente cujos termos serão concretos; isto é, ou os nomes concretos que conotam os próprios atributos, ou os nomes dos fundamenta desses atributos, os fatos ou fenômenos em que estão fundados. Para ilustrar o último caso, tomemos uma proposição cujo sujeito apenas é um nome abstrato: "A irreflexão é perigosa". Irreflexão é um atributo, fundado nos fatos que chamamos ações irrefletidas; e a proposição é equivalente a esta: "Ações irrefletidas são perigosas". No próximo exemplo, tanto o predicado quanto o sujeito são nomes abstratos: "A brancura é uma cor"; ou "A cor da neve é uma brancura". Sendo estes atributos baseados em sensações, as proposições equivalentes no caso concreto seriam: "A sensação de branco é uma das chamadas sensações de cor" - "A sensação da visão da neve é uma das sensações chamadas sensações de branco". Nestas proposições, como vimos anteriormente, a realidade afirmada é uma semelhança. Nos exemplos seguintes, os termos concretos são os que correspondem diretamente aos nomes abstratos, conotando o atributo que estes denotam. "A prudência é uma virtude" pode-se traduzir como: "Todas as pessoas prudentes, enquanto prudentes, são virtuosas". "A coragem é digna de elogio", assim: "Toda pessoa corajosa é digna de elogio enquanto é corajosa", que é equivalente a esta: "Todas as pessoas corajosas merecem um acréscimo de elogio, ou uma diminuição, que se lhes aplicariam em outros campos". Para lançar ainda mais luz sobre a significação das proposições cujos termos são abstratos, submeteremos um desses exemplos a uma análise mais minuciosa: "A prudência é uma virtude". Substituamos a palavra virtude por uma expressão equivalente, mas mais definida, como "uma qualidade mental benéfica à sociedade", ou "uma qualidade mental agradável a Deus", ou qualquer outra que adotemos como definição de virtude. O que a proposição afirma é uma sequência acompanhada de uma causação, isto é, que o benefício à sociedade, ou a aprovação de Deus, é consequente da, e causada pela prudência. Há uma sequência aqui; mas entre o quê? Reconhecemos o consequente da sequência, mas temos ainda que analisar o antecedente. Prudência é um atributo; e, juntamente com ela, duas coisas além dela mesma devem ser consideradas: pessoas prudentes, que são os sujeitos do atributo, e conduta prudente, que pode ser chamada o fundamento do atributo. Um deles é o antecedente? E, de início, a proposição afirma que a aprovação de Deus ou o benefício à sociedade existe sempre com todas as pessoas prudentes? Não, exceto enquanto são prudentes; pois pessoas prudentes e canalhas dificilmente poderiam ser benéficas à sociedade ou agradáveis a um ser bom. É, então, à conduta prudente que a aprovação divina e o benefício à humanidade são considerados invariavelmente consequentes? Nem é isto que a afirmação significa quando se diz que a prudência é uma virtude, exceto com a mesma reserva anterior e pela mesma razão, isto é, que a conduta prudente, embora seja benéfica à sociedade enquanto é prudente, ainda pode, por alguma outra de suas qualidades, produzir um dano que exceda o benefício, e merecer um desagrado que exceda a aprovação devida à prudência. Nem a substância, portanto (isto é, a pessoa), nem o fenômeno (a conduta) são um antecedente ao qual o outro termo da sequência é universalmente consequente. Mas a proposição "A prudência é uma virtude" é uma proposição universal. De que é, então, que a proposição afirma que os efeitos em questão são universalmente consequentes? (O são) daquilo que na pessoa e na conduta é a causa de serem prudentes, e que está igualmente nelas quando a ação, embora prudente, é má, isto é, uma correta previsão das consequências, uma justa avaliação de sua importância para o objetivo em vista, e a repressão de qualquer impulso irrefletido contrário ao propósito deliberado. Estes, que são estados da mente da pessoa, são o antecedente real na sequência, a causa real na causação, afirmados pela proposição. Mas estes são também a base real, ou o fundamento do atributo prudência, já que podemos predicar prudência onde quer que esses estados da mente existam, mesmo antes que saibamos se se seguiu alguma conduta. E dessa maneira toda afirmação com respeito a um atributo pode ser transformada em uma afirmação exatamente equivalente a respeito do fato ou fenômeno que é a base do atributo. E não se pode apontar nenhum caso em que aquilo que se predica do fato ou fenômeno não pertença a uma ou outra das cinco espécies anteriormente enumeradas: ou a simples existência, ou alguma sequência, ou coexistência, causação ou semelhança. E como estas cinco são as únicas que podem ser afirmadas, assim são as únicas que podem ser negadas. "Nenhum cavalo é palmípede" nega que os atributos de um cavalo coexistam com pés palmados. Quase não há necessidade de aplicar a mesma análise a afirmações e negações particulares. "Algumas aves são palmípedes" afirma que o fenômeno pés palmados algumas vezes é coexistente com os atributos conotados por ave. "Algumas aves não são palmípedes" afirma que há outros casos em que essa coexistência não ocorre. Após as considerações precedentemente desenvolvidas, este tópico da doutrina está suficientemente claro, e dispensa qualquer outra explicação. CAPÍTULO V Das proposições meramente verbais 1. Toda proposição essencial é proposição idêntica Quase todos os metafísicos anteriores a Locke, e vários depois dele, fizeram grande mistério em torno da predicação essencial e dos predicados considerados como partes da essência do sujeito. A essência de uma coisa, diziam, é aquilo sem o que a coisa não poderia existir, nem se conceberia existir. Assim, a racionalidade era da essência do homem porque sem a racionalidade não se poderia conceber a existência do homem. Os diversos atributos que formavam a essência de uma coisa eram chamados suas propriedades essenciais, e uma proposição em que se predicava uma dessas propriedades era chamada proposição essencial e considerada como a que penetrava mais fundo na natureza da coisa e transmitia dela uma informação mais importante do que qualquer outra proposição. Todas as propriedades que não fizessem parte da essência da coisa eram chamadas acidentes e consideradas como não tendo absolutamente nada, ou comparativamente nada, a ver com a natureza íntima da coisa, e as proposições em que se predicava qualquer dessas propriedades eram chamadas proposições acidentais. Pode-se reconhecer uma conexão entre esta distinção, nascida com os escolásticos, e os célebres dogmas das substantiae secundae ou substâncias gerais e das formas substanciais, teorias que, sob terminologias variadas, reinaram nas escolas de Platão e Aristóteles e cujo espírito chegou com mais intensidade aos nossos tempos do que se poderia conjecturar a partir do desuso de tal terminologia. As falsas concepções da natureza da classificação e generalização que prevaleceram entre os escolásticos e das quais esses dogmas eram a expressão técnica fornecem a única explicação do fato de terem eles interpretado mal a natureza real daquelas essências, que, ademais, ocuparam lugar de destaque em sua filosofia. Disseram, na verdade, que não se pode conceber o homem sem a racionalidade. Mas se o homem não pode ser concebido sem este atributo, pode-se conceber um ser exatamente igual ao homem em tudo, exceto nessa qualidade e em todas as que são suas condições e consequências. Portanto, tudo o que é realmente verdadeiro, na afirmação de que o homem não pode ser concebido sem a racionalidade, é apenas que, se ele não tivesse a racionalidade, não poderia ser considerado um homem. Não há impossibilidade de se conceber a coisa nem, pelo que sabemos, de conceber a sua existência; a impossibilidade está nas convenções da linguagem, que não permitem que a coisa, mesmo existente, seja chamada pelo nome reservado aos seres racionais. Racionalidade, em suma, está implicada na significação da palavra "homem", é um dos atributos conotados pelo nome. A essência de homem significa simplesmente o conjunto de atributos conotados pela palavra; e qualquer um desses atributos tomado isoladamente é uma propriedade essencial do homem. Mas estas reflexões, tão fáceis para nós, teriam sido difíceis para pessoas que pensavam, como a maioria dos últimos aristotélicos, que os objetos se tornavam o que se lhes chamava; que o ouro, por exemplo, era ouro não por possuir certas propriedades às quais a humanidade quis atribuir esse nome, mas pela participação na natureza de uma certa substância geral, chamada o ouro em geral, substância que, juntamente com todas as propriedades que lhe pertencessem, era inerente a todas as peças de ouro tomadas individualmente. (As doutrinas que impediram que a significação real das essências fosse compreendida não assumiram uma figura tão definida na época de Aristóteles e seus seguidores imediatos como a que foi dada pelos realistas da Idade Média. O próprio Aristóteles (no seu tratado Sobre as Categorias) nega expressamente que as deúterai oúsiai ou substantiae secundae são inerentes a um objeto. Elas são apenas, diz, predicadas dele). Como não consideravam que essas substâncias universais estavam vinculadas a todos os nomes gerais, mas apenas a alguns, pensavam que um objeto emprestava apenas uma parte de suas propriedades de uma substância universal, e que o restante lhe pertencia individualmente; chamavam as primeiras de suas essências, e as últimas, de seus acidentes. A doutrina escolástica das essências sobreviveu muito tempo à teoria na qual se baseou, a da existência de entidades reais correspondentes aos termos gerais, e Locke incumbiu-se, no fim do século XVII, de convencer os filósofos de que as pretendidas essências de classes eram meramente a significação de seus nomes; e, entre os destacados serviços que seus escritos prestaram à filosofia, não existe nenhum mais necessário e mais importante. Assim como os nomes gerais mais familiares pelos quais um objeto é designado geralmente conotam não apenas um, mas muitos atributos do objeto, cada um dos quais separadamente também forma o laço de união de alguma classe e a significação de algum nome geral, podemos predicar de um nome que conota uma variedade de atributos um outro nome que conota apenas um desses atributos, ou alguns deles. Em tais casos, a proposição universal afirmativa será verdadeira, já que todo aquele que possui o todo de um grupo de atributos deverá possuir também qualquer parte daquele mesmo grupo. Uma proposição desse tipo, todavia, não transmite nenhuma informação a alguém que conheça previamente a inteira significação dos termos. As proposições "Todo homem é um ser corpóreo", "Todo homem é uma criatura viva", "Todo homem é racional", não transmitem nenhum conhecimento a alguém que já conhece a significação da palavra homem, pois a significação da palavra inclui tudo isso, e que todo homem que tem os atributos conotados por todos esses predicados já é afirmado quando é chamado homem. Ora, dessa natureza são todas as proposições chamadas essenciais. Elas são, de fato, proposições idênticas. É verdade que uma proposição que predica um atributo qualquer, mesmo que esteja implícito no nome, na maioria dos casos subentende uma afirmação tácita de que existe uma coisa correspondente ao nome e possui os atributos conotados por ele, e essa afirmação implícita pode transmitir informação, mesmo àqueles que conheciam a significação do nome. Mas toda informação desse tipo, transmitida por todas as proposições essenciais cujo sujeito pode ser o homem, está incluída na afirmação "Os homens existem". E essa suposição da existência real é, antes de tudo, o resultado de uma imperfeição de linguagem. Ela provém de uma ambiguidade da cópula, que, além de sua própria função de sinal para indicar uma afirmação, é também, como observamos anteriormente, uma palavra concreta que conota existência. A existência real do sujeito da proposição está, portanto, apenas aparentemente, não realmente, implícita na predicação, se essencial; podemos dizer "Um fantasma é um espírito incorpóreo", sem acreditar em fantasmas. Mas uma afirmação acidental, ou não-essencial, implica a existência real do sujeito, porque, no caso de um sujeito não-existente, não há nada para se afirmar na proposição. Uma proposição como "O fantasma de uma pessoa assassinada ronda o leito do assassino" só pode ter sentido se se entender como implícita uma crença em fantasmas; pois, já que a significação da palavra fantasma não inclui nenhum ser dessa espécie, quem fala ou não quer dizer nada ou pretende afirmar uma coisa que quer que se acredite tenha realmente ocorrido. Ver-se-á depois que, quando alguma consequência importante parece resultar, como na matemática, de uma proposição essencial, ou, em outras palavras, de uma proposição implícita na significação de um nome, o que na realidade resulta é a suposição tácita da existência real dos objetos assim denominados. Fora essa suposição da existência real, a classe de proposições nas quais o predicado é da essência do sujeito (isto é, na qual o predicado conota o todo ou parte do que o sujeito conota, e nada mais) serve unicamente ao propósito de revelar o todo ou parte da significação do nome àqueles que não o conheciam previamente. Consequentemente, as mais úteis e, a rigor, as únicas espécies úteis de proposições essenciais são as definições, que, para serem completas, devem revelar tudo o que está incluído na significação da palavra definida, isto é (quando é uma palavra conotativa), tudo o que ela conota. Ao definir um nome, todavia, não é hábito especificar toda a sua conotação, mas apenas o suficiente para destacar os objetos usualmente denotados por ele de todos os demais objetos conhecidos. E às vezes uma propriedade meramente acidental, excluída da significação do nome, responde igualmente bem a esse propósito. As várias espécies de definição que estas distinções sugerem e os propósitos aos quais servem serão detalhadamente considerados no lugar apropriado. 2. Os indivíduos não têm essências De acordo com o que precede, não se pode considerar como essencial uma proposição relativa a um indivíduo pelo nome, isto é, cujo sujeito é um nome próprio. Os indivíduos não têm essências. Quando os escolásticos falaram da essência de um indivíduo, não tinham em mente as propriedades implicadas no seu nome, pois os nomes de indivíduos não implicam propriedades. Consideravam, antes, como da essência de um indivíduo tudo o que fosse da essência da espécie na qual costumavam colocar o indivíduo, isto é, da classe à qual era mais comumente reportado, e à qual, portanto, consideravam que pertencesse por natureza. Assim, porque a proposição "O homem é um ser racional" era uma proposição essencial, afirmavam o mesmo da proposição "Júlio César é um ser racional". Esta seria uma dedução muito natural se os gêneros e espécies devessem ser considerados como entidades distintas dos indivíduos que as compõem, mas inerentes a eles. Se homem é uma substância inerente a cada homem individual, naturalmente se suporia que a essência de homem o acompanha, que é inerente a John Thompson e constitui a essência comum de Thompson e Júlio César. Poder-se-ia, pois, muito bem dizer que a racionalidade, sendo da essência de homem, também o é da essência de Thompson. Mas, se homem é apenas o conjunto dos homens individuais e um nome que lhes é conferido em consequência de certas propriedades comuns, o que acontece à essência de John Thompson? Um erro fundamental raramente é eliminado, em filosofia, com uma única vitória. Ele retrocede lentamente, defende cada palmo de terreno, e, muitas vezes, depois de ser conduzido a campo aberto, mantém um pé em alguma fortaleza remota. As essências individuais eram uma ficção sem sentido surgida de uma compreensão errônea das essências das classes; até mesmo Locke, quando extirpou a causa do erro, não foi capaz de livrar-se daquilo que era seu fruto. Locke distinguiu dois tipos de essências, as reais e as nominais. Suas essências nominais eram as essências de classes, explicadas mais ou menos como o fizemos. Bastaria, para tornar o Terceiro Livro do Ensaio de Locke um tratado quase perfeito sobre a conotação dos nomes, livrar sua linguagem desta suposição das ideias abstratas, que infelizmente está implícita na terminologia, embora não necessariamente nos pensamentos deste imortal Livro Terceiro. (O sempre agudo e muitas vezes profundo autor de An Outline of Sematology, B. H. Smart, diz com justiça: "Locke será muito mais inteligível se, na maioria dos lugares, substituirmos por 'o conhecimento' quando ele fala de 'a ideia de'" (p. 10). Parece-me que entre as diversas críticas sobre o uso lockiano da palavra ideia, esta é a que atinge o alvo; e cito-a por uma razão mais: ela expressa precisamente o ponto de diferença, com respeito à significação das proposições, entre a minha opinião e aquilo que chamei de visão conceptualista das proposições. Onde um conceptualista diz que um nome ou uma proposição expressa a nossa ideia de uma coisa, eu geralmente diria, em vez de nossa ideia, nosso conhecimento, ou crença, com respeito à própria coisa). Mas, além das essências nominais, Locke admitiu as essências reais, ou essências de objetos individuais, que supôs serem as causas das propriedades sensíveis daqueles objetos. Nós não sabemos, dizia, o que elas são (e esse reconhecimento tornou a ficção comparativamente inócua), mas, se o soubéssemos, poderíamos, a partir delas apenas, deduzir as propriedades sensíveis do objeto, assim como as propriedades do triângulo são demonstradas a partir de sua definição. Terei oportunidade de voltar li examinar esta teoria ao tratar da demonstração e das condições sob as quais uma propriedade de uma coisa pode ser demonstrada a partir de uma outra propriedade. É suficiente assinalar aqui que, de acordo com essa definição, a essência real de um objeto chegou a ser considerada, com o progresso da física, quase equivalente, no caso dos corpos, à sua estrutura molecular. Quanto ao que supostamente significa agora relativamente a outras entidades, não vou me ocupar em decidir. 3. As proposições reais, distintas das proposições verbais Uma proposição essencial, pois, é aquela que é puramente verbal, que afirma de uma coisa, sob um determinado nome, apenas o que é afirmado dela pelo fato de chamá-la por aquele nome, e que, portanto, ou não dá nenhuma informação, ou a dá com respeito ao nome, não à coisa. Proposições hão-essenciais, ou proposições acidentais, ao contrário, podem ser chamadas proposições reais, em oposição às verbais. Elas predicam de uma coisa algum fato não implicado na significação do nome empregado para designá-la, algum atributo não conotado por esse nome. Tais são todas as proposições que dizem respeito a coisas designadas individualmente, e todas as proposições gerais ou particulares nas quais o predicado conota algum atributo não conotado pelo sujeito. Todas elas, se verdadeiras, aumentam nosso conhecimento; transmitem informações que não estavam contidas no nome empregado. Quando sou informado de que todos ou mesmo alguns objetos, que têm certas qualidades ou que estão em determinadas relações, têm também certas outras qualidades ou estão em determinadas outras relações, apreendo dessa proposição um fato novo, um fato não incluído no meu conhecimento da significação das palavras ou mesmo da existência de coisas que respondem à significação daquelas palavras. É essa classe de proposições apenas que é em si mesma instrutiva, ou da qual se podem inferir quaisquer proposições instrutivas. (Esta distinção corresponde àquela que Kant e outros metafísicos estabeleceram entre o que eles denominam juízos analíticos e sintéticos, sendo os primeiros aqueles que podem ser desenvolvidos a partir das significações dos termos usados). Provavelmente nada contribuiu mais para a opinião tanto tempo predominante da futilidade da lógica escolar do que a circunstância de que quase todos os exemplos usados nos livros escolares comuns para ilustrar a teoria da predicação e a do silogismo consistem em proposições essenciais. Eles eram habitualmente tirados ou dos ramos ou do tronco principal da árvore predicamental, que incluíam apenas o que era da essência das espécies: Omne corpus est substantia, Omne animal est corpus, Omnis homo est cor pus, Omnis homo est animal, Omnis homo est rationalis, e assim por diante. Não é absolutamente de se admirar que a arte silogística tivesse sido considerada inútil para auxiliar o raciocínio correto, quando, nas mãos desses supostos professores; quase as únicas proposições empregadas para provas eram tais que qualquer um as admitiria sem prova no momento em que compreendesse a significação das palavras, e estavam exatamente no mesmo nível, em grau de evidência, das premissas de que eram tiradas. Tenho evitado, por isso, ao longo desta obra, o emprego de proposições essenciais como exemplos, exceto quando a natureza do princípio a ser ilustrado especificamente as exigiu. 4. Duas maneiras de expressar a significação de uma proposição real Com respeito às proposições instrutivas - que afirmam algo de uma coisa sob um nome que já não pressupõe o que está para ser afirmado -, pode-se considerá-las, ao menos as universais, sob dois aspectos diferentes: como fragmentos da verdade especulativa, ou como memorandos para uso prático. Conforme consideremos as proposições sob um ou outro desses dois pontos de vista, sua significação poderá ser convenientemente expressa em uma ou outra das duas fórmulas. De acordo com a fórmula que empregamos até aqui e que melhor se adapta para exprimir a significação das proposições teóricas, "Todo homem é mortal" significa que os atributos de homem são sempre acompanhados pelo atributo mortalidade; "Nenhum homem é deus" significa que os atributos de homem nunca são acompanhados pelos atributos, ou pelo menos nunca por todos os atributos designados pela palavra deus. Mas, quando a proposição é considerada um memorando para uso prático, encontraremos uma maneira diferente de exprimir a mesma significação melhor adaptada para indicar o papel da proposição. O uso prático de uma proposição é informar ou lembrar-nos o que devemos esperar em qualquer caso individual que esteja implícito na afirmação contida na proposição. Com referência a esse propósito, a proposição "Todo homem é mortal" significa que os atributos de homem são uma prova, uma marca de mortalidade, um indício pelo qual a presença daquele atributo se torna manifesta. "Nenhum homem é deus" significa que os atributos de homem são uma marca, ou prova, de que alguns ou todos os atributos que se considera pertencerem a um deus não estão aqui, que onde estão os primeiros não devemos esperar encontrar os últimos. Estas duas formas de expressão são no fundo equivalentes; mas uma chama a atenção mais diretamente sobre o que a proposição significa, e a outra sobre a maneira pela qual devemos usá-la. Deve-se observar que o raciocínio (assunto que logo trataremos) é um processo no qual as proposições não entram como resultados definitivos, mas como meios para o estabelecimento de outras proposições. Podemos esperar, portanto, que o modo de exposição do sentido de uma proposição geral que a apresenta em seu uso prático irá exprimir melhor a função que a proposição exerce no raciocínio. E, consequentemente, é quase indispensável na teoria do raciocínio, adotar o ponto de vista segundo o qual a proposição tem por fim afirmar que um fato ou fenômeno é uma marca ou prova de um outro fato ou fenômeno. Para essa teoria, a melhor maneira de definir a significação de uma proposição não é a que mostra mais claramente o que ela é em si mesma, mas a que sugere mais distintamente a maneira pela qual ela se torna útil para se encontrar outras proposições. CAPÍTULO VI Da natureza da classificação e dos cinco predicáveis 1. A classificação, associada ao ato de nomear ( ... ) Embora a predicação não pressuponha a classificação e embora a teoria dos nomes e das proposições não seja aclarada, mas obscurecida pela introdução da ideia de classificação, há, todavia, uma estreita ligação entre a classificação e o emprego de nomes gerais. Através de qualquer nome geral que introduzimos, criamos uma classe, se houver alguma coisa real ou imaginária para compô-la, isto é, alguma coisa correspondente à significação do nome. As classes, portanto, na maioria das vezes devem sua existência à linguagem geral. Mas a linguagem geral também, embora este não seja o caso mais comum, muitas vezes deve sua existência às classes. Um nome geral, o que é o mesmo que dizer significativo, na maioria dos casos, é introduzido porque temos uma significação para expressar através dele, porque necessitamos de uma palavra para, por meio dela, - predicar os atributos que conota. Mas é também verdade que um nome às vezes é introduzido porque achamos conveniente criar uma classe, porque julgamos útil para a ordenação de nossas operações mentais que um determinado grupo de objetos seja considerado em conjunto. Um naturalista, em vista das exigências de sua ciência particular, vê motivos para distribuir a criação animal ou vegetal em determinados grupos em vez de outros, e necessita de um nome para juntar cada um desses grupos. Não se deve, todavia, supor que tais nomes, quando introduzidos, diferem em algum aspecto, como em seu modo de significação, de outros nomes conotativos. As classes que eles denotam são, como qualquer outra classe, constituídas de determinados atributos comuns e seus nomes significam esses atributos e nada mais. Os nomes das classes e ordens de Cuvier, plantígrados, digitígrados, e assim por diante, são a expressão dos atributos como se esses nomes tivessem precedido a classificação dos animais, em vez de terem brotado dela. A única peculiaridade é que a conveniência da classificação era aqui o motivo principal para a introdução dos nomes, enquanto, em outros casos, o nome é introduzido como uma forma de predicação, e a formação de uma classe denotada por esse nome é apenas uma consequência indireta. ( ... ) 2. As espécies têm uma existência real na natureza Um dos princípios fundamentais da lógica é que a faculdade de formar classes é ilimitada, desde que haja alguma (mesmo a mínima) diferença para se estabelecer uma distinção. Seja um atributo qualquer, e, se algumas coisas o possuem e outras não, podemos, com base no atributo, estabelecer uma divisão de todas as coisas em duas classes, e realmente assim fazemos no momento em que criamos um nome que conota o atributo. O número de classes possíveis, portanto, é ilimitado; e há tantas classes reais (quer de coisas reais, quer de imaginárias) quanto nomes gerais ao mesmo tempo positivos e negativos. Se contemplarmos, porém, qualquer uma das classes assim formadas, tais como a classe animal ou das plantas, ou a classe enxofre ou fósforo, ou a classe branco ou vermelho, e considerarmos em que particularidades os indivíduos incluídos na classe diferem daqueles que não o são, encontraremos uma diversidade bastante notável entre algumas classes. Há classes nas quais as coisas contidas diferem de outras coisas apenas em certos detalhes que podem ser enumerados, enquanto outros diferem mais do que se pode enumerar, mais ainda do que poderíamos esperar conhecer. Outras têm pouco ou nada em comum por que caracterizá-las além do que precisamente é conotado pelo nome; coisas brancas, por exemplo, não se distinguem por nenhuma propriedade comum além da brancura, ou, se o são, é apenas por alguma propriedade que de alguma maneira depende ou está ligada à brancura. Mas uma centena de gerações não esgotou as propriedades comuns dos animais ou das plantas, do enxofre ou do fósforo; nem supomos que sejam exauríveis, mas procedemos a novas observações e experimentos na completa convicção de descobrir novas propriedades que não estejam de nenhuma maneira contidas naquelas que conhecíamos anteriormente. Por outro lado, se alguém pretendesse investigar as propriedades comuns de todas as coisas que tivessem a mesma cor, a mesma forma ou o mesmo peso específico, o absurdo seria palpável. Não temos nenhum fundamento para acreditar que quaisquer dessas propriedades comuns existem, exceto as suscetíveis de serem demonstradas como implícitas na própria suposição ou como deriváveis delas por alguma lei de causação. Parece claro, portanto, que as propriedades em que baseamos as classes às vezes esgotam tudo o que a classe tem em comum ou contém por algum modo de implicação; mas, em outros exemplos, fazemos uma seleção de umas poucas propriedades dentre não apenas um grande número, mas um número inexaurível para nós, e, como não conhecemos os limites, elas podem, com relação a nós, ser consideradas infinitas. Não há nenhuma impropriedade em se dizer que, dessas duas classificações, uma corresponde a uma distinção muito mais radical nas próprias coisas do que a outra. E se alguém escolher afirmar que uma classificação é feita pela natureza e a outra por nós, por conveniência nossa, estará certo, contanto que não queira dizer mais do que isso: onde uma certa diferença aparente entre as coisas (embora talvez em si mesma de pouca importância) corresponda a não sabemos que número de outras diferenças, penetrando não apenas suas propriedades conhecidas, mas propriedades ainda não descobertas, não é opcional, mas sim imperativo, reconhecer essa diferença como o fundamento de uma distinção específica: enquanto, ao contrário, diferenças meramente finitas e determinadas, como as designadas pelas palavras branco, preto ou vermelho, podem ser desprezadas se a finalidade para a qual a classificação é feita não requerer atenção para essas propriedades particulares. As diferenças, contudo, são feitas pela natureza em ambos os casos, enquanto o reconhecimento dessas diferenças como fundamentos da classificação e do ato de nomear é, igualmente em ambos os casos, ato do homem; somente num caso os limites da linguagem e da classificação se subverteriam: se não se tomasse conhecimento da diferença; no outro, a necessidade de tomar conhecimento dela depende da importância ou não das qualidades particulares de que a diferença possa consistir. Assim, sendo essas classes distinguidas por multidões de propriedades desconhecidas e não somente por algumas poucas e determinadas - que são separadas uma da outra por um abismo impenetrável, em vez de um mero fosso ordinário com um fundo visível -, são as únicas classes consideradas pelos lógicos aristotélicos como gêneros ou espécies. Diferenças que se estendiam apenas a alguma propriedade determinada ou a algumas propriedades e terminavam aí - estas eles consideravam como diferenças apenas nos acidentes das coisas; mas onde uma classe diferia de outras coisas por uma série infinita de diferenças, conhecidas e desconhecidas, consideravam a distinção como de espécie e consideravam-na como diferença essencial, que também é uma das significações correntes dessa expressão hoje vaga. Considerando que os escolásticos tiveram razão ao traçar uma profunda linha de separação entre essas duas espécies de classes e de distinções de classes, não apenas manterei a mesma divisão mas continuarei a exprimi-la na linguagem deles. De acordo com essa linguagem, o gênero mais próximo (ou mais inferior) a que é referido qualquer indivíduo se chama sua espécie. Isaac Newton, por exemplo, seria considerado pertencente à espécie homem. Há na verdade numerosas subclasses incluídas na classe homem às quais também Newton pertence; por exemplo, cristão, inglês, matemático. Mas estas, embora classes distintas, não são, no nosso sentido do termo, espécies distintas de homem. Um cristão, por exemplo, difere de outros seres humanos, mas difere apenas no atributo que a palavra expressa, isto é, crença no cristianismo e em tudo o que isso implique, quer incluído no próprio fato, quer ligado a ele através de alguma lei de causa e efeito. Nunca iríamos pesquisar que propriedades, não-ligadas ao cristianismo, seja como causa, seja como efeito, são comuns a todos os cristãos e específicas deles, ao passo que, com respeito a todos os homens, os fisiólogos continuamente desenvolvem tal pesquisa; e a resposta nunca parece ser completa. Pode-se considerar o homem, portanto, uma espécie; cristão ou matemático, não. Note-se aqui que de nenhuma maneira se pretende afirmar que não possa haver diferentes tipos, ou espécies lógicas, de homem. As diversas raças e temperamentos, os dois sexos, e mesmo as várias idades, podem ser diferenças específicas. Não digo que o são. Pois, no passo em que avança a fisiologia, pode-se quase dizer que está provado que as diferenças reais entre as diferentes raças, sexos, etc., resultam como consequência, sob as leis da natureza, de um pequeno número de diferenças primordiais que podem ser precisamente determinadas e que, como se diz, explicam todo o resto. Se isso é assim, estas não são distinções de natureza; nem diferenças mais importantes como as de cristão, judeu, muçulmano e pagão. E dessa maneira há classes, frequentemente confundidas com espécies ou gêneros reais, que, prova-se depois, não o são. Mas se se descobrisse que as diferenças não poderiam ser assim explicadas, então caucasiano, mongol, negro, etc., seriam realmente diferentes espécies de seres humanos e teriam o direito de serem classificados como espécies pelos lógicos, senão pelos naturalistas. Pois (como já observamos), a palavra espécie é usada com significação diferente em lógica e em história natural. O naturalista não considera jamais como espécies diferentes seres organizados que se pode supor descenderem da mesma origem. Este, contudo, é um sentido artificial da palavra adotada para os objetivos técnicos de uma ciência particular. Para o lógico, se um homem negro e um homem branco diferem da mesma maneira (conquanto em grau menor) que um cavalo e um camelo, isto é, se suas diferenças são inexauríveis, e independem de uma causa comum, constituem espécies diferentes, sejam ou não descendentes de ancestrais comuns. Se, 'porém, suas diferenças podem todas ser atribuídas' ao clima e aos costumes, ou a uma ou algumas poucas diferenças especiais na estrutura, não são, para o lógico, especificamente distintos. Quando a infima species, ou o gênero próximo, ao qual um indivíduo pertence, foi determinada; as propriedades comuns a essa espécie incluem necessariamente a totalidade das propriedades comuns de todas as demais espécies reais às quais o indivíduo possa ser referível. Seja o indivíduo, por exemplo, Sócrates, e o gênero próximo, homem. Animal, ou criatura viva, é também um gênero real, e inclui Sócrates, mas, desde que igualmente inclui homem, ou, em outras palavras, desde que todos os homens são animais, as propriedades comuns aos animais participam das propriedades comuns da subclasse homem. E se há alguma classe que inclua Sócrates sem incluir homem, não se trata de um gênero real. Seja a classe, por exemplo, nariz chato, que inclui Sócrates, sem incluir todos os homens. Para determinar se é uma classe real, devemos fazer-nos esta pergunta: Têm os animais de nariz chato, além de tudo o que esteja incluído em seus narizes chatos, outras propriedades que não sejam "as comuns a todo e qualquer animal? Se eles as tivessem, se um nariz chato fosse uma marca ou índice para um número indefinido de outras peculiaridades não-dedutíveis da primeira por uma lei determinada, então poderíamos separar da classe homem uma outra classe, homem de nariz chato, que, de acordo com nossa definição, será um gênero. Mas, se se pudesse fazer isso, o homem não seria, como se presumiu, o gênero próximo. Portanto, as propriedades do gênero próximo compreendem as propriedades (conhecidas ou desconhecidas) de todos os outros gêneros a que o indivíduo pertence: isto é o que tentamos provar. E, por isso, qualquer outro gênero predicável do indivíduo está para o gênero próximo na relação de genus, de conformidade mesmo com a acepção popular dos termos gênero e espécie, isto é, será uma classe mais extensa, incluindo o gênero próximo e outras coisas mais. Agora estamos aptos para fixar o sentido lógico desses termos. Toda classe real, isto é, que se distingue de todas as outras classes por uma multidão indeterminada de propriedades não-deriváveis uma da outra, é ou um gênero ou uma espécie. Uma classe não-divisível em outras classes não pode ser um gênero, porque não tem nenhuma espécie sob ela; mas ela própria é uma espécie, com referência aos indivíduos abaixo e aos gêneros acima (Species Praedicabilis e Species Subjicibilis). Mas toda classe divisível em classes reais (como animal em quadrúpedes, peixes, etc., ou os quadrúpedes em diversas espécies de quadrúpedes) é um gênero para tudo o que está abaixo dela, uma espécie para todos os gêneros em que ela própria está incluída. ( ... ) CAPÍTULO VII Da definição 1. O que é uma definição ( ... ) A mais simples e correta noção de definição é: uma proposição declarativa da significação de uma palavra, isto é, a significação que a palavra tem na acepção comum ou a significação que aquele que fala ou escreve pretende incorporar-lhe para os objetivos específicos de seu discurso. Sendo a definição de uma palavra a proposição que enuncia sua significação, palavras que não têm significação não são suscetíveis de definição. Nomes próprios, portanto, não podem ser definidos. Sendo o nome próprio uma simples marca feita num indivíduo cuja propriedade característica é ser destituído de significação, é claro que sua significação não pode ser declarada, embora possamos indicar através da linguagem, como poderíamos indicar mais facilmente apontando com o dedo, sobre que indivíduo aquela marca particular é ou deve ter sido feita. Não se define "John Thompson" dizendo que é "o filho do General Thompson", pois o nome John Thompson não expressa isso. Também não se define John Thompson dizendo que é "o homem que agora está atravessando a rua". Estas proposições podem servir para tornar conhecido quem é o homem particular a quem o nome pertence, mas pode-se fazer isso menos vagamente apontando para ele, o que, contudo, nunca se considerou um dos modos de definição. No caso de nomes conotativos, a significação, como tantas vezes observamos, é a conotação, e a definição de um nome conotativo é a proposição que declara sua conotação. Poder-se-ia fazer isto direta ou indiretamente. A maneira direta seria por uma proposição nesta forma: "Homem" (ou outra palavra qualquer) "é um nome que conota tais e tais atributos", ou "é um nome que, quando predicado de alguma coisa, significa a posse de tais e tais atributos por aquela coisa". Ou assim: Homem é tudo aquilo que possui tais e tais atributos; Homem é tudo aquilo que possui corporeidade, organização, vida, racionalidade e determinadas formas exteriores. Esta forma de definição é a mais precisa e a menos equívoca de todas, mas não é suficientemente breve e, além disso, é muito técnica para o discurso comum. A maneira mais usual de declarar a conotação de um nome é predicar dele um outro nome ou outros nomes de significação conhecida, que conotem a mesma coleção de atributos. Pode-se fazer isto ou predicando do nome que se pretende definir um outro nome conotativo exatamente sinônimo, como "Homem é um ser humano", o que não se considera uma definição, em absoluto; ou predicando dois ou mais nomes conotativos, que compõem toda a conotação do nome a ser definido. Neste último caso, ainda, podemos ou compor nossa definição com tantos nomes conotativos quantos são os atributos, sendo cada atributo conotado por um nome, como "Homem é um ser corpóreo, organizado, animado, racional, com tais e tais formas"; ou empregar nomes que conotam vários atributos de uma vez, como "Homem é um animal racional, com tais e tais formas". A definição de um nome, de acordo com essa concepção, é a soma total de todas as proposições essenciais que se podem formar com esse nome tomado como sujeito. Todas as proposições cuja verdade está implícita no nome, todas as de que temos consciência apenas ouvindo o nome, estão incluídas na definição, se completa, e podem ser deduzidas dela sem o auxílio de qualquer outra premissa, quer a definição as expresse em duas ou três palavras, ou em um número maior. Não é, pois, sem razão que Condillac e outros afirmaram que uma definição é uma análise. Analisar significa decompor um todo completo nos elementos de que é composto; e fazemos isto quando substituímos uma palavra que conota coletivamente um grupo de atributos por duas ou mais que conotam, isoladamente ou em grupos menores, os mesmos atributos. 