John Stuart Mill – Princípios de Economia Política Com Algumas de suas Aplicações à Filosofia Social ÍNDICE Prefácio [1848] [Acréscimo ao Prefácio na 2ª edição, 1849] Prefácio à 3ª edição [junho de 1852] [Acréscimo ao Prefácio na 4ª edição, 1857] [Acréscimo ao Prefácio na 5ª edição, 1862] [Acréscimo ao Prefácio na 6ª edição, 1865] [Acréscimo ao Prefácio na “Edição Popular”, 1865] Prefácio à 7ª edição [1871] Observações Preliminares LIVRO PRIMEIRO — A Produção CAP. I — Os Requisitos para a Produção § 1. Requisitos para a produção § 2. Definição da função do trabalho § 3. A Natureza contribui mais para a eficácia do trabalho em algumas ocupações do que em outras? § 4. Alguns agentes naturais são quantitativamente limitados; outros, na prática, ilimitados CAP. II — O Trabalho como Agente de Produção § 1. Trabalho empregado diretamente na coisa produzida, ou empregado em operações preparatórias da produção § 2. Trabalho empregado na produção de subsistência de trabalho subsequente § 3. — na produção de matérias-primas § 4. — ou de implementos § 5. — na proteção do trabalho § 6. — no transporte e na distribuição dos produtos § 7. Trabalho que se refere aos seres humanos § 8. Trabalho de inventar e descobrir § 9. Trabalho agrícola, manufatureiro e comercial CAP. III — O Trabalho Improdutivo § 1. Trabalho não produz objetos, mas utilidades § 2. — que são de três espécies § 3. Trabalho produtivo é o que produz utilidades visando a elaboração de objetos materiais § 4. Todo o trabalho restante, por útil que seja, é classificado como improdutivo §5. Consumo produtivo e improdutivo § 6. Trabalho para o suprimento de consumo produtivo e trabalho para o suprimento de consumo improdutivo CAP. IV — O Capital § 1. O capital é riqueza apropriada para emprego reprodutivo § 2. Mais capital destinado à produção que o atualmente empregado § 3. Exame de alguns casos ilustrativos da ideia de capital CAP. V — Proposições Fundamentais Sobre o Capital § 1. A indústria é limitada pelo capital § 2. — mas nem sempre alcança esse limite § 3. O aumento de capital proporciona um aumento de emprego do trabalho, sem limitações assinaláveis § 4. Capital é resultado de economias § 5. Todo o capital é consumido § 6. O capital mantém-se, não por preservação, mas por reprodução perpétua § 7. Por que as nações se recuperam rapidamente do estado de devastação § 8. Efeitos do custeio das despesas governamentais mediante empréstimos § 9. Demanda de mercadorias não é demanda de trabalho § 10. A falácia da tributação CAP. VI — O Capital Circulante e o Capital Fixo § 1. Definição de capital fixo e circulante § 2. Aumento do capital fixo quando, a expensas da circulação, poderia ser em detrimento do trabalhador § 3. — mas isso raramente ocorre, se é que alguma vez ocorre CAP. VII — De que Depende o Grau de Produtividade dos Agentes de Produção § 1. Terra, trabalho e capital apresentam produtividade diferente em tempos e lugares diferentes § 2. Causas da produtividade superior. Vantagens naturais § 3. — maior energia de trabalho § 4. — habilidade e conhecimento superiores § 5. — superioridade intelectual e confiabilidade na comunidade em geral § 6. — grau superior de segurança CAP. VIII — A Cooperação ou União de Esforços no Trabalho § 1. Combinação de trabalho, uma das causas principais da produtividade superior § 2. Análise dos efeitos da diferenciação dos empregos § 3. Combinação do trabalho entre a cidade e o campo § 4. Graus mais elevados da divisão do trabalho § 5. Análise de suas vantagens § 6. Limitações da divisão do trabalho CAP. IX — A Produção em Grande Escala e a Produção em Pequena Escala § 1. Vantagens do sistema amplo de produção na manufatura § 2. Vantagens e desvantagens do princípio da sociedade anônima § 3. Condições necessárias do sistema amplo de produção § 4. Comparação entre a pequena e a grande agricultura CAP. X — A Lei do Aumento da Mão-de-Obra § 1. A lei do aumento da produção depende de três elementos: trabalho, capital e terra §2. A lei do crescimento populacional § 3. A que tipos de verificação o crescimento da população na prática se limita CAP. XI — A Lei do Aumento do Capital § 1. De que dependem os meios e as razões da poupança § 2. Causas da diversidade observada no poder efetivo do desejo de acumular § 3. Exemplos da deficiência observada no poder desse desejo §4. Exemplos de seus excessos CAP. XII — A Lei do Aumento da Produção da Terra § 1. A quantidade limitada e a produtividade limitada da terra; os limites reais da produção § 2. A lei da produção do solo, uma lei de retorno diminuído em relação à aplicação acrescida de trabalho e capital § 3. O princípio antagônico à lei do retorno diminuído; o progresso dos melhoramentos introduzidos na produção CAP. XIII — Consequências das Leis Precedentes § 1. Remédios para o caso de o limite da produção estar na fraqueza do princípio da acumulação § 2. A necessidade de limitar a população não é peculiar à condição em que reina a desigualdade de propriedade § 3. — nem se impõe pela importação de alimentos § 4. — ou se resolve, no geral, pela emigração LIVRO SEGUNDO — A Distribuição CAP. I —A Propriedade § 1. Notas introdutórias § 2. Termos em que se coloca a questão § 3. Análise do comunismo § 4. Análise do st. simonismo e do fourierismo CAP. II — Continuação do Mesmo Assunto § 1. A instituição da propriedade implica a liberdade de aquisição por contrato § 2. — a validade da prescrição § 3. — o poder de legação, mas não o direito de herdar. Análise da questão da herança § 4. O direito de doar deve ser limitado? Como? § 5. Os fundamentos da propriedade em terras diferem dos relacionados a bens móveis § 6. — mas estes só valem sob certas condições que nem sempre se realizam. Considerações sobre as limitações § 7. O direito de propriedade e o mau emprego CAP. III — As Classes Entre as Quais é Distribuída a Produção § 1. A produção por vezes distribui-se entre três classes § 2. — Às vezes pertence indivisa a uma § 3. — e outras vezes distribui-se entre duas CAP. IV — A Concorrência e os Costumes § 1. A concorrência não é o regulador único de divisão da produção § 2. Influência dos costumes sobre os arrendamentos e a posse da terra § 3. Influência dos costumes sobre os preços CAP. V — A Escravatura § 1. A escravatura considerada em relação aos escravos § 2. — em relação à produção § 3. A emancipação considerada em relação aos interesses dos proprietários dos escravos CAP. VI — Os Proprietários Camponeses § 1. Divergência de opinião entre os ingleses e os continentais sobre a propriedade do camponês § 2. Fatos evidenciados pela propriedade do camponês na Suíça § 3. — na Noruega § 4. — na Alemanha § 5. Fatos evidenciados pela propriedade do camponês na Bélgica § 6. — nas Ilhas do Canal § 7. — na França CAP. VII — Continuação do Mesmo Assunto § 1. Influência da propriedade camponesa na estimulação da indústria § 2. — no treinamento da inteligência § 3. — na promoção da premeditação e do autocontrole § 4. Seu efeito sobre a população § 5. Seu efeito sobre a subdivisão da terra CAP. VIII — Os Meeiros § 1. Natureza do sistema meeiro e suas variantes §2. Suas vantagens e inconvenientes § 3. Evidência de seus efeitos em países diferentes § 4. Sua abolição é desejável? CAP. IX — Os Cottiers § 1. Natureza e operação da posse cottier § 2. Em países de população excessiva a consequência necessária é o arrendamento nominal § 3. — que é incompatível com a indústria, frugalidade ou limitação da população § 4. A posse camponesa na Índia CAP. X — Meios para Abolir o Sistema de Cottier § 1. Os cottiers irlandeses deveriam ser convertidos em camponeses proprietários § 2. Situação atual da questão CAP. XI — Os Salários § 1. Salários dependem da demanda e do suprimento da mão-de-obra, em outras palavras, da população e do capital § 2. Análise da opinião popular com referência aos salários § 3. Com exceção de raras circunstâncias, salários altos simplificam restrições impostas à população § 4. — que em alguns casos são legais § 5. — e que em outros constituem efeito de costumes particulares § 6. Em virtude de limitação da população, a única defesa de uma classe trabalhadora CAP. XII — Soluções Populares para Salários Baixos § 1. Um mínimo salarial de lei ou costumeiro com garantia de emprego § 2. — exigiria, como condição, medidas legais de repressão contra a população § 3. Vantagens adicionais ao salário §4. O sistema de partilha CAP. XIII — Ulteriores Considerações Sobre as Soluções para Salários Baixos § 1. Influência perniciosa da opinião pública no tocante à população § 2. Razões para uma expectativa de melhoria § 3. Dois modos de melhorar os hábitos de trabalho da população: pela educação § 4. — por medidas de desafogo imediato, mediante colonização ultramarina e interna CAP. XIV — As Diferenças Salariais em Profissões Diferentes § 1. Diferenças salariais resultantes de diferentes graus de atratividade exercida pelos diferentes empregos § 2. Diferenças resultantes de monopólios naturais § 3. Efeitos sobre os salários de uma classe de concorrentes subsidiados § 4. Efeitos sobre os salários da competição de pessoas dotadas de meios independentes de sustento § 5. Porque o salário das mulheres é inferior ao dos homens § 6. Diferenças salariais decorrentes de leis restritivas, ou provenientes de combinações § 7. Casos em que os salários são determinados pelo costume CAP. XV — Os Lucros § 1. Lucros resolúveis em três partes; benefícios, seguro e salários da superintendência § 2. O mínimo de lucro; variações das quais depende § 3. Diferenças de lucro oriundas da natureza do emprego em particular § 4. Tendência geral dos lucros para um equilíbrio § 5. Os lucros não dependem dos preços, nem da compra e venda § 6. Os adiantamentos do capitalista são fundamentalmente salários do trabalho § 7. A taxa de lucro depende do custo da mão-de-obra CAP. XVI —A Renda da Terra § 1. Renda, efeito do monopólio natural § 2. Nenhuma terra pode pagar renda, senão a de qualidade ou situação existente em quantidade inferior à demanda § 3. A renda da terra consiste no excesso de seu retorno em relação ao retorno da pior terra de cultivo § 4. — ou do capital empregado em condições as menos vantajosas § 5. Pagamento por capital investido no solo é renda ou lucro? § 6. A renda não entra no custo de produção do produto agrícola LIVRO TERCEIRO — As Trocas CAP. I — O Valor § 1. Notas preliminares § 2. Definições de valor de uso, valor de troca e preço § 3. O que se entende por poder geral de compra § 4. Valor, um termo relativo. Alta geral ou queda de valor, termos contraditórios § 5. As leis do valor, como se modificam quando aplicadas a transações no varejo CAP. II — A Procura e a Oferta em sua Relação com o Valor § 1. As duas condições do valor: utilidade e dificuldade de obtenção § 2. Três espécies de dificuldades de obtenção § 3. Artigos absolutamente limitados em qualidade § 4. A lei de seu valor; equação da demanda e da oferta § 5. Casos diversos regidos por essa lei CAP. III — O Custo da Produção em sua Relação com o Valor § 1. Artigos suscetíveis de multiplicação indefinida e sem aumento do custo. A lei do valor e o custo de produção § 2. — operando por meio de alterações potenciais, não efetivas da oferta CAP. IV — Análise Última do Custo de Produção § 1. Elemento principal do custo de produção — Quantidade de mão-de-obra § 2. Salários não constituem elemento do custo de produção § 3. — exceto na medida em que variam de emprego para emprego § 4. Lucro é elemento do custo de produção na medida em que varia de emprego para emprego § 5. — ou se distribui por sobre períodos desiguais de tempo § 6. Elementos ocasionais no custo de produção: as taxas e o valor da matéria-prima em período de escassez CAP. V — A Renda em sua Relação com o Valor § 1. Artigos suscetíveis de multiplicação indefinida, mas sem aumento de custo. A lei do valor e do custo de produção quando as condições existentes são as mais desfavoráveis § 2. Tais artigos, quando produzidos em circunstâncias mais favoráveis, fornecem uma renda equivalente à diferença de custo § 3. Renda da mineração e da atividade pesqueira; renda básica proporcionada pela construção civil § 4. Casos de lucro extra análogo à renda CAP. VI — Sumário da Teoria do Valor § 1. Recapitulação da teoria do valor em uma série de proposições § 2. Como se modifica esta no caso da cultura de subsistência do próprio trabalhador § 3. — e no caso do trabalhador escravo CAP. VII — O Dinheiro § 1. Finalidade do meio circulante § 2. Por que o ouro e a prata se prestam para essa finalidade § 3. Dinheiro, mero expediente para facilitar a troca que não afeta as leis do valor CAP. VIII — O Valor do Dinheiro, em Dependência da Oferta e Procura § 1. Valor do dinheiro, expressão ambígua § 2. Caeteris paribus o valor do dinheiro depende de sua quantidade § 3. — além da rapidez de circulação § 4. Explicações e limitações desse princípio CAP. IX — O Valor do Dinheiro, em Dependência do Custo de Produção § 1. Quando livre, o valor do dinheiro se ajusta ao valor do buillon contido nele § 2. — o qual é determinado pelo custo de produção § 3. Como essa lei se relaciona com o princípio explanado no capítulo precedente CAP. X — Duplicidade de Padrão Monetário e Moedas Subsidiárias § 1. Objeções ao duplo padrão § 2. O uso dos dois metais como dinheiro; como se chega ao mesmo sem fazer de ambos uma moeda legal CAP. XI — O Crédito, Substituindo o Dinheiro § 1. Crédito não é criação, mas transferência de meios de produção § 2. De que maneira auxilia a produção § 3. A função do crédito é economizar o uso do dinheiro § 4. Letras de câmbio § 5. Notas promissórias § 6. Depósitos e cheques CAP. XII — A Influência do Crédito Sobre os Preços § 1. A influência dos