2. Pode-se definir todo nome cuja significação é suscetível de análise Disto, todavia, naturalmente surge a questão de saber como devemos definir um nome que conota apenas um único atributo, por exemplo: "branco", que conota apenas brancura, ou "racional", que conota apenas a posse de razão. Poderia parecer que a significação de tais nomes só poderia ser declarada de duas maneiras: por um termo sinônimo, se se puder encontrar algum, ou da maneira direta já mencionada: "Branco é um nome que conota o atributo brancura". Vejamos, todavia, se a análise da significação do nome, isto é, a fragmentação dessa significação em várias partes, admite ser levada mais adiante. Sem no momento decidir esta questão com respeito à palavra branco, é óbvio que no caso de racional pode-se explicar mais sua significação do que a da proposição "Racional é aquilo que possui o atributo da razão", desde que o atributo razão admite uma definição. E aqui devemos voltar nossa atenção para as definições de atributos, ou melhor, dos nomes de atributos, isto é, dos nomes abstratos. Quanto a esses nomes de atributos; como são conotativos e expressam atributos desses atributos, não há nenhuma dificuldade; como outros nomes conotativos, definimo-los declarando sua conotação. Assim, a palavra falta pode ser definida: "Uma qualidade que produz o mal ou inconveniência". Às vezes, ainda, o atributo a ser definido não é um só, mas a união de vários; temos, portanto, apenas que juntar os nomes de todos os atributos tomados separadamente, e obteremos assim a definição do nome que pertence a todos tomados em conjunto, uma definição que corresponderá exatamente à do nome concreto correspondente. Pois, como definimos um nome concreto enumerando os atributos que conota, e como os atributos conotados por um nome concreto formam toda a significação do nome abstrato correspondente, a mesma enumeração servirá para a definição de ambos. Assim, se a definição de um ser humano é "um ser corpóreo, animado, racional, com tais e tais formas", a definição de humanidade será corporeidade e vida animal, combinadas com racional idade, e com tais e tais formas. Quando, de outro lado, o nome abstrato não expressa um complexo de atributos, mas um único atributo, devemos lembrar que todo atributo é baseado em algum fato ou fenômeno do qual tão-somente deriva sua significação. Para esse fato ou fenômeno, chamado em um capítulo anterior de fundamento do atributo, devemos, portanto, recorrer à sua definição. Ora, o fundamento do atributo pode ser um fenômeno com algum grau de complexidade, consistindo em muitas partes diferentes, quer coexistentes quer em sucessão. Para obter uma definição do atributo, devemos analisar o fenômeno nessas partes. Eloquência, por exemplo, é o nome de um atributo apenas, mas esse atributo é fundado em efeitos exteriores de natureza complexa, emanando de atos da pessoa a quem imputamos o atributo; e, decompondo esse fenômeno em suas duas partes, a causa e o efeito, obtemos uma definição de eloquência: o poder de influenciar os sentimentos através da fala ou da escrita. Um nome, pois, concreto ou abstrato, é suscetível de definição quando podemos analisar, isto é, decompor em partes, o atributo ou grupo de atributos que constituem a significação tanto do nome concreto quanto do abstrato correspondente: se um grupo de atributos, enumerando-os; se um único atributo, dissecando o fato ou fenômeno (de percepção externa ou de consciência interna) que é o seu fundamento. Mas, além disso, mesmo quando o fato é um dos nossos sentimentos simples ou estados de consciência, e, portanto, não-suscetível de análise, os nomes tanto do objeto quanto do atributo ainda admitem definição, ou melhor, admitiriam se todos os nossos sentimentos simples tivessem nomes. A brancura pode ser definida como a propriedade ou poder de excitar a sensação de branco. Um objeto branco pode ser definido como um objeto que excita a sensação de branco. Os únicos nomes não-suscetíveis de definição, porque sua significação não é suscetível de análise, são os nomes dos próprios sentimentos simples. Estes estão na mesma condição dos nomes próprios. Na verdade, não são como os nomes próprios, sem significação; pois as palavras sensação de branco significam que a sensação que assim denomino se assemelha a outras sensações que me lembro de ter tido antes e de ter chamado por esse nome. Mas, como não temos palavras para relembrar aquelas sensações anteriores a não ser que procuremos definir ou alguma outra que, sendo exatamente sua sinônima, requer definição tanto quanto ela, palavras não podem revelar a significação dessa classe de nomes, e somos obrigados a apelar diretamente à experiência pessoal do indivíduo a quem nos dirigimos. 3. As definições são distintas das descrições ( ... ) O que seria de outra maneira uma simples descrição pode se elevar ao nível de uma definição real pelos objetivos específicos que aquele que escreve ou fala tem em vista. Pode ser aconselhável, para os objetivos de uma arte ou ciência particular, ou para o estabelecimento mais conveniente das doutrinas particulares de um autor, dar a alguns nomes gerais, sem alterar sua denotação, uma conotação especial, diferente da usual. Quando isso é feito, uma definição do nome por meio de atributos que compõem a conotação especial - embora em geral uma mera definição ou descrição acidental - torna-se, naquela ocasião particular e para propósitos particulares, uma definição completa e genuína. Isto realmente ocorre no exemplo "Homem é um animal mamífero que tem duas mãos", que é a definição científica de homem, considerado uma das espécies do reino animal, na classificação de Cuvier. Em casos desse tipo, embora a definição ainda seja uma declaração do sentido contido neste exemplo particular pelo nome, não se pode dizer que a sua finalidade é estabelecer o sentido da palavra. A finalidade não é explicar um nome, mas estabelecer uma classificação. A significação especial que Cuvier determinou para a palavra homem (completamente estranha à sua significação ordinária, embora não envolvendo nenhuma mudança na denotação da palavra) era subordinada a seu plano de organizar os animais em classes sob um certo princípio, isto é, de acordo com certas distinções determinadas. E, já que a definição de homem, de acordo com a conotação ordinária da palavra, embora própria a qualquer outro propósito de uma definição, não indicaria o lugar que a espécie deveria ocupar nesta classificação particular, ele deu à palavra uma conotação especial, que lhe permitiria defini-la através de um conjunto particular de atributos sobre os quais, por razões de conveniência científica, fundava sua divisão dos seres animados. As definições científicas, quer sejam definições de termos científicos ou de termos comuns usados em sentido científico, são quase sempre desse último tipo. Sua finalidade principal é servir como marcos de classificação científica. E, já que as classificações em qualquer ciência continuamente se modificam à medida que progride o conhecimento científico, as definições nas ciências variam continuamente. Um exemplo notável é fornecido pelas palavras ácido e álcalis, especialmente a primeira. Com o progresso das descobertas experimentais, as substâncias classificadas como ácidos vêm-se multiplicando constantemente e, por uma consequência - natural, os atributos conotados pela palavra diminuíram e tornaram-se menos numerosos. A princípio, a palavra conotava os atributos: combinação com um álcalis para formar uma substância neutra chamada sal; composto de uma base e de oxigênio; causticidade ao gosto e ao tato; fluidez, etc. A análise correta do ácido muriático, em cloro e hidrogênio, fez com que a segunda propriedade - composição de uma base e de oxigênio - fosse excluída da conotação. A mesma descoberta chamou a atenção dos químicos para o hidrogênio como um elemento importante nos ácidos; e, tendo descobertas mais recentes conduzido ao reconhecimento de sua presença nos ácidos sulfúrico, nítrico e em muitos outros, onde sua existência anteriormente não era suspeitada, há agora uma tendência para incluir a presença desse elemento na conotação da palavra. Mas o ácido carbônico, a sílica, o ácido sulfuroso, não têm hidrogênio em sua composição; essa propriedade não pode, portanto, ser conotada pelo termo, a não ser que essas substâncias não mais sejam consideradas ácidos. Causticidade e fluidez há muito tempo foram excluídas das características da classe, pela inclusão nela da sílica e de muitas outras substâncias; e a formação de corpos neutros pela combinação com álcalis, juntamente com peculiaridades eletroquímicas que supostamente contenham, são agora as únicas differentiae que formam a conotação fixa da palavra ácido como termo técnico da química. (...) Dissemos que uma definição específica ou técnica tem por objetivo expor a classificação artificial de que parte. Os lógicos aristotélicos parecem ter imaginado que também era função da definição ordinária expor a classificação usual e, segundo eles, natural, das coisas, isto é, a sua divisão em espécies, e mostrar o lugar superior, colateral ou subordinado que cada espécie ocupa entre as demais. Explicar-se-ia assim esta regra: toda definição deve se fazer necessariamente per genus et differentiam e explicar-se-ia também por que uma única diferença era considerada suficiente. Mas desenvolver ou exprimir em palavras uma distinção de natureza é, como vimos, impossível; sua significação real é que as propriedades distintivas não podem brotar umas das outras, e não podem, portanto, ser expressas em palavras, mesmo por implicação, a não ser enumerando-as todas; e nem todas são conhecidas e provavelmente nunca o serão. É inútil, portanto, encarar isso como uma das finalidades da definição; entretanto, se se exigir somente que a definição de uma classe indique que classes a incluem ou são incluídas por ela, qualquer definição que exponha a conotação dos nomes fará isso, pois o nome de cada classe deve necessariamente conotar o suficiente de suas propriedades para fixar seus limites. Se a definição, portanto, é uma exposição completa da conotação, ela é tudo o que uma definição deve ser. 4. O que se chamam as definições das coisas são definições de nomes implicando a suposição da existência de coisas que lhes correspondem (...) Examinaremos agora uma doutrina antiga, outrora predominante de modo geral, e ainda, de alguma maneira, acreditada, que considero a fonte de grande parte da obscuridade que paira sobre alguns dos mais importantes procedimentos do espírito humano na procura da verdade. De acordo com ela, as definições de que tratamos acima são apenas um entre os dois tipos em que as definições podem ser divididas, isto é, definições de nomes e definições de coisas. As primeiras explicam a significação de um termo; as últimas, mais importantes, explicam a natureza de uma coisa. Essa opinião foi sustentada pelos filósofos antigos e por seus seguidores, com exceção dos nominalistas; mas como o espírito da metafísica moderna, até época recente, tem sido nominalista, a noção das definições de coisas esteve, até certo ponto, pendente, ainda continuando, todavia, a alimentar confusão na lógica, mais por suas consequências do que por si mesma, Porém, a doutrina, na sua forma apropriada, de vez em quando irrompe; encontramo-la, mais ou menos inesperadamente, numa obra com justiça admirada, a Lógica do arcebispo Whately. Num exame desta obra (Westminster Review, janeiro de 1828), contendo algumas opiniões que abandonei, encontro as seguintes observações que ainda conservo sobre a questão que agora está diante de nós: "A distinção entre definições reais e nominais, entre definições de palavras e o que se chama de definições de coisas, embora concordante com as ideias da maioria dos lógicos aristotélicos, não pode, parece-nos, ser mantida. Entendemos que nenhuma definição alguma vez pretendeu explicar e revelar a natureza de uma coisa. De certa forma confirma nossa opinião o fato de que nenhum desses autores que acreditaram haver definições de coisas conseguiu descobrir um critério pelo qual a definição de uma coisa pudesse distinguir-se de qualquer outra proposição relativa à coisa. A definição, dizem, revela a natureza da coisa; mas nenhuma definição pode revelar sua natureza completa; e toda proposição, na qual se predica uma qualidade qualquer da coisa, revela alguma parte da natureza da coisa. Achamos ser este o verdadeiro ponto de vista. Todas as definições são definições de nomes, e apenas de nomes, mas, em algumas definições, é claramente visível que se pretende apenas explicar o sentido da palavra, enquanto em outras, além de explicar a significação da palavra, pretende-se que esteja implícita a existência de uma coisa correspondente à palavra. Se isso está ou não implícito em algum determinado caso, não se pode deduzir de uma simples forma de expressão. 'Um centauro é um animal com as partes superiores de um homem e as partes inferiores de um cavalo' e 'Um triângulo é uma figura retilínea com três lados' são, na forma, expressões exatamente semelhantes, embora na primeira não esteja implícito que alguma coisa correspondente ao termo realmente existe, enquanto na segunda está, como se pode ver substituindo em ambas as definições a palavra significa por é. Na primeira expressão 'Um centauro significa um animal', etc., a significação permaneceria inalterada; na segunda, 'Um triângulo significa', etc., a significação seria alterada, já que seria obviamente impossível deduzir qualquer uma das verdades da geometria de uma proposição que expresse apenas a maneira pela qual pretendemos empregar um signo determinado. "Há, portanto, expressões que comumente passam por definições, que incluem em si mesmas mais do que a mera explicação da significação de um termo. Mas não é correto chamar uma expressão desse tipo de uma espécie peculiar de definição. A diferença com relação à outra espécie é justamente esta: não é apenas uma definição, mas uma definição e algo mais. A definição de triângulo dada acima obviamente compreende não uma, mas duas proposições, perfeitamente distinguíveis. Uma é: 'Pode existir uma figura, limitada por três linhas retas'; a outra é: 'E essa figura pode ser denominada um triângulo'. A primeira delas não é em absoluto uma definição; a última é uma definição meramente nominal, ou a explicação do uso e aplicação de um termo. A primeira é suscetível de verdade ou falsidade e pode, portanto, tornar-se fundamento de uma sequência de raciocínios. A segunda não pode ser nem verdadeira nem falsa; sua única característica é a da conformidade ou não-conformidade com o uso ordinário da linguagem". Há uma distinção real, pois, entre definições de nomes e o que se chama erroneamente de definições de coisas; mas esta diferença consiste em que estas últimas afirmam ao mesmo tempo tacitamente a significação de um nome, e ocultamente um fato. Essa afirmação oculta não é uma definição, e sim um postulado. A definição é uma simples proposição idêntica que informa apenas com respeito ao uso da língua e da qual não se pode tirar nenhuma conclusão relativa aos fatos. O postulado que a acompanha, por outro lado, afirma um fato que pode conduzir a consequências mais ou menos importantes. Ele afirma a existência real ou possível de coisas que possuem a combinação de atributos declarada na definição, e isto, se verdadeiro, pode ser o fundamento suficiente de todo um edifício de verdades científicas. ( ... ) Para salvar o crédito do princípio de que as definições são as premissas do conhecimento científico, acrescenta-se às vezes a ressalva de que o são apenas sob uma determinada condição, a saber, que sejam formadas de conformidade com os fenômenos da natureza; isto é, que atribuam aos termos significações tais que correspondam a objetos realmente existentes. Mas isto é só um exemplo da tentativa tantas vezes feita de evitar a necessidade de abandonar a velha linguagem depois que as ideias que expressa foram trocadas por ideias contrárias. Da significação de um nome, dissemos, é possível inferir fatos físicos, desde que o nome tenha uma coisa existente que lhe é correspondente. Mas, se essa ressalva é necessária, de qual das duas a inferência é realmente tirada? Da existência de uma coisa que tenha as propriedades ou da existência de um nome que as significa? Tomemos, por exemplo, uma das definições estabelecidas como premissas nos Elementos de Euclides: a definição, digamos, de um círculo. Esta, analisada, consiste em duas proposições, uma sendo a suposição com respeito a um fato, e a outra, uma definição genuína. "Uma figura pode existir tendo todos os pontos da linha que a limita igualmente distantes de um único ponto dentro dela"; "Qualquer figura que possua essa propriedade é chamada um círculo". Vejamos uma das demonstrações que, diz-se, dependem dessa definição e observemos a qual das duas proposições contidas nela a demonstração realmente apela. "Em volta do centro A, descreva o círculo BCD". Aqui há a suposição de uma figura tal qual a definição expressa pode ser descrita, o que não é senão o postulado, ou suposição oculta, incluído na definição. Mas é absolutamente secundário saber se essa figura se chama ou não círculo. O objetivo seria atingido da mesma maneira, em todos os sentidos menos na brevidade, se disséssemos: "Do ponto B, trace uma linha retomando ao mesmo ponto e na qual todos os pontos devem estar a uma distância igual do ponto A". Diante disto, a definição de círculo desapareceria e se tornaria desnecessária, mas não o postulado contido nela; sem isso, a demonstração não poderia manter-se. Estando agora o círculo descrito, procedamos à consequência. "Se BCD é um círculo, o raio BA é igual ao raio CA". BA é igual a CA não porque BCD é um círculo, mas porque BCD é uma figura com os raios iguais. Nossa garantia para supor que uma tal figura em volta do centro A, com o raio BA, pode existir é o postulado. Pode-se discutir se a admissibilidade desses postulados repousa na intuição ou prova, mas, em ambos os casos, são premissas de que os teoremas dependem, e, enquanto estes forem mantidos, não haverá nenhuma diferença quanto à certeza das verdades geométricas, ainda que todas as definições de Euclides e todos os termos técnicos aí definidos fossem abandonados. ( ... ) 5. As definições, embora [sejam] apenas de nomes, devem fundamentar-se no conhecimento das coisas correspondentes Embora, de acordo com a opinião aqui apresentada, as definições sejam propriamente apenas de nomes e não de coisas, não se segue disso que são arbitrárias. Como definir um nome pode não apenas ser uma indagação de dificuldade e complexidade consideráveis, mas também envolver considerações que vão bem fundo na natureza das coisas que são denotadas pelo nome. Assim, por exemplo, são as indagações que formam os temas dos diálogos mais importantes de Platão, como "O que é a retórica?", o tema do Górgias, ou "O que é a justiça?", o tema da República. Assim também é a pergunta irônica de Pilatos: "O que é a verdade?", e a pergunta fundamental dos moralistas especulativos de todas as épocas: "O que é a virtude?" ( ... ) Embora a significação de todo nome concreto geral resida nos atributos que conota, os objetos foram nomeados antes dos atributos, como o prova o fato de que, em todas as línguas, os nomes abstratos são na grande maioria compostos ou derivados dos nomes concretos que lhes correspondem. Os nomes conotativos, portanto, foram, depois dos nomes próprios, os primeiros a serem usados, e, nos casos mais simples, sem dúvida nenhuma, uma conotação distinta estava presente nas mentes daqueles que primeiro usaram o nome, através do qual pretendiam se comunicar de maneira distinta. A primeira pessoa que usou a palavra branco, aplicada à neve ou a algum outro objeto, sabia, sem dúvida, muito bem que qualidade pretendia predicar e tinha uma concepção perfeitamente distinta do atributo significado pelo nome. Onde, porém, as semelhanças e diferenças sobre as quais nossas classificações estão fundadas não são de um tipo palpável e facilmente determinável, especialmente onde consistem não em uma só qualidade, mas em um número de qualidades cujos efeitos, estando misturados, não são muito facilmente discriminados e referidos cada um à sua verdadeira fonte, frequentemente acontece que se aplicam nomes a objetos nomeáveis sem uma conotação bem distinta e clara diante das mentes daqueles que os aplicam. São apenas influenciados por uma semelhança geral entre o novo objeto e todos ou alguns dos velhos objetos familiares que se habituaram a chamar por esse nome. Esta, como vimos, é a lei que segue a mente do filósofo ao dar nomes aos sentimentos simples e elementares de nossa natureza; mas, onde as coisas a serem nomeadas representam conjuntos complexos, um filósofo fica contente em perceber uma semelhança geral; examina em que consiste a semelhança, e dá o mesmo nome apenas a coisas que se assemelhem umas às outras nas mesmas particularidades determinadas. O filósofo, portanto, habitualmente emprega seus nomes gerais com conotação definida. Mas a linguagem não foi feita pelos filósofos, e estes só podem corrigi-la em uns poucos aspectos. Nas mentes dos árbitros reais da linguagem, os nomes gerais - especialmente onde as classes que denotam não podem ser levadas diante do tribunal dos sentidos exteriores para serem identificadas e discriminadas - conotam pouco mais do que uma vaga semelhança geral com as coisas que há muito tempo se acostumaram a chamar por aqueles nomes. Quando, por exemplo, pessoas comuns predicam as palavras justo ou injusto de alguma ação, nobre ou vil de algum sentimento, expressão ou comportamento, estadista ou charlatão de alguma personagem política, pretendem afirmar algum atributo determinado desses diversos sujeitos, ou algum atributo de qualquer espécie? Não; meramente reconhecem, como julgam, alguma semelhança, mais ou menos vaga e indefinida, entre essas e algumas outras coisas que estão acostumados a denominar ou a ouvir denominar por esses nomes. ( ... ) Sempre que a indagação sobre a definição do nome de algum objeto real consiste em algo mais.do que a mera comparação das autoridades, tacitamente supomos que se deve encontrar para o nome uma significação compatível com o fato de continuar denotando, se possível todas, mas, de qualquer forma, a maior parte, ou a mais importante, das coisas de que ele comumente é predicado. A indagação, portanto, sobre a definição é uma indagação sobre as semelhanças e diferenças entre essas coisas: se há alguma semelhança comum a todas; se não, sobre que fração delas se pode traçar uma semelhança geral; e, finalmente, quais são os atributos comuns, cuja posse dá a todas, ou a uma parte delas, o caráter de semelhança que as fez classificarem-se juntas. Quando esses atributos comuns tiveram sido apurados e especificados, o nome comum aos objetos que se assemelham adquire uma conotação distinta (em vez de uma conotação vaga) e torna-se suscetível de definição. ( ... ) LIVRO III DA INDUÇÃO "Segundo a doutrina aqui estabelecida, o objetivo mais alto, ou melhor, o único objetivo próprio da física é constatar as conjunções constantes de eventos sucessivos, que constituem a ordem do universo; registrar os seus fenômenos oferecidos às nossas observações, ou revelados aos nossos experimentos; e referir esses fenômenos a suas leis gerais." D. Stewart, Elements of the Philosophy of the Human Mind (Elementos de Filosofia da Mente Humana). vol. I, capo IV, seção 1. "Em tais casos, pode-se dizer que os métodos indutivo e dedutivo andam de mãos dadas, um verificando as conclusões deduzidas pelo outro; e a conjunção de experimento e teoria, que assim pode vir a suceder nesses casos, forma uma máquina de descoberta infinitamente mais poderosa que os dois tomados separadamente. Essa situação de qualquer ramo da ciência é, talvez, a mais importante de todas. e a que mais promete para a pesquisa." Sir J. Herschel, Discourse on the Study of Natural Philosophy (Discurso sobre o Estudo da Filosofia Natural). CAPÍTULO I Observações preliminares sobre a indução em geral 1. A importância de uma lógica indutiva A parte que vamos abordar agora pode ser considerada a principal, tanto pelo fato de superar em complexidade todas as outras, como porque diz respeito a um procedimento (que foi mostrado no livro precedente) que constitui essencialmente a investigação da natureza. Descobrimos que toda inferência, consequentemente toda prova, e toda descoberta de verdades não-evidentes em si mesmas, consiste em induções e na interpretação de induções; que todo o nosso conhecimento não-intuitivo provém exclusivamente dessa fonte. O que é a indução, portanto, e que condições a tornam legítima devem ser consideradas a principal questão da ciência da lógica - a questão que inclui todas as outras. ( ... ) 2. A lógica da ciência é também a da vida humana e da prática Para os propósitos do presente ensaio, pode-se definir a indução como: a operação de descobrir e provar proposições gerais. É verdade que, como já vimos, o procedimento de constatar indiretamente fatos individuais é tão verdadeiramente indutivo quanto aquele pelo qual estabelecemos verdades gerais. Mas não é uma espécie diferente de indução e sim uma forma do mesmo procedimento, já que, de um lado, o geral é apenas coleção de particulares, definidos em espécie, mas indefinidos em número, e, por outro lado, sempre que a evidência resultante da observação de casos conhecidos nos permitisse tirar uma inferência até de um caso desconhecido, deveríamos, sobre a mesma evidência, poder tirar uma inferência semelhante com respeito a toda uma classe de casos. Ou a inferência não vale de maneira nenhuma, ou então vale para todos os casos de uma determinada espécie, em todos os casos que, em determinados aspectos definíveis, se assemelham àqueles que observáramos. Se estas observações estão corretas, se os princípios e regras de inferência são os mesmos para as proposições gerais e os fatos particulares, segue-se que uma lógica completa das ciências deveria ser também uma lógica da ação prática e da vida ordinária. Desde que não há nenhum caso de inferência legítima a partir da experiência em que a conclusão não possa ser legitimamente uma proposição geral, uma análise do procedimento pelo qual se alcançam verdades gerais é virtualmente uma análise de toda e qualquer indução. Quer se trate de um princípio científico ou um fato particular, e quer procedamos por experimentação ou por raciocínio, cada passo na sucessão de inferências é essencialmente indutivo, e a legitimidade da indução depende, em ambos os casos, das mesmas condições. Verdade é que no caso do pesquisador prático que procura constatar fatos não para os propósitos da ciência, mas para os de um ofício qualquer, como, por exemplo, o advogado ou o juiz, a dificuldade principal é que os princípios da indução não lhe fornecem nenhuma assistência. A dificuldade não é fazer induções, mas escolhê-las; é preciso escolher, entre todas as proposições gerais reconhecidas como verdadeiras, as que fornecem sinais pelos quais se possa determinar se um dado sujeito possui ou não o predicado em questão. Discutindo uma questão de fato duvidosa ante um júri, as proposições gerais ou princípios a que o advogado apela são, na maioria das vezes, em si mesmas, suficientemente comuns para serem admitidas imediatamente depois de afirmadas; sua habilidade consiste em vincular o seu caso particular àquelas proposições ou princípios, em recordar as máximas de probabilidade conhecidas ou aceitas que admitem a aplicação ao caso em questão, e selecionar as que melhor se adaptem ao seu objetivo. O sucesso aqui depende da sagacidade natural ou adquirida, ajudada pelo conhecimento do assunto em questão e pelos que lhe são associados. A invenção, embora possa ser cultivada, não pode se reduzir a regras; não há nenhuma ciência que possa tornar um homem capaz de decidir o que convirá aos seus propósitos. Mas, quando ele pensou em algo, a ciência pode dizer-lhe se aquilo em que pensou convirá ou não aos seus propósitos. O investigador ou argumentador deve se guiar pelo seu próprio conhecimento e sagacidade na escolha das induções com que construirá sua argumentação. O argumento, porém, uma vez construído, depende de princípios e deve ser provado por critérios iguais para todos os tipos de pesquisa, quer o resultado seja dar a A uma propriedade, ou enriquecer a ciência com uma nova verdade geral. Em ambos os casos, os sentidos ou os testemunhos devem decidir sobre os fatos individuais; as regras do silogismo irão determinar se - supondo-se corretos aqueles fatos - o caso realmente entra dentro das fórmulas das diferentes induções sob as quais foi sucessivamente conduzido; e, finalmente, a legitimidade das próprias induções deve ser decidida por outras regras, e são estas que nos propomos agora a investigar. Se esta terceira parte da operação é, em muitas das questões da vida prática, não a mais, mas a sua parte menos árdua, vimos que este é também o caso em alguns dos grandes ramos da ciência, em todos aqueles que são principalmente dedutivos, e acima de tudo na matemática, onde as próprias induções são pouco numerosas e tão evidentes e elementares que parecem não necessitar de nenhuma prova da experiência, enquanto combiná-las de tal maneira que provem um dado teorema ou solucionem um problema pode exigir as faculdades máximas de invenção com que nossa espécie foi dotada. ( ... ) CAPÍTULO II Das induções assim impropriamente chamadas 1. As induções, distintas das transformações verbais A indução, assim definida, é um procedimento por inferência; vai do conhecido para o desconhecido; e qualquer operação que não implique uma inferência, qualquer procedimento no qual aquilo que parece conclusão não se estende além das premissas de que é tirada, não entram na significação do termo. Entretanto, ainda encontramos isto nos livros comuns de lógica formulado como a forma de indução mais perfeita, na verdade a única absolutamente perfeita. Nesses livros, todo procedimento que vai de uma expressão menos geral a uma expressão mais geral - que permite se estabeleça a fórmula: "Este A e este A são B, portanto todo A é B" - é chamado indução, quer algo seja ou não realmente concluído; e a indução só será considerada perfeita se cada indivíduo da classe A estiver incluído no antecedente, ou premissa, isto é, se aquilo que afirmarmos da classe já tiver sido reconhecido como verdadeiro de cada indivíduo da classe, de tal maneira que a conclusão nominal não será realmente uma conclusão, mas uma simples reafirmação das premissas. Se dissermos "Todos os planetas brilham pela luz do sol", a partir da observação de cada planeta separado, ou "Todos os apóstolos eram judeus", porque isto é verdadeiro de Pedro, João, Paulo e de todos os outros apóstolos - estas, e outras iguais, serão, na terminologia em questão, chamadas induções perfeitas, e as únicas perfeitas. Esta, todavia, é uma espécie de indução totalmente diferente da nossa; não é uma inferência de fatos conhecidos para fatos desconhecidos, mas um mero agenciamento de fatos conhecidos. Os dois pretendidos argumentos não são generalizações; as proposições que passam por conclusões deles não são na realidade proposições gerais. Proposição geral é aquela na qual o predicado é afirmado ou negado de um número ilimitado de indivíduos, isto é, todos, poucos ou muitos, existentes ou possíveis, os que possuam as propriedades conotadas pelo sujeito da proposição. "Todos os homens são mortais" não significa todos os que vivem agora, mas todos os homens passados, presentes e futuros. Quando a significação do termo é tão limitada que o torna um nome não para qualquer um e para todo indivíduo que se encaixa numa determinada descrição geral, mas apenas para um número determinado de indivíduos designados como tais e enumerados um a um, a proposição, embora geral pela expressão, não é uma proposição geral, mas somente o total de proposições singulares escritas de forma abreviada. A operação pode ser muito útil, como a maioria das formas de notações abreviadas o são, mas não faz parte da investigação da verdade, embora muitas vezes represente importante papel na preparação de materiais para essa investigação. Assim como podemos resumir um número definido de proposições singulares em uma proposição que será aparentemente, mas não realmente, geral, da mesma maneira podemos resumir um número definido de proposições gerais em uma proposição que será aparentemente, mas não realmente, mais geral. Se, através de uma indução isolada aplicada a cada espécie distinta de animais, estabeleceu-se que cada uma possui um sistema nervoso, e afirmamos por isso que todos os animais têm um sistema nervoso, isso aparenta ser uma generalização; embora, como a conclusão afirma de todos o que já fora afirmado de cada um, pareça que nos informa apenas o que já conhecíamos antes. Deve-se fazer, todavia, uma distinção. Se, concluindo que todos os animais têm um sistema nervoso, o que queremos dizer não é nada mais do que se disséssemos "Todos os animais conhecidos", a proposição não é geral, e o procedimento pelo qual é alcançada não é uma indução. Mas, se o que queremos dizer é que as observações feitas das diversas espécies de animais nos revelaram uma lei da natureza animal, e podemos dizer que um sistema nervoso se encontrará mesmo em animais ainda não descobertos, isto na verdade é uma indução; mas, neste caso, a proposição geral contém mais do que a soma das proposições especiais das quais é inferida. Essa distinção parece ainda mais necessária quando consideramos que, se essa generalização real é absolutamente legítima, sua legitimidade provavelmente não requer que devêssemos ter examinado todas as espécies conhecidas sem exceção. É o número e a natureza dos fatos - e não o conjunto de todos aqueles que por acaso são conhecidos - que tornam os indícios suficientes para provar uma lei geral; ao passo que a afirmação mais limitada, que se detém em todos os animais conhecidos, não pode ser feita sem que a tenhamos constatado rigorosamente em todas as espécies. De maneira semelhante (para voltar a um exemplo anterior), deveríamos ter inferido não que todos os planetas, mas que todo planeta brilha por uma luz refletida; a primeira não é indução, a última é uma indução, e má, pois é refutada pelo caso das estrelas duplas - corpos que têm luz própria e que são, no entanto, planetas, porque giram em torno de um centro. 2. - e das descrições Resta [um outro] uso impróprio do termo indução que é realmente importante esclarecer. Este uso tem engendrado uma grave confusão na teoria da indução, exemplificada nos mais recentes e bem elaborados tratados sobre a filosofia indutiva que existem em nossa língua. O erro em questão é o de confundir uma mera descrição, por meio de termos gerais, de um grupo de fenômenos observados com uma indução tirada desses fenômenos. Suponhamos que um fenômeno se compõe de partes, e que essas partes só podem ser observadas separadamente, e, obviamente, uma a uma. Quando as observações tiverem sido feitas, haverá a conveniência (atingindo, conforme os objetivos, a uma necessidade) de obter uma representação do fenômeno como um todo, combinando, ou, de algum modo, juntando esses fragmentos separados. Um navegante percorrendo o oceano descobre terra; não pode a princípio, ou por uma simples observação, determinar se é um continente ou uma ilha, mas a costeia e, depois de alguns dias, descobre ter feito a volta completa ao seu redor; então, declara-a uma ilha. Ora, não houve um momento ou lugar específico de observação em que pudesse perceber essa terra completamente cercada de água; apurou o fato por meio de uma sucessão de observações parciais e, então, escolheu uma expressão geral que resume em duas ou três palavras o conjunto do que observara. Mas há algo da natureza de uma indução nesse procedimento? Ele inferiu alguma coisa que não tinha sido observada de uma outra que o tinha sido? Certamente não: tinha observado tudo o que a proposição afirma. Que a terra em questão é uma ilha não é uma inferência dos fatos parciais que o navegante viu no curso de sua circunavegação; ela é os próprios fatos; é um resumo desses fatos, a descrição de um fato completo em relação ao qual fatos mais simples são como as partes de um todo. Parece-me que não há diferença em espécie entre esta simples operação e aquela pela qual Kepler determinou a natureza das órbitas planetárias; e a operação de Kepler (Pelo menos tudo aquilo que era característico nela) não foi um ato mais indutivo do que o do nosso suposto navegante. O objetivo de Kepler era determinar a órbita real descrita por cada um dos planetas, ou, digamos, pelo planeta Marte (já que foi deste que efe primeiro estabeleceu duas de suas três leis que não exigiam comparação entre planetas). Para fazer isso, o único meio era a observação direta, e tudo o que a observação poderia fornecer era apurar um grande número de posições sucessivas do planeta, ou melhor, de suas posições aparentes. Que o planeta ocupava sucessivamente todas essas posições ou, em todo caso, posições que produziam as mesmas impressões aos olhos, e passava de uma dessas posições para outra imperceptivelmente e sem qualquer quebra aparente de continuidade, tudo isto os sentidos, com a ajuda dos instrumentos apropriados, poderiam constatar. O que Kepler fez além disso foi descobrir que espécie de curva esses diferentes pontos deveriam fazer, supondo-os unidos. Ele expressou toda a série das posições de Marte observadas por meio do que o dr. Whewell chama a concepção geral de uma elipse. Esta operação estava longe de ser tão fácil quanto a do navegante que expressou a série de suas observações sobre pontos sucessivos da costa pela concepção geral de ilha. Mas é a mesma espécie de operação, e, se uma não é indução, mas descrição, o mesmo deve ser verdadeiro com respeito à outra. A única indução real no caso consistiu em inferir que, porque as posições observadas de Marte estavam representadas corretamente por pontos em uma elipse imaginária, portanto Marte iria continuar a se movimentar naquela mesma elipse, e concluir (antes de se ter preenchido a lacuna com observações ulteriores) que as posições do planeta no espaço de tempo que se estendia entre duas observações deveriam ter coincidido com os pontos intermediários da curva. Pois estes eram fatos que não tinham sido observados diretamente. Eram inferências a partir de observações, fatos inferidos, enquanto distintos de fatos vistos. Estas inferências, porém, estavam tão longe de serem uma parte da operação filosófica de Kepler que já tinham sido tiradas muito antes de ele nascer. Os astrônomos já sabiam desde muito tempo que os planetas voltavam periodicamente às mesmas posições. Uma vez que isso tinha sido apurado, nenhuma indução havia sido deixada para Kepler fazer, nem ele fez qualquer indução posterior, mas simplesmente aplicou sua nova concepção aos fatos inferidos, como o fez com os fatos observados. Sabendo já que os planetas continuavam a se mover nas mesmas órbitas, quando descobriu que uma elipse representava corretamente a órbita passada, entendeu que essa elipse representaria a órbita futura. Descobrindo uma expressão abreviada para um dos grupos de fatos, descobriu uma para o outro grupo; mas descobriu a expressão apenas, não a inferência, nem acrescentou (o que é a verdadeira pedra de toque de uma verdade geral) nada ao poder de predição que se possuía antes. 