bilhetes de banco, letras e cheques no preço, aspecto da influência do crédito § 2. Crédito, poder de compra semelhante ao do dinheiro § 3. Efeitos da extensão e redução do crédito. Análise dos fenômenos da crise comercial § 4. Letras constituem um instrumento mais poderoso de atuação sobre os preços que os créditos contabilizados; bilhetes de banco são mais poderosos do que letras § 5. — distinção de pequena importância prática § 6. O cheque como instrumento de atuação sobre os preços é tão poderoso como o bilhete bancário § 7. Bilhetes bancários são dinheiro? § 8. Não existe nenhuma distinção genérica entre o bilhete bancário e outras formas de crédito CAP. XIII — Um Papel-Moeda Inconversível § 1. Valor de um papel inconversível em dependência de sua quantidade é uma questão de regulamentação arbitrária § 2. Quando regulada pelo preço do buillon, a moeda inconversível pode ser segura, mas é inoportuna § 3. Análise da doutrina segundo a qual uma moeda inconversível é segura quando representa uma propriedade real § 4. Análise da doutrina segundo a qual o aumento de moeda em circulação promove a indústria § 5. A depreciação da moeda constitui um tributo imposto à comunidade e uma fraude em relação ao credor § 6. Análise de alguns argumentos em favor dessa fraude CAP. XIV —A Oferta Excessiva § 1. Pode existir uma superoferta de mercadorias em geral? § 2. A oferta de mercadorias em geral não pode exceder o poder de compra § 3. A oferta de mercadorias em geral jamais excede a tendência para o consumo § 4. Origem e explicação da noção de superoferta CAP. XV —Uma Medida para Aferir o Valor § 1. Em que sentido é possível haver uma medida do valor de troca § 2. Medida de custo de produção CAP. XVI — Alguns Casos Especiais Quanto ao Valor § 1. Valores das mercadorias que têm um custo de produção associado § 2. Valores de tipos diferentes de produto agrícola CAP. XVII — O Comércio Internacional § 1. O custo de produção não é regulador de valores internacionais § 2. O intercâmbio de mercadorias entre lugares distantes é determinado por diferenças, não no custo absoluto da produção, mas no custo comparativo da mesma § 3. Os lucros diretos do comércio residem na eficiência aumentada das forças produtivas universais § 4. — e não no volume de exportação, nem nos ganhos do comerciante § 5. Os lucros indiretos do comércio, “econômicos e morais”, continuam maiores que os diretos CAP. XVIII —Os Valores Internacionais § 1. Os valores das mercadorias importadas dependem dos termos do intercâmbio internacional § 2. — que depende da Equação da Demanda Internacional § 3. Influência do custo do transporte sobre os valores internacionais § 4. A lei dos valores que vale para dois países e duas mercadorias também vale para qualquer número maior § 5. Efeito do aperfeiçoamento da produção sobre os valores internacionais § 6. A teoria precedente é incompleta § 7. Os valores internacionais não dependem exclusivamente das quantidades em demanda, mas igualmente da produção disponível em cada país para o suprimento dos mercados externos § 8. O resultado prático é pouco afetado por esse elemento tradicional § 9. Circunstâncias de que depende, para um país, o custo de suas importações CAP. XIX — O Dinheiro, Considerado como Mercadoria Importada § 1. Dois são os modos de importar dinheiro: como mercadoria de como meio de troca § 2. Como mercadoria obedece às mesmas leis do valor que outras mercadorias importadas § 3. Seu valor não depende exclusivamente do custo de produção nas minas CAP. XX —As Trocas com o Exterior § 1. Finalidades para as quais o dinheiro passa de um país para outro como meio de troca § 2. Modo de ajustar os pagamentos internacionais mediante as trocas § 3. Distinção entre as variações nas trocas de auto ajustamento e nas que só se retificam mediante os preços CAP. XXI — A Distribuição dos Metais Preciosos Através do Mundo Comercial § 1. A substituição do dinheiro para fins de troca não faz diferença para a importação ou exportação nem para a lei dos valores internacionais § 2. Ilustrações suplementares do teorema precedente § 3. Os metais preciosos, como dinheiro, têm o mesmo valor e se distribuem conforme a mesma lei à qual obedecem os metais preciosos na qualidade de mercadoria § 4. Pagamentos internacionais de caráter não comercial CAP. XXII — Influência da Moeda Sobre as Trocas e Sobre o Comércio Exterior § 1. Variações na troca oriundas da moeda corrente § 2. Efeitos do repentino aumento da moeda metálica, ou da criação repentina de bilhetes de banco, ou de outros substitutos do dinheiro § 3. Efeito do aumento em circulação de um papel-moeda inconversível CAP. XXIII —A Taxa de Juros § 1. A taxa de juros depende da demanda e da oferta de empréstimos § 2. Circunstâncias que determinam a demanda e a oferta de empréstimos § 3. Circunstâncias que determinam as flutuações § 4. A taxa de juros; até que ponto e em que sentido existe uma conexão como valor do dinheiro § 5. A taxa de juros determina o preço da terra e dos títulos de crédito CAP. XXIV — A Regulamentação de um Papel-Moeda Conversível § 1. Duas teorias contrárias com referência à influência das emissões bancárias § 2. Análise de cada uma delas § 3. Razões para acreditar-se que o Ato de 1844 sobre o meio circulante produza parte do efeito benéfico pretendido § 4. — se bem que produza mais danos que equivalentes § 5. A emissão de bilhetes bancários deveria restringir-se a um só estabelecimento? § 6. Os detentores dos bilhetes deveriam ser protegidos de algum modo especial contra a falta de pagamento? CAP. XXV — A Concorrência de Países Diferentes no Mesmo Mercado § 1. Causas que permitem um país oferecer preços mais baixos que o outro § 2. Uma das causas está nos baixos níveis de salário § 3. — quando peculiar a certos ramos industriais § 4. — mas não quando comum a todos § 5. Análise de alguns casos anômalos de comunidades comerciais CAP. XXVI — A Distribuição, na Medida em que É Afetada pelo Intercâmbio § 1. As trocas e o dinheiro não interferem na lei dos salários § 2. — nem na lei da renda § 3. — nem na lei dos lucros LIVRO QUARTO — Influência do Progresso da Sociedade Sobre a Produção e a Distribuição CAP. I — Características Gerais de uma Condição de Progresso da Riqueza § 1. Notas Introdutórias § 2. Tendência do progresso da sociedade para um maior comando das energias naturais; maior segurança; maior capacidade de cooperação CAP. II — A Influência do Progresso da Indústria e do Crescimento Populacional Sobre os Valores e os Preços § 1. Tendência de declínio do valor e do custo de produção de todas as mercadorias § 2. — exceto dos produtos agrícolas e extrativos, cuja tendência é subir § 3. — tendência que, de tempos em tempos, é contrabalançada por aperfeiçoamentos introduzidos na produção § 4. Efeito do progresso da sociedade na moderação das flutuações do valor § 5. Análise da influência dos especuladores, particularmente dos negociantes de trigo CAP. III — A Influência do Progresso da Indústria e do Crescimento Populacional Sobre Rendas da Terra, Lucros e Salários § 1. Primeiro caso: população crescente, capital estacionário § 2. Segundo caso: capital crescente, população estacionária § 3. Terceiro caso: população e capital igualmente crescentes, estacionários os métodos de produção § 4. Quarto caso: progresso dos métodos de produção, capital e população estacionários § 5. Quinto caso: os três elementos em progresso CAP. IV — A Tendência dos Lucros em Direção a um Mínimo § 1. A doutrina de Adam Smith sobre a concorrência do capital § 2. A doutrina de Wakefield com referência ao campo de emprego § 3. O que determina a taxa mínima de lucro § 4. Nos países ricos os lucros se aproximam no geral do nível mínimo § 5. — fato que é evitado mediante medidas de ordem comercial § 6. — mediante aperfeiçoamentos da produção § 7. — mediante importação de artigos baratos de primeira necessidade e instrumentos § 8. — ou mediante emigração de capital CAP. V — Consequência da Tendência dos Lucros em Direção a um Mínimo § 1. A subtração do capital não é necessariamente uma perda nacional § 2. Nos países ricos a extensão da maquinaria não se verifica em detrimento do trabalhador mas é benéfica ao mesmo CAP. VI — A Condição Estacionária § 1. A situação estacionária da riqueza e da população é temida e condenada pelos autores § 2. — mas, em si, não é indesejável CAP. VII — O Futuro Provável das Classes Trabalhadoras § 1. A teoria da dependência e da proteção já não se aplica às condições da sociedade moderna § 2. O futuro bem-estar das classes trabalhadoras depende principalmente de sua cultura intelectual § 3. Prováveis efeitos do aperfeiçoamento intelectual num melhor entrosamento da população — Este seria promovido pela independência social da mulher § 4. Tendência da sociedade para o desuso da relação de contratação e prestação de serviços § 5. Exemplos da associação entre trabalhadores e capitalistas § 6. — de associação de trabalhadores entre si § 7. A concorrência não é perniciosa, mas útil e indispensável LIVRO QUINTO — A Influência do Governo CAP. I — As Funções do Governo em Geral § 1. Distinção entre funções governamentais necessárias e optativas § 2. Caráter multiforme forme das funções governamentais necessárias § 3. Divisão da matéria CAP. II — Os Princípios Gerais Sobre a Tributação § 1. As quatro regras fundamentais da tributação § 2. Fundamentos do princípio da igualdade de tributação § 3. Deveria ser cobrada a mesma percentagem sobre todos os níveis de renda? § 4. Deveria ser cobrada a mesma percentagem sobre rendas perpétuas e finitas? § 5. O aumento da renda da terra oriunda de causas naturais constitui objeto adequado de tributação especial § 6. Imposto territorial e, em alguns casos, a não tributação, ou imposto sobre a renda em favor do público § 7. Impostos que recaem sobre o capital não são necessariamente objetáveis CAP. III —Impostos Diretos § 1. Impostos diretos sobre o rendimento ou sobre os gastos § 2. Imposto sobre a renda § 3. — sobre os lucros § 4. — sobre os salários § 5. Imposto de renda § 6. Imposto sobre o imóvel CAP. IV —Impostos Sobre Mercadorias § 1. Taxas sobre mercadorias recairiam sobre os lucros § 2. Impostos sobre mercadorias específicas recaem sobre o consumidor § 3. Efeitos peculiares dos impostos sobre artigos de primeira necessidade § 4. — como se modificam pela tendência para o lucro mínimo § 5. Efeitos da discriminação dos impostos § 6. Efeitos produzidos sobre intercâmbio internacional pelos impostos sobre as importações e exportações CAP. V — Outras Taxas § 1. Taxas sobre contratos § 2. Taxas sobre as comunicações § 3. Taxas de lei § 4. Tipos diversos de taxação para fins locais CAP. VI — Comparação Entre a Taxação Direta e a Indireta § 1. Argumentos pró e contra a taxação direta § 2. O que torna preferíveis as formas de taxação indireta § 3. Regras práticas para a taxação indireta CAP. VII — Uma Dívida Nacional § 1. É conveniente pagar despesas públicas extraordinárias mediante empréstimos? § 2. Não é conveniente liquidar um débito nacional mediante uma contribuição geral § 3. Casos em que é conveniente manter uma receita suplementar para a liquidação de débitos CAP. VIII — As Funções Comuns do Governo, Consideradas em seus Efeitos Econômicos § 1. Efeitos da segurança imperfeita da pessoa e da propriedade § 2. Efeitos da taxação excessiva § 3. Efeitos da imperfeição inerente ao sistema judiciário e à administração da justiça CAP. IX — Continuação do Mesmo Assunto § 1. As leis de herança § 2. Lei e costume da primogenitura § 3. Vínculos § 4. A lei da divisão equitativa compulsória da herança § 5. Leis sobre as sociedades § 6. Sociedade com responsabilidade limitada. Companhias privilegiadas § 7. Sociedade em comandita § 8. Leis relativas à insolvência CAP. X — Interferências Governamentais Baseadas em Teorias Errôneas § 1. Doutrina sobre a proteção da indústria nativa § 2. Leis sobre a usura § 3. Tentativas de regulamentação dos preços das mercadorias § 4. Monopólios § 5. Leis contra a associação de trabalhadores § 6. Restrições impostas à opinião pública ou à publicação da mesma CAP. XI — Os Fundamentos e os Limites do Princípio do Laisser-Faire ou da Não-Interferência § 1. Distinção entre intervenção governamental autoritária e não autoritária § 2. Objeções à intervenção governamental — caráter compulsório da intervenção em si, ou da arrecadação de fundos para garanti-la § 3. — crescimento do poder e influência do governo § 4. — crescimento das ocupações e responsabilidades do governo § 5. — eficiência maior da iniciativa privada devido ao interesse maior pelo trabalho § 6. — importância de se cultivarem hábitos de ação coletiva na população § 7. Laisser-faire é a regra geral § 8. — mas sujeita a muitas exceções. Casos nos quais o consumidor é incompetente para julgar a mercadoria. Educação § 9. Caso de pessoas exercendo seu poder sobre outras. Proteção das crianças e dos jovens; idem dos animais inferiores. O caso da mulher não é análogo § 10. Caso do contrato perpétuo § 11. Caso de gerência delegada § 12. Casos em que a intervenção do público pode ser necessária para efetuar os desejos das pessoas interessadas. Exemplos: horas de trabalho; disponibilidade de terras coloniais § 13. Caso de atos praticados em benefício de pessoas outras que as pessoas interessadas. Leis fracas § 14. Colonização § 15. Outros exemplos diversos § 16. A intervenção governamental pode ser necessária na ausência da iniciativa privada e no caso desta ser mais conveniente PREFÁCIO [1848] Pode-se pensar que exige alguma explicação o aparecimento de um tratado como este, sobre um tema em torno do qual já existem tantas obras de mérito. Talvez pudesse ser suficiente dizer que nenhum tratado existente de Economia Política contém os mais recentes avanços feitos na teoria sobre esse assunto. As discussões dos últimos poucos anos, especialmente as que ocorreram em torno da moeda, do comércio exterior e dos importantes tópicos relacionados, mais ou menos intimamente, com a colonização, têm trazido à baila muitas ideias novas e muitas novas aplicações de ideias; parece, pois, haver razão para que o campo da Economia Política seja revisto em toda a sua extensão, nem que fosse com o único propósito de incorporar os resultados dessas pesquisas, e harmonizá-los com os princípios anteriormente assentados pelos melhores pensadores sobre o assunto. Entretanto, compensar essas deficiências de tratados anteriores que levam um título semelhante não constitui a única finalidade que o autor tem em vista, e nem mesmo o principal. O projeto da presente obra diverge de qualquer tratado de Economia Política que tenha sido escrito na Inglaterra desde a obra de Adam Smith. A qualidade mais característica da presente obra, a que mais a diferencia de algumas outras que a igualaram ou até a superaram como simples exposições dos princípios gerais vigentes na matéria é que ela invariavelmente associa os princípios às suas aplicações. Já isso implica um âmbito muito mais vasto de ideias e tópicos que os incluídos na Economia Política, considerada como um ramo da especulação abstrata. Para efeitos práticos, a Economia Política está insuperavelmente ligada a muitos outros ramos da Filosofia Social. Excetuados itens de simples detalhe, talvez não exista nenhuma questão prática, mesmo entre as que mais se aproximam do caráter de questões puramente econômicas, que possa ser solucionada exclusivamente com base em premissas econômicas; e é porque Adam Smith nunca perde de vista essa verdade — pois em suas aplicações da Economia Política sempre apela para outras considerações, e, muitas vezes, muito mais simples do que as que nos são fornecidas pela Economia Política Pura — que ele inspira esse sentimento bem fundado de domínio dos princípios do assunto para fins práticos, razão pela qual A Riqueza das Nações constitui o único tratado de Economia Política que não somente tem sido popular junto aos leitores em geral, mas ficou também fortemente impresso na mente das pessoas experimentadas e dos legisladores. O presente autor acha que uma obra, similar em seu objetivo e em sua concepção geral à de Adam Smith, porém adaptada ao conhecimento mais vasto e às ideias mais desenvolvidas do tempo atual, representa o tipo de contribuição exigida no momento pela Economia Política. A Riqueza das Nações está obsoleta em muitas partes, e imperfeita no conjunto. Desde a época de Adam Smith, a Economia Política propriamente dita tem-se desenvolvido, como que partindo da infância; e a Filosofia Social — da qual, na prática, esse eminente pensador nunca separou seu tema mais peculiar —, embora esteja em um estágio muito inicial do seu progresso, avançou muitos passos além do ponto em que aquele autor a deixou. No entanto, até hoje não se empreendeu nenhuma tentativa de combinar sua abordagem prática do assunto com o maior conhecimento adquirido desde então sobre a sua teoria, ou de apresentar os fenômenos econômicos da sociedade na relação em que estão com as melhores ideias sociais do tempo atual, como ele fez, com êxito tão admirável, com referência à Filosofia de seu século. Esta foi a ideia que o autor da presente obra teve em mente. Conseguir êxito, mesmo parcial, na realização dessa ideia, seria uma façanha suficientemente útil para induzi-lo a assumir de bom grado todas as possibilidades de fracasso. Contudo, é necessário acrescentar que, embora seu objetivo seja prático e, na medida em que a natureza da matéria comporta, popular, não procurou ele atingir nenhuma dessas duas vantagens sacrificando o raciocínio estritamente científico. Conquanto deseje que seu tratado seja mais que uma simples exposição das doutrinas abstratas da Economia Política, deseja que esse tipo de exposição também se encontre nele. [Acréscimo ao Prefácio na 2ª Edição, 1849] As adições e alterações constantes na presente edição geralmente são de pequena monta; mas a importância crescente que a controvérsia socialista assumiu desde a redação dessa obra fez com que fosse desejável ampliar o capítulo que trata disso, tanto mais que as objeções então levantadas contra os esquemas específicos propostos por alguns socialistas foram erroneamente entendidas como uma condenação geral de tudo o que se costuma englobar sob essa denominação. Uma apreciação completa do socialismo, e das questões que ele suscita, só pode ser tentada com vantagem em uma obra separada. Prefácio à 3ª Edição [junho de 1852] A presente edição foi totalmente revisada, e vários capítulos foram materialmente acrescentados ou inteiramente refundidos. Entre estes pode-se mencionar o referente aos meios de abolir o inquilinato do cottier, já que as sugestões mais contidas se referiam exclusivamente à Irlanda, e à Irlanda em uma situação que foi muito modificada por eventos subsequentes. Fiz um acréscimo à teoria sobre os valores internacionais, no capítulo XVIII do Livro Terceiro. O capítulo sobre a propriedade foi quase totalmente reescrito. Estava longe de mim tencionar que a afirmação nele contida, sobre as objeções aos melhores esquemas socialistas conhecidos, fosse entendida como uma ordenação do socialismo, considerado um resultado definitivo do progresso humano. A única objeção à qual, como se constatará, a presente edição atribui uma grande importância é o estágio de despreparo da humanidade em geral, e das classes trabalhadoras em especial — sua extrema falta de preparação, no momento atual, para qualquer ordem de coisas que representasse algum desafio notável para a sua inteligência ou para sua virtude. Afigurasse-me que a grande nota do desenvolvimento social deve consistir em aparelhar a humanidade, pela cultura, para um estágio da sociedade que combine o máximo de liberdade pessoal com aquela distribuição justa dos frutos do trabalho que as leis atuais sobre a propriedade não professam ter por objetivo. Será que, quando esse estágio de cultura mental e moral for atingido, a propriedade individual, ou então, a propriedade comum dos instrumentos de produção e uma divisão regulada da produção, garantirão, de alguma forma (embora bem longínqua da atual), as circunstâncias favoráveis para a felicidade e as mais aptas para levar a natureza humana à sua perfeição máxima? Eis uma questão cuja decisão deve ser deixada, como certamente podemos fazer, aos que viverem nessa época vindoura. Os que vivem hoje não têm competência para decidir sobre isso. O capítulo sobre o “Futuro das Classes Trabalhadoras” foi enriquecido com os resultados da experiência proporcionada, desde a lª edição desta obra, pelas associações cooperativas na França. Essa importante experiência mostra que a época está madura para uma ampliação da associação entre os trabalhadores, maior e mais rápida do que a que se teria podido tentar com sucesso antes dos caluniados movimentos democráticos surgidos na Europa, os quais, embora de momento sufocados pela pressão da força bruta, espalharam amplamente sementes do progresso futuro. Procurei designar com maior clareza a tendência da transformação social, da qual essas associações constituem o passo inicial; ao mesmo tempo procurei desvincular a causa cooperativista das declamações exageradas ou totalmente errôneas contra a concorrência, tão amplamente endossadas pelos seus defensores. [Acréscimo ao Prefácio na 4ª Edição, 1857] A presente edição (a quarta) foi totalmente revista, inserindo-se nela algumas explicações adicionais onde pareceu necessário. Os capítulos que sofreram maiores acréscimos são os referentes à influência do crédito sobre os preços e o relativo ao estabelecimento de um papel-moeda conversível. [Acréscimo ao Prefácio na 5ª Edição, 1862] Essa quinta edição foi inteiramente revista, e em vários assuntos, os fatos foram atualizados para uma data mais recente que nas edições anteriores. Onde pareceu necessário, inseri argumentos e ilustrações adicionais, mas, no geral, esses acréscimos não são muito longos. [Acréscimo ao Prefácio na 6ª Edição, 1865] Como todas as edições anteriores, também esta foi inteiramente revista, introduzindo-se, onde pareceu necessário, explicações adicionais, ou respostas a novas objeções; no geral, porém, os acréscimos não são longos. O capítulo em que fiz mais acréscimos é o referente à taxa de juros, e devo às sugestões e à crítica de meu antigo Prof. Cairnes, um dos economistas políticos vivos de maior porte científico, a maior parte do material novo ali introduzido, bem como muitos aperfeiçoamentos de menor envergadura. [Acréscimo ao Prefácio na “Edição Popular”, 1865] A presente edição representa uma transcrição exata da sexta, excetuado o fato de todos os extratos e a maior parte das frases em idiomas estrangeiros terem sido traduzidos para o inglês, além da omissão de um número muito reduzido de citações ou partes de citações, que pareceram supérfluas. Deixei também de reimprimir uma velha controvérsia com a Quarterly Review sobre a condição da propriedade fundiária na França, que havia sido acrescentada em forma de Apêndice. Prefácio à 7ª Edição (1871] A presente edição, excetuadas algumas correções verbais, corresponde exatamente à última Library Edition e à Edição Popular. Desde a publicação destas últimas, registrou-se uma discussão frutuosa sobre a teoria da procura e da oferta e sobre a influência das greves e dos sindicatos sobre os salários, discussões estas que projetaram nova luz sobre esses assuntos; todavia, na opinião do autor, os resultados ainda não estão maduros para uma incorporação em um tratado geral de Economia Política. Por uma razão análoga, qualquer indicação sobre a alteração introduzida nas leis irlandesas sobre a terra pela recente Lei é adiada até que a experiência tenha tido tempo de se pronunciar sobre os efeitos dessa tentativa bem-intencionada de lidar com o pior mal prático existente nas instituições econômicas daquele país. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES Em todos os setores da vida humana, a Prática antecede de muito à Ciência; a pesquisa sistemática sobre os modos de agir das forças da Natureza é o produto tardio de um longo curso de esforços no sentido de utilizar essas forças para fins práticos. Eis por que a concepção da Economia Política como um ramo da ciência é extremamente moderna; no entanto, o assunto sobre o qual versam suas pesquisas constituiu necessariamente, em todas as épocas, um dos principais interesses práticos da humanidade, e, em algumas, um interesse indevidamente absorvente. O assunto a que me refiro é a riqueza. Os autores de Economia Política professam ensinar ou investigar a natureza da riqueza, bem como as leis de sua produção e distribuição, incluindo, diretamente ou de maneira remota, a operação de todas as causas que fazem com que prospere ou decline a condição da humanidade, ou de qualquer sociedade de seres humanos, com respeito a esse objeto universal do desejo humano. Não que algum tratado de Economia Política possa discutir ou mesmo enumerar todas essas causas; todavia, empreende apresentar o máximo que se conhece acerca das leis e dos princípios segundo os quais elas operam. Cada qual tem uma noção, suficientemente correta para os fins correntes, sobre o que quer dizer riqueza. Não há perigo algum de se confundirem as pesquisas relativas a ela com as referentes a qualquer outro dos grandes interesses humanos. Todos sabem que uma coisa é ser rico, outra é ser esclarecido, valente ou humano; todos sabem que as questões sobre como uma nação se torna rica, ou como se torna livre, ou valorosa, ou virtuosa, ou eminente na literatura, nas belas artes, nas armas ou na política são objeto de investigações totalmente diferentes. Sem dúvida, essas coisas estão todas indiretamente ligadas entre si, e uma tem efeitos sobre a outra. Por vezes, um povo se tornou livre porque primeiro se tornou rico, ou então, tornou-se rico porque primeiro se tornou livre. O credo e as leis de um povo agem poderosamente sobre sua condição econômica; e esta, por sua vez, pela sua influência no desenvolvimento mental e nas relações sociais do povo, tem efeitos sobre seu credo e suas leis. Contudo, ainda que os assuntos estejam intimamente relacionados entre si, são essencialmente distintos, e nunca se supôs serem de outra forma. Não pretende o projeto deste tratado, em absoluto, visar à beleza metafísica de definição, quando as ideias sugeridas por um termo estão já tão determinadas quanto o exigem os fins práticos. Entretanto, por menos que se possa esperar existir qualquer confusão danosa de ideias, em se tratando de assunto tão simples como a questão sobre o que se deve considerar riqueza, é fato histórico que tal confusão de ideias existiu efetivamente — e que os teóricos e políticos práticos foram igualmente, e, em certos períodos, universalmente afetados por tal confusão, e que durante muitas gerações ela imprimiu uma orientação inteiramente falsa à política da Europa. Refiro-me ao conjunto de doutrinas que, desde a época de Adam Smith, foi designado com o termo de sistema mercantil. Enquanto prevalecia tal sistema, supunha-se, expressa ou tacitamente, em toda a política das nações, que a riqueza consistia exclusivamente de dinheiro, ou então nos metais preciosos que, quando ainda não estão em forma de dinheiro, podem ser diretamente convertidos em dinheiro. Segundo as doutrinas então dominantes, tudo o que tendesse a acumular dinheiro ou ouro e prata em barras, em um país, aumentava a sua riqueza. Tudo aquilo que