3. Exame da teoria da indução do dr. Whewell O dr. Whewell chamou adequadamente de "coligação de fatos” a operação descritiva que permite que uma multidão de observações parciais seja resumida em uma única proposição. Concordo plenamente com a maioria de suas observações com respeito a esse procedimento mental e com prazer transferiria toda essa parte do seu livro para minhas próprias páginas. Penso, apenas, que se enganou ao estabelecer essa espécie de operação - que, de acordo com a significação antiga e reconhecida do termo, não é absolutamente indução - como o tipo de indução em geral, e ao apresentar, no decorrer da sua obra, como princípios de indução os princípios da simples coligação. O dr. Whewell sustenta que a proposição geral que une os fatos particulares e os reduz, por assim dizer, a um só fato não é a simples soma desses fatos, mas algo mais, já que é introduzida uma concepção da mente que não existia nos fatos em si. "Os fatos particulares", diz, "não são simplesmente reunidos, mas há um novo elemento acrescentado à combinação por meio do verdadeiro ato de pensar pelo qual são reunidos. (...) Quando os gregos, depois de observarem durante muito tempo os movimentos dos planetas, julgaram que esses movimentos deveriam ser corretamente considerados como produzidos pelo movimento de uma roda que girava no interior de uma outra roda, essas rodas eram criações de suas mentes, acrescentadas aos fatos que perceberam através dos sentidos. E mesmo se as rodas não mais fossem consideradas materiais, mas reduzidas a simples esferas ou círculos geométricos, continuariam sendo produtos da mente e algo ajuntado aos fatos observados. O caso é idêntico em todas as outras descobertas. Os fatos são conhecidos, mas isolados e desconexos, até que o descobridor fornece de seu próprio depósito um princípio de conexão. As pérolas estão lá, mas não formarão o colar até que alguém providencie o fio." Quero observar, em primeiro lugar, que o dr. Whewell, nesta passagem, mistura, indiscriminadamente, exemplos dos dois procedimentos que estou me empenhando em distinguir. Quando os gregos abandonaram a suposição de que os movimentos planetários eram produzidos pela revolução de rodas materiais e recorreram à ideia de "meras esferas ou círculos geométricos", havia nessa mudança de opinião mais do que uma simples substituição de uma curva física por uma curva ideal. Houve o abandono de uma teoria e sua substituição por uma mera descrição. Ninguém iria pensar em chamar a doutrina das rodas materiais de uma simples descrição. Essa doutrina era uma tentativa de assinalar a força pela qual os planetas eram influenciados e compelidos a moverem-se em suas órbitas. Mas quando - a filosofia deu aí um grande passo - as rodas materiais foram rejeitadas e se mantiveram só as formas geométricas, a tentativa de explicar os movimentos foi abandonada, e restou da teoria uma mera descrição das órbitas. A afirmativa de que os planetas eram movidos circularmente por rodas girando no interior de outras rodas deu lugar à proposição de que se moviam nas mesmas linhas que seriam traçadas por corpos assim movidos, o que era simplesmente uma maneira de representar a soma dos fatos observados, assim como a de Kepler era uma outra e a melhor maneira de representar as mesmas observações. É verdade que para estas operações simplesmente descritivas, assim como para as falsas operações indutivas, exigia-se uma concepção mental. A concepção de uma elipse deve ter-se apresentado à mente de Kepler antes que pudesse identificar a órbita planetária com ela. De acordo com o dr. Whewell, a concepção era algo acrescentado aos fatos. Ele se expressa como se Kepler tivesse colocado alguma coisa nos fatos pela sua maneira de concebê-los. Mas Kepler não fez tal coisa. A elipse estava nos fatos antes que a reconhecesse, exatamente como a ilha era uma ilha antes que alguém tivesse navegado em sua volta. Kepler não colocou o que concebera nos fatos, mas viu isso neles. Uma concepção implica e corresponde a algo concebido; e, embora a própria concepção não esteja nos fatos, mas em nossa mente, se deve fornecer algum conhecimento relativo a esses fatos, deve ser uma concepção de algo que realmente esteja nos fatos, alguma propriedade que os fatos realmente possuam e que manifestariam aos nossos sentidos se estes fossem capazes de tomar conhecimento dela. Se, por exemplo, um planeta deixasse atrás de si no espaço um rastro visível, e se o observador estivesse em uma posição fixa a uma distância do plano da órbita tal que lhe permitisse vê-la toda de uma só vez, ele a veria como uma elipse; e se estivesse munido de instrumentos apropriados e poderes de locomoção, poderia provar isso medindo suas diferentes dimensões. Ainda mais, se o rastro fosse visível e o observador estivesse colocado de tal maneira que pudesse ver todas as suas partes sucessivamente, mas não ao mesmo tempo, ele deveria ser capaz de descobrir, juntando as observações sucessivas, tanto que era uma elipse como que o planeta se movia nesta elipse. O caso, então, se assemelharia exatamente ao do navegante que descobre que a terra é uma ilha percorrendo toda a sua volta. Acho que, se a órbita fosse visível, ninguém contestaria que identificá-la com uma elipse é descrevê-la; e não vejo por que se deveria fazer alguma diferença por ela não ser diretamente um objeto dos sentidos, quando cada um de seus pontos é tão exatamente determinável como se ela o fosse. Sujeita à condição indispensável que acaba de ser indicada, não concebo que a parte que as concepções têm no estudo dos fatos tenha sido negligenciada ou subestimada. Ninguém jamais contestou que para raciocinar sobre alguma coisa devemos ter uma concepção dela, ou que, quando incluímos uma grande quantidade de objetos sob uma expressão geral, está implícita na expressão uma concepção de algo comum a esses objetos. Mas daí não se segue de maneira nenhuma que a concepção é necessariamente pré-existente ou construída pela mente com seus próprios materiais. Se os fatos são corretamente classificados sob a concepção, é porque há nos próprios fatos algo de que a própria concepção é uma cópia. E se não podemos perceber diretamente, é por causa do poder limitado dos nossos órgãos e não porque a própria coisa não está lá. A própria concepção às vezes é obtida por abstração dos próprios fatos, que ela deverá, na linguagem do dr. Whewell, posteriormente reunir e condensar. Isto ele próprio admite, quando observa (o que faz em diversas ocasiões) que grande serviço prestaria à ciência da fisiologia o filósofo "que desse uma definição precisa, convincente e consistente da vida". Uma tal concepção só pode ser abstraída dos fenômenos da própria vida, dos próprios fatos que ela é encarregada de unir. Em outros casos, sem dúvida, em vez de tirar a concepção dos próprios fenômenos que estamos tentando coligar, nós a selecionamos entre as que previamente foram extraídas por abstração de outros fatos. O exemplo das leis de Kepler está neste último caso. Os fatos sendo de tal natureza que não podem ser observados de modo a permitir aos sentidos identificar diretamente a órbita do planeta, a concepção exigida para formar uma descrição geral daquela órbita não poderia ser tirada por abstração das próprias observações; a mente teria que providenciar hipoteticamente, entre as concepções que tivesse obtido de outras partes de sua experiência, alguma que representasse corretamente a série dos fatos observados. Teria que fazer uma suposição com respeito ao curso geral do fenômeno e perguntar a si mesma: "Se esta é a descrição, quais serão os detalhes?", e, então, comparar estes com os detalhes realmente observados. Se concordarem, a hipótese servirá para a descrição do fenômeno; se não, será necessariamente abandonada, e uma outra será tentada. São os casos desse tipo que fazem surgir a doutrina de que a mente, ao formar as descrições, acrescenta algo de si própria que não se encontra nos fatos. Entretanto, é seguramente um fato que o planeta descreve uma elipse, e um fato que veríamos se tivéssemos adequados órgãos visuais e uma posição apropriada. Privado dessas vantagens, mas possuindo a concepção de uma elipse, ou (menos tecnicamente) sabendo o que era uma elipse, Kepler verificou se as posições observadas do planeta eram compatíveis com uma tal órbita. Descobriu que eram, e, consequentemente, afirmou como um fato que o planeta se movia em uma elipse. Mas este fato, que Kepler não acrescentou aos movimentos do planeta mas descobriu neles, isto é, que o planeta ocupava sucessivamente os vários pontos na circunferência de uma dada elipse, era o próprio fato cujas partes separadas tinham sido observadas separadamente; era a soma das diferentes observações. ( ... ) CAPÍTULO III Do fundamento da indução 1. Axioma da uniformidade do curso da natureza A indução propriamente dita - enquanto distinta das operações mentais, muitas vezes designadas, embora impropriamente, por esse nome, que tentei caracterizar no capítulo precedente - pode, pois, ser resumidamente definida como generalização da experiência. Consiste em inferir, de alguns casos particulares em que um fenômeno é observado, que ocorrerá em todos os casos de uma determinada classe, isto é, em todos os casos que se assemelham aos primeiros enquanto são consideradas suas circunstâncias essenciais. De que maneira as circunstâncias essenciais se distinguem das que não o são, ou por que algumas das circunstâncias são essenciais e outras não, ainda não estamos preparados para explicar. Devemos primeiro observar que há um princípio implicado na própria afirmação do que é uma indução; uma suposição com respeito ao curso da natureza e à ordem do universo, a saber, que há na natureza coisas tais como casos paralelos; que o que acontece uma vez deverá, sob um grau suficiente de similaridade de circunstâncias, acontecer novamente, mas tantas vezes quantas as mesmas circunstâncias tornarem a suceder. E, se consultarmos o curso atual da natureza, aí encontraremos sua garantia. O universo, tanto quanto o conhecemos, é constituído de maneira tal que tudo o que é verdadeiro em um caso de determinada natureza é também verdadeiro para todos os casos da mesma natureza; a única dificuldade é descobrir qual é esta natureza. Este fato universal, que é nossa garantia para todas as inferências da experiência, foi descrito pelos filósofos com diferentes termos: uns dizem que o curso da natureza é uniforme; outros, que o universo é governado por leis gerais; e outras expressões semelhantes. ( ... ) Qualquer que seja a maneira mais apropriada de expressá-la, a proposição de que o curso da natureza é uniforme é o princípio fundamental, o axioma geral da indução. Porém, seria um grave erro apresentar essa vasta generalização como uma explicação do procedimento indutivo. Pelo contrário, considero-o como um exemplo de indução, e não é das mais fáceis e evidentes. Longe de ser a primeira indução que fazemos, é uma das últimas, ou, em todo caso, uma das últimas a atingir a estrita exatidão filosófica. Como máxima geral, na verdade, só entra nas mentes dos filósofos; nem mesmo estes, como teremos muitas oportunidades de observar, conceberam com muita exatidão sua extensão e limites. A verdade é que esta vasta generalização é ela própria fundada em generalizações anteriores. E é através dela que as leis mais obscuras da natureza foram descobertas, mas mais óbvias devem ter sido compreendidas e reconhecidas como verdades gerais antes que se tivesse notícia dela. Nunca teríamos pensado em afirmar que todos os fenômenos ocorrem de acordo com leis gerais se não tivéssemos primeiro chegado, no caso de uma grande quantidade de fenômenos, a algum conhecimento das próprias leis, o que só se poderia fazer através da indução. Em que sentido, pois, pode um princípio, que está tão longe de ser nossa primeira indução, ser considerado como nossa garantia para todos os demais? No único sentido em que, como já vimos, as proposições gerais colocadas no topo de nossos raciocínios quando formulados como silogismos sempre contribuem realmente para sua validade. Como o arcebispo Whately observa, toda indução é um silogismo cuja premissa maior é suprimida; ou (como preferiria dizer), toda indução pode ser colocada na forma silogística introduzindo-se a premissa maior. Se isto realmente for feito, o princípio em questão - o da uniformidade do curso da natureza - aparecerá como a última premissa maior de todas as induções e, portanto, terá, com todas as induções, a mesma relação que, como tão longamente tem sido mostrado, a premissa maior de um silogismo sempre terá com a conclusão, não contribuindo em absoluto para prová-la, mas sendo condição necessária para que seja provada, já que não se prova nenhuma conclusão se não se .acha uma premissa maior verdadeira para fundá-la. Pode-se pensar que a afirmação de que a uniformidade do curso da natureza é a última premissa maior em todos os casos de indução exige alguma explicação. Certamente ela não é a premissa maior imediata em todo argumento- indutivo. Nisto, a explicação do arcebispo Whately deve ser considerada correta. A indução "João, Pedro, etc., são mortais, portanto todos os homens são mortais" pode, como ele diz justamente, ser transformada em um silogismo antepondo-se como uma premissa maior (o que é, de resto, uma condição necessária da validade do argumento) que o que é verdadeiro de João, Pedro, etc., é verdadeiro de todos os homens. Mas de onde nos vem essa premissa maior? Ela não é evidente em si mesma; e, além disso, em todos os casos de generalização não garantida, não é verdadeira. Como, então, é obtida? Necessariamente, ou pela indução, ou pelo raciocínio; e se por indução, o procedimento, como todos os demais argumentos indutivos, deve ser colocado em forma silogística. É necessário, portanto, construir esse silogismo preliminar. A prova real de que o que é verdadeiro de João, Pedro, etc. é verdadeiro de todos os homens só pode ser o fato de que uma suposição diferente seria incompatível com a uniformidade conhecida do curso da natureza. Saber se essa incompatibilidade existe ou não pode ser um assunto de longa e delicada pesquisa; mas se não existisse, não teríamos fundamento suficiente para a premissa maior do silogismo indutivo. Daí conclui-se que, se desenvolvermos um argumento indutivo em uma série de silogismos, deveremos chegar, em maior ou menor número de passos, a um último silogismo cuja premissa maior será o princípio ou axioma da uniformidade do curso da natureza. (Embora a uniformidade do curso da natureza seja condição da validade de toda indução, não é condição necessária que a uniformidade permeie toda a natureza. É suficiente que penetre na classe particular de fenômenos à qual a indução se refere. Uma indução relativa aos movimentos dos planetas ou das propriedades do ímã não será invalidada pela suposição de que o vento e a chuva sejam frutos do acaso, desde que se aceite que os fenômenos astronômicos e magnéticos estão sob o domínio de leis gerais. Sem isto, as experiências mais antigas da humanidade estariam apoiadas num fundamento muito fraco, pois na infância da ciência não se podia saber que todos os fenômenos têm um curso regular. Também não seria correto dizer que cada indução inferindo alguma verdade implica o conhecimento prévio do fato geral da uniformidade, mesmo com referência à espécie de fenômenos em questão. Ela implica ou que esse fato geral já é conhecido, ou que podemos conhecê-lo atualmente. Assim, a conclusão "O Duque de Wellington é mortal" tirada dos casos A, B e C implica ou que já concluímos que todos os homens são mortais, ou que estamos habilitados a fazê-lo partindo da mesma evidência. Estas simples considerações dissipariam grandes confusões e paralogismos a respeito dos fundamentos da indução). ( ... ) 2. Posição da questão da lógica indutiva Para melhor compreender o problema que o lógico deve resolver se quiser estabelecer uma teoria científica da indução, comparemos alguns casos de induções incorretas com outros reconhecidamente legítimos. Alguns, sabemos, que se acreditaram durante séculos serem corretos, eram, apesar de tudo, incorretos. A indução de que todos os cisnes são brancos não pode ter sido boa, já que a conclusão se tornou falsa. A experiência, todavia, sobre a qual se apoiava a conclusão era genuína. Desde os tempos mais remotos, o testemunho de todos os habitantes do mundo conhecido era unânime nesse ponto. A experiência constante, portanto, dos habitantes do mundo conhecido, chegando a um resultado comum, sem nenhum caso conhecido de desvio desse resultado, nem sempre é suficiente para estabelecer uma conclusão geral. Passemos agora a um caso que aparentemente não é diferente deste. Os homens estavam errados, parece, em concluir que todos os cisnes eram brancos; estamos também errados quando concluímos que todos os homens têm as cabeças acima de seus ombros e nunca abaixo, apesar do testemunho contrário do naturalista Plínio? Assim como havia cisnes pretos, embora os homens civilizados tenham existido durante três mil anos sobre a terra sem nunca ter encontrado um deles, não pode também haver "homens cujas cabeças estão colocadas abaixo de seus ombros", não obstante uma unanimidade não menos absoluta de testemunho negativo da parte dos observadores? A maioria das pessoas responderia não; é mais crível que um pássaro variasse em sua cor do que um homem variasse na posição relativa de seus órgãos principais. E não há nenhuma dúvida de que, assim dizendo, estariam certas; mas seria impossível dizer por que estão certas sem avançar mais do que se faz usualmente na verdadeira teoria da indução. Há casos, ainda, em que contamos com uma confiança inabalável na uniformidade, e outros em que não contamos com isso em absoluto. Em alguns, sentimos completa certeza de que o futuro se assemelhará ao passado, o desconhecido será exatamente semelhante ao conhecido. Em outros, conquanto invariáveis possam ser os resultados obtidos dos casos que observamos, não tiramos mais do que uma fraca presunção de que o mesmo resultado surgirá em todos os demais casos. Uma linha reta é a distância mais curta entre dois pontos - não duvidamos ser isto verdadeiro, mesmo na região das estrelas fixas. (A rigor, desde que a constituição de espaço atual permaneça. Temos amplas razões para acreditar que assim é na região das estrelas fixas). Quando um químico anuncia a existência e as propriedades de uma substância recentemente descoberta, se confiamos na sua precisão, sentimo-nos seguros de que as conclusões a que chegou serão mantidas universalmente, embora a indução esteja fundada em um único fato. Não negamos nosso assentimento, para esperar que a experiência se repita; ou, se o fazemos, é na dúvida de que a experiência tenha sido bem-feita, e não que, se bem-feita, seria conclusiva. Aqui, pois, está uma lei geral da natureza inferida sem hesitação de um único fato, uma proposição universal a partir de uma proposição singular. Observemos um outro caso e comparemos com este. Nem todos os casos que foram observados desde o começo do mundo em apoio à proposição geral de que todos os corvos são pretos seriam considerados uma presunção suficiente da verdade da proposição para superar a prova de uma testemunha irrepreensível afirmando que, em alguma região da terra ainda inexplorada, capturara e examinara um corvo e descobrira que era cinzento. Por que um único exemplo, em alguns casos, é suficiente para uma indução completa, enquanto, em outros, miríades de exemplos coincidentes, sem uma única exceção conhecida ou presumida, caminham tão pouco para o estabelecimento de uma proposição universal? Quem quer que possa responder a esta questão sabe mais da filosofia da lógica do que o mais sábio dos antigos e terá resolvido o problema da indução. CAPÍTULO IV Das leis da natureza 1. A regularidade geral da natureza é um tecido de regularidades parciais chamadas leis Considerando essa uniformidade no curso da natureza que é suposta em toda inferência a partir da experiência, uma das primeiras observações que se apresentam é a de que a uniformidade em questão não é propriamente uniformidade, mas uniformidades. A regularidade geral resulta da coexistência de regularidades parciais. O curso da natureza em geral é constante porque o curso de cada um dos diversos fenômenos que a compõem o é. Um determinado fato ocorre invariavelmente sempre que determinadas circunstâncias estão presentes e não ocorre quando estão ausentes; o mesmo é verdadeiro de um outro fato; e assim por diante. Dessas linhas distintas indo de uma parte para outra do grande todo que denominamos natureza inevitavelmente tece-se um tecido de conexão que mantém o todo. Se A sempre é acompanhado por D, B por E, e C por F, segue-se que AB é acompanhado por DE, AC por DF, BC por EF e, finalmente, ABC por DEF; e assim se estabelece o caráter geral de regularidade, que, juntamente com, e no meio da infinita diversidade, impregna toda a natureza. O primeiro ponto, portanto, a notar com respeito ao que é chamado a uniformidade do curso da natureza, é que ela própria é um fato complexo, composto de todas as uniformidades separadas de cada fenômeno. A essas diversas uniformidades, quando constatadas por aquilo que se considera uma suficiente indução, chamamos, na linguagem comum, leis da natureza. Cientificamente falando, essa expressão é empregada num sentido mais restrito para designar as uniformidades quando reduzidas à sua expressão mais simples. Assim, no exemplo precedente, havia sete uniformidades; todas, se consideradas suficientemente certas, seriam chamadas, na acepção mais ampla do termo, leis da natureza. Mas, das sete, apenas três são propriamente distintas e independentes; pressupondo-se estas, as outras seguem-se naturalmente. As primeiras três, portanto, no sentido rigoroso, são chamadas leis da natureza; as restantes não, porque são, na verdade, meros casos das três primeiras, virtualmente incluídas nelas, e consequentemente, diz-se que resultam delas; quem quer que afirme aquelas três já afirmou as demais. Substituindo os exemplos simbólicos por exemplos reais, eis três uniformidades, ou leis da natureza: a lei de que o ar tem peso, a lei de que a pressão de um fluido se propaga igualmente em todas as direções, e a lei de que a pressão em uma direção, não contrabalançada por uma pressão igual na direção contrária, produz um movimento que dura até que o equilíbrio seja restabelecido. A partir dessas três uniformidades, deveríamos ser capazes de predizer uma outra uniformidade, a saber, a ascensão do mercúrio no tubo de Torricelli. Esta, no uso mais estrito da expressão, não é uma lei da natureza. É o resultado de leis da natureza. É um caso de cada uma e de todas as três leis, e é apenas a ocorrência onde todas poderiam se realizar. Se o mercúrio não fosse mantido no barômetro, mas mantido a uma altura tal que a coluna de mercúrio fosse igual em peso a uma coluna de atmosfera do mesmo diâmetro, teríamos um caso ou do ar que não exerce pressão sobre a superfície do mercúrio com a força que é chamada seu peso, ou da pressão para baixo sobre o mercúrio que não se propaga igualmente em uma direção para o alto, ou de um corpo impulsionado em uma direção e não na direção oposta, quer não se movendo na direção em que é impulsionado, quer parando antes de atingir o equilíbrio. Se soubéssemos, portanto, as três simples leis, mas nunca tivéssemos tentado a experiência de Torricelli, poderíamos deduzir seu resultado dessas três leis. O peso conhecido do ar, combinado com a posição do instrumento, colocaria o mercúrio na primeira das três induções; a primeira indução o levaria à segunda, e a segunda à terceira, da maneira que caracterizamos quando tratamos do raciocínio. Chegaríamos assim a conhecer a uniformidade mais complexa, independentemente da experimentação específica, através do nosso conhecimento das uniformidades mais simples, de que ela é o resultado, embora, por razões que aparecerão depois, a verificação por uma experiência ad hoc fosse ainda desejável e talvez indispensável. As uniformidades complexas, que, como essa, são meros casos de uniformidades mais simples e, portanto, estão virtualmente afirmadas ao se afirmar aquelas, podem com propriedade ser chamadas leis, mas dificilmente poderiam, na linguagem estritamente científica, ser chamadas "leis da natureza". É praxe na ciência, sempre que uma regularidade de qualquer espécie pode ser traçada, chamar de lei a proposição geral que expressa a natureza dessa regularidade; como quando, na matemática, falamos da lei do decréscimo dos termos sucessivos de uma série convergente. Mas a expressão lei da natureza geralmente é empregada com uma espécie de referência tácita ao sentido original da palavra lei, isto é, a expressão da vontade de um superior. Quando, portanto, se tornou aparente que qualquer uma das uniformidades observadas na natureza deveria resultar espontaneamente de determinadas outras uniformidades, não se supondo necessariamente nenhum ato distinto de vontade criadora para a produção das uniformidades derivadas, estas não eram usualmente mencionadas como leis da natureza. Num outro modo de expressão, a pergunta: "Quais são as leis da natureza?" Pode ser assim colocada: "Quais são as suposições menos numerosas e mais simples que, sendo aceitas, delas resultaria toda a ordem existente da natureza?" Um outro modo de exprimi-la seria: "Quais são as proposições gerais menos numerosas a partir das quais todas as uniformidades da natureza poderiam ser inferidas dedutivamente?" ( ... ) 2. A indução científica deve ser fundada em induções prévias espontâneas Ao pretender constatar a ordem geral da natureza constatando a ordem particular de ocorrência de cada um dos fenômenos da natureza, o procedimento mais científico não pode ser senão uma forma aperfeiçoada daquele que primitivamente foi seguido pelo entendimento humano ainda não dirigido pela ciência. (...) Nenhuma ciência precisou ensinar que o alimento nutre, que a água mata a sede, que o sol dá luz e calor, que os corpos caem no solo. Os primeiros pesquisadores científicos admitiram estes fatos e outros semelhantes como verdades conhecidas e partiram delas para descobrir novas; não estavam errados ao proceder assim, sujeitos, todavia, como depois começaram a perceber, a uma revisão posterior dessas próprias generalizações espontâneas quando o progresso do conhecimento estabeleceu limites a elas ou lhes mostrou que sua verdade dependia de alguma circunstância originalmente não observada. A sequência de nossa pesquisa mostrará, penso, que não há nenhum vício lógico nesse modo de proceder; mas já podemos ver que qualquer outro modo é rigorosamente impraticável, já que é impossível instituir um método científico de indução, ou um meio de garantir a validade das induções, a não ser na hipótese de que algumas induções dignas de crédito já foram feitas. Voltemos ao exemplo já citado, e consideremos por que, com exatamente a mesma soma de provas, negativas e positivas, não rejeitamos a afirmação de que há cisnes pretos enquanto recusaríamos crédito a qualquer testemunho que afirmasse haver homens com a cabeça abaixo dos ombros. A primeira asserção era mais crível que a última. Mas por que mais crível? Se nenhum dos dois fenômenos realmente fora testemunhado, que razão havia para achar um mais difícil de acreditar que o outro? Aparentemente porque há menos constância na cor dos animais do que em sua estrutura geral anatômica. Como sabemos isto? Sem dúvida, pela experiência. É claro, pois, que necessitamos da experiência para informar-nos em que grau, e em quais casos, ou espécies de casos, pode-se contar com a experiência. É preciso consultar a experiência para saber dela em que circunstâncias os argumentos fundados em seu testemunho são válidos. Não temos nenhum critério ulterior para a experiência em geral: ela é seu próprio critério para si mesma. A experiência atesta que, entre as uniformidades que exibe ou parece exibir, algumas são mais admissíveis que outras; e a uniformidade, portanto, pode ser presumida de um número dado de exemplos com um grau de certeza tanto maior quanto os fatos pertençam a uma classe em que as uniformidades até então foram consideradas mais constantes. Essa maneira de retificar uma generalização por meio de outra, uma generalização mais restrita por uma mais ampla, que o senso comum sugere e adota na prática, é o tipo real de indução científica. Tudo o que essa arte pode fazer é apenas dar exatidão e precisão a esse procedimento e adaptá-lo a todas as variedades de casos sem qualquer alteração essencial nos seus princípios. (...) 3. Há induções próprias para servir de critério para todas as demais? (...) Pode-se afirmar, como princípio geral, que todas as induções, sólidas ou frágeis, que podem ser unidas pelo raciocínio se confirmam mutuamente, enquanto as que levam dedutivamente a consequências inconciliáveis tornam-se reciprocamente um índice certo de que uma ou outra deve ser abandonada ou, ao menos, expressa com mais reserva. No caso de induções que confirmam mutuamente, a que se torna conclusão silogística alcança pelo menos o nível de certeza da mais fraca das de que é deduzida, enquanto, em geral, a certeza de todas aumenta mais ou menos. Assim, a experiência de Torricelli, embora um simples caso de três leis mais gerais, não apenas reforçou grandemente a prova dessas leis, mas converteu uma delas (o peso do ar) de uma generalização ainda duvidosa em uma doutrina completamente demonstrada. Se, pois, um levantamento das uniformidades cuja existência foi reconhecida na natureza deveria estabelecer algumas que, tanto quanto qualquer objetivo humano exige certeza, pudessem ser consideradas absolutamente certas e universais, então, por meio dessas uniformidades, seremos capazes de elevar inúmeras outras induções a este grau de autoridade. Se, com efeito, podemos demonstrar, com respeito a qualquer inferência indutiva, que ou ela deve ser verdadeira ou uma dessas induções certas e universais deve admitir uma exceção, esta indução atingirá a certeza e, em seus limites, a indefectibilidade, que são atributos das outras. Provar-se-á que ela é uma lei e, se não um resultado de outras leis mais simples, será uma lei da natureza. Ora, há tais induções certas e universais; e é porque as há que é possível uma lógica da indução. CAPÍTULO V Da lei de causalidade universal 1. A lei universal dos fenômenos sucessivos é a lei de causalidade Os fenômenos da natureza existem em duas relações distintas uns com os outros: a da simultaneidade e a da sucessão. Todo fenômeno está relacionado, uniformemente, com alguns fenômenos que coexistem com ele e com fenômenos que o precederam e o seguirão. Das uniformidades que existem entre fenômenos sincrônicos, as mais importantes, em todos os casos, são as leis do número; e, ao lado delas, as do espaço ou, em outras palavras, as de extensão e de figura. As leis do número são comuns aos fenômenos sincrônicos e aos sucessivos. Que 2 mais 2 são 4 é igualmente verdadeiro, quer os segundos 2 sigam os primeiros 2 ou os acompanhem. É verdadeiro tanto a respeito de dias e anos quanto de pés e polegadas. As leis de extensão e de figura (em outras palavras, os teoremas de geometria, de suas ramificações mais baixas até as mais altas) são, ao contrário, leis de fenômenos simultâneos apenas. As diversas partes do espaço e dos objetos que são ditos preencher um espaço coexistem, e as leis invariáveis, que são o objeto da ciência da geometria, são a expressão do modo de sua coexistência. As leis, ou, em outras palavras, uniformidades desta classe não exigem, para serem compreendidas e provadas, a suposição de nenhum lapso de tempo, nenhuma variedade de fatos ou eventos sucedendo uns aos outros. As proposições de geometria são independentes da sucessão dos eventos. Todas as coisas que possuem extensão, ou, em outras palavras, que preenchem espaço, são submetidas às leis geométricas. Possuindo extensão, possuem figura; possuindo figura, devem possuir alguma figura particular e têm todas as propriedades que a geometria atribui a esta figura. Se um corpo é uma esfera e outro um cilindro de igual altura e diâmetro, o primeiro será exatamente dois terços do outro, seja qual for a natureza e qualidade do material. Ainda, cada corpo e cada ponto de um corpo deve ocupar algum lugar ou posição entre outros corpos, e a posição de dois corpos um em relação ao outro, seja qual for sua natureza, pode infalivelmente ser inferida da posição de cada um deles em relação a um terceiro. As leis do número, pois, e nas do espaço reconhecemos da maneira mais completa a rigorosa universalidade do que estamos tratando. Essas leis têm sido, em todas as épocas, o exemplo de certeza, o padrão de comparação para todos os graus inferiores de evidência. Sua invariabilidade é tão perfeita que nos torna incapazes mesmo de conceber-lhes uma exceção; e os filósofos foram levados, embora erroneamente (como tenho tentado demonstrar), a considerar sua evidência como assentação não na experiência, mas na constituição original do entendimento. Se, portanto, a partir das leis do espaço e do número somos capazes de deduzir uniformidades de qualquer espécie, isto deveria ser para nós a prova concludente de que as outras uniformidades possuem a mesma rigorosa certeza. Mas não podemos fazer isso. Das leis de espaço e número tão-somente se podem deduzir leis de espaço e número. De todas as verdades relativas aos fenômenos, as mais valiosas para nós são as que se referem à ordem de sua sucessão. Sobre o conhecimento delas se fundamenta toda antecipação racional de fatos futuros e qualquer poder que possuímos de influenciar esses fatos para nosso proveito. Mesmo as leis da geometria são, acima de tudo, de importância prática para nós, sendo uma parte das premissas das quais a ordem da sucessão dos fenômenos pode ser inferida. Visto que o movimento dos corpos, a ação de forças e a propagação de influências de toda sorte ocorrem em determinadas linhas e em espaços definidos, as propriedades dessas linhas e espaços são uma parte importante das leis a que esses próprios fenômenos estão sujeitos. Ainda movimentos, forças ou outras influências, e o tempo são quantidades numeráveis, e as propriedades do número lhes são aplicáveis como a todas as outras coisas. Mas, embora as leis do número e espaço sejam elementos importantes na determinação de uniformidades de sucessão, não podem fazer nada nesse sentido por si mesmas. Só podem se tornar instrumentos para esse fim quando as combinamos com outras premissas, que expressem uniformidades de sucessão já conhecidas. Tomemos, por exemplo, como premissas essas proposições: que corpos movidos por uma força instantânea seguem com velocidade uniforme em linha reta; que corpos movidos por uma força contínua seguem com velocidade acelerada em linha reta; e que corpos movidos por duas forças em direções opostas seguem na diagonal de um paralelogramo cujos lados representam a direção e a quantidade dessas forças. Podemos, então, combinando essas verdades com proposições relativas às propriedades das linhas retas e dos paralelogramos (que um triângulo, por exemplo, é a metade de um paralelogramo de mesma base e altura), deduzir outra importante uniformidade de sucessão, isto é, que um corpo que se move em volta de um centro de força descreve áreas proporcionais ao tempo. Mas, se não houvesse leis de sucessão em nossas premissas, não poderia haver leis de sucessão em nossas conclusões. Uma observação semelhante pode ser estendida a todas as outras classes particulares de fenômenos, e, se se tivesse levado isso em conta, teriam sido evitadas muitas tentativas quiméricas de demonstrações do indemonstrável e explicações que não explicam nada. Não é, portanto, suficiente para nós que as leis do espaço, que são apenas leis de fenômenos simultâneos, e as leis dos números, que embora verdadeiras dos fenômenos sucessivos não se referem a sua sucessão, possuam a certeza e universalidade rigorosas que estamos procurando. Trata-se de encontrar alguma lei de sucessão que tenha esses mesmos atributos e possa, portanto, tornar-se fundamento de procedimentos para descoberta e um critério para verificar todas as outras uniformidades de sucessão. Esta lei fundamental deve-se assemelhar às verdades da geometria na sua peculiaridade mais notável, qual seja, a de nunca serem, em absolutamente nenhum caso, anuladas ou suspensas por alguma mudança de circunstâncias. Ora, entre as uniformidades de sucessão dos fenômenos que a observação comum pode elucidar, há muito poucas que tenham alguma, mesmo aparente, pretensão a essa indefectibilidade rigorosa; e, dessas poucas, descobriu-se apenas uma capaz de sustentar inteiramente isso. Nesta, todavia, reconhecemos uma lei que é universal também em um outro sentido: é coextensiva a todo o campo dos fenômenos sucessivos, sendo todos e quaisquer casos de sucessão exemplos dela. Esta lei é a lei de causalidade. A verdade de que todo fato que tem um começo tem uma causa é coextensiva a toda a experiência humana. Esta generalização poderá não representar muito para algumas mentes, já que, no final das contas, afirma apenas isto: "É uma lei que todo evento depende de alguma lei"; "É uma lei que há uma lei para todas as coisas". Não devemos, todavia, concluir que a generalização do princípio é meramente verbal; demonstraremos que não é nenhuma afirmação vaga ou sem sentido, mas uma verdade da máxima importância e realmente fundamental. 2. - isto é, a lei de que todo consequente tem um antecedente invariável Sendo a noção de causa a raiz de toda a teoria da indução, é indispensável que esta ideia seja, no começo mesmo do nosso ensaio, fixada e determinada com o máximo grau de precisão possível. (...) Estabeleço [como premissa], pois, que, quando no decurso deste ensaio falo da causa de algum fenômeno, não quero dizer uma causa que não seja ela mesma um fenômeno; não me ocupo com a causa primeira ou ontológica do que quer que seja. Para adotar uma distinção familiar à escola escocesa, e especialmente a Reid, as causas com que me ocupo não são causas eficientes, mas físicas. São causas apenas no sentido em que se diz que um fato físico é causa de outro. A respeito das causas eficientes de fenômenos, ou se existem tais causas, não preciso dar uma opinião. A noção de causalidade, segundo as escolas de metafísica mais em voga atualmente, implica um liame misterioso e muito poderoso, de tal maneira que não pode existir, ou ao menos não existe, entre um fato físico e outro fato físico do qual é invariavelmente consequente e que popularmente é denominado sua causa; daí se deduz a suposta necessidade de ir mais alto, até as essências e a constituição íntima das coisas, para descobrir a causa verdadeira, a causa que não apenas é seguida pelo efeito, mas que realmente o produz. Não existe tal necessidade para os propósitos do presente ensaio, nem se encontrará tal doutrina nas páginas seguintes. A única noção de uma causa que a teoria da indução requer é uma noção tal que possa ser adquirida da experiência. A lei de causalidade, o reconhecimento de que é o pilar principal da ciência indutiva, é apenas a lei familiar encontrada pela observação da invariabilidade de sucessão entre um fato natural e algum outro fato que o precedeu, independentemente de todas as considerações a respeito do modo íntimo de produção de fenômenos e de qualquer outra questão a respeito da natureza das "coisas em si". (...) 3. A causa de um fenômeno é a reunião de suas condições É raro, se é que isso acontece alguma vez, que, entre um consequente e um único antecedente, subsista essa sequência invariável. Geralmente é entre um consequente e a soma de vários antecedentes, sendo exigida a concorrência de todos para produzir o consequente. Em tais casos, é muito comum separar-se apenas um dos antecedentes sob a denominação de causa, chamando os outros meramente de condições. Assim, se uma pessoa come uma determinada iguaria e morre em consequência disso, isto é, não teria morrido se não a tivesse comido, dir-se-ia que o fato de comer aquela iguaria foi a causa da morte. Não é necessário, todavia, que haja alguma conexão invariável entre comer a iguaria e a morte; mas há, certamente, entre as circunstâncias que ocorreram, uma ou outra combinação da qual a morte é invariavelmente consequente, como por exemplo, o ato de comer a iguaria, combinado com uma determinada constituição física, um determinado estado atual de saúde, e talvez mesmo um certo estado da atmosfera; todas essas circunstâncias talvez constituam neste caso particular as condições do fenômeno, ou, em outras palavras, o conjunto de antecedentes que o determinou e sem o qual não teria acontecido. A causa real é o todo desses antecedentes, e não temos, filosoficamente falando, direito de dar o nome de causa a um deles somente, independentemente dos outros. O que, no caso em questão, esconde a incorreção da expressão é que as várias condições, com exceção de uma única, o comer a iguaria, não eram eventos (isto é, mudanças ou sucessões de mudanças instantâneas), mas estados mais ou menos permanentes e poderiam portanto, ter precedido o efeito por um tempo indefinido na falta do evento necessário para completar o conjunto de condições exigidas, enquanto que logo que esse evento, comer a iguaria, ocorre, não se espera nenhuma outra causa, mas o efeito começa imediatamente a acontecer; e por isso se apresenta a aparência de uma conexão mais imediata e íntima entre o efeito e esse único antecedente do que entre o efeito e as outras condições. Mas, embora possamos julgar adequado dar o nome de causa à circunstância única cuja intervenção completa o fato e leva ao efeito sem mais delongas, esta condição na realidade não tem uma relação mais íntima com o efeito do que qualquer uma das outras condições. Todas as condições eram igualmente indispensáveis para a produção do consequente e o estabelecimento da causa é incompleto se não introduzirmos, de uma ou outra forma, todas elas. Um homem toma um remédio, sai de casa e apanha um resfriado. Dizemos, talvez, que a causa de ele pegar o resfriado foi o ter-se exposto ao ar. É claro, todavia, que o ter ele tomado um remédio deve ter sido uma condição necessária do fato de ter apanhado um resfriado; e, embora possa estar de acordo com o costume dizer que a causa de sua doença foi a exposição ao ar, para sermos precisos devemos dizer que a causa foi a exposição ao ar durante o efeito do remédio. Se não enumeramos, visando à precisão, todas as condições, é apenas porque algumas, na maioria dos casos, são subentendidas ou porque para o propósito em vista podem ser omitidas sem desvantagem. Por exemplo, quando dizemos que a causa da morte de um homem foi o fato de seu pé ter escorregado ao subir uma escada, omitimos como não sendo necessário estabelecer a circunstância de seu peso, embora seja uma condição absolutamente indispensável para o efeito que sucedeu. Quando dizemos que a sanção da Coroa para um projeto-de-lei o torna lei, queremos dizer que a sanção, não sendo dada nunca até que todas as outras condições sejam preenchidas, completa a soma das condições, embora ninguém a encare como a principal. Quando a decisão de uma assembleia legislativa foi determinada pelo voto decisivo do seu presidente, às vezes dizemos que essa pessoa foi a causa de todos os efeitos que resultaram da promulgação da lei. Todavia, na realidade, não supomos que esse único voto contribuiu mais para o resultado do que o de qualquer outra pessoa que tivesse votado pela aprovação; mas, para o propósito que temos em vista - insistir na sua responsabilidade individual -, a parte que qualquer outra pessoa teve na votação não é importante. (...) Assim, vemos que toda e qualquer condição do fenômeno pode - por sua vez, com igual propriedade na linguagem comum, e com igual impropriedade no discurso científico - ser mencionada como se fosse a causa inteira. E, na prática, essa condição particular é comumente chamada a causa cuja parte, no evento, é aparentemente a primeira, ou em cuja exigência para a produção do efeito estamos insistindo no momento. (...) Há, sem dúvida, uma tendência (que o nosso primeiro exemplo, o da morte pela ingestão de uma determinada iguaria, ilustra suficientemente) para se associar a ideia de causalidade com o evento antecedente imediato mais do que com algum dos estados antecedentes, ou fatos permanentes, que também podem ser condições do fenômeno; a razão é que o evento não apenas existe, mas começa a existir imediatamente antes, enquanto as outras condições podem ter preexistido durante um tempo indefinido. (...) Mas, longe de que a noção comum de causalidade implica necessariamente que a causa está imediatamente mais próxima do efeito do que qualquer outra de suas condições, qualquer uma das demais condições, positiva ou negativa, pode, sem essa proximidade, cumprir, conforme a ocasião, o mesmo papel. A causa, pois, filosoficamente falando, é a soma total das condições positivas e negativas tomadas em conjunto, todas as contingências de qualquer espécie, as quais, quando realizadas, o consequente segue invariavelmente. (...) 4. A causa não é o antecedente invariável, mas o antecedente invariável incondicionado Resta agora chamar a atenção para uma distinção da máxima importância, quer para esclarecer a noção de causa, quer para prevenir uma objeção muito especiosa feita muitas vezes contra a visão que temos do assunto. Quando definimos a causa de alguma coisa (no único sentido em que o presente ensaio tem algo a ver com causas) como sendo "o antecedente que a coisa segue invariavelmente", não usamos essa frase como um sinônimo exato de "o antecedente que ela seguiu invariavelmente na experiência passada". Uma tal maneira de conceber a causação estaria sujeita à objeção muito plausível realçada por Reid, a saber: de acordo com tal doutrina, à noite deveria ser a causa do dia e o dia a causa da noite, já que esses fenômenos se sucedem invariavelmente um ao outro desde o começo do mundo. Mas é necessário, para usarmos a palavra causa, que acreditemos não apenas que o antecedente sempre foi seguido pelo consequente, mas que, enquanto durar a presente constituição das coisas, (Entendo por essa expressão as leis fundamentais da natureza (quaisquer que possam ser) como distintas das leis derivadas e das colocações. A revolução diária da Terra (por exemplo) não é uma parte da constituição das coisas, porque não se pode chamar dessa maneira nada passível de destruição ou modificação por causas naturais) sempre será assim. E isso não seria verdadeiro a respeito do dia e da noite. Não acreditamos que a noite será seguida pelo dia sob todas as circunstâncias imagináveis, mas apenas que será assim desde que o sol nasça no horizonte. Se o sol cessar de nascer, o que, pelo que sabemos, pode ser perfeitamente compatível com as leis gerais da matéria, a noite seria, ou poderia ser, eterna. Por outro lado, se o sol está acima do horizonte, sua luz não-extinta e nenhum corpo opaco entre nós e ele, acreditamos firmemente que, a não ser que ocorra uma mudança nas propriedades da matéria, essa combinação de antecedentes será seguida pelo consequente, o dia; que, se a combinação de antecedentes pudesse ser prolongada indefinidamente, seria sempre dia; e que, se a mesma combinação tivesse existido sempre, teria sido sempre dia, independentemente em absoluto da noite como condição prévia. Por isso é que não chamamos a noite de causa, nem mesmo de uma condição do dia. A existência do sol (ou de algum corpo luminoso semelhante) e a ausência de um corpo opaco em linha reta (uso as palavras "em linha reta" para abreviar e simplificar. Na realidade, a linha em questão não é exatamente reta, pois, pelo efeito da refração, na realidade vemos o sol por um curto intervalo durante o qual a massa opaca da Terra é interposta numa linha reta entre o sol e nossos olhos, realizando assim, embora apenas em grau limitado, o tão cobiçado desiderato de ver atrás de uma esquina) entre esse corpo e a parte da terra em que estamos situados são as únicas condições, e a união deles, sem a adição de qualquer circunstância supérflua, constitui a causa. É isto que os autores querem significar quando dizem que a noção de causa implica a ideia de necessidade. Se há alguma significação que reconhecidamente pertence ao termo necessidade é incondicionalidade. O que é necessário, o que deve ser, significa o que será, qualquer que seja a suposição que possamos fazer em relação a todas as demais coisas. A sucessão dia-noite evidentemente não é necessária neste sentido. É condicionada à ocorrência de outros antecedentes. Aquilo que será seguido por um dado consequente quando, e somente quando, uma terceira circunstância também existe, não é a causa, ainda que o caso em que o fenômeno ocorreu nunca teria ocorrido sem ele. Sequência invariável, portanto, não é sinônimo de causação, a não ser que a sequência, além de invariável, seja incondicionada. Há sequências tão uniformes como não importa quais no passado, que ainda não encaramos como casos de causação, mas como coincidências de alguma forma acidentais. Assim é, para um pensador cuidadoso, no que diz respeito ao dia e à noite. Um desses fatos poderia ter existido por qualquer duração de tempo, sem que o outro existisse; este existe apenas se existem determinados outros antecedentes, e, onde esses antecedentes existissem, aquele seguiria em qualquer caso. Ninguém, provavelmente, jamais chamou a noite de a causa do dia; os homens devem ter chegado muito cedo à generalização muito simples de que a claridade geral que chamamos dia resultaria da presença de um corpo suficientemente luminoso, quer a escuridão a tivesse precedido, ou não. Podemos definir, portanto, a causa de um fenômeno como sendo o antecedente, ou a reunião de antecedentes, cujo fenômeno é invariável e incondicionadamente o consequente. Ou então, se adotarmos a conveniente modificação da significação da palavra causa que a limita ao conjunto de condições positivas sem as negativas, em vez de "incondicionadamente", devemos dizer "sujeito apenas às condições negativas". Poderá parecer, para alguns, que, sendo a sequência entre a noite e o dia invariável em nossa experiência, temos tanto fundamento, dado pela experiência, neste caso quanto em qualquer outro para reconhecer os dois fenômenos como causa e efeito, e que dizer que é necessário -para exigir a crença de que a sucessão é incondicionada, ou, em outras palavras, que seria invariável sob todas as mudanças de circunstâncias - é reconhecer na causação um elemento de crença não-derivado da experiência. A resposta a isto é que é a própria experiência que nos ensina que uma uniformidade de sequência é condicionada e outra incondicionada. Quando julgamos que a sucessão dia-noite é uma sequência derivada, dependendo de algo mais, procedemos com base na experiência. É o testemunho da experiência que nos convence de que o dia poderia igualmente existir sem ser seguido pela noite e que a noite poderia igualmente existir sem ser seguida pelo dia. Dizer que essas crenças "não são geradas pela nossa mera observação de sequências" é esquecer que duas vezes em cada vinte e quatro horas, quando o céu está claro, temos um experimentum crucis de que a causa do dia é o sol. Temos um conhecimento experimental do sol que nos autoriza a concluir, em bases experimentais, que, se o sol estivesse sempre acima do horizonte, haveria dia, embora não tivesse havido noite, e que, se o sol estivesse sempre abaixo do horizonte, haveria noite, embora não tivesse havido dia. Assim sabemos, a partir da experiência, que a sucessão noite-dia não é incondicionada. Acrescente-se que o antecedente que é apenas condicionalmente invariável não é o antecedente invariável. Embora um fato possa, na experiência, ter sido sempre seguido por um outro fato, ainda se o restante de nossa experiência nos ensina que não poderia ser sempre seguido dessa maneira, ou se a própria experiência é tal que deixa aberta uma possibilidade de que os casos conhecidos não possam representar corretamente todos os casos possíveis, o antecedente até então invariável não é considerado como causa; mas, por quê? Porque não estamos certos de que ele é o antecedente invariável. (...) 5. Do conceito de uma causa permanente, ou agente natural primitivo Acontece continuamente que vários fenômenos diferentes, que não são de maneira alguma dependentes ou condicionados uns dos outros, se encontrem como dependentes de um mesmo agente; em outras palavras, um mesmo fenômeno é seguido por diversos tipos de efeitos absolutamente heterogêneos, mas que caminham simultaneamente uns com os outros, desde que, é claro, todas as demais condições requeridas para cada um deles também existam. Assim, o sol produz os movimentos celestes, a luz do dia e o calor. A terra causa a queda de corpos pesados e também, com sua capacidade de grande ímã, os fenômenos da agulha magnética. Um cristal de galena causa as sensações de dureza, de peso, de forma cúbica, de cor cinzenta, e muitas outras, entre as quais não podemos traçar nenhuma interdependência. A finalidade para a qual a terminologia de propriedades e forças está adaptada é a expressão dessa espécie de casos. Quando o mesmo fenômeno é seguido (sujeito ou não à presença de outras condições) por efeitos de ordens diferentes ou dissemelhantes, é comum dizer-se que cada tipo diferente de efeito é produzido por uma diferente propriedade da causa. Assim distinguimos a propriedade atrativa ou gravitacional da Terra e sua propriedade magnética; as propriedades gravitacionais, luminosas e caloríficas do sol; a cor, a forma, o peso e a dureza de um cristal. Estes são meros termos que não explicam nem acrescentam nada ao nosso conhecimento do assunto, mas, considerados como nomes abstratos que denotam a conexão entre os diferentes efeitos produzidos e o objeto que os produz, são um instrumento muito poderoso de abreviação e da aceleração das operações intelectuais. Essa classe de considerações leva a uma concepção que descobriremos ser de grande importância, a de uma causa permanente, ou agente natural primitivo. Existe na natureza um número de causas permanentes que subsistem desde que a raça humana começou a existir e durante um indefinido, provavelmente enorme, lapso de tempo anterior. O sol, a Terra e os planetas, com seus diversos elementos, ar, água, e outras substâncias distinguíveis, simples ou compostas, de que a natureza é feita, são essas causas permanentes. Elas existem e os efeitos ou consequências que estão aptas a produzir ocorrem (tantas vezes quantas as outras condições para a produção se encontrem) desde o verdadeiro começo de nossa experiência. Mas não podemos saber nada da origem das próprias causas permanentes. Por que existiram originalmente esses agentes naturais e não outros, ou por que estão misturados em tais e tais proposições, e distribuídos de tal e tal maneira por todo o espaço, são questões que não podemos responder. Mais do que isto: não podemos descobrir nenhuma regularidade na própria distribuição; não podemos reduzi-la a nenhuma uniformidade, a nenhuma lei. Não há nenhum meio pelo qual, a partir da distribuição dessas causas ou agentes em uma parte do espaço, possamos conjeturar se uma distribuição semelhante prevalece em outra. A coexistência, portanto, das causas primitivas classifica-se, para nós, entre as coincidências meramente casuais, e todas as suas sequências e coexistências, entre os efeitos dessas diversas causas; as quais - embora invariáveis enquanto essas causas coexistem, se a coexistência terminasse terminariam juntamente com ela - não classificamos como casos de causação ou leis da natureza; podemos apenas esperar encontrar essas sequências ou coexistências onde sabemos pela experiência direta que os agentes naturais de cujas propriedades elas em última análise dependem estão distribuídos da maneira requerida. Essas causas permanentes nem sempre são objetos; às vezes são eventos, ou melhor, ciclos periódicos de eventos, sendo esta a única maneira em que os eventos podem possuir a propriedade da permanência. Não é apenas, por exemplo, a Terra uma causa permanente, ou agente primitivo natural, mas a sua rotação também o é; é a causa que produz, desde remotíssimas épocas (pela ajuda de outras condições necessárias), a sucessão dia-noite, o fluxo e o refluxo do mar, e muitos outros efeitos, ao passo que, como não podemos atribuir nenhuma causa (a não ser conjenturalmente) para a própria rotação ela é-classificada como uma causa primitiva. Todavia, apenas a origem da rotação é misteriosa para nós; uma vez iniciada, sua continuidade é explicada pela primeira lei do movimento (a da permanência do movimento retilíneo uma vez iniciado) combinada com a gravitação das partes da Terra umas em direção às outras. Todos os fenômenos que começam a existir - todos, exceto as causas primitivas -, são efeitos ou imediatos ou remotos desses fatos primitivos ou de alguma combinação deles. Não há nenhuma coisa produzida, nenhum evento ocorrendo no universo conhecido, que não esteja ligado, por uma uniformidade, ou sequência invariável, com um ou mais de um dos fenômenos que o precederam; de tal maneira que deverá ocorrer novamente todas as vezes que esses fenômenos ocorrerem, e sempre que não coexista algum outro fenômeno que tenha o caráter de causa de ação contrária. Esses fenômenos antecedentes, ainda, estão ligados de maneira semelhante com alguns outros que os precederam; e assim por diante, até que encontremos, como o último passo acessível para nós, as propriedades de alguma causa primitiva ou a conjunção de várias. Todos os fenômenos da natureza são, portanto, as consequências necessárias, ou, em outras palavras, incondicionadas, de alguma colocação anterior das causas permanentes. Acreditamos que o estado de todo o universo a qualquer instante é a consequência de seu estado no instante anterior; de tal maneira que uma pessoa que conhecesse todos os agentes que existem no presente momento, sua colocação no espaço e todas as suas propriedades, em outras palavras, as leis de sua ação, poderia predizer toda a história subsequente do universo, a menos que intervenha alguma nova volição de um poder capaz de controlar o universo. (...) CAPÍTULO VI Da composição das causas 1. Dois modos da ação combinada das causas, o mecânico e o químico ( ... ) As discussões precedentes nos tornaram familiar o caso em que vários agentes, ou causas, intervêm como condições para a produção de um efeito; um caso, na verdade, quase universal, havendo muito poucos efeitos causados por um único agente. Suponhamos, pois, que dois agentes diferentes, operando juntos, são seguidos, sob um determinado grupo de condições colaterais, por um dado efeito. Se um desses dois agentes, em vez de estar ligado ao outro, tivesse operado sozinho, sob o mesmo grupo de condições em todos os demais aspectos, provavelmente teria seguido algum efeito, que teria sido diferente do efeito comum dos dois e mais ou menos dissemelhante dele. Se ocorre sabermos qual seria o efeito de cada causa quando agindo separadamente uma da outra, frequentemente estamos aptos a chegar dedutivamente, ou a priori, a uma predição correta do que deverá surgir de sua ação conjunta. Para tornar isso possível, é necessário apenas que a mesma lei que expressa o efeito de cada causa agindo por si deva também expressar corretamente a parte própria à causa do efeito resultante das duas juntas. Esta condição é realizada na ampla e importante classe de fenômenos comumente chamados mecânicos, a saber, os fenômenos de transmissão de movimento (ou de pressão, que é tendência ao movimento) de um corpo para outro. Nesta importante classe de casos de causação, uma causa, propriamente falando, nunca anula ou frustra a outra; ambas têm seu efeito integral. Se um corpo é impelido em duas direções por duas forças, uma tendendo a dirigi-lo para o norte e a outra para o leste, é impelido a se mover em um dado tempo em ambas as direções à mesma distância a que as duas forças separadamente o teriam levado, e é deixado precisamente onde teria chegado se tivesse sido movido primeiro por uma das duas forças e depois pela outra. Esta lei da natureza é chamada, em dinâmica, o princípio da composição de forças, e, imitando essa expressão bem escolhida, darei o nome de composição de causas ao princípio que é exemplificado em todos os casos em que o efeito conjunto de diversas causas é idêntico à soma de seus efeitos separados. Este princípio, todavia, de nenhuma maneira prevalece em todas as partes do domínio da natureza. A combinação química de duas substâncias produz, como é bem conhecido, uma terceira substância, com propriedades, quer das duas substâncias separadamente, ou de ambas tomadas conjuntamente. Não se pode observar nenhum traço das propriedades do hidrogênio ou do oxigênio nas de seu composto, a água. O sabor do acetato de chumbo não é a soma dos sabores dos seus elementos componentes, ácido acético e chumbo ou seu óxido, nem é a cor do sulfato de cobre uma mistura das cores do ácido sulfúrico e do cobre. Isto explica por que a mecânica é uma ciência dedutiva ou demonstrativa, e a química não. Em suma, podemos computar os efeitos de combinações de causas, reais ou hipotéticas, a partir das leis que sabemos que governam essas causas quando agindo separadamente, porque continuam a observar as mesmas leis, quando em combinação, que observam quando separadas; o que quer que tenha ocorrido em consequência de cada causa tomada à parte ocorre quando estão juntas, e nós apenas temos que somar os resultados. Não é isso que ocorre com relação aos fenômenos que são objeto peculiar da ciência da química. A maioria das uniformidades a que as causas se conformam quando separadas cessam completamente quando são reunidas, e não estamos, pelo menos no atual estado do nosso conhecimento, aptos a prever que resultado deverá seguir de alguma nova combinação até que tenhamos tentado uma experimentação direta. Se isto é verdadeiro com respeito às combinações químicas, é ainda mais verdadeiro com respeito às combinações de elementos muito mais complexos que constituem os corpos organizados, e nas quais novas uniformidades extraordinárias originam o que se denominam as leis da vida. Todos os corpos organizados são compostos de partes semelhantes às que compõem a natureza inorgânica, e que existiram elas mesmas num estado inorgânico, mas os fenômenos da vida, que resultam da justaposição dessas partes de uma determinada maneira, não contêm nenhuma analogia com quaisquer dos efeitos que seriam produzidos pela ação das substâncias componentes consideradas como meros agentes físicos. A qualquer nível que possamos imaginar que nosso conhecimento a respeito das propriedades dos vários elementos de um corpo vivo seja estendido e aperfeiçoado, é certo que a simples soma das ações separadas desses elementos nunca corresponderia à ação do próprio corpo vivo. A língua, por exemplo, é composta, como todas as demais partes da estrutura animal, de gelatina, fibrina e outros produtos da química digestiva, mas a partir do conhecimento das propriedades dessas substâncias, nunca poderíamos predizer que ela poderia sentir gosto, a não ser que a gelatina ou a fibrina pudessem elas próprias sentir gosto; pois não pode estar na conclusão nenhum fato elementar que já não estivesse nas premissas. Há, pois, dois modos diferentes da ação combinada de causas, dos quais surgem dois modos de conflitos, ou interferência mútua, entre leis da natureza. Suponhamos, em um dado ponto do tempo e do espaço, duas ou mais causas, que, se agissem separadamente, produziriam efeitos contrários, ou ao menos conflitantes mutuamente, um deles tendendo a anular, total ou parcialmente, o que o outro tende a fazer. Assim, a força expansiva dos gases gerada pela ignição da pólvora tende a projetar uma bala para o céu, enquanto seu peso tende a fazê-la cair em direção ao solo. Uma corrente de água correndo para dentro de um reservatório tende a enchê-lo cada vez mais, enquanto um ladrão na outra extremidade tende a esvaziá-lo. Agora, em casos como estes, mesmo se as duas causas que estão em ação combinada se anulam exatamente, ainda assim as leis de ambas se cumprem; o efeito é o mesmo, como se o ladrão tivesse sido aberto por meia hora primeiro, e a corrente de água tivesse jorrado pelo mesmo tempo depois. Cada agente produz a mesma quantidade de efeito como se tivesse agido separadamente, embora o efeito contrário que estava ocorrendo durante o mesmo tempo o suprimisse à medida que era produzido. Eis aqui, pois, duas causas que produzem, por suas operações combinadas, um efeito que a princípio parece absolutamente diferente dos que produzem separadamente, mas que um exame prova ser na realidade a soma desses efeitos separados. Perceber-se-á que aqui estendemos a ideia da soma de dois efeitos de tal maneira que inclui o que comumente se chama de diferença, mas que na realidade é o resultado da adição de contrários, uma concepção à qual a humanidade é devedora por causa da admirável extensão do cálculo algébrico, que tão enormemente aumentou seus poderes como instrumento de descoberta introduzindo em seus raciocínios (com o sinal de subtração pré-fixado, e sob nome de quantidades negativas) toda e qualquer espécie de fenômenos positivos, desde que em relação aos anteriormente introduzidos de uma qualidade tal que ajuntar um equivale a subtrair uma quantidade igual do outro. Há, pois, um modo da interferência mútua de leis da natureza em que, mesmo quando as causas concorrentes anulam mutuamente seus efeitos, cada uma exerce sua completa eficácia de acordo com sua própria lei - sua lei como um agente separado. Mas, na outra espécie de casos, as ações que intervêm juntas cessam completamente, e surge um grupo totalmente diferente de fenômenos, como na experiência de dois líquidos que, quando misturados em determinadas proporções, imediatamente se tornam não uma quantidade maior de líquido, mas uma massa sólida. 2. A composição das causas é a regra geral; o inverso é a exceção Essa diferença entre o caso em que o efeito conjunto de causas é a soma de seus efeitos separados e o caso em que o efeito lhes é heterogêneo - entre leis que operam juntas sem alteração, e leis, que, quando se requer que operem juntas, cessam e dão lugar a outras - é uma das distinções fundamentais na ordem da natureza. O primeiro caso, o da composição das causas, é o fato geral; o outro é sempre especial e excepcional. Não há objetos que, em alguns de seus fenômenos, não obedeçam ao princípio da composição das causas, e que não reconheçam leis rigidamente cumpridas em toda combinação em que os objetos entram. ( ... ) Por outro lado, leis engendradas no segundo modo podem engendrar outras no primeiro. Embora haja leis que, como as da química e da fisiologia, devem sua existência a uma infração do princípio de composição das causas, não se segue que essas leis peculiares, ou, como se podem denominar, heteropáticas, não sejam suscetíveis de combinação com outras. As causas que por uma combinação tiverem sido alteradas podem levar consigo suas novas leis inalteradas dentro de suas combinações posteriores. Daí não haver razão para se desesperar de se elevar a química e a fisiologia à condição de ciências dedutivas, pois, embora seja impossível deduzir todas as verdades químicas e fisiológicas a partir de leis ou propriedades de substâncias simples ou agentes elementares, há a possibilidade de serem deduzidas de leis que aparecem quando esses agentes elementares são reunidos dentro de um número razoável de combinações não muito complexas. As leis da vida nunca serão dedutíveis das simples leis dos elementos, mas os fatos prodigiosamente complexos da vida podem todos ser dedutíveis de leis da vida comparativamente simples, leis que (dependendo na verdade de combinações, mas de combinações comparativamente simples, de antecedentes) podem, em circunstâncias mais complexas, ser estritamente combinadas com uma outra e com as leis físicas e químicas dos elementos. Os detalhes dos fenômenos vitais, mesmo agora, fornecem inumeráveis exemplos da composição das causas, e, na proporção em que esses fenômenos são mais cuidadosamente estudados, surgem mais razões para se acreditar que as mesmas leis que operam nas combinações mais simples de circunstâncias continuam, de fato, a serem observadas nas mais complexas. Isto é igualmente verdadeiro nos fenômenos da mente e até nos fenômenos sociais e políticos resultados das leis da mente. ( ... ) CAPÍTULO VII Da observação e da experiência 1. O primeiro degrau na pesquisa indutiva é a decomposição mental dos fenômenos complexos em seus elementos Resulta da exposição precedente que o procedimento de constatar que consequentes, na natureza, estão invariavelmente ligados a que antecedentes, ou, em outras palavras, que fenômenos estão relacionados uns com os outros como causas e efeitos, é uma espécie de análise. ( ... ) Se o estado anterior do universo inteiro se reproduzisse, seria seguido novamente pelo estado atual. A questão é saber como resolver essa uniformidade complexa nas uniformidades mais simples que a compõem e assinalar para cada parte do vasto antecedente a parte do consequente que é resultante dele. Esta operação, que chamamos de analítica, visto que é a decomposição de um todo complexo em seus elementos componentes, é mais que uma análise meramente mental. Uma simples contemplação do fenômeno e sua classificação pelo intelecto somente não bastarão para atingir o fim que temos agora em vista. Todavia, uma tal classificação mental é um primeiro passo indispensável. A ordem da natureza, à primeira vista, apresenta a todo momento um caos seguido de outro caos. Devemos decompor cada caos em fatos isolados. Devemos aprender a ver no antecedente caótico uma multidão de antecedentes distintos, no consequente caótico uma multidão de consequentes distintos. Isto, uma vez feito, não irá por si mesmo nos revelar de quais dos antecedentes cada consequente é invariavelmente resultante. Para determinar esse ponto, devemos tentar efetuar uma separação dos fatos uns dos outros não apenas em nossas mentes, mas na natureza. A análise mental, todavia, deve ocorrer primeiro. E qualquer um sabe que, nesse trabalho, um intelecto difere imensamente de outro. Esta operação é a essência do ato de observar, pois o observador não é o que meramente vê a coisa que está diante de seus olhos, mas o que vê de que partes essa coisa é composta. ( ... ) A amplitude e a exatidão da observação que possam ser requeri das e o grau da análise mental dependem do propósito específico que se tenha em vista. Constatar o estado de todo o universo em um momento particular é impossível, mas poderia também ser inútil. Ao fazermos experiências químicas, não achamos ser necessário anotar a posição dos planetas, porque a experiência tem demonstrado - como uma experiência bastante superficial é suficiente para demonstrar - que em tais casos essa circunstância não é essencial para o resultado; e da mesma maneira, nas épocas em que os homens acreditavam nas influências ocultas dos corpos celestes, poderia ter sido antifilosófico omitir a constatação de sua posição precisa no momento da experiência. Quanto ao grau de exatidão da subdivisão mental, se fôssemos obrigados a decompor o que observamos em seus elementos verdadeiramente mais simples, isto é, literalmente em fatos individuais, seria difícil dizer onde os iríamos encontrar, talvez nunca pudéssemos afirmar que nossas divisões tivessem alcançado a última unidade. Mas isto também, felizmente, não é necessário. O único objetivo da divisão mental é sugerir a separação física requerida, de tal maneira que possamos ou efetuá-la nós mesmos ou procurá-la na natureza, e teremos feito o suficiente quando tivermos conduzido a subdivisão até o ponto em que estivermos aptos a ver de que observações ou experiências necessitamos. É essencial, apenas, qualquer que seja o ponto em que nossa decomposição de fatos possa ter parado no momento, que nos mantenhamos prontos e aptos para conduzi-la mais além quando a ocasião o exigir, e não deixemos que a liberdade de nossa faculdade de distinção seja aprisionada pelas ataduras e laços das classificações ordinárias, como foi o caso de todos os filósofos antigos, não excetuando os gregos, aos quais raramente ocorreu que o que era designado por um nome abstrato poderia, na realidade, consistir em vários fenômenos, ou que havia uma possibilidade de decompor os fatos do universo em quaisquer elementos que não os já consagrados pela linguagem ordinária. 2. O segundo é a separação atual desses elementos Supondo-se, pois, que os diferentes antecedentes e consequentes estão, tanto quanto o caso exige, determinados e discriminados uns dos outros, temos que investigar a ligação de cada um com cada um. Em todos os fatos sob nossa observação, há muitos antecedentes e muitos consequentes. Se esses antecedentes não pudessem ser separados uns dos outros, exceto no pensamento, ou se esses consequentes nunca se encontrassem separados, seria impossível, para nós, distinguir (pelo menos a posteriori) as leis reais, ou determinar para alguma causa seu efeito, ou para algum efeito sua causa. Para fazê-lo, devemos estar aptos a encontrar alguns dos antecedentes separados do resto e observar o que os segue, ou alguns dos consequentes e observar o que os precede. Devemos, em suma, seguir a regra baconiana da variedade das circunstâncias. Esta é, na verdade, apenas a primeira regra da pesquisa física e não, como alguns pensaram, a única, mas é o fundamento de todo o resto. Para variar as circunstâncias, podemos recorrer (de acordo com uma distinção comum) quer à observação, quer à experimentação; podemos ou descobrir um caso na natureza que sirva aos nossos propósitos, ou, através de um arranjo artificial de circunstâncias, criar um. O valor do caso depende do que é em si mesmo, não do modo como é obtido; seu emprego na indução depende dos mesmos princípios em ambos os casos, assim como os usos do dinheiro são os mesmos, quer seja ele herdado, quer seja adquirido. Não há, em suma, diferença de natureza, nem distinção lógica real, entre os dois procedimentos de investigação. Há, todavia, distinções práticas para as quais é extremamente importante chamar a atenção. CAPÍTULO VIII Dos quatro métodos de pesquisa experimental 1. Método de concordância Os modos mais simples e familiares de escolher entre as circunstâncias que precedem ou seguem um fenômeno, aquelas às quais esse fenômeno está realmente ligado por uma lei invariável são dois: um consiste em comparar os diferentes casos em que o fenômeno ocorre; o outro, em comparar casos em que o fenômeno ocorre com casos, semelhantes em outros aspectos, em que o fenômeno não ocorre. Estes dois métodos podem ser respectivamente denominados o método de concordância e o método de diferença. Ao expor esses métodos, será necessário ter em mente o duplo caráter das pesquisas das leis naturais, que têm por fim encontrar a causa de um efeito dado, ou os efeitos ou propriedades de uma determinada causa. Consideraremos os métodos em sua aplicação em ambas as ordens de investigação e tiraremos nossos exemplos igualmente de ambas. Designaremos os antecedentes pelas letras maiúsculas do alfabeto e os consequentes que lhes correspondem pelas minúsculas. Seja, pois, A um agente ou causa, e o objetivo de nossa pesquisa determinar quais os efeitos desta causa. Se podemos, quer descobrir, quer produzir, o agente A em variedades de circunstâncias tais que os diferentes casos não têm nenhuma circunstância em comum exceto A, então qualquer efeito que descobrimos ser produzido em todas as nossas experiências é designado como o efeito de A. Suponhamos, por exemplo, que A é experimentado juntamente com B e C e que o efeito é abc; e suponhamos que A é agora experimentado com D e E, mas sem B e C, e que o efeito é ade. Isto posto, podemos concluir assim: b e c não são efeitos de A, pois não foram produzidos por A no segundo experimento; também não o são d e e, pois não foram produzidos no primeiro. Qualquer que seja, na realidade, o efeito de A, deve ter sido produzido em ambos os casos; esta condição não é preenchida por nenhuma circunstância, exceto a. O fenômeno a não pode ter sido o efeito de B ou C, já que foi produzido quando não estavam presentes; nem de D e E, já que também foi produzido onde não se encontravam. Portanto, é o efeito de A. Exemplo - seja o antecedente A o contato de uma substância alcalina e um óleo. Testando-se esta combinação sob diversas variedades de circunstâncias, em nada semelhantes umas às outras, os resultados são concordes na produção de uma substância graxa e detergente ou saponácea; conclui-se, portanto, que a combinação de um óleo e um álcali causa a produção de sabão. É assim que pesquisamos pelo método de concordância o efeito de uma causa dada. De maneira semelhante, podemos pesquisar a causa de um efeito dado. Seja a o efeito. Aqui, como foi demonstrado no capítulo anterior, temos apenas o recurso da observação sem experimento; não podemos tomar um fenômeno cuja origem não conhecemos, e tentar descobrir seu modo de produção produzindo-o; se tivéssemos sucesso nessa tentativa fortuita, só poderia ser por acidente. Mas, se podemos observar a em duas combinações diferentes, abc e ade, e se sabemos ou podemos descobrir que as circunstâncias antecedentes nestes casos eram respectivamente ABC e ADE, podemos concluir, por um raciocínio semelhante ao do exemplo precedente, que A é o antecedente ligado ao consequente a por uma lei de causação. B e C, podemos dizer, não podem ser causas de a, já que na segunda ocorrência não estavam presentes; nem D e E, pois não estavam presentes na primeira ocorrência. Das cinco circunstâncias, apenas A se encontrou entre os antecedentes de a em ambos os casos. Exemplo - seja o efeito a cristalizado. Comparamos casos de corpos que reconhecidamente apresentam estrutura cristalina, sem nenhum outro ponto de concordância, e descobrimos que têm um e, até onde podemos observar, apenas um, antecedente comum: depósito em estado sólido de uma matéria no estado líquido, num estado de fusão, ou de solução. Concluímos, em consequência disso, que a solidificação de uma substância a partir de um estado líquido é um antecedente invariável de sua cristalização. Neste exemplo, podemos ir além e dizer que não é apenas o antecedente invariável, mas a causa, ou, ao menos, o evento próximo que completa a causa. Pois, neste caso estamos aptos, depois de descobrir o antecedente A, a produzi-lo artificialmente e, descobrindo que a o segue, verificar o resultado de nossa indução. A importância de assim inverter a prova revelou-se notavelmente quando um químico (creio ser o dr. Wollaston), conservando um frasco de água cheio de partículas de sílica inalterado durante anos, conseguiu obter cristais de quartzo, e também no experimento igualmente interessante no qual Sir James Hall produziu mármore artificial pelo resfriamento de seus componentes a partir da fusão sob enorme pressão; dois exemplos admiráveis da luz que se pode lançar sobre os processos mais secretos da natureza por uma interrogação bem dirigida. Se, no entanto, não podemos produzir artificialmente o fenômeno A, a conclusão de que é a causa de a fica sujeita a dúvida verdadeiramente considerável. Embora seja um antecedente variável, pode não ser o antecedente incondicionado de a, mas precedê-lo como o dia precede a noite, e a noite, o dia. Essa incerteza resulta da impossibilidade de nos assegurarmos de que A é o único antecedente imediato comum a ambos os casos. Se pudéssemos ter certeza de termos apurado todos os antecedentes invariáveis, poderíamos estar seguros de que o antecedente invariável incondicionado, ou causa, deve-se encontrar em algum lugar entre eles. Infelizmente, quase nunca é possível apurar todos os antecedentes sem que o fenômeno seja um que possamos produzir artificialmente. Mesmo assim, a dificuldade é apenas atenuada, não removida; os homens sabiam como fazer subir água em bombas muito antes de descobrirem qual era realmente a circunstância efetiva nos meios que empregavam, a saber, a pressão da atmosfera na superfície descoberta da água. Todavia, é muito mais fácil analisar completamente um arranjo feito por nós mesmos do que toda a massa complexa das forças postas em atividade pela natureza, no momento da produção de um fenômeno dado. Podemos omitir uma das circunstâncias importantes em um experimento com uma máquina elétrica, mas, na pior das hipóteses, entenderemos melhor delas do que das circunstâncias de um temporal. O modo de descobrir e provar leis da natureza conduz-se segundo o seguinte axioma: qualquer circunstância que possa ser excluída sem prejuízo para o fenômeno, ou possa estar ausente não obstante a presença deste, não está ligada ao fenômeno por causação. Eliminadas assim as circunstâncias causais, se resta apenas uma, essa uma é a causa que estamos procurando; se mais do que uma, ou são ou contêm entre si a causa; e assim, mutatis mutandis, se procede com relação ao efeito. Como este método consiste em comparar casos diferentes para verificar em que concordam, denominei-o método de concordância, e podemos adotar como seu princípio regulador o seguinte cânone: PRIMEIRO CÂNONE Se dois ou mais casos do fenômeno objeto da investigação têm apenas uma circunstância em comum, essa circunstância única em que todos os casos concordam é a causa (ou o efeito) do fenômeno. Deixando de lado no momento o método de concordância, ao qual logo mais voltaremos, passemos agora para um instrumento da investigação da natureza ainda mais poderoso, o método de diferença. 2. Método de diferença No método de concordância, procuramos obter casos que concordam em uma dada circunstância, mas diferem em todas as demais; no presente método precisamos, ao contrário, de dois casos que se assemelham um ao outro em todos os outros aspectos, mas que difiram na presença ou ausência do fenômeno que queremos estudar. Se nosso objetivo é descobrir os efeitos de um agente A, devemos procurar A em algum grupo de circunstâncias determinadas, como ABC, e, tendo observado os efeitos produzidos, compará-los com o efeito das circunstâncias restantes BC, quando A está ausente. Se o efeito de ABC é abc, e o efeito de BC, bc, é evidente que o efeito de A é a. Do mesmo modo, se começamos pela outra extremidade, e desejamos determinar a causa de um efeito a, devemos escolher um caso, como abc, em que o efeito ocorre e em que os antecedentes eram ABC, e devemos procurar um outro caso em que as circunstâncias restantes bc ocorram sem a. Se os antecedentes, nesse caso, são BC, sabemos que a causa de a deve ser A - ou A apenas, ou A em conjunto com alguma das demais circunstâncias presentes. Nem seria necessário dar exemplos de um procedimento lógico ao qual devemos todas as conclusões indutivas que tiramos na vida diária. Quando um homem é atingido no coração por um tiro, é por esse método que sabemos que foi um tiro que o matou, pois ele estava na plenitude da vida imediatamente antes, sendo todas as circunstâncias as mesmas, com exceção do ferimento. Os axiomas implicados neste método são evidentemente os seguintes: qualquer antecedente que não possa ser excluído sem que se impeça o fenômeno é a causa, ou uma condição, desse fenômeno; qualquer consequente que possa ser excluído, sem nenhuma outra diferença nos antecedentes, exceto a ausência de um deles, é o efeito deste último. Em vez de comparar casos diferentes de um fenômeno para descobrir em que concordam, este método compara um caso de sua ocorrência com um caso de sua não-ocorrência para descobrir em que diferem. O cânone princípio regulador do método de diferença pode ser expresso da seguinte maneira: SEGUNDO CÂNONE Se um caso em que o fenômeno sob investigação ocorre e um caso em que não ocorre têm todas as circunstâncias em comum menos uma, ocorrendo esta somente no primeiro, a circunstância única em que os dois casos diferem é o efeito, ou a causa, ou uma parte indispensável da causa, do fenômeno. 