implicasse enviar metais preciosos para fora de um país, significava um empobrecimento do mesmo. Se um país não possuísse minas de ouro ou prata, entendia-se que o único meio de o enriquecer era o comércio externo, por ser o único que poderia trazer dinheiro para o país. Qualquer ramo de negócios que supostamente exportasse mais dinheiro que importasse, por mais amplos e valiosos que pudessem ser os retornos em outra forma, era considerado um comércio que acarreta perda. Favorecia-se e estimulava-se a exportação de mercadorias (mesmo com meios extremamente onerosos para os recursos efetivos do país), uma vez que, estipulando-se que os bens exportados fossem pagos com dinheiro, esperava-se que os retornos viriam efetivamente em ouro e prata. A importação de qualquer produto, afora os metais preciosos, era considerada uma perda, para a nação, do preço integral dos artigos importados, a não ser que fossem importados para serem novamente exportados com lucro, ou a menos que, em se tratando das matérias-primas ou instrumentos para alguma indústria do próprio país, assegurassem o poder de produzir artigos exportáveis a custos menores, fazendo assim aumentar a exportação. O comércio mundial era considerado uma luta entre nações, que poderia atrair para si a porção máxima do ouro e da prata existentes; e nessa concorrência nenhuma nação poderia ganhar nada, a não ser fazendo outras perderem na mesma proporção, ou, no mínimo, impedindo-as de ganharem também elas. Muitas vezes ocorre que a crença universal de uma época da humanidade — uma crença da qual, na respectiva época, ninguém estava isento, nem poderia estar, a não ser com um esforço descomunal de gênio e coragem — torna-se para uma época posterior um absurdo tão palpável que a única dificuldade que então se tem é imaginar como tal absurdo pôde alguma vez ter sido objeto de crença. Foi o que aconteceu com a doutrina de que o dinheiro é sinônimo de riqueza. O conceito parece disparatado demais para ser imaginado como uma opinião séria. Assemelha-se a uma dessas grosseiras fantasias da infância, instantaneamente corrigida por uma palavra vinda de qualquer adulto. Mas que ninguém se sinta seguro de que haveria escapado ao equívoco, se tivesse vivido na época em que ele prevalecia. Todas as associações engendradas pela vida diária e pelo curso normal dos negócios concorriam para fomentá-lo. Enquanto essas associações foram o único meio ou veículo através do qual o assunto era encarado, o que hoje consideramos um absurdo tão grosseiro apresentava-se como um truísmo. Uma vez questionado, sem dúvida estava condenado; mas, provavelmente, ninguém pensaria em questioná-lo, a não ser que sua mente não se tivesse familiarizado com certos modos de colocar e contemplar os fenômenos econômicos, modos estes cuja compreensão generalizada só foi conseguida pela influência de Adam Smith e de seus expositores. No linguajar comum, a riqueza sempre é expressa em termos de dinheiro. Se perguntarmos quão rica é uma pessoa, respondem-nos que ela possui tantas mil libras esterlinas. Todas as entradas e todos os gastos, todos os ganhos e perdas, tudo aquilo pelo qual alguém se torna mais rico ou mais pobre, tudo é calculado como sendo a entrada ou a saída de tanto ou tanto dinheiro. É verdade que, ao se inventariar a fortuna de uma pessoa, inclui-se não somente o dinheiro que possui efetivamente ou que lhe é devido, mas também todos os outros artigos de valor. Estes, porém, entram não pela sua própria natureza, mas em virtude das somas de dinheiro pelas quais poderiam ser vendidos; e se o valor de venda deles fosse menor, seu proprietário seria considerado menos rico, ainda que os artigos em si sejam exatamente os mesmos. É também verdade que as pessoas não enriquecem guardando seu dinheiro sem usá-lo, e que devem estar dispostas a gastar, se quiserem ganhar. Os que se enriquecem através do comércio fazem-no trocando dinheiro por mercadorias, e trocando mercadorias por dinheiro, sendo que a primeira operação é uma parte tão necessária do processo quanto a segunda. Mas uma pessoa que compra mercadorias para fins de ganho faz isso para revendê-las por dinheiro, e na esperança de receber mais dinheiro que investiu; por conseguinte, ganhar dinheiro parece ser o fim último do processo todo, mesmo para a própria pessoa. Muitas vezes acontece que ela não recebe o pagamento em dinheiro, mas com alguma outra coisa, por ter comprado mercadorias de um valor equivalente, as quais são dadas em troca pelo que vendeu. No entanto, aceitou as referidas mercadorias com base em uma avaliação em dinheiro, e na crença de que eventualmente lhe trariam mais dinheiro do que o preço pelo qual elas lhe foram entregues. Um comerciante que mantém um alto volume de negócios e que faz girar com rapidez seu capital tem, em qualquer momento do processo, apenas uma pequena parte desse capital em dinheiro. Mas, para ele, esse capital só tem valor por poder converter-se em dinheiro; ele só considera fechada uma transação quando o resultado líquido lhe for pago ou creditado em dinheiro; quando ele se retira do negócio, é em dinheiro que converte o total, e antes disso não considera que tenha auferido seu ganho — como se o dinheiro fosse a única riqueza, e o valor do dinheiro fosse apenas o meio para atingi-la. Se agora perguntarmos para que finalidade se deseja o dinheiro, a não ser para atender às necessidades ou aos prazeres da própria pessoa ou de outros, o campeão do sistema não sentiria nenhum embaraço com a pergunta. Diria que, verdadeiramente, é para isso que se usa a riqueza, uso aliás muito louvável, enquanto limitado a mercadorias domésticas, pois nesse caso, com a soma exata que se gasta enriquecem-se outros concidadãos nossos. Gaste sua riqueza, se desejar, em qualquer satisfação de seu gosto; no entanto, sua riqueza não consiste nas satisfações, mas na soma de dinheiro, ou na renda anual em dinheiro, com a qual você as compra ou custeia. Ao mesmo tempo que havia tantos fatores que tornavam plausível a suposição que constituía a base do sistema mercantil, existe também um pequeno fundamento racional, embora muito insuficiente, para a distinção que tal sistema faz, com tanta ênfase, entre o dinheiro e qualquer outro tipo de posse de valor. Na realidade, e com razão, consideramos que uma pessoa possui as vantagens da riqueza, não em proporção às coisas úteis e agradáveis de que efetivamente desfruta, mas em proporção ao controle ou domínio que tem sobre o fundo geral de coisas úteis e agradáveis, ou seja, em proporção ao poder que tem de atender a qualquer exigência ou de adquirir qualquer objeto que deseje. Ora, esse poder é o próprio dinheiro; ao passo que todas as outras coisas, em um Estado civilizado, parecem conferir tal poder tão-somente na medida em que forem passíveis de ser trocadas por dinheiro. Possuir qualquer outro artigo de riqueza, é possuir essa coisa específica, e nada mais; se quisermos ter outra coisa em lugar desta, primeiro temos que vendê-la, ou então temos que submeter-nos ao incômodo e à demora (quando não à impossibilidade) de encontrar alguém que possua o que nós precisamos, e esteja disposto a trocá-la por aquilo que temos. Ao contrário, se temos dinheiro, podemos imediatamente comprar qualquer coisa que esteja à venda; e uma pessoa cuja fortuna consiste em dinheiro, ou em coisas rapidamente conversíveis em dinheiro, tanto para nós como para outras pessoas parece não possuir uma coisa qualquer, mas todas as coisas que o dinheiro lhe faculta comprar. A maior parte da utilidade da riqueza, quando esta ultrapassa os limites da moderação, não consiste na satisfação que pode pagar, e sim no poder reservado que seu proprietário tem de conseguir objetivos de modo geral; ora, não há nenhum outro tipo de riqueza que proporcione esse poder tão imediatamente ou com tanta certeza quanto o dinheiro. É ele a única forma de riqueza que não é aplicável somente a um determinado uso, mas pode ser imediatamente convertida para qualquer uso. Ora, essa distinção tinha tanto mais probabilidade de impressionar os Governos, por ser de notável importância para eles. Um Governo civilizado aufere comparativamente pouca vantagem dos impostos, se não puder recolhê-los em dinheiro; e se tiver pagamentos grandes ou repentinos a fazer, sobretudo pagamentos em países estrangeiros, por guerras ou tributos com o fim de conquistar ou para não ser conquistado (os dois objetivos principais da política nacional, até pouco tempo atrás), dificilmente haverá outro meio de pagamento que sirva a esse propósito, a não ser o dinheiro. Todas essas causas conspiram para fazer com que tanto os indivíduos como os Governos, ao avaliarem seus recursos, atribuam importância quase exclusiva ao dinheiro, seja in esse, seja in posse, e dificilmente considerem todas as outras coisas (quando vistas como partes de seus recursos) sob outra óptica que não a de meios remotos para se obter aquilo que, quando se tem, constitui o único meio que garante o controle indefinido e ao mesmo tempo instantâneo sobre objetos de desejo, que melhor responde à ideia de riqueza. Entretanto, um absurdo não deixa de ser tal quando descobrimos quais foram os fatores ou aparências que o tornaram plausível; e a teoria mercantil não podia deixar de ser vista em sua verdadeira natureza quando se começou, mesmo de maneira imperfeita, a investigar os fundamentos das coisas e a procurar suas premissas a partir de fatos elementares, e não a partir das formas e frases do linguajar comum. Tão logo se começou a perguntar o que realmente significa dinheiro — o que ele é em suas características essenciais, e a natureza exata das funções que ele desempenha — refletiu-se que o dinheiro, como outras coisas, é apenas uma posse desejável, em razão de seus usos possíveis, e que essas coisas, em vez de serem, como ilusoriamente aparentam, indefinidas, têm uma descrição estritamente definida e limitada, isto é, para facilitar a distribuição da produção do trabalho conforme as conveniências daqueles entre os quais ela é repartida. Uma ulterior consideração mostrou que os usos do dinheiro não são incrementados sob nenhum aspecto ao se aumentar a quantidade que dele existe e circula em um país, já que o serviço que ele presta é assegurado tanto por uma pequena quantidade quanto por uma grande. Dois milhões de quarters de trigo não alimentarão tantas pessoas quanto 4 milhões; mas 2 milhões de libras esterlinas movimentarão tanto comércio, comprarão e venderão tantas mercadorias quanto 4 milhões, embora a preços nominais mais baixos. O dinheiro como tal não satisfaz a nenhuma necessidade; seu valor, para quem quer que seja, consiste em ser uma forma conveniente de a pessoa receber suas rendas de todos os tipos, rendas estas que depois, nos momentos que forem mais convenientes para a pessoa, se convertem nas formas que possam ser-lhe úteis. Por maior que seja a diferença entre um país que tem dinheiro e um que não tem, seria apenas uma diferença de conveniência — uma economia de tempo e de trabalho, como seria a diferença entre moer com força hidráulica em vez de fazê-lo manualmente, ou (para usar a ilustração de Adam Smith) como o benefício que se aufere das estradas; confundir o dinheiro com a riqueza é o mesmo tipo de erro que confundir a rodovia, que pode ser o caminho mais fácil de chegar à nossa casa ou às nossas terras, com a própria casa ou com as terras. O dinheiro, por ser o instrumento para se atingir um objetivo público e privado de importância, é corretamente considerado riqueza; mas riqueza é também qualquer outra coisa que sirva para qualquer finalidade humana, e que a natureza não proporcione gratuitamente. Ser rico é ter um grande estoque de artigos úteis, ou os meios para adquiri-los. Por conseguinte, constitui parte da riqueza tudo aquilo que tem poder de compra, tudo aquilo em troca de que se daria alguma coisa útil ou agradável. Coisas pelas quais nada se pode adquirir em troca, por mais úteis ou necessárias que possam ser, não constituem riqueza no sentido em que o termo é usado em Economia Política. O ar, por exemplo, ainda que seja a mais absoluta das coisas necessárias, não tem preço no mercado, pelo fato de poder-se obtê-lo gratuitamente; acumular um estoque de ar não traria nenhum lucro ou vantagem para ninguém, e as leis que regem sua produção e distribuição constituem matéria de um estudo muito diferente do da Economia Política. Contudo, embora o ar não seja riqueza, a humanidade é muito mais rica obtendo-o gratuitamente, já que se pode dedicar a outras finalidades o tempo e o trabalho que de outra forma seriam necessários para atender à mais urgente de todas as necessidades. É possível imaginar circunstâncias em que o ar constituiria parte da riqueza. Caso se tornasse hábito permanecer por muito tempo em lugares em que o ar não penetra naturalmente, como em sinos de mergulhador afundados no mar, teria preço o fornecimento artificial de ar, como a água que é transportada para dentro das casas; e se, em decorrência de alguma revolução da Natureza, a atmosfera se tornasse tão rarefeita para o consumo, ou pudesse ser monopolizada, o ar poderia adquirir um valor de mercado muito alto. Nesse caso, a posse de ar, além do necessário para as próprias necessidades, seria uma riqueza para seu proprietário, e a riqueza geral da humanidade poderia à primeira vista parecer aumentar, em virtude daquilo que para ela constituiria uma calamidade tão grande. O erro estaria em não considerar que, por mais rico que o proprietário de ar se pudesse tornar às custas do restante da comunidade, todas as outras pessoas seriam mais pobres, em virtude de tudo o que seriam obrigadas a pagar por aquilo que anteriormente obtinham