3. Relação mútua dos dois métodos Os dois métodos que acabamos de estabelecer têm muitos traços de semelhança, mas também muitas distinções. Ambos são métodos de eliminação. Este termo (empregado na teoria das equações para denotar o procedimento pelo qual um dos elementos de uma questão é excluído após outro, fazendo-se a solução depender das relações entre os elementos restantes apenas) serve bem para expressar a operação, análoga a esta, que tem sido considerada, desde os tempos de Bacon, o fundamento da pesquisa experimental, a saber, a exclusão sucessiva das várias circunstâncias que acompanham um fenômeno em um caso dado, para se verificar quais são aquelas cuja ausência é compatível com a existência do fenômeno. O método de concordância repousa sobre o fundamento de que tudo o que pode ser eliminado não está ligado ao fenômeno por nenhuma lei. O método de diferença tem como fundamento o fato de que tudo o que não pode ser eliminado está ligado ao fenômeno por alguma lei. Destes métodos, o de diferença é mais particularmente um método de experiência artificial, enquanto o de concordância é mais especialmente o recurso empregado quando a experimentação é impossível. Uma das poucas observações provarão o fato e determinarão as suas razões. É inerente ao caráter peculiar do método de diferença que a natureza das combinações que requer é muito mais estritamente definida que no método de concordância. Os dois casos a serem comparados devem ser exatamente similares em todas as circunstâncias exceto na que estamos tentando investigar; devem estar na relação de ABC e BC, ou de abc e bc. É certo que essa similaridade de circunstâncias não precisa estender-se a um ponto tal que já se saiba não ser importante para o resultado. E no caso da maioria dos fenômenos aprendemos imediatamente, a partir da experiência mais comum, que a maioria dos fenômenos coexistentes do universo pode estar presente ou ausente sem afetar o fenômeno dado, ou, se presente, é presente indiferentemente quando o fenômeno não ocorre e quando ocorre. Ainda, mesmo limitando a identidade que é requeri da entre os dois casos, ABC e BC, a circunstâncias tais que já não sejam reconhecidas como indiferentes, é muito raro que a natureza forneça dois casos, de que podemos estar seguros de que se encontram um com o outro nessa relação precisa. Nas operações espontâneas da natureza há geralmente tal complexidade e tal obscuridade; estão na maioria das vezes numa escala ou tão esmagadoramente grande ou tão inacessivelmente diminuta; somos tão ignorantes de uma grande parte dos fatos que realmente ocorrem; e mesmo os de que não somos ignorantes são tão numerosos, e tão raramente, portanto, exatamente semelhantes em dois casos sequer; que comumente não se deve encontrar uma experiência espontânea do tipo requerido pelo método de diferença. Quando, ao contrário, obtemos um fenômeno por meio de experimentação artificial, são obtidos dois casos como o método requer quase naturalmente, desde que a operação não dure muito tempo. Um determinado estado de circunstâncias ambientais existia antes que começássemos a experiência; seja BC. Então, introduzimos A, digamos, por exemplo, simplesmente trazendo um objeto de uma outra parte do quarto, antes que tivesse havido tempo para alguma mudança nos outros elementos. É, em suma (como Comte observa), o caráter próprio de uma experiência introduzir no estado preexistente de circunstâncias uma mudança perfeitamente definida. Escolhemos um estado prévio de coisas que conhecemos bem, de maneira que não possa passar despercebida nenhuma alteração imprevista nesse estado, e nele introduzimos, tão rapidamente quanto possível, o fenômeno que queremos estudar, de maneira que, em geral, estejamos habilitados a sentir completa segurança de que o estado pré-existente e o estado que produzimos não diferem em nada, a não ser a presença ou ausência desse fenômeno. Se um pássaro é tirado de uma gaiola e imediatamente mergulhado no gás de ácido carbônico, o experimentador pode ficar completamente seguro (em todo caso, depois de uma ou duas repetições) de que não interviera nenhuma circunstância capaz de causar sufocação nesse ínterim, exceto a mudança da imersão na atmosfera para a imersão no gás de ácido carbônico. Há uma dúvida, na verdade, que pode ficar em alguns casos dessa natureza; o efeito pode não ter sido produzido pela mudança, mas pelos meios empregados para produzi-la. Todavia, a possibilidade dessa última suposição geralmente admite ser verificada decisivamente por outras experiências. Vê-se, assim, que no estudo das várias espécies de fenômenos que podemos modificar ou controlar à vontade, em geral, satisfazemos os requisitos do método de diferença, ao passo que pelas operações espontâneas da natureza esses requisitos raramente são preenchidos. O inverso disto é o caso do método de concordância. Aqui, não precisamos de casos de um tipo tão especial e determinado. Todo e qualquer caso em que a natureza nos presenteia com um fenômeno pode ser examinado com os propósitos deste método, e, se todos esses casos concordam em algo, já se obteve uma conclusão de considerável valor. Na verdade, raramente estamos seguros de que esse ponto de concordância é o único; mas essa ignorância não invalida, como no método de diferença, a conclusão; a certeza do resultado não é afetada. Determinamos um antecedente ou consequente invariável; todavia, muitos outros antecedentes ou consequentes invariáveis podem ainda permanecer indeterminados. Se ABC, ADE, AFG, são todos igualmente seguidos por a, então a é um consequente invariável de A. Se abc, ade, afg, todos incluem A entre seus antecedentes, então A é ligado como um antecedente, por alguma lei invariável, com a. Mas, para determinar se esse antecedente invariável é uma causa ou se esse consequente invariável é um efeito, devemos estar aptos, além do mais, a produzir um por meio do outro, ou, ao menos, obter o que constitua nossa certeza de ter produzido alguma coisa, a saber, um caso em que o efeito, a, existe com a mudança nas circunstâncias pré-existentes unicamente com a adição de A. E isto, se o podemos fazer, é uma aplicação do método de diferença, não do método de concordância. Conclui-se assim que é unicamente pelo método de diferença que podemos sempre, pela via da experiência direta, chegar com certeza às causas. O método de concordância leva apenas a leis de fenômenos (como alguns autores as chamam, embora impropriamente, já que leis de causalidade são também leis de fenômenos), isto é, a uniformidades que ou não são de causação, ou em que a questão da causalidade deve no momento permanecer indecisa. Deve-se recorrer ao método de concordância principalmente como um meio de sugerir aplicações do método de diferença (como no último exemplo, a comparação de ABC, ADE, AFG, sugeriu que A era o antecedente sobre o qual se deveria experimentar para saber se poderia produzir a), ou como um último recurso, no caso de o método de diferença ser impraticável, o que, como mostramos anteriormente, surge geralmente da impossibilidade de produzir artificialmente os fenômenos. Por isso, o método de concordância, embora aplicável em princípio a ambos os casos, é mais preferentemente o método de investigação sobre objetos em que a experimentação artificial é impossível, porque nesses ele é, geralmente, nosso único recurso de caráter diretamente indutivo, enquanto, nos fenômenos que podemos produzir à vontade, o método de diferença geralmente fornece um procedimento mais eficaz que irá determinar tanto as causas quanto as simples leis. 4. Método unido de concordância e diferença Há, todavia, muitos casos em que, embora nosso poder de produzir o fenômeno seja completo, o método de diferença ou não pode tornar-se praticável em absoluto, ou não pode sê-lo sem um- emprego prévio do método de concordância. Isto ocorre quando a ação pela qual podemos produzir o fenômeno não é a de um único antecedente, mas uma combinação de antecedentes que não temos o poder de separar uns dos outros e apresentar separadamente. Por exemplo, suponhamos que o objeto de investigação é a causa da dupla refração da luz. Podemos produzir este fenômeno à vontade empregando qualquer uma das muitas substâncias refratárias à luz dessa maneira peculiar. Mas se, tomando uma dessas substâncias, como o espato-da-islândia, por exemplo, queremos determinar de qual de suas propriedades esse fenômeno singular depende, não podemos usar, para esse propósito, o método de diferença, pois não podemos encontrar outra substância exatamente semelhante ao espato-da-islândia, a não ser em uma ou outra propriedade. A única maneira, portanto, de continuar essa investigação é a fornecida pelo método de concordância, pelo qual, de fato, através da comparação de todas as substâncias que têm a propriedade de refratar duplamente a luz, verificou-se que concordam na circunstância de serem substâncias cristalinas, e, embora o contrário não se dê, embora nem todas as substâncias cristalinas tenham a propriedade da dupla refração, conclui-se, com razão, que há uma conexão real entre essas duas propriedades, que ou a estrutura cristalina ou a causa que determina essa estrutura é uma das condições da dupla refração. Desse emprego do método de concordância surge uma sua modificação peculiar que muitas vezes é de grande proveito na investigação da natureza. Em casos semelhantes ao apresentado acima, em que não é possível obter o par preciso de casos que o nosso segundo cânone requer - casos que concordam em todos os antecedentes exceto A ou em todos os consequentes exceto a -, podemos ainda ser capazes, por um duplo emprego do método de concordância, de descobrir em que os casos que contêm A ou a diferem dos que não os contêm. Se compararmos vários casos em que ocorre a e descobrirmos que todos têm em comum a circunstância A, e (tanto quanto pode-se observar) nenhuma outra circunstância, o método de concordância, até agora, testemunha uma conexão entre A e a. Para converter essa prova de conexão em prova de causação pelo método direto de diferença, devemos ser capazes, em algum desses casos, como por exemplo ABC, de deixar de lado A e observar se, fazendo isso, a é anulado. Agora, suponhamos (o que é frequente) que não estamos aptos a tentar esta experiência decisiva; ainda assim, desde que possamos descobrir por algum meio qual seria o resultado se pudéssemos tentá-lo, a vantagem será a mesma. Suponhamos, pois, que, assim como examinamos previamente uma variedade de casos em que a ocorreu e descobrimos que concordam no fato de conter A, da mesma maneira agora observamos uma variedade de casos em que a não ocorre e descobrimos que concordam no fato de não conterem A, o que estabelece, pelo método de concordância, a mesma ligação entre a ausência de A e a ausência de a que antes fora estabelecida entre suas presenças. Assim como, pois, fora demonstrado que sempre que A está presente a também está presente, da mesma maneira, sendo agora demonstrado que quando A é tirado a também é removido juntamente com ele, temos, por uma proposição ABC, abe e por outra BC, bc, os casos positivos e negativos que o método de diferença requer. Este método pode ser chamado de método indireto de diferença, ou o método unido de concordância e diferença, e consiste em um duplo emprego do método de concordância, sendo cada prova independente da outra e ao mesmo tempo corroborante dela. Mas não é equivalente a uma prova pelo método direto de diferença. Pois os requisitos do método de diferença não são preenchidos a não ser que possamos estar absolutamente seguros ou de que os casos afirmativos de a não concordam com nenhum outro antecedente a não ser A, ou de que os casos negativos de a concordam única e exclusivamente com a negação de A. Agora, se fosse possível - o que nunca é ter essa certeza, não teríamos necessidade desse método unido, pois qualquer um dos dois grupos de casos tomados separadamente seria suficiente para provar a causação. Este método indireto, portanto, pode ser encarado unicamente como uma grande extensão e aperfeiçoamento do método de concordância, mas não como participante da natureza mais própria do método de diferença. Pode-se estabelecer como seu cânone o seguinte: TERCEIRO CÂNONE Se dois ou mais casos em que ocorre o fenômeno têm apenas uma circunstância em comum, enquanto dois ou mais casos em que ele não ocorre não têm nada em comum além da ausência dessa circunstância, essa única circunstância pela qual os dois grupos de casos diferem é o efeito, ou a causa, ou uma parte necessária da causa do fenômeno. Veremos, agora, que o método unido de concordância e diferença constitui, em um outro aspecto ainda não examinado, um aperfeiçoamento do método comum de concordância, a saber, é isento de uma imperfeição característica desse método, cuja natureza nos resta indicar. Mas, como não podemos entrar nesta exposição sem introduzir um novo elemento de complexidade nesta longa e intricada discussão, transferi-la-ei para um capítulo subsequente e imediatamente procederei ao estabelecimento de dois outros métodos, que completarão a enumeração dos meios que a humanidade possui para investigar as leis da natureza pela observação científica e a experiência. 5. Método dos resíduos O primeiro desses dois métodos tem sido apropriadamente denominado o método dos resíduos. Seu princípio é muito simples. Tirando-se de algum fenômeno dado todas as partes que, por força de induções precedentes, podem ser atribuídos a causas conhecidas, o que resta será o efeito dos antecedentes que foram negligenciados ou cujo efeito era ainda uma quantidade desconhecida. Suponhamos, como anteriormente, que temos os antecedentes ABC seguidos dos consequentes abc e que, por induções anteriores (supomos que fundadas no método de diferença), determinamos as causas de alguns desses efeitos, ou os efeitos de algumas dessas causas, e que assim ficamos sabendo que o efeito de A é a, e o efeito de B, b. Subtraindo do fenômeno total a soma desses efeitos, resta c, que, agora, sem absolutamente nenhuma outra experiência, é reconhecido como efeito de C. Este método de resíduos é, no fundo, uma modificação particular do método de diferença. Se o caso ABC, abc pudesse ter sido comparado com um caso único AB, ab, teríamos provado, pelo procedimento ordinário do método de diferença, que C é a causa de c. No exemplo, em lugar de um caso único AB, foi preciso estudarmos separadamente as causas A e B e inferir dos efeitos que cada uma produz o efeito que teriam produzido no caso ABC, onde operavam em conjunto. Assim, dos dois casos requeridos pelo método de diferença - um positivo, outro, negativo -, o negativo, isto é, aquele no qual o fenômeno é ausente, não é o resultado direto da observação e da experimentação, mas foi obtido por dedução. Sendo uma das formas do método de diferença, o método dos resíduos participa de sua rigorosa certeza, visto que as induções prévias, as que davam os efeitos de A e B, são obtidas pelo mesmo procedimento infalível, e visto que estamos certos de que C é o único antecedente ao qual o fenômeno-resíduo c pode ser ligado, o único agente cujo efeito não tinha sido já calculado e excluído. Mas, como não podemos jamais ter esta inteira certeza, a prova dada pelo método dos resíduos não é completa - a menos que possamos obter C artificialmente e experimentá-lo separadamente, ou, ainda, a menos que sua ação, uma vez indicada, não possa ser explicada e dedutivamente derivada de leis conhecidas. Mesmo com tais restrições, o método dos resíduos é um dos mais importantes instrumentos de descoberta. Ele é, de todos os procedimentos de investigação da natureza, o mais fértil em resultados inesperados; faz-nos conhecer frequentemente sucessões nas quais nem a causa nem o efeito eram bastante manifestos para atrair a atenção dos observadores. O agente C pode ser uma circunstância obscura, que, provavelmente, não perceberíamos, a menos que o procurássemos, e muito provavelmente não o teríamos procurado se nossa atenção não tivesse sido despertada pela insuficiência das causas conhecidas para dar conta da totalidade do efeito; e c pode se esconder tão bem, misturado que está com a e b, que dificilmente teria se apresentado espontaneamente como objeto específico de exame. Daremos em seguida alguns exemplos notáveis do emprego do método dos resíduos. Eis o seu cânone: QUARTO CÂNONE Subtraindo de um fenômeno a parte que sabemos, por induções anteriores, ser o efeito de alguns antecedentes, o efeito dos antecedentes restantes é o resíduo do fenômeno. 6. Método das variações concomitantes Resta uma classe de leis que não é possível determinar por nenhum dos três métodos já caracterizados. São as leis dessas causas permanentes, desses agentes naturais indestrutíveis, impossíveis de serem ao mesmo tempo excluídas e isoladas; não podemos impedi-los de estarem presentes, nem fazer com que se apresentem sozinhos. Pareceria, primeiramente, que não poderíamos de nenhuma maneira separar os efeitos desses agentes dos desses outros fenômenos com os quais não podemos impedi-los de coexistir. Para a maior parte das causas permanentes, entretanto, essa dificuldade não existe, pois, embora não possam ser eliminadas como fatos coexistentes, elas podem sê-lo como agentes influentes, podemos experimentá-las num local fora dos limites de sua ação. As oscilações do pêndulo, por exemplo, perturbam-se com a proximidade de uma montanha; quando afastamos o pêndulo da montanha, o desarranjo desaparece. Podemos, baseados nesses dados, determinar, pelo método de diferença, a soma de efeito devido à montanha, e, além de uma certa distância, tudo se passa precisamente como se a montanha não exercesse, de maneira nenhuma, influência; disto podemos concluir que, com efeito, tal ocorre assim. A dificuldade de aplicar os métodos precedentemente descritos para determinar os efeitos das causas permanentes é restrita aos casos em que nos é impossível sair dos limites de sua influência. O pêndulo pode se livrar da influência da montanha, mas não pode se livrar da influência da Terra. Não podemos distanciar o pêndulo da Terra nem a Terra do pêndulo, para ver se suas oscilações continuariam uma vez suprimida a ação que a Terra exerce sobre ele. Fundados em que prova, pois, atribuímos suas vibrações à influência da Terra? Não numa prova sancionada pelo método de diferença, pois falta um dos dois casos, o negativo. Também não pelo método de concordância, pois, embora todos os pêndulos concordem que, durante suas oscilações, a Terra está sempre presente, não poderíamos atribuir o fenômeno ao sol, que é igualmente um fato coexistente em todas as experiências? É evidente que, para estabelecer um fato de causação tão simples, seria necessário um outro método além dos que foram expostos. Tomemos um outro exemplo, o fenômeno calor. Independentemente de qualquer hipótese sobre a natureza real do agente assim chamado, é certo, de fato, que nos é impossível privar um corpo qualquer de todo o seu calor. É certo igualmente que nunca se viu calor a não ser emanando de um corpo. Não podendo, pois, separar corpo e calor, não é possível criar essa variação de circunstâncias que os três métodos precedentes requerem; não podemos determinar, por esses métodos, que quantidade dos fenômenos manifestados pelo corpo é devida ao calor que contém. Se pudéssemos observar um corpo ora com, ora sem seu calor, o método de diferença descobriria o efeito devido ao calor, à parte do calor devido ao corpo mesmo. Se pudéssemos observar o calor em circunstâncias não tendo nada em comum a não ser calor, e, consequentemente, não caracterizadas também pela presença de um corpo, determinaríamos, pelo método de concordância, os efeitos do calor, comparando um caso de calor com um corpo com um caso de calor sem um corpo; ou então, pelo método de diferença, qual é o efeito devido ao corpo se o restante devido ao calor tivesse sido assinalado pelo método dos resíduos. Nada disso, porém, nos é possível; e sem isto a aplicação de qualquer um dentre os três métodos para a solução do problema seria ilusória. Seria inútil pretender constatar, por exemplo, o efeito do calor excluindo dos fenômenos apresentados por um corpo tudo o que depende de suas demais propriedades, pois não se tendo jamais observado corpos sem calor, os efeitos devidos a este calor fariam parte dos resultados mesmos que queríamos excluir para que o efeito do calor pudesse se manifestar pelo resíduo. Se, consequentemente, só houvesse esses três métodos de investigação experimental, seríamos incapazes de determinar os efeitos devidos ao calor como causa. Mas temos ainda um recurso. Embora seja impossível excluir completamente um antecedente, podemos, nós mesmos, ou a natureza por nós, modificá-lo de alguma maneira. Por modificação, é preciso entender uma mudança que não chega à sua supressão total. Se uma certa modificação no antecedente A é sempre seguida de uma mudança no consequente a os outros consequentes b e c permaneceriam os mesmos, ou, vice-versa, se cada mudança em a é precedida de alguma modificação de A, sem que observemos mudança em todos os demais antecedentes, podemos estar seguros para concluir que a é, inteira ou parcialmente, um efeito de A, ou, pelo menos, é ligado de alguma maneira a A causalmente. Para o calor, por exemplo, embora não possamos expulsá-lo completamente de um corpo, podemos modificar sua quantidade, aumentá-la ou diminuí-la; e desta maneira compreendemos, pelos diferentes métodos de experimentação e de observação, que o aumento ou diminuição de calor é seguido da expansão ou contração do corpo. Podemos, então, concluir - o que seria impossível de outro modo - que um dos efeitos do calor é aumentar o volume do corpo, ou, em outras palavras, aumentar as distâncias entre suas partículas. Uma mudança que não chega à supressão total da coisa, ou seja, que a deixa como era antes, deve relacionar-se, seja em sua quantidade, seja em alguma das relações variáveis com outras coisas. Sua principal relação é sua posição no espaço. No exemplo precedente, a modificação do antecedente afetava sua quantidade. Suponhamos agora que se trata de saber que influência exerce a lua para ver quais fenômenos terrestres sua ausência faria cessar. Mas quando compreendemos que todas as variações nas posições da lua são seguidas de variações correspondentes de lugar e de tempo na maré alta, o lugar sendo sempre a parte da Terra mais próxima ou afastada da lua, temos plenamente a prova de que a lua é, total ou parcialmente, a causa que produz as marés. Constatamos geralmente, como nesse exemplo, que as variações de um efeito correspondem ou são análogas às de sua causa. Assim, quando a lua avança para o oriente, a onda faz o movimento na mesma direção. Esta não é, porém, uma condição indispensável, pois vemos, neste mesmo exemplo, que quando o mar se eleva num ponto, eleva-se no mesmo instante num ponto diametralmente oposto e, consequentemente, avança necessariamente para oeste, enquanto que a lua, seguida pelas ondas que lhe estão mais próximas, vai para o leste; entretanto, esses dois movimentos são igualmente efeitos do movimento da lua. Provamos da mesma maneira que as oscilações do pêndulo são produzidas pela Terra. Essas oscilações acontecem entre pontos equidistantes aos dois lados de uma linha que, sendo perpendicular à Terra, varia com cada variação da posição da terra no espaço ou relativamente ao objeto. A rigor, este método nos faz saber somente que todos os corpos terrestres tendem para a Terra e não para um ponto fixo desconhecido situado na mesma direção. Cada vinte e quatro horas, pela rotação da Terra, a linha tirada do corpo à Terra por ângulos retos coincide sucessivamente com todos os raios de um círculo, e, no curso de seis meses, o lugar de um círculo varia em torno de duzentos milhões de milhas. Entretanto, a linha segundo a qual os corpos tendem a cair conserva, em todas essas mudanças de posição da Terra, a mesma direção; o que prova que o peso terrestre é dirigido para a Terra, e não, como se tinha imaginado, para um ponto fixo do espaço. O método pelo qual obtemos tais resultados pode ser denominado o método das variações concomitantes. Ele se expressa no seguinte cânone: QUINTO CÂNONE Um fenômeno que varia de uma certa maneira todas as vezes que um outro fenômeno varia da mesma maneira, é ou uma causa, ou um efeito desse fenômeno, ou a ele está ligado por algum fato de causação. Ajuntamos esta última cláusula porque o fato de dois fenômenos se acompanharem sempre em suas variações não se segue, de nenhuma maneira, que um é a causa ou o efeito do outro. Esta circunstância pode, e deve mesmo acontecer, se são dois efeitos diferentes de uma causa comum; assim, somente por este método jamais conseguiríamos decidir qual das suposições é a verdadeira. O único meio de dissipar a dúvida seria aquele que temos sempre lembrado, a saber, assegurar-se de que se pode produzir um dos grupos de variações pelo outro. No caso do calor, por exemplo, aumentamos o volume de um corpo elevando sua temperatura; mas, aumentando seu volume, não elevamos sua temperatura; pelo contrário, é mais frequente que a abaixemos (como na rarefação do ar sob o recipiente da máquina pneumática); e, consequentemente, o calor é uma causa, e não um efeito, do aumento de volume. Se não podemos produzir nós mesmos as variações, é preciso esforçarmo-nos, embora o consigamos muito raramente, para encontrá-las realizadas pela natureza em alguns casos cujas circunstâncias pré-existentes são perfeitamente conhecidas. É, no entanto, necessário dizer que para determinar a constante concomitância das variações no efeito e nas variações na causa é preciso usar precauções semelhantes às que se usam em qualquer outra constatação de uma sucessão invariável. É preciso, enquanto o antecedente particular é submetido à série de variações requerida, nada mudar em todos os demais; ou, em outras palavras, para poder inferir a causação da concomitância das variações, é preciso que a concomitância ela mesma seja verificada pelo método de diferença. Pareceria, primeiramente, que o método das variações concomitantes supõe um novo axioma, uma nova lei de causação em geral, a saber, que toda modificação da causa é seguida de uma mudança no efeito. E acontece ordinariamente que quando um fenômeno A produz um fenômeno a cada variação na quantidade ou nas diferentes relações de A é sempre seguida de uma variação na quantidade ou nas relações de a. Tomemos um exemplo familiar, o da gravitação. O sol produz uma certa tendência da Terra ao movimento. Temos aqui causa e efeito; mas esta tendência é para o sol, e consequentemente, muda a direção à medida que o sol muda sua relação de posição, e, mais, ela varia de intensidade numa proporção numérica à distância do sol à Terra, isto é, segundo uma outra relação do sol. Vemos assim que não somente há uma conexão invariável entre o sol e a gravitação da Terra, mas também que duas das relações do sol - sua posição relativa à Terra e à sua distância - são invariavelmente ligadas como antecedentes à quantidade e à direção da gravitação da Terra. A causa da gravitação da Terra é simplesmente o sol; mas a causa da intensidade e da direção determinadas da gravitação é a existência do sol a uma distância e numa posição determinadas. Não há nada de espantoso que uma causa modificada - que, de fato, é uma causa diferente - produza um efeito diferente. Embora seja verdadeiro que a modificação da causa é seguida da modificação do efeito, o método das variações concomitantes não o supõe como axioma. Ele apenas supõe a proposição conversa: uma coisa cujas modificações têm sempre por consequentes as modificações de um efeito deve ser a causa (ou deve estar ligada à causa) deste efeito; proposição evidente, pois se a coisa mesma não tem influência no efeito, as modificações da coisa não poderiam ter de maneira nenhuma. Se as estrelas não influem no destino dos homens, os termos mesmos implicam que suas conjunções ou oposições também não influem. Se as mais salientes aplicações do método das variações concomitantes têm lugar nos casos onde o método de diferença propriamente dito é impraticável, seu emprego, no entanto, não se limita a esses casos. Ele pode frequentemente ser empregado com proveito depois do método de diferença, para precisar mais a solução obtida por intermédio daquele. Quando, pelo método de diferença, constatamos que um certo objeto produz um certo efeito, o método das variações concomitantes pode intervir para determinar segundo que lei a quantidade ou as diferentes relações do efeito seguem as da causa. 7. Limitações deste último método A aplicação mais ampla desse método ocorre nos casos onde as variações da causa se registram quanto à quantidade. Podemos, em geral, estar seguros de que as variações desta classe serão acompanhadas não somente de variações do efeito, mas também de variações semelhantes, a proposição "Mais há na causa, mais há no efeito" sendo um corolário do princípio da composição das causas que, como vimos, é a regra geral da causação. Por outro lado, os casos opostos, aqueles nos quais a causa muda de propriedades quando se junta a uma outra, são excepcionais e especiais. Suponhamos, pois, que quando A varia em quantidade, a também varia em quantidade, e de tal maneira que possamos estabelecer à relação numérica das mudanças de um às de outro nos limites da observação. Podemos, então, tomando algumas precauções, concluir com segurança que a mesma relação numérica se sustentará além desses limites. Por exemplo, quando A é duplo, a é duplo; quando A é triplo ou quádruplo, a é triplo ou quádruplo, podemos concluir que se A fosse a metade ou um terço, a seria a metade ou um terço, e, finalmente, se A fosse aniquilado, a o seria também, e que a é na totalidade o efeito de A ou de uma mesma causa com A. Do mesmo modo para qualquer outra relação numérica, segundo a qual A e a desapareceriam simultaneamente, como, por exemplo, se a fosse proporcional ao quadrado de A. Se, de outro lado, a não é totalmente o efeito de A, mas no entanto varia quando A varia, é provavelmente uma função, não de A somente, mas de A e de algum outro, suas mudanças podendo ser como eles seriam se (uma de suas partes permanecendo constante ou variando segundo algum outro princípio) o restante variasse numa relação numérica com as variações de A: neste caso, quando A diminuir, a avançará não para o zero, mas para algum outro limite, e quando a série das variações indica o que é este limite, se constante, ou a lei de sua variação, se variável, o limite medirá exatamente que quantidade de a é o efeito de uma causa independente, e o resto será o efeito de A (ou da causa de A). Não devemos, entretanto, estabelecer essas conclusões sem antes tomar algumas precauções. Em primeiro lugar, "a possibilidade de estabelecê-las supõe evidentemente que não somente as variações, mas também as quantidades absolutas de A e de a são conhecidas. Se não conhecemos as quantidades totais, não poderemos determinar a relação numérica na qual essas quantidades variam. É, pois, um erro concluir, como se tem feito, que o aumento de calor dilata os corpos, isto é, aumenta a distância entre suas partículas, que esta distância é inteiramente o efeito do calor, e que se o corpo pudesse se apresentar completamente privado de calor, suas partículas estariam absolutamente juntas. Esta é apenas uma conjetura, das mais casuais, e não uma indução legítima, pois já que não sabemos nem que quantidade de calor existe em um corpo, nem qual a distância entre duas de suas moléculas, não podemos julgar se a diminuição da distância segue ou não a diminuição de quantidade de calor numa relação tal que as duas quantidades deverão desaparecer simultaneamente. Consideremos agora um caso inverso, onde as quantidades absolutas são conhecidas: trata-se daquele que oferece a primeira lei do movimento, a saber, que os corpos em movimento continuam a se mover em linha reta com uma velocidade uniforme até que uma nova força os influencie. Esta asserção é manifestamente contrária às primeiras aparências. Todos os objetos terrestres, postos em movimento, diminuem gradativamente de velocidade e finalmente param. Isto, para os antigos, em virtude de sua inductio per enumerationem simplicem, era a lei. No entanto, todo corpo em movimento encontra diversos obstáculos, o atrito, a resistência do ar etc., que são, como a experiência cotidiana nos ensina, causas capazes de fazer cessar o movimento. Fomos levados a concluir que a diminuição gradativa de movimento era inteiramente produzida por essas causas. Mas, como nos asseguraremos disso? Se os obstáculos pudessem ter sido afastados, o caso poderia ter sido abordado pelo método de diferença. Mas não podiam sê-lo; podiam tão-somente ser diminuídos, e o caso, consequentemente, se submeteria ao método das variações concomitantes. Aplicando este método, soubemos que cada diminuição dos obstáculos diminuía a desaceleração do movimento; como aqui (inversamente ao caso de calor) as quantidades totais do antecedente e do consequente eram conhecidas, foi possível fazermos uma estimativa, com exatidão aproximada, da soma da desaceleração e da soma das causas retardatárias das resistências ao mesmo tempo, e julgarmos quando ambas estavam perto de se esgotarem; vimos que o efeito decrescia tão rapidamente e estava tão próximo do esgotamento, quanto a causa. A simples oscilação de um peso suspenso num ponto fixo, que, nas circunstâncias ordinárias, dura apenas alguns minutos, continuou nas experiências de Borda durante mais de trinta horas, diminuindo tanto quanto possível o atrito no ponto de suspensão e fazendo mover o pêndulo num espaço tão completamente quanto possível privado de ar. Não devemos, pois, mais hesitar em atribuir a desaceleração do movimento somente à influência dos obstáculos. E, já que, após ter subtraído do fenômeno total essa desaceleração, o que restava era uma velocidade uniforme, a conclusão foi a fórmula mesma da primeira lei do movimento. Esta conclusão - a lei da variação das quantidades tal como a fornece a observação ultrapassa seus limites - é afetada por uma outra incerteza característica. Primeiramente, é possível que além desses limites e, consequentemente, em circunstâncias de que não tem experiência direta, apareça alguma causa agindo em sentido contrário, seja um novo agente, seja uma nova propriedade dos agentes presentes, que nas circunstâncias observadas, se ocultaria. Eis aí um elemento de incerteza com o qual é preciso contar em nossas previsões dos efeitos, mas que não é exclusivamente própria do método das variações concomitantes. Entretanto, a incerteza de que quero falar é característica deste método, sobretudo nos casos onde os limites extremos da observação são muito restritos comparativamente às variações de quantidade possíveis. Um conhecimento mínimo das matemáticas permite que vejamos que leis de variação muito diferentes podem produzir resultados numéricos que diferem muito pouco, e em estreitos limites. Ocorre frequentemente - quando as somas das variações são consideráveis - que a diferença entre os resultados fornecidos por uma lei e por uma outra toma-se apreciável. Quando, consequentemente, as variações de quantidade dos antecedentes constatáveis pela observação são fracas comparativamente às quantidades totais, há motivos suficientes para temermos que falte a lei numérica e que as variações que aconteceriam além dos limites sejam mal calculadas. Tal erro viciaria a conclusão que teríamos dessas variações quanto à relação de dependência do efeito à causa. Abundam os exemplos de erros desse tipo. "As fórmulas", diz Sir John Herschel, "deduzidas empiricamente (até muito recentemente) para a elasticidade do vapor, para a resistência dos fluidos e outros assuntos semelhantes, têm sido, quase sempre, incapazes de sustentar as construções teóricas alicerçadas em seus fundamentos" quando se quis estendê-las além dos limites das observações de que eram deduzidas. Nesta incerteza, não podemos considerar como resultado de indução completa a conclusão que tiraríamos das variações concomitantes de a e A, quanto à sua conexão invariável e exclusiva, ou quanto à permanência da relação numérica de suas variações, quando as quantidades são muito maiores ou muito menores do que as que puderam ser deduzidas da observação. O que provamos, nesse caso, quanto à causação, é que houve conexão entre dois fenômenos - A ou alguma coisa que pode influenciar A deve ser uma das causas que, coletivamente, determinam a. Podemos, entretanto, estar seguros de que a relação das variações de A e de a constatada pela observação será encontrada em todos os casos colocados entre os mesmos limites extremos, isto é, todas as vezes que o maior aumento ou diminuição onde o resultado coincidiu com a lei não é ultrapassado. Os quatro métodos que acabam de ser expostos são os únicos modos possíveis da pesquisa experimental, da indução direta a posteriori, enquanto distinta da dedução; pelo menos, não conheço e nem posso imaginar outros. Mesmo o método dos resíduos não é, como vimos, independente da dedução; mas, como requer também a experiência específica, podemos, sem impropriedade, classificá-lo entre os métodos de observação direta e de experimentação. Esses métodos, pois, com a ajuda que pode fornecer a dedução, compõem a soma dos recursos da mente humana para determinar as leis da sucessão dos fenômenos. Antes de passar ao exame de algumas circunstâncias que aumentam imensamente a complicação e a dificuldade desses métodos, convém dar alguns exemplos emprestados às ciências físicas atuais para podermos compreender o seu emprego. CAPÍTULO IX Diversos exemplos dos quatro métodos 1. Objeções do dr. Whewell aos quatro métodos O dr. Whewell opinou bastante desfavoravelmente quanto à utilidade dos quatro métodos, e ao mesmo tempo quanto à propriedade dos exemplos pelos quais tentei esclarecê-los. Eis suas palavras: "Quanto a esses métodos, a primeira observação a fazer é que tomam como estabelecida a coisa mais difícil de se descobrir: a redução dos fenômenos a fórmulas como as que se indicam. Quando um conjunto complexo de fatos se nos oferece, por exemplo implicados nas descobertas precedentemente citadas, a órbita dos planetas, a queda dos corpos, a refração da luz, os movimentos cósmicos, a análise química; e quando, nesses casos, procuramos descobrir a lei da natureza que os rege - ou, se se prefere exprimir de outra maneira, o traço comum a todos -, quem sonhou com ABC, e abc? A natureza não apresenta os fatos desta forma. E como os reduziremos a isto? Quando, dizeis, encontramos a combinação de ABC com abc e de ABD com abd, poderemos, então, tirar a conclusão. Certo; mas quando e onde encontraremos essas combinações? Mesmo agora, que as descobertas são feitas, o que nos indicará quais são os elementos ABC e abc dos casos que acabam de ser citados? Quem nos dirá a qual destes métodos essas pesquisas reais e felizes podem servir de exemplo? Quem encontrará tais fórmulas em toda a história das ciências, tais como se formaram e cresceram realmente, e nos fará ver que esses quatro métodos funcionaram ativamente em sua formação, ou que se jogaria alguma luz sobre sua marcha progressiva reportando-os a tais fórmulas?" O dr. Whewell ajunta que na presente obra os métodos não foram aplicados "a uma grande massa de exemplos notáveis e autênticos de descobertas, estendendo-se à história inteira da ciência", o que certamente teria sido necessário fazer para provar que os métodos possuem "a vantagem" (que o dr. Whewell atribui ao seu) de serem "aqueles por meio dos quais todas as grandes descobertas da ciência foram, na realidade, feitas". As objeções aos cânones da indução parecem-se muito com as que no último século homens de valor, como o dr. Whewell, endereçavam ao cânone reconhecido do raciocínio. Aqueles que protestavam contra a lógica de Aristóteles diziam do silogismo o que o dr. Whewell diz dos métodos indutivos, "que ele toma como estabelecida a coisa mais difícil de descobrir, a redução do argumento em fórmulas