sem pagar. Isso nos leva a uma importante distinção no significado da palavra riqueza, aplicada às posses de um indivíduo e às de uma nação, ou da humanidade. Na riqueza da humanidade, não se inclui nada que por si mesmo não atenda a algum propósito de utilidade ou prazer. Para um indivíduo, riqueza é qualquer coisa que, embora inútil em si mesma, lhe possibilite reclamar de outras pessoas uma parte do estoque de coisas úteis ou agradáveis que possuem. Tomemos, por exemplo, uma hipoteca de 1000 libras sobre uma propriedade fundiária. Ela é riqueza para a pessoa para a qual traz uma renda, e que poderia talvez vendê-la no mercado pelo montante total da dívida. Mas ela não constitui riqueza para o país; se o contrato fosse anulado, o país não ficaria nem mais pobre nem mais rico. O credor hipotecário teria perdido 1000 libras, e o proprietário da terra as teria ganho. Falando em termos nacionais, a hipoteca em si mesma não constitui a riqueza, mas simplesmente dava a A um direito sobre uma parte da riqueza de B. Foi riqueza para A, e riqueza que poderia transferir a uma terceira pessoa, mas o que ele assim transferisse era na realidade uma propriedade conjunta, até o limite de 1000 libras, sobre a terra da qual B era nominalmente o único proprietário. Similar é a posição de portadores de obrigações do Tesouro, ou proprietários de títulos da dívida pública de um país. Eles têm hipotecas sobre a riqueza geral do país. O cancelamento da dívida não seria uma destruição de riqueza, e sim uma transferência da mesma: um desvio injusto da riqueza de certos membros da comunidade em benefício do governo, ou dos pagadores de impostos. Por isso, a propriedade de títulos da dívida pública não pode ser considerada parte da riqueza nacional. Isso nem sempre é levado em conta pelos que lidam com estatísticas. Por exemplo, nas estimativas da renda bruta do país, baseadas na arrecadação do imposto de renda, as rendas provenientes de obrigações do Tesouro nem sempre são excluídas, embora os pagadores de impostos sejam taxados sobre o total da sua renda nominal, sem que lhes permita abater a parte que lhes é cobrada para formar a renda dos portadores de títulos da dívida pública. Nesse cálculo, portanto, uma parte da renda geral do país é contada duas vezes, fazendo com que o montante total apareça quase 30 milhões maior do que é na realidade. Contudo, um país pode incluir em sua riqueza todo o capital possuído por seus cidadãos em títulos sobre a dívida pública de outros países, bem como outras somas a que tenham direito em países estrangeiros. Mas mesmo isso só é riqueza para eles por ser uma participação conjunta na posse da riqueza possuída por outros. Não faz parte da riqueza coletiva da humanidade. É um elemento na distribuição da riqueza geral, mas não na composição da mesma. Um outro exemplo de posse que é riqueza para a pessoa que a tem, mas não para a nação ou para a humanidade, são os escravos. É por uma estranha confusão de ideias que a propriedade de escravos (como se denomina) é computada, a tanto por cabeça, em uma estimativa da riqueza, ou do capital, do país que tolera a existência de tal propriedade. Se um ser humano, considerado um objeto dotado de forças produtivas, faz parte da riqueza nacional quando suas forças produtivas são propriedade de outra pessoa, ele não será menos parte dessa riqueza se tais forças produtivas forem possuídas por ele mesmo. Tudo o que o escravo vale para seu senhor, é propriedade furtada do escravo, e esse furto não pode aumentar as posses dos dois juntos, ou do país ao qual ambos pertencem. Ora, se quisermos que a classificação seja adequada, a população de um país não deve ser contada quando se computa sua riqueza. Pelo contrário, as pessoas são aquilo em função do qual existe a riqueza do país. O termo riqueza designa os objetos desejáveis que as pessoas possuem, não incluindo suas próprias pessoas, mas em contraste com elas. As pessoas não constituem riqueza para si mesmas, embora sejam meios para adquiri-la. Tem-se proposto definir a riqueza como sinônimo de “instrumentos”, significando com esse termo não somente as ferramentas e máquinas, mas também todo o conjunto, possuído por indivíduos ou comunidades, de meios para atingir seus objetivos. Assim, um campo é um instrumento, por ser um meio para se conseguir trigo. O trigo é um instrumento, por ser um meio para se conseguir a farinha. A farinha é um instrumento, por ser um meio para se obter o pão. O pão é um instrumento, por ser um meio para satisfazer à fome e para o sustento da vida. Chegamos aqui finalmente a coisas que não são instrumentos, por serem desejadas em função delas mesmas, e não como meios para se alcançar algo que as ultrapassa. Essa visão das coisas é filosoficamente correta; ou melhor, essa maneira de exprimir-se pode ser empregada com utilidade, juntamente com outras, não por proporcionar uma visão das coisas diferente da visão corrente, mas por possibilitar um enfoque mais claro e mais real do que aquele que caracteriza a visão corrente. Todavia, ela se afasta demais do linguajar comum, para que tenha probabilidade de conseguir aceitação generalizada, ou para ter outra utilidade senão a de uma ilustração ocasional. Assim, a riqueza pode ser definida como sendo todas as coisas úteis ou agradáveis que possuem valor de troca; ou, em outros termos, todas as coisas úteis ou agradáveis, excetuadas as que se podem conseguir, na quantidade desejada, sem trabalho ou sacrifício. A única objeção que parece depor contra essa definição é que ela deixa sem resposta uma questão que tem sido objeto de muito debate, isto é, se aquilo a que se dá o nome de produtos imateriais deve ser considerado riqueza: se, por exemplo, a habilidade de um trabalhador, ou qualquer outro poder ou habilitação natural ou adquirida, corporal ou mental, deve ou não ser qualificada como riqueza; questão que, na realidade, não reveste importância muito grande, e que, por exigir discussão, será mais convenientemente tratada alhures. Feitas essas observações preliminares quanto à riqueza, dirigiremos, a seguir, a nossa atenção para as extraordinárias diferenças em relação a ela, que existem entre uma nação e outra, e entre épocas diferentes do mundo; diferenças tanto no tocante à quantidade da riqueza quanto ao tipo dela, bem como no tocante à maneira como a riqueza existente na comunidade é distribuída entre os membros da mesma. Talvez não haja, atualmente, nenhum povo ou comunidade que viva inteiramente da produção espontânea da vegetação. Mas há ainda muitas tribos que vivem exclusivamente, ou quase com exclusividade, de animais selvagens, produtos da caça ou da pesca. Vestem-se com peles; suas habitações são cabanas grosseiramente construídas com troncos ou galhos de árvores, e abandonadas com extrema facilidade. Por ser pequena a possibilidade de armazenar os alimentos que consomem, não os acumulam, ficando muitas vezes expostos a grandes privações. A riqueza de tal comunidade consiste unicamente nas peles que usam, em alguns ornamentos, cujo gosto existe entre a maioria dos silvícolas, em alguns utensílios grosseiros, nas armas com as quais caçam ou lutam contra concorrentes hostis pelos meios de subsistência, em canoas para atravessar rios e lagos, ou para pescar no mar, e talvez algumas peles ou outros produtos da selva, juntados para trocar com pessoas civilizadas, por mantas, aguardente e fumo, sendo que desses produtos estrangeiros possivelmente mantêm algum estoque. A esse reduzido montante de riqueza material deve-se acrescentar a sua terra — instrumento de produção do qual fazem apenas uso reduzido, em confronto com comunidades mais estabelecidas, mas que continua sendo sua fonte de subsistência, e que tem um valor de mercado, se por acaso houver alguma comunidade agrícola na vizinhança que precise de mais terra do que a que possui. Esse é o máximo de pobreza em que a totalidade dos indivíduos de qualquer comunidade de seres humanos conhecida pode viver, embora haja comunidades muito mais ricas, nas quais certas parcelas da população estão em uma condição que no tocante à subsistência e ao conforto é tão pouco invejável quanto a dos selvagens. O primeiro grande progresso além desse estágio consiste na domesticação dos animais de maior utilidade, surgindo assim o estágio pastoril ou nômade, no qual a humanidade não vive da produção da caça, mas do leite e de seus derivados, e do aumento anual dos rebanhos. Essa condição não somente é mais desejável por si mesma, como também conduz mais facilmente a outros progressos; e nesse regime acumula-se um montante muito maior de riqueza. Enquanto as vastas pastagens naturais da terra ainda não estiverem ocupadas a ponto de serem consumidas com rapidez superior àquela com que se reproduzem espontaneamente, pode-se juntar e conservar uma provisão grande e constantemente crescente de gêneros para a subsistência, com pouco mais de trabalho que o de defender o gado contra os ataques dos animais selvagens e contra a violência ou a astúcia de homens predatórios. Portanto, grandes rebanhos são possuídos por indivíduos ativos e progressistas, em virtude de sua própria atividade, e pelos chefes de famílias e tribos, em decorrência da atividade daqueles que a eles estão ligados por vínculos de lealdade. Surge assim, no estágio pastoril, desigualdade de posses, fenômeno dificilmente existente no estágio selvagem, onde ninguém tem muito mais que o absolutamente necessário, e em caso de escassez tem que repartir até esse pouco com os de sua tribo. No estágio nômade, alguns possuem gado suficiente para alimentar uma multidão, ao passo que outros não conseguiram apropriar-se nem guardar nada de supérfluo, ou talvez nem sequer uma única cabeça de gado. Mas a subsistência deixou de ser precária desde que os mais bem-sucedidos não têm outro uso a fazer de seu excedente senão dar alimento aos menos afortunados, ao mesmo tempo que todo aumento do número de pessoas a eles vinculadas representa um aumento tanto de segurança como de poder; e, assim, esses mais afortunados têm a possibilidade de absterem-se de todo trabalho que não seja o do Governo e de supervisão, e adquirem dependentes que lutam por eles na guerra e os servem em tempo de paz. Uma das características desse estágio da sociedade reside em que uma parte da comunidade, e, até certo ponto, toda ela, tem tempo de lazer. Basta uma parte do tempo para prover alimento, e o resto do tempo não é absorvido pela preocupação com o amanhã, nem pelo necessário repouso da atividade muscular. Tal tipo de vida é altamente favorável para o surgimento de novos desejos ou de necessidades e abre uma possibilidade para o atendimento dos mesmos. Surge um desejo de vestir-se melhor, de possuir utensílios e implementos melhores do que aqueles com os quais o estágio selvagem se contentava; e o excedente de alimento possibilita dedicar a esses objetivos a atividade de uma parte da tribo. Em todas ou ao menos na maioria das comunidades nômades deparamos com produtos manufaturados domésticos de um tipo grosseiro e, em algumas delas, de um tipo refinado. Existe ampla evidência de que, enquanto aquelas regiões do mundo que foram o berço da civilização moderna ainda estavam geralmente em um estágio nômade, se conseguiu um grau notável de habilidade na fiação, na tecelagem e na tintura de tecidos de lã, no preparo do couro e naquilo que se revela como uma invenção ainda mais difícil, a de trabalhar com metais. Até mesmo a ciência especulativa teve seus primeiros impulsos graças às características ociosas desse estágio do progresso social. Há uma tradição, aparentemente verdadeira, que atribui as primeiras observações astronômicas aos pastores da Caldéia. A transição desse estágio nômade ou pastoril para o agrícola certamente não é fácil (pois não há nenhuma grande mudança nos hábitos da humanidade que não seja difícil, e no geral é dolorosa ou então muito lenta), mas ela está na linha do que se pode denominar o curso espontâneo dos eventos. O crescimento da população humana e do gado começou, no devido momento, a exercer pressão sobre as capacidades da terra de produzir pastagem natural, e essa causa, sem dúvida, levou ao primeiro cultivo do solo, da mesma forma que, em um período posterior, a mesma causa fez com que as remanescentes hordas das nações que haviam permanecido no estágio nômade se precipitassem sobre aquelas que já haviam passado para o estágio agrícola, até que, tendo estas se tornado suficientemente poderosas para repelir tais incursões, as nações invasoras, privadas dessa saída, também foram obrigadas a se transformar em comunidades agrícolas. Quando, porém, esse grande passo foi completado, o progresso subsequente da humanidade não parece de forma alguma ter sido tão rápido (excetuadas certas combinações raras de circunstâncias) como talvez se poderia ter esperado. A quantidade de alimento humano que a terra é capaz de produzir, mesmo utilizando-se o mais precário sistema agrícola, ultrapassa tanto o que se poderia conseguir no estágio puramente pastoril, que o resultado invariável é um grande aumento da população. Contudo, esse alimento adicional só se obtém mediante uma grande soma adicional de trabalho, de sorte que não somente uma população agrícola tem muito menos lazer que uma pastoril, como também, com os instrumentos imperfeitos e os processos primitivos ainda empregados por muito tempo (os quais, na maior parte do mundo, ainda não foram abandonados), os agricultores não produzem, a não ser em circunstâncias excepcionalmente vantajosas de clima e de solo, um excedente tão grande de alimentos, além do necessário para seu consumo, que seja suficiente para sustentar um grande contingente de