como as que se indicam". A grande dificuldade, diziam, é estabelecer o silogismo, e não, após o seu estabelecimento, julgar se é correto. Como questão de fato, tinham, e o dr. Whewell tem, como eles, razão. A maior dificuldade em ambos os casos é, primeiramente, ter a matéria da prova, e, em seguida, reduzi-la à forma própria para torná-la concludente. Mas se se pretende reduzi-la sem saber para que, então não se está verdadeiramente muito perto de fazer muito progresso. É mais difícil resolver um problema de geometria do que julgar se uma solução proposta é boa; mas aqueles que seriam incapazes de julgar a solução, quando é encontrada, não teriam nenhuma chance de encontrá-la. E não se pode dizer que julgar uma indução, depois que é feita, seja coisa fácil, e não necessite de ajuda ou de instrumentos; pois as induções errôneas, as más conclusões tiradas da experiência, são tão comuns quanto - e mesmo em algumas questões mais comuns - as induções legítimas. A lógica indutiva deve fornecer regras e modelos (como o são as regras silogísticas para o raciocínio) para os argumentos indutivos, que só são concludentes quando a eles se conformam. É isso que os quatro métodos pretendem estabelecer, e estabelecem, penso, segundo o consenso universal dos experimentadores e sábios que os empregaram muito tempo antes que alguém sonhasse em teorizar esta prática. Os adversários do silogismo anteciparam o dr. Whewell também na outra parte de seu argumento. Diziam que nenhuma descoberta tinha sido feita pelo silogismo, e o dr. Whewell diz, ou parece dizer, a mesma coisa dos quatro métodos de indução. Aos primeiros o arcebispo Whately respondeu, pertinentemente, que se seu argumento contra o silogismo fosse bom, então seria bom também contra a operação do raciocínio, pois o que não é redutível ao silogismo não é um raciocínio; e se o argumento do dr. Whewell é bom, então é também bom contra todas as inferências da experiência. Dizer que nenhuma descoberta foi feita pelos quatro métodos é dizer que nenhuma foi feita pela observação e experimentação; pois, certamente, se houve alguma, ela foi feita por procedimentos redutíveis a um ou outro de tais métodos. A divergência sobre esse ponto explica por que ele não se satisfaz com meus exemplos. Com efeito, não os escolhi para satisfazer àqueles que pedem que se prove que a observação e a experiência são modos de aquisição do conhecimento. Advogo que, ao escolhê-los, tinha somente o objetivo de esclarecer e facilitar a compreensão desses métodos por exemplos concretos. Se quisesse justificar os procedimentos como meios de investigação, não necessitaria procurar tão longe, e empregar casos complicados e difíceis. Como espécime da constatação de uma verdade pelo método de concordância, poderia ter tomado esta proposição: "Os cachorros latem". Este cachorro, aquele e um terceiro correspondem a ABC, ADE, AFG; a circunstância de ser cachorro corresponde a A e latir a a. Como verdade conhecida pelo método de diferença, a proposição "O fogo queima" teria bastado. Antes de tocar o fogo, não me queimo; eis BC. Toco o fogo e me queimo; eis ABC, abc. Esses procedimentos experimentais familiares não são induções para o dr. Whewell. São, entretanto, perfeitamente homogêneos aos que, mesmo em sua própria exposição, formam a base da pirâmide da ciência. Ele tenta em vão escapar dessa verdade impondo as restrições mais arbitrárias à escolha de casos admissíveis como exemplos de induções. Estes não podem, segundo o dr. Whewell, ser bons, nem quando oferecem matéria para discussão (p. 265), nem, geralmente, se são emprestados aos fatos psicológicos ou sociais (p. 269), ou à observação ordinária e à vida prática (pp. 241-247). Devem ser tirados exclusivamente das generalizações pelas quais os sábios chegaram até as leis superiores e compreensivas dos fenômenos naturais. Ora, raramente é possível, nessas pesquisas complexas, ir muito além das premissas sem o socorro da dedução, e sem a ajuda temporária das hipóteses, como sustentação, com o dr. Whewell, contra a escola empírica pura. Tais casos não podem ser escolhidos como exemplos de aplicação dos princípios da observação e da experimentação puras. O dr. Whewell se prevalece disso para dizer que os métodos experimentais não servem para nada na pesquisa científica, esquecendo-se de que se esses métodos não tivessem fornecido as primeiras generalizações, os materiais teriam estado ausentes quando da indução, tal mesmo como a concebe. É, de resto, fácil responder ao desafio de mostrar a quais dos quatro métodos alguns casos importantes de investigação científica podem servir de exemplos. "A determinação das órbitas planetárias" - se e enquanto é um caso de indução - submete-se ao método de concordância. A lei da "queda dos corpos", a saber, que percorrem espaços proporcionais ao quadrado do tempo, foi - é histórico - uma dedução da primeira lei do movimento; mas as experiências pelas quais foi verificada e pelas quais poderia ter sido descoberta eram exemplos do método de concordância; e o desvio aparente da lei produzido pela resistência do ar foi explicado por experiências in vacuo, ou seja, aplicações do método de diferença. A lei da "refração dos raios luminosos" (a proporção constante das sinuosidades de incidência e de refração em cada substância refratária) foi estabelecida por uma mensuração direta e, consequentemente, pelo método de concordância. Os "movimentos cósmicos" foram determinados por operações mentais muito complexas, nas quais predominava a dedução; mas os métodos de concordância e das variações concomitantes participaram bastante do estabelecimento das leis empíricas. Todos os casos, sem exceção, "de análise química", são exemplos marcantes do método de diferença. Qualquer um entende essas matérias, e até o dr. Whewell não teria a menor dificuldade para designar os "elementos ABC, e abc" de tais casos. Se se fazem descobertas somente pela observação "e a experimentação, sem a dedução, os quatro métodos são procedimentos de descoberta. Se, porém, não fossem procedimentos de descoberta, nem por isso seria menos verdadeiro que são os únicos procedimentos de prova; e, a esse respeito, todos os resultados da dedução se ligam a eles. As grandes generalizações iniciadas como hipóteses devem no fim ser provadas, e é, na realidade (como se mostrará adiante), pelos quatro métodos que elas o são. Na verdade, esta distinção não pode agradar ao dr. Whewell, pois é uma particularidade de seu sistema não admitir a necessidade da prova nos casos de indução. Se, após ter estabelecido uma hipótese e tê-la aproximado cuidadosamente dos fatos, não encontramos nada de inconciliável com ela, isto é, se a experiência não a infirma, é, então, plenamente satisfatória, pelo menos até que uma hipótese mais simples, igualmente conciliável com a natureza, se apresente. Certamente, se isto é indução, então os quatro métodos são desnecessários. Para mim, admitir, porém, isto é ter uma ideia radicalmente falsa da natureza da constatação das verdades físicas. Na prática, a indução tem de tal maneira necessidade de uma espécie de pedra de toque semelhante à do procedimento silogístico para o raciocínio, que conclusões contrárias às noções mais elementares da lógica indutiva são tiradas, sem nenhuma desconfiança, por eminentes homens de ciência, tão logo saiam do terreno dos fatos onde não se reduziam somente ao recurso do raciocínio. Quanto aos homens instruídos, em geral, é duvidoso que sejam agora melhores juízes de uma boa ou má indução do que o eram antes que Bacon tivesse escrito. O aperfeiçoamento dos resultados da ciência raramente se estende a seus procedimentos, ou, se isto ocorre, é por causa do procedimento de investigação somente, e não por causa da prova. Não é duvidoso que várias leis da natureza foram estabelecidas formando-se primeiramente hipóteses de que se reconheceu em seguida a conformidade com os fatos; e que muitos erros se dissiparam pelo conhecimento de fatos inconciliáveis; não, porém, notando que a direção do pensamento que conduzira ao erro- era falível, e que esse vício intrínseco poderia ter sido conhecido independentemente dos fatos que infirmam tal ou tal conclusão. É o fato de que, enquanto a mente humana, na prática, funcionou corretamente em muitos casos, a faculdade pensante permaneceu bastante fraca; e todos os assuntos onde os fatos que controlariam os resultados não são acessíveis (como é o caso do mundo invisível, e mesmo do mundo visível das regiões planetárias), os homens mais sábios raciocinam tão lastimavelmente quanto os mais puros ignorantes, porque, embora façam excelentes induções, não aprendem com isso (e o dr. Whewell pensa não ser necessário que aprendam) os princípios da prova indutiva. CAPÍTULO X Da pluralidade das causas e da mistura dos efeitos 1. Um efeito pode ter várias causas Na exposição dos quatro métodos de observação e de experimentação com a ajuda dos quais procuramos discernir numa massa de fenômenos coexistentes o efeito particular de uma causa dada ou a causa particular de um fato dado, foi necessário supor, primeiramente, simplificando, que esta operação analítica só encontra dificuldades inerentes à sua própria natureza; e, em seguida, considerar cada efeito, de uma arte, ligado exclusivamente a uma única causa, e, de outra, não podendo ser confundido com algum outro efeito coexistente. Nós nos representamos abcde - o agregado de fenômenos existindo num certo momento - composto de fatos dissemelhantes, abcd e e, para cada um dos quais era preciso procurar uma causa, e uma causa somente; a única dificuldade consistia, então, em isolar esta causa única da multidão das circunstâncias antecedentes A, B, C, D, e A. A causa pode não ser simples; pode consistir em um conjunto de condições; mas supusemos que havia apenas um único conjunto de condições possíveis ao qual o efeito dado pudesse ser atribuído. Se estes fossem os fatos, a investigação das leis da natureza seria coisa relativamente fácil. Mas a suposição não é verdadeira em nenhuma de suas partes. Em primeiro lugar, não é verdade que o mesmo fenômeno é sempre produzido pela mesma causa, pois o efeito a pode algumas vezes provir de A, outras de B; e, em segundo lugar, os efeitos de causas diferentes podem frequentemente não ser dissemelhantes, e sim homogêneos e não-discerníveis entre si por limites assinaláveis. A e B podem não produzir a e b, mas partes diferentes de um efeito a. A obscuridade e a dificuldade da investigação das leis naturais aumentam singularmente pela necessidade de haver referência a essas duas circunstâncias: o entrecruzamento dos efeitos e a pluralidade das causas. Examinaremos a última em primeiro lugar, porque é a mais simples. Assim, dizíamos, não é verdade-que um efeito depende sempre de uma única causa ou de um único conjunto de condições, ou que um fenômeno não possa ser produzido senão de uma maneira. Há, frequentemente, para o mesmo fenômeno, vários modos de produção independentes. Um fato pode ser o consequente em várias sucessões invariáveis; pode também, com a mesma uniformidade, seguir tal ou tal dos antecedentes ou dos conjuntos de antecedentes. Uma multidão de causas pode produzir o movimento; uma multidão de causas pode produzir algumas sensações; uma multidão de causas pode produzir a morte. Um efeito dado, embora produzido na realidade por uma certa causa, pode, no entanto, ser produzido sem ela. 2. - daí a imperfeição característica do método de concordância Uma das principais consequências da pluralidade das causas é tomar incerto o primeiro dos métodos indutivos, o método de concordância. Para a explicação desse método, supuséramos dois casos, ABC seguido de abc, e ADE seguido de ade. Nesses exemplos, poderíamos evidentemente concluir que A é um antecedente invariável de a, e mesmo que é o antecedente invariável incondicionado ou a causa, se estivéssemos seguros de que não há outro antecedente comum a ambos. Para superar esta dificuldade, é preciso supor que os dois casos não têm positivamente outro antecedente comum exceto A. No momento, entretanto, em que admitimos a possibilidade de uma pluralidade de causas, a conclusão é falha, porque implica a suposição tácita de que a foi produzido nos dois casos pela mesma causa. Se, por acaso, houvesse duas causas, por exemplo, C e E, uma poderia ser a causa de a no primeiro caso, a outra no segundo, e A não teria nenhuma influência em ambos. Suponhamos que dois grandes artistas, dois grandes filósofos, um extremamente egoísta e interesseiro, outro muito nobre e generoso, sejam comparados segundo a educação que receberam e as particularidades de sua vida, e que os dois casos concordem em uma única circunstância; seguir-se-ia que esta circunstância é a causa da qualidade característica desses dois homens? Nunca; pois as causas que podem produzir um caráter são inumeráveis, e os dois indivíduos poderiam ter também o mesmo caráter, embora não houvesse nenhuma semelhança em suas histórias. Esta é, pois, uma imperfeição característica do método de concordância, de que o método de diferença está isento. Pois, se temos dois casos, ABC e BC, dos quais BC dá bc, e pela adição de A se transforma em abc, é certo que, neste caso pelo menos, A era ou a causa de a ou uma parte indispensável da causa, mesmo quando a causa que o produziu em outros casos fosse diferente. Assim, a pluralidade das causas não somente diminui devido ao método de diferença, mas também toma desnecessário um maior número de observações ou de experiências. Dois casos, um positivo, outro negativo, bastam para a indução mais completa e rigorosa. Mas assim não ocorre com o método de concordância. As conclusões que fornece, quando o número de casos comparados é muito limitado, não têm valor real, senão a título de sugestões de experiências que as levam à jurisdição do método de diferença, ou as tomam suscetíveis de serem verificadas e explicadas dedutivamente pelo raciocínio. Esse resultado só adquire um alto grau de valor independente quando os casos, indefinidamente multiplicados e variados, dão sempre o mesmo resultado. Se só há dois casos, ABC e ADE, poderia, embora tenham apenas um antecedente, A, ocorrer de o efeito depender em ambos os casos de causas diferentes, e então não há mais do que uma ligeira probabilidade em favor de A. Pode haver, pois, causação nisto, mas é quase igualmente provável que haja só coincidência. Mais, porém, repetimos as observações e variamos as circunstâncias, mais nos aproximamos da solução dessa dúvida. Se, com efeito, temos que AFG, AHK, etc., diferem entre si, exceto na circunstância A, e que o efeito a figura em todos esses casos no resultado, devemos então supor uma dessas duas coisas: ou a é causado por A, ou há tanto causas como casos diferentes. Consequentemente, a presunção em favor de A aumenta em razão do aumento do número de casos. Não deixaremos, por outro lado, se uma ocasião favorável se apresentar, de excluir A de alguma dessas combinações, de AHK, por exemplo, e, observando HK separadamente, apelar para o método de diferença ajudado pelo método de concordância. Somente podemos constatar que A é a causa de a através do método de diferença; mas o método de concordância pode determinar mais seguramente se ele é a causa mesma ou um outro efeito da mesma causa, visto que os casos são ao mesmo tempo muito numerosos e bastante variados. Até onde, porém, é preciso multiplicar esses casos variados com apenas o antecedente comum A, para que a suposição de uma pluralidade de causas seja excluída, e a conclusão de que a depende de A se liberte desse defeito intrínseco e seja levada virtualmente à certeza? Eis uma questão a que estamos obrigados a responder. Seu exame, porém, pertence ao que se chama a teoria das probabilidades, objeto de um capítulo ulterior. Vê-se logo, entretanto, que a conclusão deve adquirir certeza prática após um número suficiente de casos, e, consequentemente, o método não está irremediavelmente viciado por sua imperfeição natural. Tais considerações têm por fim, unicamente, em primeiro lugar, assinalar uma nova causa de inferioridade no método de concordância comparado com os demais modos de investigação, e fornecer novos motivos para não nos contentarmos com os resultados obtidos por esse procedimento sem tentar confirmá-los, seja pelo método de diferença, seja vinculando-os dedutivamente a uma lei ou a leis já estabelecidas por este método superior; e, em segundo lugar, iniciar-se, com isto, na verdadeira teoria do valor do número dos casos na investigação indutiva. A pluralidade das causas é a única razão que dá alguma importância ao puro número. Apoiar-se muito no número dos casos sem analisá-los, sem estudar suficientemente de perto sua natureza, para determinar que circunstâncias devem ou não ser eliminadas - eis uma tendência própria às mentes estranhas aos hábitos científicos. O grau de certeza da maior parte das pessoas em suas conclusões existe em função da massa de experiência na qual parecem estar fundadas; sem considerar que a adição de caso a caso de mesma natureza, isto é, só diferindo entre si em pontos já reconhecidamente não-essenciais, não ajunta nada à força da conclusão. Um único caso em que faz falta algum antecedente existente em todos os demais tem mais valor do que uma multidão de casos, tão grande quanto queiramos, sem outra especificação além de seu número. Sem dúvida, é necessário assegurar-se, pela repetição das observações das experiências, de que nenhum erro foi cometido relativamente aos fatos observados, e, enquanto não adquirirmos esta certeza, não poderemos, em vez de variar as circunstâncias, repetir com muito cuidado a mesma observação ou experimentação sem nenhuma mudança. Mas, quando temos certeza, a multiplicação dos casos não oferecendo jamais mudança nas circunstâncias é inútil, visto que já há razões suficientes para excluir a suposição da pluralidade das causas. ( ... ) 3. Concurso de causas que não produzem efeitos compostos O concurso de duas causas ou mais que não produzem cada uma separadamente seu efeito próprio, mas misturam ou modificam seus efeitos reciprocamente, ocorre, como já explicamos, de duas maneiras diferentes. Numa, cujo exemplo em mecânica é o da ação combinada de várias forças, os efeitos separados de todas as causas continuam a se produzir, mas se combinam uns com os outros e desaparecem confundidos no efeito total. Na outra, que aparece sobretudo na ação química, os efeitos separados cessam completamente e são substituídos por fenômenos inteiramente diferentes e regidos por leis diferentes. Destes dois casos, o primeiro é muito mais frequente, e é este que, na maior parte, escapa do alcance de nossos métodos experimentais. O segundo, que é excepcional, vincula-se facilmente a isso. Quando as leis dos agentes primitivos cessam completamente e manifesta-se um fenômeno heterogêneo (por exemplo, duas substâncias gasosas, o hidrogênio e o oxigênio, colocados juntos, perdem suas propriedades originais e produzem a substância chamada água), o fato novo pode, nesse caso, se submeter à experimentação como qualquer outro fenômeno; e os elementos designados como seus componentes podem ser considerados simplesmente como os agentes de sua produção, como condições de sua manifestação, como fatos que completam sua causa. A experimentação descobre os efeitos do novo fenômeno (as propriedades da água, por exemplo) tão facilmente quanto os efeitos de qualquer outra causa. Mas a determinação de sua causa, isto é, da combinação particular dos agentes de que resulta, é frequentemente bastante difícil. E, de início, a origem e a produção atual do fenômeno são muitas vezes inacessíveis à observação. Se tivéssemos podido conhecer a composição da água encontrando os casos onde ela se forma com o oxigênio e o hidrogênio, teríamos sido forçados a esperar que a ideia de fazer passar uma faísca elétrica através de uma mistura dos dois gases viesse por acaso a qualquer um, ou aí mergulhar uma vela acesa unicamente para ver o que ocorreria. Por outro lado, muitas substâncias, embora decomponíveis, não podem ser recompostas por nenhum meio artificial conhecido. E mais, quando teríamos mesmo constatado, pelo método de concordância, que o hidrogênio e o oxigênio estavam presentes quando a água se produziu, nenhuma experiência sob o oxigênio e o hidrogênio separados, nem nada do que sabemos de suas leis, nos teria conduzido a inferir dedutivamente que produziriam a água. Com essas dificuldades, teríamos geralmente devido o conhecimento das causas desta classe de efeitos não a pesquisas especialmente instituídas para este fim, mas, seja ao acaso, seja ao progresso gradual da experimentação sobre as diversas combinações de que os agentes produtores são suscetíveis; os efeitos dessa natureza oferecem esta particularidade, e frequentem ente, pelo concurso de algumas circunstâncias, reproduzem suas causas. Se a água resulta da justaposição o suficientemente estreita e íntima do hidrogênio e do oxigênio, esta água, colocada sob certas condições, dará de novo o hidrogênio e o oxigênio; as novas leis serão bruscamente suspensas, e os agentes reaparecerão separados, cada um com suas propriedades primitivas. O que se chama de análise química é o procedimento para pesquisar as causas de um fenômeno em seus efeitos ou, antes, nos efeitos produzidos pela ação exercida sobre ele por outras causas. ( ... ) Quando dois fenômenos, cujas leis ou propriedades consideradas em si mesmas não têm mutuamente nenhuma conexão assinalável, são assim causa e efeito, cada um podendo por sua vez ser produzido pelo outro, e cada um, desde que produz o outro, cessando ele mesmo de existir (como a água é produzida pelo oxigênio e o hidrogênio, que são reproduzidos pela água), esta causação mútua dos fenômenos, de que cada um é engendrado pela destruição do outro, é propriamente uma transformação. A composição química implica a ideia de transformação, mas de uma transformação incompleta, já que admitimos que o hidrogênio e o oxigênio estão presentes na água como oxigênio e hidrogênio, e seriam perceptíveis se nossos sentidos fossem suficientemente sutis; suposição (pois não é nada mais do que isso) fundada unicamente no fato de que o peso da água é a soma dos pesos dos dois ingredientes. Se não houvesse esta exceção à completa desaparição, no composto, das leis dos ingredientes separados, se os agentes combinados não tivessem, por causa da conservação do peso, conservado suas leis próprias e dado um resultado misto igual à soma de seus resultados separados, não teríamos provavelmente jamais tido a ideia da composição química, tal como a concebemos agora; e nos fatos da água provindo do hidrogênio e do oxigênio, o hidrogênio e o oxigênio provindo da água e a transformação mostrando-se completa, não teríamos visto nisto outra coisa. Nestes casos onde o efeito heteropático (como o chamamos) é uma transformação de sua causa; em outros termos, onde o efeito e sua causa são por sua vez causa e efeito um do outro e reciprocamente convertíveis, o problema da descoberta da causa resolve-se neste, mais fácil: encontrar um efeito, investigação que admite o emprego da experimentação direta. Mas há outros casos de efeitos heteropáticos aos quais esse modo de investigação não é aplicável. Tomemos, por exemplo, as leis heteropáticas da mente, da parte dos fenômenos naturais que têm mais analogia com os fatos químicos do que com os fatos dinâmicos, como os casos onde uma paixão complexa se forma pela associação de vários impulsos elementares, ou uma emoção complexa pela reunião de várias impressões simples de prazer ou de dor, de que ela é o resultado, sem ser o agregado e sem lhe ser, sob nenhuma relação, homogêneo. Nesses casos, o produto é engendrado por diversos fatores, mas tais fatores não podem se reencontrar no produto. Assim o moço pode tornar-se velho, mas o velho não pode voltar a ser moço. Não é possível determinar de quais sentimentos simples resultam os estados complexos da mente como se determinam os ingredientes de um composto químico, fazendo-os, por sua vez, sair do composto Só se pode, pois, descobri-las por um longo estudo dos sentimentos simples, e constatando sinteticamente, pela observação das diversas combinações de que são suscetíveis, o que pode resultar da ação mútua de uns sobre os outros. 4. Dificuldades da pesquisa quando os efeitos das causas concorrentes são compostos Poder-se-ia crer que a outra variedade, aparentemente mais simples, de interferência recíproca das causas, aquela onde cada causa continua a produzir seu efeito próprio segundo leis iguais às de seu estado de isolamento, ofereceria menos dificuldades à pesquisa indutiva que a que acabamos de examinar. Pelo contrário, ela é sujeita, enquanto se trata de indução direta, à parte da dedução, a dificuldades infinitamente maiores. Quando um concurso de causas dá nascimento a um efeito novo, sem relação com os efeitos separados de cada uma das causas, o fenômeno se mostra inteiro, desperta a atenção por sua fisionomia particular, e deixa facilmente constatar sua presença ou ausência no meio dos fenômenos circundantes. É, desde logo, suscetível de se vincular às regras da indução, visto que podemos encontrar casos tais como essas regras exigem; e a única dificuldade real dessas investigações é a ausência desses casos ou dos meios de produzi-los artificialmente; dificuldade de algum modo física antes que lógica. O modo é outro para os casos do que chamamos precedentemente de a composição das causas. Aí, os efeitos das causas separadas não são substituídos por outros e não cessam de fazer parte dos fenômenos objeto de estudo; ao contrário, sempre ocorrem, embora misturados com os efeitos homogêneos e estreitamente associados às outras causas que as mascaram. Não são mais a, b, c, d, e, colocados lado a lado e separadamente discerníveis; são: + a, - a, 112 b, - b, 2 b, etc., entre os quais alguns se anulam reciprocamente, enquanto outros não se manifestam mais distintamente, mas se confundem numa resultante na qual é frequentemente impossível de encontrar pela observação alguma relação determinada com as causas de que é a soma e o produto. A composição das causas, viu-se, consiste em que, embora duas leis ou mais intervenham juntas e anulem ou modifiquem reciprocamente sua ação, todas, entretanto, ocorrem, o efeito coletivo sendo a soma exata dos efeitos das causas tomadas separadamente. Um exemplo vulgar é o de um corpo em equilíbrio em virtude de duas forças iguais e contrárias. Se uma delas agisse só, impulsionaria o corpo num tempo dado a alguma distância do lado do leste; a outra força, agindo só, o levaria exatamente à mesma distância, só que em direção ao oeste; e o resultado é o mesmo do que se tivesse sido levado primeiro ao leste tão longe quanto uma das forças o teria levado, e em seguida para o oeste tão longe quanto o teria levado a outra, isto é, precisamente à mesma distância; permanece, por fim, onde se encontrava inicialmente. Todas as leis de causação podem, desta maneira, ser contrariadas, e, aparentemente, anuladas, vindo em conflito com outras leis cujo resultado separado é oposto ao seu ou mais ou menos incompatível. É o que faz com que, quase para cada lei, muitos casos nos quais ela na realidade ocorre pareçam de início estranhos a seu domínio. Assim é no exemplo precedente. Em mecânica, uma força é a causa de movimento; mas a soma dos efeitos de duas causas de movimento pode ser o repouso. Por outro lado, um corpo sofrendo a ação de duas forças cujas linhas de direção formam um ângulo move-se na diagonal; e é, parece, um paradoxo dizer que o movimento em diagonal é a soma dos dois movimentos nas duas outras linhas. O movimento, entretanto, é uma mudança de lugar, e, a cada instante, o corpo está exatamente no lugar onde ficaria se as forças tivessem agido alternativamente, em vez de agir no mesmo instante (entenda-se que, se as duas forças, que, na realidade, são simultâneas, supostamente agem sucessivamente, será preciso admitir um tempo duplo). É, consequentemente, evidente que cada uma das forças produziu a cada instante todo o seu efeito, e a influência modificadora que uma das causas concorrentes exerce sobre a outra pode ser considerada, não como exercida sobre a ação da causa mesma, mas sobre seu efeito completamente produzido. Pois, para a previsão, para o cálculo ou a explicação de seu resultado coletivo, as causas componentes devem ser tratadas como se produzissem cada uma seu efeito próprio simultaneamente, e como se todos esses efeitos coexistissem visivelmente. Já que as leis das causas são realmente cumpridas nos casos onde as causas são, como se diz, contrariadas por causas opostas, tanto quanto nos casos onde sua ação se exerce livremente, é preciso precaver-se para não as exprimir em termos que tornariam contraditória a asserção de seu cumprimento em tais casos. Se, por exemplo, estabelecêssemos, como lei da natureza, que um corpo ao qual uma força é aplicada se move na direção desta força numa velocidade que está na razão direta da força e na razão inversa de sua massa, quando, de fato, corpos aos quais uma força é aplicada não se movem, e os que se movem (pelo menos na nossa região terrestre) são, desde o primeiro instante, retardados pela ação do peso e de outras forças resistentes e no fim paradas; é claro que a proposição geral, verdadeira numa certa hipótese, não exprimiria os fatos tal como acontecem. Para ajustar a expressão da lei aos fenômenos reais, seria preciso dizer não que o corpo se move, mas que tende a se mover na direção e com a velocidade indicadas. Poderíamos, na verdade, salvaguardar a expressão de outra maneira, dizendo que o corpo se move assim se não é impedido por alguma causa contrária. Mas o corpo se move desta maneira não somente quando não é contrariado; ele tende a se mover, mesmo quando contrariado; ele desdobra sempre na direção primitiva a mesma energia motriz, como se seu primeiro impulso não tivesse sido perturbado, e produz, por esta energia, uma quantidade de efeito exatamente equivalente. Isto é verdadeiro, mesmo quando a força deixa o corpo tal como o encontrou, no estado de repouso absoluto, como quando tentamos elevar um peso de três toneladas com uma força igual a uma tonelada. Pois se, enquanto aplicamos esta força, um vento, a água ou um outro agente fornece uma força adicional de exatamente mais duas toneladas, o corpo será levantado; o que prova que a força aplicada de início produzia seu pleno efeito neutralizando uma parte equivalente do peso que não poderia levantar; e se, enquanto exercemos esta força de uma tonelada sobre o corpo numa direção contrária à do peso, a pesamos numa balança, constataremos que perdeu uma tonelada de seu peso ou, em outros termos, que ele comprime para baixo com uma força igual somente à diferença das duas forças. Estes fatos são corretamente caracterizados pela palavra tendência. Todas as leis de causação, sendo suscetíveis de serem contrariadas, devem ser enunciadas em termos afirmando somente tendências e não resultados atuais. As ciências que possuem uma nomenclatura exata têm termos especiais designando a tendência ao efeito particular, objeto de seu estudo. Assim, em mecânica, pressão é sinônimo de tendência ao movimento, e raciocinamos sobre as forças não como produzindo um movimento atual, mas como exercendo uma pressão. Muitos outros ramos da ciência tirariam proveito de semelhante aperfeiçoamento em sua terminologia. ( ... ) 5. Três modos de investigação das leis dos efeitos complexos Examinaremos agora por que método devem ser estudados os efeitos complexos, compostos dos efeitos de várias causas; como se poderá reportar cada efeito para o concurso de causas de que ele depende e determinar as condições de sua reaparição, isto é, as circunstâncias nas quais podemos esperar que ele ainda se produzirá. Essas condições de um fenômeno dependendo de uma composição de causas podem ser pesquisadas, ou dedutivamente, ou experimentalmente. Elas podem evidentemente ser constatadas dedutivamente. A lei de um efeito desta natureza é resultado das leis das causas separadas, da combinação das quais ele depende, e pode, consequentemente, ser deduzido dessas leis. É o que se chama o método a priori. O outro método, o método a posteriori, procede segundo as regras da pesquisa experimental. Considerando o conjunto das causas concorrentes que produzem o fenômeno como causa única, ela pretende determinar esta causa pela via ordinária, a comparação dos casos. Este segundo método se subdivide em dois. Se coleciona simplesmente os casos do efeito, é um procedimento de pura observação. Se experimenta sobre as causas e tentamos diversas combinações na esperança de cair precisamente naquela que produzirá todo o efeito dado, é um método experimental. Para esclarecer mais completamente a natureza de cada um desses três métodos, e decidir qual merecerá a preferência, convirá (conformemente à máxima favorita do Lord chanceler Eldon, à qual, malgrado o ridículo filosófico em que frequentemente incorreu, uma filosofia mais profunda não recusará sua sanção) "rodeá-la de suas circunstâncias". Escolheremos para este fim um caso que não oferece um exemplo bem característico do sucesso de um ou de outro desses três métodos, mas que pode, melhor do que qualquer outro, fazer ver claramente suas dificuldades intrínsecas. Seja, pois, o tema da pesquisa as condições da saúde e da doença no corpo humano, ou, mais simplesmente, as condições do restabelecimento da saúde após uma doença dada; e, para restringir ainda mais a pesquisa, limitemo-nos primeiro a esta questão: tal ou tal medicamento (o mercúrio, por exemplo), é ou não é um remédio para tal doença? O método dedutivo partiria das propriedades conhecidas do mercúrio e das leis conhecidas do corpo humano, e raciocinando, após estes dados, tentaria descobrir se o mercúrio agirá sobre o corpo atingido pela suposta doença de maneira a restabelecer a saúde. O método experimental administraria o mercúrio no maior número possível de casos, notando a idade, o sexo, o temperamento e outras particularidades do organismo, a forma ou a variedade particulares da doença, sua marcha e seu grau atual, etc. Notando em quais desses casos, e com quais circunstâncias ele produz um efeito salutar, o método de simples observação compararia os casos de cura para ver se tiveram todos por antecedente a administração do mercúrio, ou então compararia os casos de sucesso com os casos de insucesso, para constatar os que, concordando no restante, difeririam somente no fato de o mercúrio ter ou não sido administrado. 6. O método de observação pura inaplicável Ninguém sustentaria seriamente que este último método seja aplicável a tal caso. Jamais chegamos por este caminho, numa questão tão complicada, a conclusões de algum valor. ( ... ) A razão está no defeito essencial e característico do método de concordância, precedentemente assinalado, a pluralidade das causas. Supondo até que o mercúrio tende a curar a doença, tantas outras causas agem no mesmo sentido, que deve certamente haver numerosos exemplos de curas operadas pela intervenção do mercúrio; a menos que não tenha sido administrado em todos os casos; mas, nesta hipótese, o constataríamos também nos casos de insucesso. ( ... ) 7. O método experimental puro inaplicável A completa insuficiência do método de pura observação na pesquisa das condições dos efeitos dependendo de várias causas sendo assim reconhecida, será preciso ver se se pode esperar mais da outra subdivisão do método a posteriori, a que procede tentando diversas combinações de causas operadas artificialmente ou encontradas na natureza, e levando em conta o efeito que produz, por exemplo, experimentando o efeito do mercúrio em tantas circunstâncias diferentes quanto possível. ( ... ) O método que examinaremos agora chama-se o método empírico, e, para apreciá-lo convenientemente, devemos supô-lo não incompletamente, mas completamente empírico. É preciso excluir daqui tudo o que pertenceria de alguma maneira à dedução. ( ... ) Vejamos, pois, até que ponto as regras ordinárias da experimentação podem ser seguidas nesse caso. Quando projetamos uma experiência para constatar o efeito de um agente dado, não deixamos nunca, quando podemos, de tomar algumas precauções. Em primeiro lugar, introduzimos o agente num conjunto de circunstâncias exatamente determinadas. Ora, há necessidade de notar quanto esta condição é difícil de ser realizada nos casos relativos aos fenômenos da vida; quanto estamos longe de conhecer todas as circunstâncias que preexistiam em tal ou tal caso onde o mercúrio foi administrado. Esta dificuldade, insuperável na maioria dos casos, pode, no entanto, não o ser em todos. É possível algumas vezes, nos casos onde uma multidão de causas se encontra, saber exatamente quais são as causas. Por outro lado, a dificuldade pode ser atenuada pela repetição das experiências sob condições que tomam improvável que alguma dessas causas desconhecidas exista em todas. Mas quando este obstáculo é superado, encontramos outro, frequentemente ainda mais sério. Querendo instituir uma experiência, não estamos suficientemente seguros de que não há, no caso experimentado, alguma circunstância desconhecida. É preciso ainda que nenhuma das circunstâncias conhecidas tenha efeitos que poderiam ser confundidos com os do agente de que estudamos as propriedades. Temos muita dificuldade para excluir todas as causas suscetíveis de entrarem em composição com a causa dada; ou, se somos forçados a deixar algumas delas, temos o cuidado de circunscrevê-las de maneira a poder apreciar e calcular sua parte de influência, de tal maneira que, subtração feita desses outros efeitos, o efeito da causa dada possa aparecer como fenômeno residual. Essas precauções são impossíveis nos casos como os que examinamos agora. O mercúrio sendo experimentado com uma multidão desconhecida (ou mesmo conhecida, se se quiser) de outras circunstâncias influentes, somente o fato de que são influentes implica que mascaram o efeito do mercúrio, e nos impedem de ver se produziu ou não algum resultado. A menos que se conheça já o que deve ser atribuído a cada uma das outras circunstâncias (isto é, a menos que se suponha resolvido o próprio problema que se procura resolver), não se pôde produzir o efeito total, sem, ou mesmo malgrado o mercúrio. ( ... ) Assim, pois, nesses casos complicados não se poderia aplicar cientificamente algum método experimental. ( ... ) CAPÍTULO XI Do método dedutivo 1. Primeiro passo. Determinação por uma indução direta das leis das causas separadas O modo de investigação que, em seguida à inaplicabilidade constatada dos métodos diretos de observação e de experimentação, permanece como principal instrumento do conhecimento adquirido ou a adquirir relativamente às condições e às leis de reaparição dos fenômenos mais complexos se chama, no sentido mais geral, o método dedutivo; e consiste em três operações: 1) indução direta; 2) raciocínio; 3) verificação. Chamo o primeiro passo do procedimento uma operação indutiva porque a indução direta deve ser a base de tudo, embora em muitas pesquisas particulares a indução possa ser substituída por uma dedução anterior; mas as premissas dessa dedução prévia devem ter sido estabelecidas pela indução. O problema do método dedutivo consiste em determinar a lei de um efeito segundo as leis das diversas tendências de que é o resultado comum. Consequentemente, a primeira condição a preencher é conhecer as leis dessas tendências, a lei de cada uma das causas correntes, o que supõe uma observação ou experimentação prévia para cada causa separada, ou uma dedução preliminar cujas premissas superiores devem derivar também da observação ou da experimentação. Assim, se se trata dos fenômenos sociais ou históricos, as premissas devem ser as leis das causas de que dependem os fenômenos desta ordem; e essas causas são as ações dos homens, assim como as circunstâncias exteriores, sob a influência das quais o gênero humano é colocado, que constituem a condição do homem sobre a terra. O método dedutivo, aplicado aos fatos sociais, deve, pois, começar por pesquisar, ou deve-se supor que já se pesquisou, as leis da atividade humana e as propriedades das coisas exteriores pelas quais são determinadas as ações dos homens em sociedade. Naturalmente algumas dessas verdades gerais serão obtidas pela observação e a experiência; outras por dedução. As leis mais complexas das ações humanas, por exemplo, podem ser deduzidas das leis mais simples, mas as leis simples ou elementares serão sempre e necessariamente determinadas pela indução direta. Assim, pois, constatar as leis de cada uma das causas que concorrem para a produção do efeito é o primeiro desiderato do método dedutivo. Conhecer o que são as causas a pesquisar pode ou não ser difícil. Nos casos que acabam de ser citados, esta primeira condição