trabalhadores engajados em outros tipos de atividade. Além disso, o excedente, pequeno ou grande, costuma ser arrebatado dos produtores ou pelo Governo ao qual estão sujeitos, ou por indivíduos que, pela superioridade de sua força, ou estribando-se em sentimentos religiosos ou tradicionais de subordinação, firmaram-se como senhores do solo. A primeira dessas formas de apropriação, por parte do Governo, é característica das grandes monarquias que, desde tempos imemoriais, ocuparam as planícies da Ásia. Naquelas regiões, o Governo, embora diferenciando-se em suas qualidades, de acordo com o caráter pessoal, raramente deixa aos cultivadores muito mais do que o necessário e com frequência arrebata-lhes até mesmo isso, a ponto de ele mesmo ver-se obrigado, depois de tirar-lhes tudo o que possuem, a alugar parte das posses àqueles de quem haviam sido tiradas, para prover-lhes sementes e possibilitar-lhes o sustento próprio até a próxima colheita. Sob o regime em pauta, embora a grande massa da população tenha pouco, o Governo, recolhendo pequenas contribuições de grande número de pessoas, tem condições, com qualquer administração razoável, de dar demonstrações de riqueza totalmente desproporcionadas em relação à situação geral da sociedade; disso provém a obstinada ilusão a respeito da opulência das nações orientais, da qual os europeus só conseguiram libertar-se recentemente. É claro que dessa riqueza — sem contar a grande parte que se perde nos bolsos dos empregados que a recolhem — participam muitos, além dos familiares imediatos do soberano. Uma grande parte é distribuída entre os vários funcionários do Governo e entre os que são alvo do favor ou do capricho do soberano. Uma parte é ocasionalmente empregada em obras de utilidade pública. Os reservatórios, os poços e canais de irrigação, sem os quais, em muitos climas tropicais, dificilmente se poderia praticar a agricultura, os diques que confinam os rios, os bazares para distribuidores, e os abrigos para viajantes, dos quais nenhum poderia ter sido executado com os escassos recursos em posse dos que deles fazem uso, devem sua existência à liberalidade e ao esclarecido interesse próprio da melhor categoria de príncipes, ou à benevolência ou ostentação desse ou daquele indivíduo rico, cuja fortuna, se procurarmos identificar-lhe a fonte, sempre se constatará provir direta ou remotamente da receita pública, o mais das vezes através de uma doação direta de uma parte dela por parte do soberano. O governante de uma sociedade desse tipo, depois de prover generosamente ao seu próprio sustento e ao de todos aqueles por quem sente interesse, e depois de manter tantos soldados quantos lhe parecerem necessários para a segurança dele ou de seu Estado, dispõe de um resíduo, que tem prazer em trocar por artigos de luxo de acordo com sua disposição, o mesmo acontecendo à classe de pessoas que se enriqueceram com os favores dele ou manipulando a receita pública. Surge assim uma demanda de artigos manufaturados mais finos e preciosos, adaptados a um mercado restrito mas rico. Essa demanda é suprida quase que exclusivamente pelos comerciantes de comunidades mais adiantadas, mas muitas vezes faz também surgir no próprio país uma classe de artífices, que confeccionam certos artigos com o máximo de perfeição que se pode conseguir com paciência, rapidez de percepção e de observação e destreza manual, sem nenhum conhecimento notável das propriedades dos objetos, tal como acontece com alguns dos tecidos de algodão da Índia. Esses artífices são mantidos pelo excedente de alimentos de que se apoderaram o Governo e seus agentes como sua parte da produção. Isso é tão verdade que, em alguns países, o trabalhador, em vez de levar o serviço para casa e receber o pagamento após terminá-lo, vai com as ferramentas à casa de seu cliente e lá é sustentado até terminar o serviço. No entanto, a insegurança de todas as possessões nesse estágio da sociedade induz até mesmo os compradores mais ricos a darem uma preferência a artigos que, por serem de natureza imperecível e por conterem alto valor em volume reduzido, são aptos para serem escondidos ou carregados consigo. Eis por que o ouro e as joias constituem grande parte da riqueza dessas nações, e muitos ricos da Ásia carregam quase toda a sua fortuna no próprio corpo, ou no das mulheres de seu harém. Ninguém, além do monarca, pensa em investir sua riqueza em coisas que não possam ser carregadas. O soberano, sem dúvida, caso se sinta seguro em seu trono e razoavelmente seguro de transmiti-lo a seus descendentes, entrega-se, às vezes, ao prazer de construir edifícios duráveis e manda edificar as Pirâmides, ou a Taj Mahal e o Mausoléu de Sekundra. Os produtos manufaturados grosseiros destinados às necessidades dos cultivadores da terra são feitos por artesãos de aldeia, que são remunerados com terra que lhes é dada, isenta de aluguel, para cultivo, ou com honorários pagos em espécie com a parte da safra que é deixada aos aldeões pelo Governo. Contudo, em tal estágio da sociedade não falta a classe dos comerciantes composta de duas categorias, os de cereais e os de dinheiro. Os primeiros, normalmente, não compram cereais dos produtores, mas dos agentes do Governo, os quais, recebendo a renda em espécie, têm prazer em confiar a outros o negócio de transportá-la aos lugares onde estão o príncipe, seus principais oficiais civis e militares, o grosso de suas tropas e artesãos que atendem às necessidades dessas diferentes pessoas. Os comerciantes de dinheiro emprestam aos infortunados agricultores, quando estes estão arruinados por más estações ou tributações fiscais, os recursos para se sustentarem e continuarem a cultivar a terra, recebendo o dinheiro de volta, com juros exorbitantes, na colheita seguinte; ou então, em escala maior, emprestam dinheiro ao Governo ou àqueles aos quais este doou uma parte da receita, sendo indenizados com concessões sobre a coleta de impostos ou recebendo em posse certos distritos, com cujas rendas podem pagar a si mesmos; e para possibilitar-lhes isso, é costume confiar-lhes simultaneamente uma grande parte dos poderes de Governo, poderes estes a serem por eles exercidos até que os distritos estejam pagos ou então até que sua receita tenha liquidado a dívida. Assim sendo, as operações dessas duas classes de comerciantes são efetuadas principalmente com a parte da produção do país que constitui a receita do Governo. A partir dessa receita o capital deles é periodicamente reposto com lucro, sendo também esta a fonte da qual têm, quase sempre, tirado seus fundos originais. Tal é, em linhas gerais, a condição econômica da maior parte dos países da Ásia, tal como existia antes do início da história autêntica e existe ainda hoje em todas as partes onde ainda não interferiram influências externas. Nas comunidades agrícolas da antiga Europa cuja condição inicial melhor conhecemos, a situação era outra. Em sua maioria, originalmente eram pequenas comunidades urbanas, sendo que na primeira implantação das mesmas, em um país desocupado, ou então em uma região da qual se haviam expulsado os antigos habitantes, a terra de que se tomou posse foi regularmente dividida, em lotes iguais ou graduados, entre as famílias que compunham a comunidade. Em alguns casos, em vez de uma cidade havia uma confederação de cidades, ocupadas por pessoas presumidamente da mesma raça, e que supostamente se haviam estabelecido na região em torno da mesma época. Cada família produzia seus próprios mantimentos e os materiais para vestir-se, materiais estes que eram transformados ali mesmo, habitualmente pelas mulheres da família, nos produtos manufaturados grosseiros com os quais as pessoas se contentavam na época. Não havia impostos, assim como não havia oficiais pagos nem Governo, ou, se os havia, seu pagamento era garantido por uma porção reservada de terra, cultivada por escravos por conta do Estado; e o exército consistia no conjunto dos cidadãos. Por isso, toda a produção do solo pertencia, sem nenhuma dedução, à família que o cultivasse. Enquanto o curso dos eventos permitiu que durasse tal sistema de propriedade, é provável que esse tipo de sociedade não fosse indesejável para a maioria dos agricultores livres; e, sob tal regime, em alguns casos o avanço da humanidade em cultura intelectual foi extraordinariamente rápido e brilhante. Isso aconteceu de modo mais especial onde quer que, às circunstâncias favoráveis de raça e de clima, e, sem dúvida, à presença de muitos eventos favoráveis, cujos vestígios estão hoje inteiramente perdidos, se associava a vantagem de uma localização às margens de um grande mar interno, que já tivesse em suas costas outras comunidades estabelecidas. O conhecimento que, em virtude de tal localização, se adquiria de produtos estrangeiros, e a fácil entrada de ideias e invenções estrangeiras, fizeram com que os grilhões da rotina, normalmente tão fortes em um povo primitivo, fossem afrouxados nessas comunidades. Para falarmos apenas de seu desenvolvimento industrial: elas cedo adquiriram uma grande variedade de necessidades e desejos, que as estimularam a extrair de seu próprio solo o máximo que sabiam auferir dele; e quando o solo era estéril, ou então quando havia atingido o limite da capacidade, elas transformavam-se muitas vezes em comerciantes, comprando produtos de países estrangeiros para revendê-los com lucro em outros. Entretanto, desde o início foi muito precária a duração desse estado de coisas. Essas pequenas comunidades viviam em um estado de guerra quase constante. Muitas foram as causas disso. Nas comunidades mais primitivas e puramente agrícolas, uma causa frequente era a simples pressão de sua população crescente sobre a sua terra limitada, tanto mais que muitas vezes essa pressão era agravada por colheitas fracas, no estágio primitivo de sua agricultura, dependendo, no que tange a alimentos, de uma área de terra muito reduzida. Em tais ocasiões, muitas vezes a comunidade emigrava em massa, ou então enviava um grupo de seus jovens para procurar, de espada na mão, algum povo menos belicoso que pudessem expulsar de sua terra ou que pudessem obrigar a cultivá-la como escravos em benefício dos seus despojadores. O que as tribos menos evoluídas fizeram por necessidade, fizeram-no as mais prósperas por ambição e por espírito militar; assim, decorrido algum tempo, todas essas comunidades urbanas eram ou conquistadoras ou conquistadas. Em alguns casos, o Estado conquistador contentava-se com impor um tributo ao vencido, que, por sua vez, ao ver-se libertado, como compensação por essa carga, da despesa e do incômodo de cuidar de sua própria proteção militar e naval, podia desfrutar, sob o novo Governo, de uma parcela considerável de prosperidade econômica, ao mesmo tempo que a comunidade vencedora adquiria um novo excedente de riqueza, disponível para fins de luxo ou de magnificência coletivos. Foi com tal excedente que se construíram o Partenão e os Propileus, pagaram-se as esculturas de Fídias e celebraram-se os festivais para os quais Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Aristófanes compunham seus dramas. Contudo, esse estado de relações políticas, altamente útil, enquanto durou, para o progresso e para os mais altos interesses da humanidade, não tinha condições de durabilidade. Uma comunidade conquistadora pequena que não incorpora suas conquistas sempre acaba sendo conquistada. Eis por que o domínio universal acabou ficando com o povo que soube praticar essa arte — os romanos; estes, embora pudessem também usar outros meios, sempre começavam ou terminavam apropriando-se de uma grande parte da terra para enriquecer os seus próprios cidadãos mais importantes, e incorporando ao corpo governante os principais proprietários das terras restantes. É supérfluo delongar-nos na melancólica história econômica do Império Romano. Uma vez que a desigualdade de riqueza começa em uma comunidade que não esteja constantemente empenhada em reparar pelo trabalho os estragos da fortuna, o seu progresso é gigantesco — as grandes massas de riqueza engolem as menores. O Império Romano acabou cobrindo-se de vastos latifúndios, possuídos por um número relativamente reduzido de famílias, e para manter o luxo delas, e ainda mais, a sua ostentação, cultivavam-se os produtos mais preciosos ao passo que os cultivadores do solo eram escravos ou pequenos locatários em condição quase servil. A partir dessa época declinou progressivamente a riqueza do império. De início, a receita pública e os recursos de indivíduos ricos eram ao menos suficientes para cobrir a Itália de edifícios esplêndidos, públicos e particulares, mas a longo prazo esses recursos foram minguando tanto, sob as influências deletérias de maus governos, que o que restava não era sequer suficiente para impedir a decadência desses edifícios. A força e a riqueza do mundo civilizado tornaram-se incapazes para fazer frente às populações nômades que cercaram sua fronteira no norte; estas arrasaram o império, sobrevindo então uma nova ordem de coisas. No novo contexto em que caiu a sociedade europeia, pode-se considerar que a população de cada país se compunha, em proporções desiguais, de duas nações ou raças diferentes: os conquistadores e os conquistados, sendo os primeiros os proprietários da terra, e os segundos, seus cultivadores. Permitia-se a esses agricultores ocupar a terra, mas sob condições que, sendo o produto da força, eram sempre onerosas, conquanto raramente atingissem o estado de escravatura absoluta. Já nos períodos mais tardios do Império Romano, a escravatura fundiária se tinha amplamente transformado em uma espécie de servidão: os coloni dos romanos eram antes servos feudais que escravos efetivos, e a incapacidade e a falta de gosto dos conquistadores bárbaros pelo trabalho de supervisionar pessoalmente as ocupações não deixavam outra alternativa senão permitir aos cultivadores, como incentivo para sua atividade, algum interesse real no solo. Se, por exemplo, eram obrigados a trabalhar durante três dias da semana para seu superior, o produto dos dias restantes pertencia a eles. Caso se exigisse que fornecessem os mantimentos de vários tipos, de que normalmente se necessitava para o consumo do castelo, e se muitas vezes eram solicitados em excesso, não obstante isso, depois de atenderem a tais exigências, permitia-se-lhes dispor à vontade de toda produção adicional que pudessem cultivar. Com esse sistema, durante a Idade Média, não era impossível aos servos, como não o é na Rússia moderna (onde, até recente medida de emancipação, prevaleceu essencialmente o mesmo sistema) adquirirem propriedade; e na verdade, as economias acumuladas por esses servos constituem a fonte original da riqueza da Europa moderna. Naquela época de violência e desordem, o primeiro uso que um servo fazia de qualquer pequena provisão que tivesse conseguido acumular era comprar sua liberdade e retirar-se para alguma cidade ou aldeia fortificada, que havia permanecido intacta desde o tempo do domínio romano; ou então, sem comprar sua liberdade, ia esconder-se lá. Naquele lugar de refúgio, cercado por outros de sua categoria, tentava viver, garantido até certo ponto contra as violências e as cobranças da casta guerreira, pela sua própria bravura e a de seus companheiros. A maioria desses servos emancipados transformou-se em artífices, que viviam da troca dos produtos de seu trabalho pelo excedente de alimentos e materiais que o solo oferecia a seus proprietários feudais. Isso deu origem a uma espécie de contrapartida europeia das condições econômicas dos países asiáticos, excetuando-se o detalhe que, em lugar de um único monarca e de um corpo flutuante de favoritos e empregados, havia uma classe numerosa e, em grau notável, fixa, de grandes proprietários de terras — e estes exibiam muito menos esplendor, porque individualmente dispunham de um excedente de produção muito menor e durante muito tempo gastavam a parte principal dele para manter o conjunto de domésticos que, devido aos hábitos belicosos da sociedade e à pouca proteção oferecida pelo Governo, eram indispensáveis para a segurança dos senhores de terras. A maior estabilidade, a permanência de posição pessoal, que esse estado social assegurava, em comparação com a política asiática à qual correspondia do ponto de vista econômico, constituiu uma razão primordial pela qual ele foi também considerado mais favorável para o desenvolvimento. A partir dessa época, o avanço econômico da sociedade não foi mais interrompido. A segurança das pessoas e da propriedade aumentou lentamente, mas sem solução de continuidade; as artes e ofícios fizeram constantes progressos; o saque deixou de ser a fonte principal do acúmulo de bens; e a Europa feudal amadureceu e desembocou na Europa comercial e manufatureira. Na última parte da Idade Média, as cidades da Itália e de Flandres, as cidades livres da Germânia, e algumas cidades da França e da Inglaterra, abrigavam uma população numerosa e cheia de energia, composta de artesãos e de muitos cidadãos ricos, que haviam adquirido sua riqueza com a atividade manufatureira ou então com a comercialização dos produtos manufaturados. Os Commons da Inglaterra, o Tiers-État da França, a burguesia do Continente europeu em geral são os descendentes dessa classe. Já que essa era uma classe que economizava, ao passo que os últimos membros da aristocracia feudal eram uma classe esbanjadora, a primeira gradualmente tomou para si mesma o lugar da última como proprietária de uma grande porção da terra. Essa tendência natural foi em alguns casos retardada por leis ideadas com o fim de se manter a terra nas famílias de seus proprietários vigentes, e em outros casos foi acelerada por revoluções políticas. Gradualmente, embora com menor rapidez, os cultivadores diretos da terra, em todos os países mais civilizados, deixaram o estado de servidão ou semi-servidão, ainda que a posição legal bem como a condição econômica por eles atingida variem ao extremo nas diversas nações da Europa e nas grandes comunidades que têm sido fundadas do outro lado do Atlântico pelos descendentes de europeus. Hoje o mundo contém várias regiões vastas, dotadas dos diversos elementos da riqueza em um grau de abundância que épocas anteriores nem sequer imaginavam. Sem trabalho compulsório, uma massa enorme de alimentos é anualmente extraída do solo, mantendo, além dos produtores efetivos, um contingente igual, e por vezes superior, de trabalhadores ocupados em produzir utensílios e artigos de luxo de inúmeros tipos, ou então em transportá-los de um lugar para outro; sustentando também uma multidão de pessoas empregadas em dirigir e supervisionar essas diversas atividades, e, além de todos estes, também uma classe, mais numerosa do que nas antigas sociedades mais luxuosas, de pessoas cujas ocupações não são diretamente produtivas, e de pessoas que não têm ocupação alguma. Os alimentos assim cultivados sustentam uma população muito superior àquela que jamais existiu (ao menos nas mesmas regiões) em uma área igual de terra, e a sustenta com segurança, sem as fomes periódicas tão abundantes na história antiga da Europa, e ainda hoje não raras em países orientais. Além desse grande aumento da quantidade de alimentos, estes melhoraram muito em qualidade e em variedade; ao mesmo tempo, os utensílios e artigos de luxo que não sejam alimentos já não estão limitados a uma classe reduzida e opulenta, mas descem em grande abundância, a muitos estratos da sociedade. Os recursos coletivos de uma dessas comunidades, quando ela opta por mobilizá-los para qualquer fim inesperado, a sua habilidade para manter esquadras e exércitos, para executar obras públicas, seja úteis, seja puramente ornamentais, para executar atos nacionais de beneficência como a libertação dos escravos das Índias Ocidentais, para fundar colônias, para ensinar sua população, em suma, para fazer tudo o que requer gastos, e fazê-lo sem sacrificar em nada os artigos de necessidade ou mesmo os confortos substanciais de seus habitantes, são coisas que o mundo jamais havia visto. No entanto, em todos esses particulares, característicos das comunidades industriais modernas, estas diferem amplamente umas das outras. Embora sua riqueza seja abundante, em confronto com períodos anteriores, o grau de abundância varia muitíssimo de uma para outra. Mesmo entre os países que com razão se contam entre os mais ricos, alguns fizeram uso mais completo de seus recursos e conseguiram, em proporção com a sua extensão territorial, uma produção muito maior do que outros; diferem não somente quanto ao montante de riqueza, como também quanto à rapidez de seu crescimento. As diversidades na distribuição da riqueza são ainda maiores do que na produção. Existem grandes diferenças na condição da classe mais pobre em países diferentes, bem como nas cifras proporcionais e na opulência das classes que estão acima da camada mais pobre. Varia não pouco, conforme os lugares, a própria natureza e a designação das classes que originalmente repartem entre si a produção do solo. Em alguns deles, os proprietários de terra constituem uma categoria em si mesma, quase totalmente diferente das classes ocupadas na atividade agrícola; em outros, o proprietário de terra também é quase universalmente o cultivador da terra, que possui o arado e muitas vezes o maneja ele mesmo. Lá onde o próprio dono da terra não cultiva, existe por vezes, entre ele e o trabalhador, um intermediário, o arrendatário que adianta a subsistência dos trabalhadores, fornece os instrumentos de produção e recebe, depois de pagar um aluguel ao proprietário, toda a produção; em outros casos, os únicos que partilham da produção são o proprietário da terra, seu agente, e os trabalhadores. Quanto às manufaturas, são às vezes mantidas por indivíduos dispersos, que possuem ou alugam as ferramentas ou as máquinas de que necessitam e empregam pouca mão-de-obra além dos membros de sua própria família; em outros casos, as manufaturas são mantidas por numerosos contingentes de pessoas que trabalham em um só edifício, com máquinas dispendiosas e complexas que são propriedade dos manufatores. A mesma diferença nas operações comerciais. Sem dúvida, as operações de atacado em toda parte são efetuadas com grandes capitais, onde eles existem, mas o comércio varejista, que coletivamente ocupa um montante altíssimo de capital, às vezes é conduzido em pequenas lojas, sobretudo pelo trabalho pessoal dos próprios comerciantes com suas famílias, e talvez um ou dois aprendizes, e às vezes em grandes estabelecimentos, cujos fundos são fornecidos por um indivíduo rico ou por uma associação, sendo a mão-de-obra constituída de numerosos empregados assalariados, homens e mulheres. Além dessas diferenças nos fenômenos econômicos, que aparecem em diversas regiões daquilo que costumeiramente se chama mundo civilizado, continuam a existir até hoje, em uma ou outra parte do universo, todos aqueles Estados mais antigos que acabamos de passar em revista. Comunidades de caçadores ainda existem na América, comunidades nômades continuam a existir na Arábia e nas estepes do norte da Ásia; por sua vez, a sociedade oriental permanece ainda, no essencial, o que sempre foi; o grande Império Russo, ainda hoje, é sob muitos aspectos um retrato muito pouco modificado da Europa feudal. Subsiste ainda hoje cada um dos grandes tipos de sociedade humana, até o dos esquimós ou habitantes da Patagônia. Ora, essas diferenças notáveis no estado de parcelas diferentes da humanidade, no tocante à produção e à distribuição, devem, como todos os demais fenômenos, depender de causas. E não constitui explicação suficiente atribuí-las exclusivamente aos graus de conhecimento possuídos, em tempos e lugares diferentes, acerca das leis da Natureza e das artes práticas da vida. Muitas outras causas contribuem para tanto; aliás, esse próprio progresso e a distribuição desigual do conhecimento físico são, em parte, os efeitos, e, em parte, ao mesmo tempo as causas do estado da produção e da distribuição da riqueza. Na medida em que a condição econômica das nações depende do estado do conhecimento físico, ela é matéria das ciências físicas e das artes que nelas se fundamentam. Mas na medida em que as causas são morais ou psicológicas, dependendo de instituições e relações sociais ou dos princípios da natureza humana, sua investigação não cabe à ciência física, mas à ciência moral e à social, sendo objeto do que se denomina Economia Política. Obviamente, a produção da riqueza e a extração dos meios de subsistência e de prazer a partir das matérias-primas existentes no globo não constituem uma coisa arbitrária. Tudo isso tem as suas condições necessárias. Destas, algumas são físicas, dependendo então das propriedades da matéria, e da soma de conhecimento sobre essas propriedades possuída no lugar e no momento específicos. A Economia Política não investiga esses fatores, mas os supõe, remetendo, quanto às causas, à Ciência Física ou à experiência corrente. Combinando com esses fatos de natureza externa outras verdades referentes à natureza humana, a Economia Política procura traçar as leis secundárias ou derivativas que determinam a produção da riqueza — leis estas nas quais deve residir a explicação das diversidades de riqueza e pobreza no presente e no passado, bem como a razão de qualquer aumento de riqueza que o futuro nos reserva. Diversamente do que ocorre com as leis da produção, as que regem a distribuição da mesma são em parte de instituição humana, já que a maneira de se distribuir a riqueza em qualquer sociedade específica depende das leis ou usos nela vigentes. Ora, embora os Governos ou nações tenham o poder de decidir que instituições existirão, não têm a possibilidade de determinar arbitrariamente como tais instituições funcionarão. As condições de que depende o poder que os Governos e as nações têm sobre a distribuição da riqueza, bem como a forma como é efetuada essa distribuição, através dos vários modos de conduta que a sociedade possa considerar oportuno adotar, constituem matéria de investigação científica, tanto quanto qualquer uma das leis físicas da Natureza. O tema do tratado que segue são as leis da produção e da distribuição, e algumas das consequências práticas dedutíveis de tais leis. LIVRO PRIMEIRO A PRODUÇÃO CAPÍTULO I Os Requisitos para a Produção § 1. Dois são os requisitos para a produção: o trabalho e objetos naturais apropriados. O trabalho pode ser corporal ou mental; ou então, para expressar a diferença de maneira mais compreensiva, muscular ou nervoso, sendo necessário incluir no conceito, não somente a atividade propriamente dita, mas também todos os sentimentos de natureza desagradável, todo incômodo corporal ou mental ligado ao emprego dos pensamentos, ou dos músculos, ou de ambos, em uma determinada ocupação. Quanto ao outro requisito — objetos naturais apropriados —, importa notar que alguns objetos existem ou crescem espontaneamente, de tipo adequado para o atendimento das necessidades humanas. Há cavernas e árvores ocas capazes de oferecer abrigo; há frutas, raízes, mel silvestre e outros produtos naturais, dos quais o homem pode haurir sustento; mesmo aqui, porém, geralmente se requer um volume notável de trabalho, não para criá-los, mas para encontrá-los e apropriar-se deles. Em todos os casos, exceto nos poucos e (a não ser no próprio início da sociedade humana) irrelevantes