é facilmente obedecida. Jamais se duvidou que os fenômenos sociais dependem das ações e das impressões mentais dos homens, ainda que se tenha podido saber imperfeitamente por quais leis essas impressões e esses atos são regidos, ou a quais consequências sociais essas leis conduzem naturalmente. Não pode, quando as ciências naturais alcançaram certo desenvolvimento, haver dúvida quanto às leis de que dependem os fenômenos da vida, já que devem ser as leis mecânicas e químicas das substâncias sólidas e fluidas, que constituem os corpos organizados, do meio no qual eles subsistem e, conjuntamente, as leis vitais particulares dos diferentes tecidos componentes da estrutura orgânica. Em outros casos, na realidade bem mais simples que estes, não foi tão fácil ver claramente de que lado seria preciso procurar as causas; no caso, por exemplo, dos fenômenos celestes. Até o momento em que, combinando as leis de algumas causas, constatou-se que essas leis explicam todos os movimentos do céu observados e dão o meio de fazer predições que são sempre verificadas, ignorou-se que essas leis eram as causas. Mas, colocando a questão antes que se esteja ou no caso de já se estar em condições de resolvê-la, em outros casos ela deve ser resolvida. As leis das diferentes causas devem ser primeiramente determinadas para podermos deduzir delas as condições do efeito. O modo de determinação dessas leis é e só pode ser o quádruplo método da pesquisa experimental já exposto. ( ... ) 2. Segundo passo. Conclusões tiradas das leis simples dos casos complexos Quando as leis das causas foram determinadas e o primeiro passo da grande operação lógica foi feito de maneira satisfatória, é preciso dar o segundo, que consiste em determinar, segundo as leis das causas, qual o efeito produzido por uma combinação dada dessas causas. Este procedimento é um cálculo, na acepção mais ampla da palavra, e frequentem ente implica operações de cálculo propriamente dito. É um raciocínio; e quando nosso conhecimento das causas avançou o bastante para se elevar até as leis numéricas precisas que elas seguem na produção de seus efeitos, o raciocínio pode tomar como premissas os teoremas da ciência dos números em toda a imensa extensão desta ciência. Não somente nos é necessário frequentemente o socorro das mais altas matemáticas para calcularmos um efeito cuja lei numérica é conhecida, mas, mesmo com esse socorro, não podemos avançar muito. Assim, num caso tão simples quanto o problema de três corpos gravitando um para o outro na razão direta de sua massa e na razão inversa do quadrado da distância, todos os recursos do cálculo não puderam até aqui fornecer uma solução geral, mas somente aproximativa. Num outro caso, um pouco mais complexo, mas, entretanto, dos mais simples que se apresentam na prática, o do movimento de um projétil, as causas que influenciam a velocidade, e o alcance de uma bala de canhão podem ser conhecidas e calculadas; a força do pó, o ângulo de elevação, a densidade do ar, a força e a direção do vento; e, no entanto, combinar todas essas causas de maneira a precisar o efeito resultante de sua ação coletiva é um dos mais difíceis problemas matemáticos. ( ... ) 3. Terceiro passo. Verificação pela experiência específica Mas, poder-se-ia dizer, as mesmas razões que fazem rejeitar como ilusórios os métodos de observação e de experimentação diretas na investigação das leis dos fenômenos complexos não militam com força igual contra o método de dedução? Já que, em cada caso particular, uma multidão de influências, frequentemente desconhecidas, se cruzam e se misturam, que certeza temos de que as envolvemos todas no nosso cálculo a priori? Quanto não há que ignoramos nisto? E, entre as que conhecemos, não é provável que algumas tenham sido esquecidas? E se as tivéssemos mesmo reunido todas, que pretensão vã seria somar os efeitos de várias causas sem conhecer as leis numéricas de cada uma, condição frequentemente impossível de cumprir, e que, se cumprida, o cálculo estará, no caso mais simples, fora do alcance da ciência matemática, com todos os seus mais recentes aperfeiçoamentos! Essas objeções têm valor real e não seriam respondidas se não houvesse contraprova pela qual se pudesse reconhecer se algum desses erros foi cometido na aplicação do método dedutivo. Mas esta contraprova existe; e seu emprego constitui, sob o título de verificação, o terceiro elemento essencial do método dedutivo, sem o qual todos os resultados que pode fornecer não têm só o valor de uma conjetura. Para que as conclusões obtidas por dedução sejam garantidas, é preciso que, cuidadosamente comparadas, estejam de acordo com os resultados da observação direta em qualquer lugar que se possa constatá-la. Se; quando temos uma experiência para lhes comparar, esta experiência as confirma, podemos nos fiar nisso em outros casos para os quais a experiência específica nos falta ainda. Mas, se a dedução conduziu à conclusão de que um efeito dado resultaria de tal ou tal combinação de causas, será preciso - em todos os casos onde, tendo existido esta combinação, o efeito não ocorreu - poder mostrar, ou pelo menos conjeturar sobre razões prováveis, o que o impediu de se produzir; se não se pode fazer tal coisa, a teoria é imperfeita e não se deve ainda fiar-se nisto. A verificação, por outro lado, só é completa quando alguns dos casos onde a teoria é confirmada pelo resultado observado são tão complexos quanto aqueles com relação aos quais sua aplicação poderia ser requerida. ( ... ) É, pois, importante, para facilitar a verificação das teorias obtidas por dedução, que um número tão grande quanto possível de leis empíricas dos fenômenos sejam determinadas por comparação dos casos, conformemente ao método de concordância; e que, por outro lado, os fenômenos mesmos sejam descritos da maneira mais completa e exata, tirando da observação das partes a expressão correta, mais simples possível do todo, como a série das posições de um planeta, no céu, que foi expressa por um círculo, depois por um sistema de epiciclos e, enfim, por uma elipse. Importa notar que casos complexos, que não teriam servido para a descoberta das leis simples às quais reduzimos os fenômenos, tornam-se, não obstante, depois que serviram para verificar a análise, uma confirmação adicional das leis mesmas. Ainda quando não tivéssemos podido extrair a lei dos fatos complexos, se a lei, obtida alhures, acha-se de acordo com o resultado de um caso complexo, tal caso constitui uma nova experimentação sobre a lei, e serve para confirmar o que não podia ser descoberto por ele. Trata-se de uma nova prova do princípio num grupo de circunstâncias diferente, servindo acidentalmente para eliminar alguma circunstância que não tivesse já sido excluída, e cuja eliminação teria exigido uma experiência impossível de executar. ( ... ) É ao método dedutivo, assim definido em suas três partes constituintes - a indução, o raciocínio e a verificação -, que a mente do homem deve seus mais destacados triunfos na investigação da natureza. Nós lhe devemos todas as teorias que reúnem fenômenos numerosos e complicados sob algumas leis simples, que, consideradas como leis desses fenômenos, não teriam jamais podido ser descobertas pelo estudo direto. ( ... ) CAPÍTULO XII Dos limites da explicação das leis da natureza, e das hipóteses 1. Todas as sucessões na natureza são redutíveis a uma única lei? As considerações precedentes nos conduziram a distinguir duas espécies de leis ou uniformidades da natureza: as leis primitivas e as que se podem chamar derivadas. As leis derivadas são as que podem ser deduzidas de outras leis mais gerais e, em todos os seus modos, ser-lhes ligadas. As leis primitivas ou superiores são as que não o podem. Não estamos seguros de que, entre as uniformidades que conhecemos, haja primitivas; mas sabemos que tais leis devem existir, e que toda redução de uma lei derivada a leis mais gerais nos aproxima delas. Já que descobrimos continuamente que uniformidades, cridas de início primitivas, são derivadas e redutíveis a leis mais gerais; já que, em outros termos, encontramos continuamente a explicação de tal ou tal sucessão de fenômenos até aquele instante dada apenas como fato, é uma questão importante saber se há limites necessários a esta operação filosófica, ou então se é preciso continuá-la sempre até que todas as sucessões uniformes da natureza sejam reduzidas a uma só lei universal. Eis aí, à primeira vista, o ultimato ao qual parece tender a marcha progressiva da indução, através do método dedutivo baseado na observação e na experiência. ( ... ) 2. As leis primitivas não podem ser menos numerosas que os sentimentos É importante notar, pois, que as leis primitivas da natureza não podem ser menos numerosas que nossas sensações e nossos demais sentimentos; entendo esses modos de sentir como aqueles que se distinguem e diferem uns dos outros pela qualidade, e não somente pela quantidade ou grau. Por exemplo, já que há um fenômeno sui generis chamado a cor, que a consciência certifica não ser um simples grau de algum outro fenômeno, do calor, do odor ou do movimento, mas é intrinsecamente diferente de qualquer outro, segue-se que há leis primitivas da cor; e que, embora os fatos de cor possam admitir explicação, não poderão jamais ser explicados somente pelas leis do calor ou do odor ou do movimento; de sorte que, até onde possa ir a explicação, permanecerá sempre uma lei da cor. Não quero dizer que é impossível mostrar que algum outro fenômeno, químico ou mecânico, precede invariavelmente todo fenômeno de cor e é a sua causa. Porém, embora este fato, se provado seja um importante progresso de nosso conhecimento da natureza, não explica por que ou como um movimento ou uma ação química podem produzir uma sensação de cor; e se se estuda o fenômeno cuidadosamente, num número de anéis escondidos que se descobre na cadeia da causação, o último elo será sempre uma lei da cor, e não uma lei do movimento, nem de qualquer outro fenômeno. E essa observação não se aplica à cor somente, comparada com as demais classes de sensação; ela se aplica a cada cor particular comparada com as demais. A cor branca não poderia ser explicada exclusivamente pelas leis da produção da cor vermelho. Tentando explicá-lo, não se pode deixar de introduzir, como elemento de explicação, a proposição de que tal ou tal antecedente produz a sensação do branco. O limite ideal da explicação dos fenômenos naturais (para o qual, como para todos os limites ideais, se caminha constantemente sem esperar atingi-lo jamais) seria mostrar que cada variedade distinta de sensações ou outros estados de consciência tem uma causa própria e única; de fazer ver, por exemplo, que quando percebemos uma cor branca, existe alguma condição ou conjunto de condições cuja presença constante produz sempre em nós essa sensação. Desde que há vários modos conhecidos de produção de um fenômeno (várias substâncias diferentes, por exemplo, tendo a propriedade da brancura, e não tendo outro ponto de semelhança), não é impossível que um desses modos seja redutível ao outro, ou que possam ser vinculados todos a um modo geral ainda desconhecido. Mas quando os modos de produção são reduzidos a um apenas, não se pode ir mais longe quanto à simplificação. Pode ser que esse modo único não seja o modo último; pode haver outros elos a descobrir entre a causa suposta e o efeito; mas não podemos jamais resolver a lei conhecida senão pela introdução de alguma outra lei até aqui desconhecida; o que não diminui o número das leis primitivas. ( ... ) 3. Em que sentido os fatos primitivos podem ser explicados Entretanto, como, num verdadeiro método de filosofar, não há um princípio que não necessite estar garantido contra erros provenientes de dois lados, colocarei aqui um caveat ao encontro de outro engano de natureza diretamente oposta à do precedente. Comte - entre outras coisas nas quais condena com certa aspereza toda tentativa de explicar os fenômenos que são "evidentemente primordiais" (o que quer dizer, sem dúvida, somente que cada fenômeno particular deve ter uma lei particular e, consequentemente, ser inexplicável) - declara "essencialmente ilusória" a ideia de encontrar a explicação da cor própria a cada substância. "Ninguém hoje", diz, "tenta explicar o peso específico de cada substância ou de cada estrutura. Por que não seria assim com a cor específica, cuja noção não é certamente menos primordial?" Embora, como nota alhures, uma cor deva permanecer sempre diferente do peso e do som, as variedades de cor poderiam, não obstante, corresponder a variedades dadas de peso ou de som, ou de outro fenômeno tão diferente desses últimos quanto aqueles o são da cor. O que é uma coisa, é uma questão; e de que ela depende, é outra; e, embora a determinação das condições de um fenômeno elementar torne sua natureza íntima mais bem conhecida, esta não é uma razão para proibir a pesquisa de tais condições. Se ela não era legítima para as cores, não o seria também para as diferenças de som, que sabemos, entretanto, serem imediatamente precedidas e causadas pelas variedades das vibrações dos corpos elásticos, embora certamente o som em si mesmo seja tão diferente quanto o é a cor de um "movimento, vibratório ou de outro tipo, das partículas da matéria. Poderíamos ajuntar que para as cores há fortes indícios positivos de que não são propriedades absolutas das diversas substâncias, e que dependem de condições suscetíveis de serem realizadas por todas as substâncias, já que não há substância que não possa, segundo a espécie de luz projetada sobre ela, tomar a cor que queiramos, e já que toda mudança no modo de agregação das moléculas de um corpo é acompanhada de modificações em sua cor e, geralmente, em suas propriedades ópticas. A pesquisa de uma explicação das cores pelas vibrações de um fluido não é, pois, antifilosófica em si mesma; seu defeito real é que a existência desse fluido e de seu movimento vibratório não é provada, mas somente suposta, com a única razão de que parece facilitar a explicação dos fenômenos. E isto nos conduz à importante questão do uso próprio das hipóteses científicas, tema cuja estreita ligação com a questão da explicação dos fenômenos e dos limites necessários desta explicação não precisa ser assinalada. 4. Do uso próprio das hipóteses científicas Hipótese é a suposição que se faz (seja sem prova atual, seja com provas reconhecidamente insuficientes) para tentar deduzir dela conclusões concordantes com fatos reais, na ideia de que se as conclusões às quais a hipótese conduz são verdades conhecidas, a hipótese em si deve ser verdadeira ou pelo menos verossimilhante. Se a hipótese se vincula à causa ou ao modo de produção do fenômeno, servirá, uma vez admitida, para explicar os fatos suscetíveis de serem deduzidos dela; e esta explicação é o objetivo de um grande número, senão a maior parte, das hipóteses. Já que explicar, no sentido científico, significa vincular uma uniformidade que não é uma lei de causação às leis de causação de que ela resulta, ou uma lei complexa de causação às leis mais simples e mais gerais de que pode ser inferida dedutivamente, pode-se, se não há lei conhecida que preencha esta condição, imaginar ou fingir imaginar uma que satisfaça a isto; eis como se faz uma hipótese. Sendo a hipótese uma pura suposição, não há outros limites para as hipóteses além da imaginação humana. Podemos, se nos agrada, para dar conta de um efeito, imaginar uma causa de natureza descontínua e agindo segundo uma lei inteiramente fictícia. Mas como uma hipótese desse gênero não teria a plausibilidade das que se ligam por analogia às leis naturais conhecidas, e como, por outro lado, ela não satisfaria à necessidade de ajudar a imaginação a se representar sob um aspecto familiar um fenômeno obscuro (necessidade para a qual essas hipóteses arbitrárias são ordinariamente inventadas), não existe provavelmente na história da ciência uma hipótese na qual o agente e a lei de sua ação sejam ao mesmo tempo fictícios. Ora, com efeito, o fenômeno assinalado como causa é real, e a lei segundo a qual age puramente suposta; ora, a causa é fictícia, mas produz seus efeitos segundo leis semelhantes às de alguma classe conhecida de fenômenos. Temos um exemplo da primeira espécie de hipóteses nas diversas suposições relativas à lei da força central planetária, imaginadas antes da descoberta da lei verdadeira (que esta força se exerce na razão inversa do quadrado da distância), estabelecida por Newton, primeiro como simples hipótese, e verificada em seguida, provando que conduzia dedutivamente às leis de Kepler. Ao segundo gênero pertencem hipóteses tais como a dos turbilhões de Descartes, que eram fictícios, mas supostamente obedeciam às leis conhecidas do movimento rotativo; tais como as duas teorias rivais sobre a natureza da luz: uma atribui os fenômenos a um fluido emitido pelos corpos luminosos, e a outra (mais geralmente admitida hoje) os reporta a movimentos vibratórios das partículas de um éter que ocupa todo o espaço. Não há nenhuma prova da existência desses agentes, mas é através deles que se explicam alguns fenômenos; mas supostamente produzem seus efeitos segundo leis conhecidas, as leis ordinárias do movimento contínuo, numa das teorias, e na outra as da propagação dos movimentos ondulatórios num fluido elástico. Vemos, pelo que precede, que as hipóteses são inventadas para acelerar a aplicação do método dedutivo. Ora, para descobrir a causa de um fenômeno por este método, o procedimento consiste em três partes: a indução, o raciocínio e a verificação. ( ... ) O método hipotético suprime a primeira dessas três operações (a indução constatando a lei) e se contenta com as duas outras (o raciocínio e a verificação). A lei de que se deduzem consequências é suposta em vez de provada. Este procedimento pode evidentemente ser legitimado por uma condição, a saber, que a natureza do caso seja tal que a operação final, a verificação, equivalerá a uma indução completa. Se a lei hipoteticamente estabelece resultados verdadeiros, esta será a prova de que ela mesma é verdadeira, desde que o caso seja tal que uma lei falsa não possa conduzir também a um resultado verdadeiro, e que nenhuma outra lei, a não ser a suposta, conduza às mesmas conclusões. E é o que acontece frequentemente. ( ... ) ( ... ) É, pois, condição de uma hipótese verdadeiramente científica o fato de que ela não é destinada a permanecer sempre hipótese, e não é suscetível de ser confirmada ou infirmada por seu confronto com os fatos observados. Esta condição é requerida quando já está estabelecido que o efeito depende da causa suposta, e que a hipótese não se relaciona senão com o modo preciso da dependência, à lei da variação do efeito, conforme às variações na quantidade ou nas relações da causa. Deste gênero são as hipóteses que não supõem nada quanto à causa e só se relacionam com a lei de correspondência entre os fatos que se acompanham reciprocamente em suas variações, embora possa não haver relação de causa e efeito entre eles. Tais eram as diversas falsas hipóteses de Kepler sobre a lei da refração da luz. Sabia-se que a direção da linha de refração varia com as mudanças de direção da linha de incidência, mas não se sabia como, isto é, a quais mudanças de uma corresponderiam as mudanças da outra. Nesse caso, qualquer outra lei, exceto a verdadeira, teria conduzido a resultados falsos. Enfim, pode-se juntar a esta classe de hipóteses todos os modos hipotéticos de se representar ou descrever os fenômenos, como a hipótese dos antigos astrônomos de que os corpos celestes movem-se em círculos, e as hipóteses secundárias dos excêntricos, dos diferentes, dos epiciclos; as dezenove hipóteses sobre a forma das órbitas planetárias sucessivamente imaginadas e abandonadas por Kepler, e mesmo a teoria que defendeu sempre (as órbitas são elipses), que não era senão uma hipótese como as outras enquanto não verificada pelos fatos. Em todos esses casos, a verificação é prova. Se a suposição concorda com os fenômenos, não tem necessidade de outra confirmação. Mas, para que isto aconteça, é preciso que quando a hipótese se vincula à causação, a causa suposta seja não somente um fenômeno real, alguma coisa existindo na natureza, mas também que se saiba que ela exerce ou é capaz de exercer alguma influência sobre o efeito. Sem isto, a possibilidade de deduzir da hipótese os fenômenos reais não é uma prova de sua verdade. Não é, pois, jamais permitido, numa hipótese científica, supor uma causa, mas somente assinalar uma lei suposta a uma causa conhecida? Não disse isto. Disse apenas que é somente no último caso que a hipótese pode ser admitida como verdadeira, porque explica os fenômenos. No primeiro caso, só serve para indicar uma via de investigação que pode conduzir à aquisição de uma verdadeira prova. Para este fim, é indispensável, como justamente sugeriu Augusto Comte, que a causa evocada pela hipótese seja suscetível de ser provada por outras razões. Esta é, parece-me, a significação filosófica da máxima de Newton, tão frequentemente citada: a causa assinalada a um fenômeno não deve somente ser tal que, uma vez admitida, explicaria os fenômenos, mas deve ser, por outro lado, uma vera causa. Newton, de resto, nunca disse explicitamente o que entendia por uma vera causa, e o dr. Whewell, que não admite tal restrição à liberdade de construir hipóteses, não tem dificuldade para mostrar que sua ideia não era nem precisa, nem consequente, e que sua teoria óptica era um exemplo flagrante de violação de sua própria regra. Não é certamente necessário que a causa assinalada seja conhecida; pois, como poderíamos então descobrir uma causa nova? O que há de verdade na máxima é que a causa, embora desconhecida até aquele ponto, deve ser suscetível de ser conhecida mais tarde, que sua existência possa ser revelada, e sua ligação com o efeito que se lhe atribui confirmada por provas independentes. A hipótese, sugerindo observações e experiência, nos coloca no caminho desta prova independente quando é realmente acessível, e, até que seja adquirida, ela não é mais do que uma conjetura. 5. Sua necessidade Entretanto, é preciso reconhecer, esse papel das hipóteses é absolutamente indispensável na ciência. Quando Newton dizia: hypotheses non fingo, não queria dizer que renunciava a facilitar sua pesquisa supondo antecipadamente o que esperava poder provar no final. Sem essas suposições, a ciência jamais teria chegado onde está; são passos necessários na caminhada para alguma coisa mais certa; e quase tudo que agora é teoria foi primeiramente hipótese. Mesmo na ciência puramente experimental, é preciso alguma abertura para fazer tal experiência em lugar de outra; e embora, absolutamente falando, fosse possível que todas as experiências tivessem sido tentadas unicamente em vista de constatar o que aconteceria em tais circunstâncias, sem nenhuma conjetura sobre o resultado, entretanto, de fato, as operações tão laboriosas, são delicadas, e frequentemente tão tediosas e fatigantes, que jogaram mais luz sobre a constituição geral da natureza, e não teriam provavelmente sido tentadas nem pelos homens que a elas se dedicaram, nem no tempo em que foram feitas, se não se tivesse crido poder, através delas, decidir da verdade ou falsidade de alguma teoria colocada, mas não provada. Ora, se isso acontece nas pesquisas puramente experimentais, com muito mais razão na conversão das verdades experimentais, e verdades dedutivas não teriam podido se efetuar sem o socorro temporário das hipóteses. É necessariamente tateando que se pode tentar colocar ordem num conjunto complicado e, à primeira vista, confuso, de fenômenos. Começa-se por fazer uma suposição, frequentemente falsa, para ver que consequências se seguiriam; e observando em que diferem dos fenômenos reais, adverte-se das correções a fazer na hipótese. A suposição mais simples que concorda com os fatos mais aparentes é a melhor para começar, porque suas consequências são fáceis de determinar. Esta hipótese bruta é então grosseiramente corrigida, e repete-se a operação. A comparação das consequências dedutíveis da hipótese retificada com os fatos observados sugere ainda uma correção, até que enfim os resultados deduzidos se encaixam nos fenômenos. "Um fato é ainda mal compreendido, uma lei é desconhecida; construímos uma hipótese tão bem ajustada quanto possível ao conjunto dos dados que possuímos; e a ciência, movendo-se livremente, acaba sempre por conduzir a novas consequências observáveis, que confirmarão ou infirmarão decididamente a primeira suposição"; nem a indução, nem a dedução nos fariam compreender mesmo os fenômenos mais simples, "se não começássemos por antecipar sobre os resultados, fazendo uma suposição provisória, muito conjetural de início, relativamente a algumas das noções mesmas que constituem o objeto final da pesquisa”. Observemos a maneira pela qual nós mesmos desembaraçamos uma massa de circunstâncias complicadas; como, por exemplo, retiramos a verdade histórica de um acontecimento das narrativas confusas de uma ou de várias testemunhas. Não tentamos juntar em nossa mente os diversos elementos de informação, nem tentamos combiná-los coletivamente. Improvisamos, segundo um pequeno número de particularidades, uma teoria grosseira da maneira pela qual os fatos aconteceram, e passamos em seguida aos outros testemunhos, um a um, para ver se podem se conciliar com a teoria provisória ou que modificações seria preciso fazer nesta teoria para que se encaixe neles. Desta maneira - que foi tão justamente comparada aos métodos de aproximação dos matemáticos -, chegasse por hipóteses a conclusões não-hipotéticas. (Citou-se justamente como exemplo de uma hipótese legítima a título aqui indicado, a de Broussais que - partindo do princípio muito racional de que toda doença deve começar num ponto determinado do organismo - supõe audaciosamente que algumas febres, que se chamavam, desconhecendo sua localização, constitucionais, tinham sua origem na membrana mucosa do canal intestinal. A suposição era falsa, como se sabe hoje geralmente; mas ele estava autorizado a fazê-la, já que, deduzindo as consequências e comparando-as com os fenômenos dessas doenças, estava certo verificar sua hipótese e rejeitá-la se estivesse mal fundada, e podia esperar que a composição o ajudasse muito a encontrar outra mais conforme aos fenômenos? A doutrina, universalmente admitida hoje, de que a Terra é um ímã natural, foi originalmente uma hipótese do célebre Gilbert. Uma outra hipótese, cuja legitimidade não poderia ser contestada, e cuja natureza esclarece a estrada da pesquisa, é aquela, recentemente proposta por alguns autores, de que o cérebro é uma pilha voltaica e cada uma de suas pulsações é uma descarga de eletricidade. Notou-se que a sensação produzida na mão pelas batidas do cérebro se assemelha muito a um choque elétrico. A hipótese, seguida em suas consequências, poderia fornecer uma explicação plausível de vários fatos fisiológicos: e nada, por outro lado, impede de esperar que se chegue um dia a conhecer bastante bem as condições dos fenômenos voltaicos para tornar a hipótese verificável pela observação e a experimentação. A localização das diferentes regiões-do cérebro, dos órgãos das faculdades mentais e das tendências era uma hipótese científica legítima; e não se podia reprovar seu autor de ter frequentemente procedido de maneira extremamente ligeira numa operação que só podia ser um ensaio, embora se possa lamentar que materiais suficientes para um grosseiro esboço de hipótese tenham sido audaciosamente manipulados por seus sucessores em um vão simulacro de ciência. Se existe realmente uma conexão entre a escala das quantidades intelectuais e morais e dos graus diversos de complicação no sistema cerebral, não havia nada melhor, para ressaltá-la, que forjar uma hipótese semelhante à de Gall. Mas a verificação de uma tal hipótese é, pela natureza particular dos fenômenos, cheia de dificuldades que os frenologistas pareceram não poder compreender, e menos ainda superar. A notável especulação de Darwin sobre A Origem das Espécies é ainda um exemplo irreprochável de uma hipótese legítima. O que ele chama "a seleção natural" não é somente uma vera causa; é uma causa capaz de produzir os efeitos da mesma espécie que os que a hipótese lhes atribui. Não é justo acusar, como se tem feito, Darwin de violar as regras da indução. As regras da indução são relativas às condições da prova. Darwin jamais pretendeu que sua teoria estava provada. Ela não era ligada pelas regras da indução, mas pelas da hipótese; e estas raramente foram mais completamente observadas. Ele abriu um caminho de pesquisas cheio de promessas, cujos resultados ninguém pode prever. E não é uma admirável proeza de talento e ciência ter tornado admissível e discutível uma opinião de tal maneira audaciosa que a primeira reação de todos era rejeitá-la imediatamente, mesmo como simples conjetura?). 6. Das hipóteses legítimas, e de como se distinguem das ilegítimas É perfeitamente conforme ao espírito do método estabelecer assim provisoriamente não apenas uma hipótese relativa à lei do que é já reconhecidamente a causa, mas ainda uma hipótese sobre a causa mesma. É permitido, é útil, e por vezes necessário mesmo, começar por perguntar-se que causa pode ter produzido tal efeito, para saber em que direção é preciso pesquisar a prova que ela produziu. ( ... ) A hipótese de um éter luminoso, hoje dominante, e que sob outras relações tem alguma analogia com a de Descartes, não oferece possibilidade absoluta de prova direta. Sabe-se bem que a diferença entre os tempos calculados e os tempos observados da passagem periódica do cometa de Encke tinha provocado a conjetura de que um meio capaz de resistir ao movimento ocuparia o espaço. Se essa suposição fosse confirmada no curso dos séculos pela acumulação de casos semelhantes de variação nos outros corpos do sistema solar, o éter luminoso se aproximaria consideravelmente do caráter de vera causa, já que a existência de um grande agente cósmico possuindo alguns dos atributos assinalados pela hipótese seria confirmada, embora restassem ainda muitas dificuldades, e a identificação do éter com o meio resistente fizesse, parece-me, nascer novas. Quanto ao presente, esta hipótese só pode ser tomada como uma conjetura. A existência do éter repousa sempre na possibilidade de deduzir de suas leis supostas um número considerável de fenômenos da luz; e esta espécie de prova não pode ser considerada como concludente, porque não se pode ter a certeza de que, se a hipótese fosse falsa, conduziria a resultados contrários aos fatos reais. Consequentemente, os pensadores um pouco circunspectos concordam em dizer que uma hipótese deste gênero não deve ser julgada provável apenas porque dá conta de todos os fenômenos conhecidos, pois esta é uma condição à qual frequentemente duas hipóteses contrárias satisfazem igualmente, e há mil outras provavelmente possíveis, mas, sem analogia com nossa experiência, nossa mente não teria condições para conceber. Entretanto, parece que uma hipótese desta natureza merece ser mais favoravelmente acolhida quando, dando conta dos fatos conhecidos, conduziu ao mesmo tempo à antecipação e à predição de outros fatos que a experiência em seguida verificou, como a teoria das ondulações que sugeriu a previsão, realizada em seguida experimentalmente, de que dois raios luminosos podem se encontrar de tal maneira que seu encontro produza a obscuridade. Essas previsões e seu cumprimento são, asseguradamente, feitos para impressionar as pessoas estranhas a essas matérias, cuja fé na ciência se funda apenas nessas espécies de coincidências entre as predições e o acontecimento; mas é estranho que homens de ciência deem tanta importância a isso. Se as leis da propagação da luz concordam com as das vibrações de um fluido elástico em suficientes pontos para que a hipótese seja a expressão de todos os fenômenos conhecidos ou do maior número, não há nada de espantoso que concordem ainda neste ponto. Essas coincidências poderiam se produzir cem vezes e não provariam a realidade do éter. Não se seguiria disto que os fenômenos são os resultados das leis dos fluidos elásticos, mas que são regidos por leis parcialmente idênticas; o que, notemos, tornou-se certo apenas porque a hipótese em questão é sustentável um momento. (O que mais contribuiu para acreditar-se na hipótese de um meio físico para a transmissão da luz é o fato certo de que a luz viaja (o que não pode provar da gravitação); que sua comunicação não é instantânea, mas exige tempo, e que ela é interceptada (o que não acontece com a gravitação) pela interposição dos corpos. Eis algumas das analogias desses fenômenos com os do movimento mecânico de uma matéria sólida ou fluida. Mas não temos o direito de afirmar que o movimento mecânico é a única força da natureza que possui tais atributos). Podem-se, mesmo com o pouco que sabemos da natureza, citar casos onde os agentes que somos levados a considerar como radicalmente distintos produzem seus efeitos, no todo ou em parte, segundo leis idênticas. A lei, por exemplo, do quadrado inverso da distância é a medida de intensidade, não somente da gravitação, mas também (é o que se crê) da luz e do calor irradiando de um centro. No entanto, ninguém toma esta identidade por uma prova de que essas três espécies de fenômenos são produzidas pelo mesmo mecanismo. ( ... ) CAPÍTULO XIII Das leis empíricas 1. Definição de lei empírica Os pesquisadores científicos dão o nome de leis empíricas às uniformidades que a observação ou a experiência mostrou existirem, mas em que eles hesitam em confiar em casos que divergem daqueles que foram efetivamente observados, por não verem nenhuma razão pela qual tal lei exista. Está implícito, portanto, na noção de lei empírica, que ela não é uma lei primitiva; que, se de qualquer modo for verdadeira, sua verdade é suscetível de ser e precisa ser explicada. Ela é uma lei derivada, cuja derivação não é ainda conhecida. Formular a explanação, o porquê, da lei empírica seria formular as leis de que é derivada - as causas últimas de que depende. E se as conhecêssemos, conheceríamos também os seus limites, e sob quais condições cessaria de cumprir-se. ( ... ) Uma lei empírica é, então, uma uniformidade observada, que se presume ser redutível a leis mais simples, às quais ainda não foi, porém, reduzida. A determinação das leis empíricas de fenômenos frequentemente precede por longo intervalo a explanação dessas leis de acordo com o método dedutivo, e a verificação de uma dedução usualmente consiste na comparação dos resultados desta com as leis empíricas previamente determinadas. 2. As leis derivadas comumente dependem das colocações De um número limitado de leis primitivas de causalidade gerou-se necessariamente vasto número de uniformidades derivadas, tanto de sucessão como de coexistência. Algumas são leis de sucessão ou de coexistência entre diferentes efeitos da mesma causa; desta tivemos exemplos no último capítulo. Outras são leis de sucessão entre efeitos e suas causas remotas redutíveis às leis que as ligam aos elos intermediários. Em terceiro lugar, quando causas agem juntas e combinam seus efeitos, as leis dessas causas engendram a lei fundamental do efeito, ou seja, que depende da coexistência dessas causas. E, finalmente, a ordem de sucessão ou de coexistência que impera entre efeitos necessariamente depende das causas deles. Se são efeitos da mesma causa, ela depende das leis dessa causa; se de diferentes, depende das leis de cada uma dessas causas separadamente, e das circunstâncias que determinam a sua coexistência. Se pesquisarmos ainda mais acuradamente quando e como as causas irão coexistir, isso ainda dependerá de suas causas, e podemos assim seguir os fenômenos num passado cada vez mais remoto, até que as diferentes séries de efeitos se encontrem em um ponto, e o todo por fim revele ter dependido em última análise de alguma causa comum, ou até que, ao invés de convergir para um ponto, elas terminem em pontos diferentes, e se prove que a ordem dos efeitos tenha resultado da colocação de algumas das causas primitivas ou agentes naturais. Por exemplo, a ordem de sucessão e de coexistência entre os movimentos celestes expressa pelas leis de Kepler é derivada da coexistência de duas causas primitivas, o sol e o impulso original ou força de impulsão própria de cada planeta. As leis de Kepler se decompõem nas leis destas causas e no fato da sua coexistência. As leis derivadas, portanto, não dependem somente das leis primitivas às quais são redutíveis; elas dependem na maioria das vezes dessas leis primitivas e de um fato primitivo, ou seja, o modo de coexistência de algum dos elementos componentes do universo. As leis primitivas de causação poderiam ser as mesmas que as atuais e ainda as leis derivadas, completamente diferentes, se as causas coexistissem em diferentes proporções ou com alguma diferença naquelas, entre suas relações, pelas quais os efeitos são influenciados. Se, por exemplo, a atração do sol e a força de impulsão original tivessem existido em alguma outra proporção, em relação mútua, diferente da atual (e não sabemos o motivo por que não teria sido assim), as leis derivadas dos movimentos celestes poderiam ter sido completamente diferentes do que são agora. As proporções existentes são tais que produzem movimentos elípticos regulares; quaisquer outras proporções teriam produzido elipses diferentes, ou movimentos circulares, ou parabólicos, ou hiperbólicos, mas ainda assim regulares, porque os efeitos de cada um dos agentes se acumulam de acordo com uma lei uniforme; e duas séries regulares de quantidades, quando se acrescentam seus termos correspondentes, devem produzir uma série regular de qualquer tipo, quaisquer que sejam as próprias quantidades. 3. As colocações de causas permanentes não são redutíveis a uma lei Este último elemento da redução de uma lei derivada - o elemento que não é uma lei de causação, mas uma colocação de Causas - não pode ser reduzido a uma lei. Não há, como se observou anteriormente, uniformidade, norma, princípio ou regra perceptível na distribuição dos agentes naturais primitivos através do universo. As diferentes substâncias que compõem a Terra, os poderes que pervadem o universo, não se encontram em relação constante uns com os outros. Uma substância é mais abundante que outras, um poder age por extensão maior de espaço que outros, sem nenhuma analogia que possamos descobrir. Não apenas não sabemos de nenhuma razão por que a atração do sol e a força na direção da tangente coexistem na proporção exata em que se observam, mas não podemos nem mesmo delinear uma coincidência entre essa proporção e as proporções em que quaisquer outras forças elementares no universo estão misturadas. A maior desordem é aparente na combinação das causas, o que é coerente com a máxima ordem regular nos seus efeitos, pois, quando cada agente conduz suas próprias operações de acordo com uma lei uniforme, mesmo a mais caprichosa combinação de ações engendrará uma regularidade de alguma sorte, como vemos no caleidoscópio, onde qualquer arranjo casual de pedaços coloridos de espelho produz, pelas leis da reflexão da luz, bela regularidade no efeito. 4. De onde se segue que as leis empíricas não valem senão nos limites da experiência atual Nas considerações acima está a justificativa do pequeno grau de confiança que os sábios costumam pôr nas leis empíricas. Uma lei derivada inteiramente resultante da operação de uma causa será tão universalmente verdadeira quanto as próprias leis da causa; isto é, será sempre verdadeira exceto onde um dos efeitos da causa de que a lei derivada depende é anulado por uma causa de ação contrária. Quando, porém, a lei derivada resulta não de diferentes efeitos de uma causa, mas de efeitos de várias causas, não podemos ter certeza de que será verdadeira sob qualquer variação no modo de coexistência das causas ou dos agentes primitivos naturais de que as causas, em última análise, dependem. A proposição de que as jazidas de carvão se encontram exclusivamente em certos tipos de estratos, embora verdadeira com relação à Terra, tanto quanto nossa observação atingiu, não pode ser estendida à lua ou aos outros planetas, supondo-se que o carvão exista lá, porque não podemos estar seguros de que a constituição original de outro planeta qualquer foi tal que produziu os diferentes sedimentos na mesma ordem que o nosso globo. A lei derivada, neste caso, depende não apenas de leis, mas de uma colocação, e colocações não podem ser reduzidas a uma lei. É a própria natureza de uma lei derivada que ainda não foi reduzida a seus elementos, em outras palavras, uma lei empírica que não sabemos se resulta de diferentes efeitos de uma causa ou de efeitos de diferentes causas. Não podemos dizer se depende totalmente de leis, ou parcialmente de leis e parcialmente de uma colocação. Se depende de uma colocação, será verdadeira em todos os casos em que essa colocação particular existe. Mas, desde que estejamos completamente ignorantes, no caso de depender de uma colocação, a respeito de qual é a colocação, não estamos salvos de estender a lei além dos limites de tempo e lugar em que temos experiência real de sua veracidade. Já que a lei sempre se demonstrou verdadeira dentro desses limites, temos provas de que as colocações, quaisquer que sejam, de que ela depende existem realmente dentro desses limites. Mas, não conhecendo nenhuma regra ou princípio a que as próprias colocações obedecem, não podemos concluir que, porque se prova que uma colocação existe dentro de determinados limites de lugar e tempo, também deverá existir além desses limites. As leis empíricas, portanto, só podem ser reconhecidas como verdadeiras dentro dos limites de tempo e lugar em que se descobriu serem verdadeiras pela observação, e não simplesmente os limites de tempo e lugar, mas de tempo, lugar e circunstância, pois, já que a própria significação de lei empírica é que não conhecemos as leis últimas de causação de que ela depende, não podemos prever, sem uma experiência atual, de que maneira ou quanto a introdução de uma nova circunstância pode afetá-la. ( ... ) CAPÍTULO XIV Do acaso e sua eliminação 1. A prova das leis empíricas depende da teoria do acaso ( ... ) Descobrimos que o método de concordância tem o defeito de não provar a causação, e, portanto, pode ser empregado apenas para a determinação de leis empíricas. Mas descobrimos também que, além dessa deficiência, ele padece de uma imperfeição muito característica, tendendo a tornar incertas mesmo as conclusões a que está apto a provar. Essa imperfeição surge da pluralidade das causas. Embora dois ou mais casos em que se encontra o fenômeno a não tenham nenhum antecedente comum exceto A, isto não prova que há alguma conexão entre a e A, já que a pode ter muitas causas e ter sido produzido nestes diferentes casos não por alguma coisa que estes têm em comum, mas por um dos seus elementos diferentes. Observamos, todavia, que a incerteza característica do método diminui na proporção da multiplicação de casos que apontam A como antecedente, e a existência de uma lei de conexão entre E e a chega mais próximo da certeza. Deve-se determinar, agora, depois de que quantidade de experiência essa certeza pode ser considerada praticamente atingida, e a conexão entre A e a pode ser aceita como uma lei empírica. A questão, em termos mais familiares, é esta: Depois de quantos e que tipos de casos pode-se concluir que uma coincidência observada entre dois fenômenos não é o efeito do acaso? É da máxima importância, para se compreender a lógica da indução, que formemos uma ideia clara do que se entende por acaso e como os fenômenos que a linguagem comum atribui a essa abstração são realmente produzidos. 2. Definição e explicação do acaso O acaso é geralmente a antítese direta da lei; o que quer que, supõe-se, não pode ser atribuído a uma lei é atribuído ao acaso. É certo, todavia, que tudo o que acontece é resultado de alguma lei, é um efeito de causas, e poderia ter sido previsto a partir do conhecimento da existência dessas causas e de suas leis. Se levanto uma determinada carta, é em consequência do seu lugar no baralho. Sua posição no baralho era uma consequência da maneira pela qual as cartas foram embaralhadas, ou da ordem em que foram jogadas na última partida, que, por sua vez, eram efeitos de causas anteriores. Em todas as fases, se tivéssemos conhecimento preciso das causas existentes, teria sido teoricamente possível predizer o efeito. Um evento que ocorre por acaso pode ser melhor descrito como uma coincidência da qual não temos fundamento para inferir uma uniformidade - a ocorrência de um fenômeno em determinadas circunstâncias sem que tenhamos, por isso, motivo para inferir que ocorrerá novamente nessas mesmas circunstâncias. Isto, todavia, rigorosamente examinado, implica que a enumeração das circunstâncias não é completa. Qualquer que seja o fato, desde que tenha ocorrido uma vez, podemos estar seguros de que, se todas as mesmas circunstâncias se repetirem, ocorrerá novamente; e não unicamente de todas, mas há uma determinada parcela dessas circunstâncias da qual o fenômeno é invariavelmente consequente. Com a maioria delas, porém, ele não está ligado de maneira permanente; a sua conjunção com essas circunstâncias é considerada efeito do acaso, por ser meramente casual. Fatos reunidos casualmente são, separadamente, os efeitos de causas e, portanto, de leis, mas de diferentes causas, e causas não-ligadas por uma lei. É incorreto, pois, dizer que um fenômeno é produzido por acaso; mas podemos dizer que dois ou mais fenômenos são reunidos por acaso, que coexistem ou sucedem-se um ao outro unicamente por acaso; entenda-se que não existe entre eles relação de causação, que não são nem causa nem efeito um do outro, nem efeitos da mesma causa, nem efeitos de causas ligadas entre si por uma lei de coexistência, nem mesmo efeitos de uma mesma colocação de causas primitivas. Se a mesma coincidência casual nunca ocorresse uma segunda vez, teríamos uma pedra de toque para distingui-la das coincidências que são os resultados de uma lei. Desde que os fenômenos tenham sido encontrados juntos apenas uma vez, a não ser que conhecêssemos algumas leis mais gerais das quais a coincidência pudesse ter resultado, não poderíamos distingui-lo de uma circunstância casual, mas, se ocorresse duas vezes, saberíamos que os fenômenos assim reunidos devem estar de alguma maneira ligados por intermédio de suas causas. Não há, todavia, tal pedra de toque. Uma coincidência pode ocorrer muitas vezes e ainda assim ser apenas casual. Mais ainda, seria incoerente, com o que conhecemos da ordem da natureza, duvidar de que todas as coincidências casuais mais cedo ou mais tarde se repetirão, desde que os fenômenos no meio dos quais elas ocorreram não cessem de existir ou de serem reproduzidos. A repetição, portanto, da mesma coincidência mais de uma vez, ou mesmo sua repetição frequente, não provam que ela é um exemplo de uma lei, ou que não é casual, ou, na linguagem comum, o efeito do acaso. E, ainda, quando uma coincidência não pode ser deduzida de leis conhecidas nem ser reconhecida experimentalmente para um caso de causação, a frequência de sua ocorrência é a única marca da qual podemos inferir que é o resultado de uma lei. Não, contudo, sua frequência absoluta. A questão não é se a coincidência ocorre muitas vezes ou raramente, no sentido ordinário destes termos, mas se ocorre mais frequentem ente do que o acaso possa explicar, mais frequentemente do que se poderia racionalmente esperar se a coincidência fosse casual. Temos que decidir, portanto, que grau de frequência em uma coincidência seria computado ao acaso, e para isso não pode haver nenhuma solução geral possível. Podemos apenas estabelecer o princípio pelo qual a solução deve ser determinada; a própria solução será diferente em cada caso diferente. Suponhamos que um dos fenômenos, A, existe sempre, e o outro fenômeno, B, apenas ocasionalmente; resulta que todo caso de B será um caso de sua coincidência com A, e ainda a coincidência será meramente casual, não o resultado de uma conexão entre ambos. ( ... ) A uniformidade, por maior que seja, não é maior do que ocorreria na suposição de que não existe tal conexão. De outro lado, suponhamos que estivéssemos investigando se há alguma causação entre a chuva e um vento particular. A chuva, sabemos, ocorre ocasionalmente com qualquer vento; portanto, a conexão, se existe, não pode ser uma lei real; mas ainda assim a chuva pode estar ligada a um vento particular por intermédio de uma relação causal, isto é, embora não possam ser sempre efeitos da mesma causa (pois, se o fossem, regularmente coexistiriam), pode haver algumas causas comuns aos dois, de maneira que todas as vezes que um é produzido por essas causas comuns, ambos, pelas leis das causas, coexistiriam. Como, pois, constataremos isso? A resposta óbvia é: observando se a chuva ocorre mais frequentemente com tal vento do que com qualquer outro. Isso, todavia, não é suficiente; talvez esse vento sopre mais frequentemente do que qualquer outro, de maneira que o fato de soprar mais frequentemente em tempo chuvoso aconteceria da mesma maneira, mesmo que não tivesse nenhuma ligação com as causas da chuva, desde que também não tivesse nenhuma ligação com as causas contrárias à chuva. Na Inglaterra, os ventos do Oeste sopram cerca de duas vezes mais durante o ano do que os ventos do leste. Se, portanto, chove apenas duas vezes mais frequentemente com um vento do Oeste do que com um vento do leste, não temos nenhum motivo para inferir que alguma lei da natureza tenha algo a ver com a coincidência. Se chove com frequência mais do que duas vezes maior, podemos estar certos de que se trata de alguma lei; ou há alguma causa na natureza que, neste clima, tende a produzir ao mesmo tempo chuva e vento oeste, ou o próprio vento oeste tem tendência a produzir chuva. Mas, se chove com frequência menor do que duas vezes, podemos tirar uma inferência diretamente oposta; um (o vento), em vez de ser uma causa ou estar ligado com causas da outra (chuva), deve estar ligado com causas diversas a ela ou com a ausência de alguma causa que ela produz; e, embora possa chover ainda mais frequentemente com um vento oeste do que com um vento leste, isto estaria tão longe de provar uma conexão entre os fenômenos que a conexão provada seria entre a chuva e um vento leste, ao qual, na mera frequência de coincidência, está menos unida. Eis, pois, dois exemplos; em um, a maior frequência possível de coincidência, sem nenhum caso sequer em contrário, não prova que há uma lei; no outro, uma frequência muito menor de coincidência, mesmo quando a não-coincidência é ainda mais frequente, prova que há uma lei. Em ambos os casos, o princípio é o mesmo. Em ambos consideramos a frequência positiva dos próprios fenômenos e que quantidade de frequência de coincidência deve acontecer sem se supor qualquer conexão entre eles, desde que não haja repugnância, desde que nenhum deles esteja conectado a alguma causa tendente a frustrar o outro. Se acharmos uma frequência de coincidência maior do que esta, concluiremos que há conexão; se uma frequência menor, que há repugnância. No primeiro caso, concluímos que um dos fenômenos pode, sob algumas circunstâncias, causar o outro, ou que existe algo capaz de causá-los ambos; no outro caso, que um deles ou alguma causa que produz um deles é capaz de anular a produção do outro. Temos, assim, que deduzir da frequência observada de coincidência tanto quanto pode ser o efeito do acaso, isto é, da mera frequência dos próprios fenômenos e, se algo resta, o que resta é o fato residual que prova a existência de uma lei. A frequência dos fenômenos pode unicamente ser determinada dentro de limites definidos de espaço e tempo, dependendo da quantidade e distribuição dos agentes primitivos naturais dos quais não podemos conhecer nada além dos limites da observação humana, já que não podemos descobrir nenhuma lei, nenhuma regularidade, que nos permitam inferir o desconhecido do conhecido. Mas, para o propósito atual, isto não é desvantagem, estando a questão confinada dentro de limites e dados iguais. As coincidências ocorreram em determinados lugares e tempos, e dentro destes podemos estimar a frequência com que tais coincidências seriam produzidas por acaso. Se, pois, descobrirmos, pela observação, que A existe em um caso entre cada dois e B em um caso entre cada três, então, se não há nem ligação nem repugnância entre eles ou entre alguma de suas causas, os casos em que A e B existirem ambos, isto é, coexistirem, será um caso em cada seis. Pois A existe em três casos entre seis; e B, existindo em um caso entre cada três sem se considerar a presença ou a ausência A, existirá em um caso entre esses três. Haverá, portanto, do número total de casos, dois em que A existe sem B, um caso de B sem A, dois em que nem B nem A existe, e um caso entre seis em que ambos existem. Se, pois, de fato, se descobrir que coexistem mais vezes do que um caso entre seis e, consequentemente, A não existe sem B tantas vezes quanto duas em três, nem B sem A tantas vezes quanto uma em cada duas, há alguma causa existente que tende a produzir uma conexão entre A e B. Generalizando o resultado, podemos dizer que, se A ocorre em uma proporção maior de casos em que B está do que de casos em que B não está, então também B ocorrerá em proporção maior de casos em que A está do que de casos em que A não está, e há alguma conexão, por intermédio da causação, entre A e B. Se pudéssemos chegar às causas dos dois fenômenos, iríamos descobrir, em alguma fase, próxima ou remota, alguma causa ou causas comuns a ambos e, se pudéssemos determinar quais seriam, poderíamos conceber uma generalização verdadeira sem restrição de lugar e tempo; mas, até que possamos fazer isso, a conexão entre os dois fenômenos permanecerá uma lei empírica. ( ... ) CAPÍTULO XV Do cálculo do acaso 1. Fundamento da teoria das probabilidades dos matemáticos "A probabilidade", diz Laplace, 25 "tem relação parte com a nossa ignorância, parte com o nosso conhecimento. Sabemos que entre três ou mais eventos, um, e apenas um, deve acontecer; mas não há nada que nos leve a crer que um deles acontecerá em vez dos outros. Neste estado de indecisão, é impossível afirmarmos, com certeza, a sua ocorrência. É, todavia, provável que qualquer um desses eventos, escolhido ao acaso, não ocorrerá, porque percebemos vários casos, todos igualmente possíveis, que excluem sua ocorrência, e apenas um que a favorece. "A teoria das probabilidades consiste em reduzir todos os eventos da mesma espécie a um determinado número de casos igualmente possíveis, isto é, aqueles em que estamos igualmente indecisos quanto à sua existência; e em determinar o número desses casos favoráveis ao evento cuja probabilidade é investigada. A relação desse número com o número de todos os casos possíveis é a medida da probabilidade; esta é, assim, uma fração, cujo numerador é o número de casos favoráveis ao evento, e o denominador, o número de todos os casos possíveis." Para um cálculo de probabilidades, pois, de acordo com Laplace, são necessários dois quesitos: devemos saber que, entre vários eventos, um certamente ocorrerá, e não mais do que um; e não devemos saber, nem ter qualquer motivo para esperar, que será um desses eventos em vez de outro qualquer. Tem-se contestado que estes não são os únicos requisitos, e que Laplace omitiu, na fórmula teórica geral, uma parte necessária do fundamento da teoria das probabilidades. Tem-se dito que para se poder afirmar dois eventos igualmente prováveis, não é suficiente sabermos que um ou outro deve ocorrer e não termos bases para conjeturar qual. É necessário que a experiência tenha mostrado que os dois eventos são de ocorrência igualmente frequente. Por que, ao jogar para o alto uma moeda, reconhecemos que é igualmente provável que lançaremos cara ou coroa? Porque sabemos, em qualquer grande número de lances, que cara e coroa são lançados um número quase igual de vezes, e que, quanto mais lances fizermos, a igualdade é mais proximamente perfeita. Podemos saber isto, se quisermos, por experiência direta, ou pela experiência diária, que a vida proporciona, de eventos da mesma característica geral, ou dedutivamente, a partir do efeito de leis mecânicas sobre um corpo simétrico impulsionado por forças que variam indefinidamente em quantidade e direção. Podemos sabê-lo, em resumo, ou pela experiência específica ou pelo testemunho de nosso conhecimento geral da natureza. Mas, de qualquer maneira, devemos sabê-lo para justificarmos o fato de considerar os dois eventos igualmente prováveis, e, se não o soubéssemos, procederíamos tanto a esmo ao fixar somas iguais no resultado quanto ao estabelecer as probabilidades. Esta é a visão do assunto da primeira edição da presente obra, mas desde então me convenci de que a teoria das probabilidades, como concebida por Laplace e pelos matemáticos em geral, não contém o erro sofístico fundamental que lhe atribuí. Devemos nos lembrar de que a probabilidade de um evento não é qualidade do próprio evento, mas mero nome para uma medida do fundamento que nós ou qualquer outra pessoa tem para esperá-lo. A probabilidade de um evento para uma pessoa é diferente da probabilidade do mesmo evento para outra, ou para a mesma pessoa depois que adquiriu provas adicionais. A probabilidade, para mim, de que um indivíduo de quem não conheço nada a não ser o nome morrerá durante o ano é totalmente alterada depois que me informar no minuto seguinte de que está no último estágio de definhamento. Todavia, isso não faz nenhuma diferença no próprio evento nem em nenhuma das causas de que depende. Todo evento é em si mesmo certo, não provável; se soubéssemos tudo, ou saberíamos positivamente que iria acontecer, ou positivamente que não. Mas sua probabilidade significa para nós o grau de expectativa de sua ocorrência que estamos autorizados a nutrir pela nossa certeza atual. Penso que, tendo isto em mente, deve-se admitir que mesmo quando não temos qualquer conhecimento para guiar nossas expectativas, exceto o conhecimento de que o que acontece deve ser um entre determinado número de possibilidades, podemos ainda razoavelmente julgar que uma suposição é mais provável para nós do que uma outra suposição, e, se tivermos algum interesse a fixar, podemos estabelecê-lo melhor agindo de acordo com esse julgamento. 2. A teoria defensável ( ... ) A teoria comum, portanto, do cálculo das probabilidades mostra-se defensável. Mesmo quando não sabemos nada exceto o número das contingências possíveis e que se excluem mutuamente, e quando somos inteiramente ignorantes de sua frequência comparativa, podemos ter fundamentos, e bases numericamente apreciáveis, para agir mais sob uma suposição do que sob outra, e esta é a significação de probabilidade. 3. Sobre que fundamento a teoria realmente existe O princípio, todavia, pelo qual o raciocínio procede é suficientemente evidente. É o princípio óbvio de que, quando os casos que existem são distribuídos entre várias espécies, é impossível que cada uma dessas espécies seja maioria do todo; pelo contrário, deve haver maioria contra cada espécie, exceto uma no máximo; e, se alguma espécie tem mais do que sua parte em proporção ao número total, as outras coletivamente devem ter menos. Admitindo-se este axioma e aceitando-se que não temos base para escolher uma espécie como mais provável do que o resto para ultrapassar a proporção média, resulta que não podemos presumir isto racionalmente de nenhuma, o que o faríamos se tivéssemos que apostar em favor disso, recebendo menos vantagens do que na proporção do número das demais espécies. Mesmo, portanto, neste caso extremo do cálculo das probabilidades, que em absoluto não se apoia em alguma experiência especial, o fundamento lógico do procedimento é nosso conhecimento - o conhecimento que temos então - das leis que governam a frequência de ocorrência dos diferentes casos; mas neste caso o conhecimento é limitado ao que, sendo universal e axiomático, não requer referência à experiência específica ou a quaisquer considerações que surgem a respeito da natureza específica do problema sob discussão. Exceto, contudo, em casos como jogos de azar, onde o verdadeiro propósito em vista requer ignorância em vez de conhecimento, não posso conceber nenhum caso em que devamos nos satisfazer com uma estimativa de probabilidades como esta - uma estimativa fundada no mínimo absoluto de conhecimento a respeito do assunto. É claro que, no caso das bolas coloridas, uma base muito pequena de suposição de que as bolas brancas eram realmente mais numerosas do que as de qualquer outra cor seria suficiente para estragar todos os cálculos feitos em nosso estado anterior de desinteresse. Colocar-nos-ia numa posição de conhecimento mais avançado, em que as probabilidades, para nós, seriam diferentes do que eram antes; e, ao calcular essas novas probabilidades, teríamos que trabalhar com um grupo totalmente diferente de dados, fornecidos não mais pela mera conta das suposições possíveis, mas pelo conhecimento específico de fatos. Deveríamos sempre nos empenhar para obter tais dados; e em todas as pesquisas, exceto em assuntos igualmente além do âmbito de nossos meios de conhecimento e de nossos usos práticos, eles podem ser obtidos, se não muito bons, pelo menos melhores do que nada. (Parece-me mesmo que o cálculo de probabilidades - onde não há dados fundados nem na experiência específica nem na inferência especial - deve, na imensa maioria dos casos, falhar, pela completa impossibilidade de se determinar algum princípio que possa orientar no levantamento da lista de possibilidades. No caso das bolas coloridas, não temos dificuldade em fazer a enumeração porque nós mesmos determinamos quais serão as possibilidades. Mas suponhamos um caso mais análogo aos que ocorrem na natureza: em vez de três cores, que estejam na caixa todas as cores possíveis, supondo-se que sejamos ignorantes quanto à frequência comparativa com que cores diferentes ocorrem na natureza ou nas obras de arte. Como elaborar a lista de casos? Deve ser cada tom diferente contado como uma cor? Se sim, o critério deve ser um olho comum ou um olho educado - de um pintor, por exemplo? Da resposta a estas questões dependerá se as probabilidades contra uma cor particular devem ser em dez, vinte, ou talvez quinhentos para uma. Ao passo que, se soubéssemos pela experiência que a cor particular ocorre em média um certo número de vezes em cada cem ou mil, não precisaríamos saber nada, quer da frequência, quer do número das demais possibilidades). É óbvio também que, mesmo quando as probabilidades são derivadas da observação e da experimentação, um progresso muito pequeno nos dados - por meio de observações melhores ou tomando-se mais completamente em consideração as circunstâncias especiais do caso - é mais útil do que a aplicação mais elaborada do cálculo das probabilidades fundado em dados do seu estado anterior de inferioridade. A omissão dessa reflexão óbvia tem dado margem a aplicações incorretas do cálculo das probabilidades, que o tornaram o verdadeiro opróbrio da matemática. É suficiente referir as aplicações que se fizeram para a credibilidade de testemunhos e para a correção dos vereditos de júris. Com respeito ao primeiro, o senso comum deveria declarar ser impossível encontrar a média geral da veracidade e outras qualificações para o testemunho verdadeiro da humanidade, ou de alguma classe deles, e, mesmo se isso fosse possível, o seu emprego para tais propósitos implica a má compreensão do uso de médias, que servem, na verdade, para proteger aqueles cujo interesse consiste em fixar, para evitar erros, o resultado geral de grandes quantidades de casos, mas são de valor extremamente pequeno como bases de expectativa em um caso individual, a não ser que o caso seja um daqueles em que a grande maioria de casos individuais não difere muito da média. No caso de um testemunho, pessoas de senso comum tirariam suas conclusões do grau de consistência de suas declarações, sua conduta sob inquérito, e da relação do próprio caso com seus interesses, suas inclinações e sua capacidade mental, em vez de aplicar um critério tão rude (mesmo se fosse capaz de ser verificado), como a proporção entre o número de declarações verdadeiras e o número de errôneas que se possa supor que tenha feito no decurso de sua vida. (...) (...) Antes de aplicar a teoria das probabilidades a algum propósito científico, deve-se colocar o fundamento para a avaliação das probabilidades, possuindo nós mesmos a máxima quantidade que se possa conseguir de conhecimento positivo. O conhecimento exigido é o da frequência comparativa com a qual os diferentes eventos ocorrem. Para os propósitos, portanto, da presente obra, é lícito supor que conclusões a respeito da probabilidade de um fato de determinada espécie se apoiam em nosso conhecimento da proporção entre os casos em que fatos dessa espécie ocorrem e aqueles em que não ocorrem, sendo este conhecimento derivado de experimento específico ou deduzido de nosso conhecimento das causas operacionais que tendem a produzir, comparadas com aquelas que tendem a anular, o fato em questão. Esse cálculo de probabilidades é baseado em uma indução, e, para tornar o cálculo legítimo, a indução deve ser válida. Não é menos indução, embora não prove que o evento ocorre em todos os casos de um dado tipo, mas apenas que, entre um dado número desses casos, ocorre em cerca de tantos deles. A fração que os matemáticos usam para designar a probabilidade de um evento é a proporção destes dois números, a determinada proporção entre o número de casos em que o evento ocorre e a soma de todos os casos, aqueles em que ocorre e em que não ocorre, tomados em conjunto. Ao jogar cara ou coroa, o tipo de casos em questão são os lances, e a probabilidade de coroa é um por meio porque, se lançarmos o número de vezes suficiente, dará coroa cerca de uma vez em cada dois lances. No jogo de um dado, a probabilidade de ás é uma por seis; não unicamente porque há seis lances possíveis dos quais o ás é um, e porque não conhecemos nenhuma razão pela qual devesse dar um em vez de outro - embora eu tenha admitido a validez dessa base na falta de uma melhor -, mas porque sabemos realmente, ou por raciocínio ou por experiência, que em cem ou em um milhão de lances dá o ás em cerca de um sexto desse número ou uma em seis vezes. 4. Sua dependência, em última análise, da causalidade Digo "ou por raciocínio ou por experiência", querendo significar especificamente experiência. Mas, ao avaliar as probabilidades, não é uma questão de indiferença com respeito a qual dessas duas fontes obtemos nossa certeza. A probabilidade de eventos, enquanto calculada a partir de sua simples frequência em experiências passadas, fornece base menos segura para a orientação prática do que suas probabilidades enquanto deduzidas do conhecimento igualmente exato da frequência de ocorrência de suas causas. A generalização de que um evento ocorre em dez de cada cem casos de uma dada espécie é uma indução tão real quanto se a generalização fosse de que ocorre em todos os casos. Mas, quando chegamos à conclusão simplesmente contando casos da experiência atual e comparando o número de casos em que A esteve presente com o número em que esteve ausente, o critério é apenas o do método de concordância, e a conclusão corresponde apenas a uma lei empírica. Poderemos subir um degrau mais quando pudermos atingir as causas das quais a ocorrência ou não de A dependem, e calcular a frequência comparativa das causas favoráveis e das não-favoráveis à ocorrência. Estes são dados de ordem mais elevada pelos quais a lei empírica derivada da simples comparação numérica de casos afirmativos e negativos será ou corrigida ou confirmada, e em ambos os casos deveremos obter uma medida mais correta de probabilidade do que a dada pela comparação numérica. Já se observou muito bem que na espécie de exemplos pelos quais a teoria das probabilidades geralmente é ilustrada, a de bolas em uma caixa, o cálculo de probabilidades é sustentado por razões de causalidades mais fortes do que a experiência específica. "Qual é a razão por que em uma caixa onde há nove bolas pretas e uma branca esperamos tirar uma bola preta nove vezes tantas (em outras palavras, nove vezes tão frequentemente, sendo a frequência a medida de intensidade em expectativa) quanto uma branca? Obviamente porque as condições locais são nove vezes favoráveis; porque a mão pode pousar em nove lugares e pegar uma bola preta, enquanto pode pousar apenas em um lugar e encontrar uma bola branca; exatamente pela mesma razão por que não esperamos conseguir encontrar um amigo no meio de uma multidão, uma vez que as condições para que nós nos encontremos são muitas e difíceis. Isto, é claro, não teria o mesmo alcance se as bolas brancas fossem de tamanho menor que as pretas, nem a probabilidade continuaria a mesma; seria muito mais provável que a bola maior fosse encontrada pela mão". ( ... ) Não obstante, todavia, a superioridade abstrata do cálculo de probabilidade fundado em causas, é fato que, em quase todos os casos em que probabilidades admitem um cálculo suficientemente preciso para tornar sua avaliação numérica de valor prático, os dados numéricos não são extraídos do conhecimento das causas, mas da experiência dos próprios eventos. As probabilidades de vida em diferentes idades ou em diferentes climas, as probabilidades de recuperação de uma doença particular, as chances do nascimento de um filho homem ou mulher, as chances de destruição de casas ou outras propriedades pelo fogo, as chances de se perder um navio em uma viagem particular, tudo isso é deduzido de estatísticas de mortalidade, retornos de hospitais, registros de nascimentos, de naufrágios, etc., isto é, da frequência observada não das causas, mas dos efeitos. A razão é que em todas essas classes de fatos as causas ou não são acessíveis à observação direta de maneira nenhuma, ou não o são com a precisão exigida. E não temos meios para julgar sobre sua frequência, a não ser pela lei empírica fornecida pela frequência dos efeitos. Nem ao menos a inferência depende apenas da causalidade. Raciocinamos de um efeito para um efeito similar passando pela causa. Se um agente de seguros infere de suas estatísticas que entre cem pessoas de determinada idade que vivem atualmente, uma média de cinco atingirão a idade de setenta anos, esta inferência é legítima não pela simples razão de que esta é a proporção das pessoas que viveram até setenta anos em tempos passados, mas porque o fato de terem vivido até essa idade demonstra que tal é a proporção existente, neste lugar e tempo, entre as causas que prolongam a vida até a idade de setenta anos e as causas que tendem a antecipar o seu fim. (O autor acima citado diz que a avaliação de probabilidades pela comparação do número de casos em que o evento ocorre com o número em que não ocorre "seria em geral totalmente errôneo" e "não é a verdadeira teoria das probabilidades". É pelo menos a que forma o fundamento do seguro, e de todos os cálculos de probabilidades, da vida que a experiência verifica tão abundantemente. A razão do crítico para rejeitar a teoria é que ela "iria considerar um evento como certo quando nunca tivesse falhado até então; o que está excessivamente longe da verdade, mesmo para um número enorme de fatos constantes". Esta não é uma deficiência própria a uma teoria particular, mas sim a qualquer teoria das probabilidades. Nenhum princípio de avaliação pode prevenir-se contra o perigo apontado pelo crítico. Se um evento não falhou em um número de tentativas suficientes para eliminar o acaso, ele realmente tem toda a segurança que uma lei empírica proporciona; ele é certo durante a permanência da mesma colocação de causas que existiam durante as observações. Se falhar uma vez, será em consequência de alguma mudança nessa colocação. Nenhuma teoria das probabilidades nos tornará aptos para inferir a probabilidade futura de um evento a partir do passado, se as causas operantes, capazes de influenciar o evento, sofreram mudança nesse meio tempo). CAPÍTULO XVI Da prova da lei da causalidade universal 1. A lei da causalidade não se apoia em um instinto Já completamos nossa revisão dos procedimentos lógicos pelos quais as leis ou uniformidades da sequência de fenômenos e essas uniformidades na sua coexistência que dependem das leis mesmas da sua sequência são determinadas e testadas. Como reconhecemos no início e nos tornamos aptos para ver mais claramente na progressão da investigação, a base de todas as operações lógicas é a lei da causalidade. A validade de todos os métodos indutivos depende da suposição de que todo evento, ou o começo de todo evento, deve ter alguma causa, algum antecedente, de cuja existência ele é invariável e incondicionalmente consequente. No método de concordância isto é óbvio: ele procede reconhecidamente na suposição de que teremos encontrado a verdadeira causa tão logo tenhamos negado todas as outras. A afirmativa é igualmente verdadeira com respeito ao método de diferença. Esse método nos autoriza a inferir uma lei geral a partir de dois casos: um, em que A existe juntamente com uma multidão de outras circunstâncias, e B segue; outro, em que, sendo removido A e permanecendo iguais todas as outras circunstâncias, B é anulado. O que, todavia, isto prova? Prova que B, no caso particular, não pode ter nenhuma outra causa a não ser A; mas, concluir a partir disto que A era a causa ou que A em outras ocasiões será seguido por B, somente é admissível na suposição de que B deve ter alguma causa, que entre seus antecedentes em um único caso em que ocorre, deve haver um que tenha capacidade de produzi-lo outras vezes. Admitindo-se isto, vê-se que no caso em questão esse antecedente não pode ser outro senão A; mas que, se não é outro senão A, deve ser A não é provado, por esses casos pelo menos, mas tomado como certo. Não há necessidade de se gastar tempo provando que o mesmo é verdadeiro com respeito ao outro método indutivo. A universalidade da lei da causalidade é suposta em todos. Mas tal suposição é garantida? Sem dúvida, pode-se dizer, a maior parte dos fenômenos é ligada como efeitos a algum antecedente ou causa, isto é, nunca são produzidos sem que algum fato determinável os tenha precedido, mas a própria circunstância de que são muitas vezes necessários complexos procedimentos de indução mostra que existem casos em que essa ordem regular de sucessão não é clara para nossa desamparada apreensão. Se, pois, os procedimentos que colocam esses casos dentro da mesma categoria dos demais requerem que suponhamos a universalidade da própria lei que à primeira vista não parecem exemplificar, não é isto uma petitio principii? Podemos provar uma proposição por meio de um argumento que a toma como certa? E se não se provar assim, em que prova ela se apoia? Para esta dificuldade, que propositadamente coloquei nos termos mais fortes que pude admitir, a escola de metafísicos muito tempo predominante neste país encontrou uma desculpa pronta. Afirmam que a universalidade da causalidade é uma verdade em que não podemos deixar de acreditar, que a sua crença é um instinto, uma das leis de nossa faculdade de crer. Como prova disto, dizem, e não têm nada mais a dizer, todos acreditam nela, e classificam entre as proposições, muito numerosas em seus catálogos, as que são atacáveis logicamente e talvez não possam ser logicamente provadas, mas cuja autoridade é mais alta que a da lógica, e tão essencialmente inerentes à mente humana, que mesmo quem as nega em teoria demonstra por sua prática habitual quanto é pouco impressionado por seus próprios argumentos. Estaria fora do meu propósito entrar aqui nos méritos desta questão, considerada pertencente à psicologia, mas devo protestar contra o fato de se aduzir, como prova da veracidade de um fato na natureza exterior, a disposição, seja distinta ou genérica, da mente humana para crer nela. ( ... ) Suponhamos - o que é perfeitamente possível imaginar - que a ordem atual do universo se dirigisse para um fim, e que sucedesse um caos no qual não houvesse sucessão fixa de acontecimentos, e o passado não desse garantia do futuro; se um ser humano fosse conservado miraculosamente vivo para testemunhar esta mudança, seguramente logo cessaria de acreditar em alguma uniformidade, uma vez que não existe mais a própria uniformidade. Se se admitir isso, a crença na uniformidade ou não é um instinto, ou é um instinto conquistável, como todos os outros instintos, por meio de conhecimento adquirido. ( ... ) 2. - mas em uma indução por simples enumeração Como se observou anteriormente, a crença que mantemos na universalidade, em toda a natureza, da lei de causa e efeito é um caso de indução, e de nenhuma maneira uma das primeiras que qualquer um de nós, ou a humanidade em geral, pode ter tido. Chegamos a essa lei universal pela generalização a partir de muitas leis de generalidade inferior. Nunca teríamos tido a noção de causalidade - no sentido filosófico do termo - como condição de todos os fenômenos sem que muitos casos de causalidade, ou, em outras palavras, muitas uniformidades parciais de sequência, tivessem anteriormente se tornado familiares. A mais óbvia das uniformidades particulares sugere e prova a uniformidade geral, e a uniformidade geral, uma vez estabelecida, nos capacita a provar as outras uniformidades particulares de que é extraída. Como, todavia, todos os procedimentos rigorosos de indução pressupõem a uniformidade geral, nosso conhecimento das uniformidades particulares - das quais a uniformidade geral foi inicialmente inferida - não derivou, é claro, de uma indução rigorosa, mas, vaga e indeterminadamente, de indução per enumerationem simplicem, e a lei de causalidade universal, sendo inferida de resultados assim obtidos, não pode ela própria apoiar-se em um fundamento melhor. Pareceria, portanto, que a indução per enumerationem simplicem não apenas não é necessariamente um procedimento lógico ilícito, mas na realidade é o único tipo de indução possível, desde que o procedimento mais elaborado, para sua validade, depende de uma lei obtida por esse modo simples. Não há, pois, incoerência em contrastar o caráter vago de um método com a rigidez de outro, quando esse outro se deve ao método mais vago como seu próprio fundamento? A incoerência, todavia, é apenas aparente. Seguramente, se a indução por simples enumeração fosse um procedimento não-válido, nenhum procedimento nela fundamentado poderia ser válido; exatamente como não se poderia confiar em telescópios se não pudéssemos confiar em nossos olhos. Mas, embora válido, é um procedimento falível, em muitos e diferentes graus; se, portanto, pudermos substituir as formas mais falíveis do procedimento por uma operação fundada no mesmo procedimento com uma forma menos falível, teremos efetuado um progresso muito importante. E isto é o que a indução científica faz. ( ... ) 3. Em que casos essa indução é admissível A precariedade do método de simples enumeração está em proporção inversa à amplitude da generalização. O procedimento é ilusório e insuficiente, exatamente na proporção em que o objeto da observação é específico e limitado em extensão. Como uma bola que se dilata, este método não-científico se toma cada vez menos passível de engano, e a classe mais universal de verdades - a lei de causalidade, por exemplo - e os princípios do número e da geometria são devida e satisfatoriamente provados por esse método apenas, não-suscetíveis de qualquer outra prova. Com respeito a toda a classe de generalizações de que recentemente tratamos - as uniformidades que dependem de causalidade -, a veracidade da observação feita acima resulta, por inferência óbvia, dos princípios estabelecidos nos capítulos precedentes. Quando se observa um fato um determinado número de vezes e em nenhum caso mostra ser falso, se afirmarmos de imediato esse fato como verdade universal ou lei da natureza sem sequer testá-lo por meio de um dos quatro métodos de indução ou deduzi-lo de outras leis conhecidas, erraremos grosseiramente; mas estaremos perfeitamente justificados ao afirmá-lo como lei empírica, verdadeira dentro de certos limites de tempo, lugar e circunstância, desde que o número de coincidências seja maior do que se pudesse, com alguma probabilidade, ser atribuído ao acaso. A razão para não o estender além desses limites é que o fato de se manter verdadeiro dentro desses limites pode ser uma consequência de colocações (que não se podem concluir) que existem em um lugar porque existem em outro, ou pode depender da ausência acidental de ações contrárias, que poderão ser trazidas a campo ou por qualquer variação de tempo ou pela mínima mudança de circunstâncias. Se supusermos, pois, que o objeto de uma generalização é tão largamente difuso que não haja nem tempo, nem lugar, nem combinação de circunstâncias, mas devemos fornecer um exemplo ou de sua veracidade ou de sua falsidade, e se se mostrar sempre verdadeiro, sua veracidade não poderá depender de quaisquer colocações, a não ser que um tal objeto exista em todos os tempos e lugares; e também não poderá ser anulado por nenhuma ação contrária, a não ser que esse mesmo objeto nunca ocorra realmente. É, portanto, uma lei empírica coextensiva a toda a experiência humana, a ponto de que a distinção entre leis empíricas e leis da natureza desaparece, e a proposição toma seu lugar entre as verdades - mais amplas e firmemente estabelecidas - acessíveis à ciência. (. .. )