casos citados acima, os objetos fornecidos pela Natureza só têm condições de atender às necessidades humanas depois de passarem por algum grau de transformação mediante atividade humana. Mesmo os animais selvagens da floresta e do mar, dos quais as tribos de caçadores e pescadores tiram sua subsistência — embora o trabalho de que são alvo seja sobretudo o exigido para apoderar-se deles — ainda precisam, antes de serem utilizados como alimento, ser abatidos, divididos em pedaços e sujeitos em quase todos os casos a algum processo culinário, operações que requerem certo grau de trabalho humano. O montante de transformação pelo qual as substâncias naturais passam antes de chegarem à forma em que são diretamente utilizadas pelo homem, varia, desde esse grau, ou de um grau inferior, de alteração da natureza e da aparência do objeto, até uma mudança tão grande que já não sobra vestígio algum perceptível da forma e da estrutura original. Há pouca semelhança entre um pedaço de uma substância mineral encontrada na terra e um arado, um machado ou uma serra. Menor ainda é a semelhança existente entre a porcelana e o granito desintegrado do qual é feita, ou entre a areia misturada com alga marinha e o vidro. Maior ainda é a diferença existente entre os velos de lã de uma ovelha, ou um punhado de sementes de algodão, e um tecido de musselina ou de pano inglês; ora, as ovelhas e as sementes não são, em si mesmas, produtos espontâneos, mas resultados de trabalho e cuidados anteriores. Nesses vários casos, o produto último é tão diferente da substância fornecida pela Natureza, que no linguajar costumeiro a Natureza é representada como algo que apenas fornece os materiais. No entanto, a Natureza faz mais do que fornecer materiais; ela oferece também energias. A matéria do globo não é um recipiente inerte de formas e propriedades impressas por mãos humanas; ela encerra energias ativas, através das quais coopera com o trabalho, podendo até ser utilizadas para substituí-lo. Nos primórdios, as pessoas convertiam seu trigo em farinha, triturando-o entre duas pedras; logo depois encontraram um meio que lhes possibilitava, girando uma manivela, fazer com que uma pedra girasse sobre a outra, prática esta já um pouco aprimorada, e que é ainda comum no Oriente. Todavia, a atividade muscular requerida era muito grande e cansativa, a tal ponto que muitas vezes era escolhida como castigo para escravos que ofendiam seus senhores. Quando veio o tempo em que se achou que valia a pena economizar o trabalho e os sofrimentos dos escravos, a maior parte dessa atividade corporal tornou-se desnecessária, fazendo-se com que a pedra superior girasse sobre a inferior, não por força humana, mas pela energia do vento ou da água em queda. Nesse caso, faz-se com que os agentes naturais, o vento ou a gravitação da água, executem uma parte do serviço anteriormente feito pelo trabalho humano. § 2. Casos como este, nos quais certa quantidade de trabalho humano é eliminada e confiada a algum agente natural, podem sugerir uma noção errônea das funções cooperativas do trabalho humano e das forças naturais, como se a cooperação dessas forças com a atividade humana se limitasse àqueles casos em que se faz com que elas executem aquilo que de outra forma seria feito pelo trabalho humano, como se, no caso de coisas feitas (como se costuma dizer) à mão, a Natureza se limitasse a fornecer materiais passivos. Isso é uma ilusão. As forças da Natureza operam tão ativamente em um caso como no outro. Um operário apanha uma haste da planta de linho ou cânhamo, separa-a em fibras e entrelaça várias dessas fibras com os dedos, ajudado por um instrumento simples denominado fuso; tendo assim formado um fio, coloca muitos deles um ao lado do outro, e coloca outros fios semelhantes diretamente em cruz com os primeiros, de sorte que cada um passe alternadamente por cima e por baixo daqueles com os quais forma ângulos retos, sendo essa parte do processo facilitada por um instrumento chamado naveta. Com isso o operário produziu tecido, de linho ou de aniagem, conforme o material. Diz-se que o operário fez isso a mão, presumindo-se que com ele não cooperou nenhuma força natural. Todavia, qual é a força que faz com que seja possível cada passo dessa operação, e em virtude da qual o tecido mantém-se coeso, uma vez produzido? É a tenacidade ou força de coesão das fibras, que é uma das forças existentes na Natureza, e que podemos medir com exatidão contra outras forças mecânicas, e constatar quanto de qualquer uma delas é preciso neutralizar ou contrabalançar. Se examinarmos qualquer outro caso daquilo que se denomina ação do homem sobre a Natureza, veremos, da mesma forma, que as forças da Natureza ou, em outras palavras, as propriedades da matéria, fazem todo o trabalho, assim que os objetos são colocados na posição correta. Essa operação, de colocar as coisas em lugares apropriados para que sobre elas ajam as suas próprias forças internas e as forças que residem em outros objetos naturais, eis tudo o que o homem faz ou pode fazer com a matéria. O homem limita-se a movimentar as coisas, aproximando-as ou separando-as. Ele movimenta uma semente, depositando-a no solo, e as forças naturais da vegetação produzem sucessivamente uma raiz, um caule, folhas, flores e frutos. Movimenta um machado contra uma árvore, e esta cai pela força natural da gravitação; movimenta uma serra na árvore caída, de uma determinada forma, e as propriedades físicas em virtude das quais uma substância mais mole cede a outra mais dura fazem com que a árvore seja dividida em pranchas, as quais ele dispõe em determinadas posições, com pregos cravados nelas, ou matéria adesiva entre elas, produzindo assim uma mesa ou uma casa. Movimenta uma centelha em direção ao combustível, e este acende, e pela força gerada na combustão ele cozinha os alimentos, funde ou amolece o ferro, converte em cerveja ou açúcar o malte ou o suco de cana que havia trazido previamente ao local. O homem não tem outro meio de agir sobre a matéria senão colocando-a em movimento. O movimento e a resistência ao movimento constituem as únicas coisas para as quais foram feitos seus músculos. Pela contração muscular, ele pode exercer uma pressão sobre um objeto externo, pressão esta que, se for suficientemente forte, colocará o objeto em movimento, ou então, se o mesmo já estiver em movimento, poderá refrear, modificar ou fazer parar totalmente o seu movimento, e não poderá fazer nada além disso. Mas isso é suficiente para dar-lhe todo o controle ou domínio que a humanidade adquiriu sobre forças naturais incomensuravelmente mais poderosas que ela própria; um domínio que, por maior que já seja, está sem dúvida destinado a tornar-se indefinidamente maior. O homem exerce esse poder, ou servindo-se de forças naturais existentes, ou arranjando os objetos naquelas misturas e combinações que geram forças naturais — assim como quando, acendendo um fósforo e movimentando-o em direção ao combustível, e colocando água em uma panela posicionada sobre o fogo, ele gera a força expansiva do vapor, força que se tem largamente utilizado para atingir as metas humanas. (Creio ter sido o Sr. (James) Mill, no capítulo I do seu livro Elements, quem primeiro ilustrou essa lei essencial e primária do poder do homem sobre a Natureza, dando-lhe destaque como um princípio fundamental da Economia Política). Eis por que o trabalho, no mundo físico, é sempre e exclusivamente utilizado para colocar objetos em movimento; as propriedades da matéria, as leis da Natureza, fazem o resto. A habilidade e a engenhosidade dos seres humanos exercitam-se sobretudo em descobrir movimentos, exequíveis com suas forças e capazes de produzir os efeitos que desejam. Contudo, se é verdade que o movimento é o único efeito que o homem pode produzir imediata e diretamente com seus músculos, não é necessário que ele produza diretamente através deles todos os movimentos de que precisa. O primeiro e mais óbvio substituto é a ação muscular do gado; gradualmente, faz com que as forças da Natureza inanimada também ajudem nisso, como, por exemplo, fazendo com que o vento ou a água, coisas já em movimento, comuniquem uma parte de seu movimento às rodas, que antes dessa invenção eram giradas por força muscular. Esse trabalho é extraído das forças do vento e da água por uma série de ações, que consistem, como as primeiras, em movimentar certos objetos para determinadas posições, nas quais constituem o que se chama máquina; contudo, nesse caso a ação muscular necessária não precisa ser constantemente renovada, mas é executada uma vez por todas, havendo, no global, uma grande economia de trabalho humano. § 3. Alguns autores levantaram a questão de saber se a Natureza dá mais ajuda ao trabalho em um tipo de atividade do que em outro; afirmaram que em certas ocupações é o trabalho que faz mais, e em outras é a Natureza. Ao que parece, porém, há nisso uma grande confusão de ideias. A parte que a Natureza tem em qualquer trabalho é indefinida e incomensurável. É impossível definir que em alguma coisa a Natureza faz mais do que em qualquer outra. Nem tampouco se pode dizer que o trabalho humano faça menos. É possível que se requeira menos trabalho, mas se aquele que é exigido for indispensável, o resultado é na mesma proporção o produto do trabalho e da Natureza. Quando duas condições são igualmente necessárias para produzir qualquer efeito, carece de sentido dizer que tanto dele é produzido por uma, e tanto pela outra; é como tentar definir qual das duas lâminas faz mais no ato de cortar, ou então, qual dos dois fatores, cinco e seis, mais contribui para produzir tinta. A forma que esse conceito costuma assumir é supor que a Natureza ajuda mais aos trabalhos na agricultura do que nas manufaturas. Essa noção, sustentada pelos economistas franceses, e da qual Adam Smith não ficou isento, proveio de uma falsa concepção da natureza da renda. Pelo fato de ser a renda da terra um preço pago por um fator natural, e como em caso algum esse preço é pago em produtos manufaturados, esses autores imaginaram que se se pagava um preço era porque havia um volume maior de serviço a ser pago; um estudo mais atento do assunto teria mostrado que a razão pela qual o uso da terra tem um preço é simplesmente a limitação da sua quantidade, e que, se fosse limitada também a disponibilidade do ar, do calor, da eletricidade, dos fatores químicos e das outras forças naturais empregadas pelos manufatores, e se esses elementos pudessem, como a terra, ser açambarcados e tornar-se objeto de propriedade, também por eles se poderia cobrar uma renda. § 4. Isso nos leva a uma distinção que constataremos ser de importância primordial. Dentre as forças naturais, algumas estão disponíveis em quantidade ilimitada, outras em quantidade limitada. Obviamente, por quantidade ilimitada não se entenda a ilimitação literal, mas para efeitos práticos, ou seja, uma quantidade que vai além do uso que dela se pode fazer em quaisquer circunstâncias, ou ao menos nas atuais circunstâncias. Em algumas regiões povoadas recentemente, a terra está disponível praticamente em quantidade ilimitada; há mais terra do que a que pode ser utilizada pela população existente da região, ou por qualquer aumento provável durante gerações futuras. Mas, mesmo lá, a terra de localização favorável no tocante aos mercados ou meios de transporte geralmente é limitada em quantidade, não existindo tanta disponibilidade quanto à área que as pessoas gostariam de ocupar e cultivar ou utilizar de outra forma. Em todos os países antigos, a terra passível de cultivo ou pelo menos as terras de fertilidade razoável devem ser enumeradas entre os fatores limitados em quantidade. A água, para os fins correntes, nas margens de rios ou lagos, pode ser considerada algo existente em abundância ilimitada; mas se dela se necessitar para irrigação, até mesmo nessas margens ela pode ser insuficiente para atender a todas as necessidades, ao passo que em lugares que dependem, para o seu consumo, de cisternas ou reservatórios, ou de poços pouco generosos ou sujeitos a falharem, a água é enumerada entre as coisas cuja quantidade é rigorosamente limitada. Lá onde a água em si mesma é abundante, a força hidráulica, isto é, uma queda d’água aplicável pela sua força mecânica ao serviço da indústria, pode ser excessivamente restrita se comparada ao uso que dela se poderia fazer se fosse mais abundante. Ainda mais limitados que a terra são o carvão, os minérios metálicos e outras substâncias úteis que se encontram no interior da terra. Não somente são estritamente locais como também esgotáveis, ainda que, em um determinado lugar e tempo, possam existir em abundância muito maior do que a que seria necessária para o uso atual, mesmo que fossem gratuitos. A pesca no mar é na maioria dos casos um dom da Natureza praticamente ilimitado em quantidade; no entanto, as reservas de baleias no Ártico de há muito vêm sendo insuficientes para a demanda que existe, mesmo a um preço bem alto, necessário para cobrir os custos de sua captura; e a extensão imensa que, em consequência disso, assumiu a pesca nos mares do Sul está tendendo a esgotar também essas reservas. A pesca fluvial é um recurso natural de caráter muito limitado e se esgotaria rapidamente se a cada um fosse permitido fazer uso dela sem restrições. O ar, mesmo naquele estado que denominamos vento, pode, na maior parte das situações, ser obtido em quantidade suficiente para qualquer utilização possível; o mesmo acontece, na costa marítima ou em rios grandes, com o transporte por água, embora os atracadouros ou o espaço portuário aplicáveis ao serviço dessa forma de transporte estejam em muitos casos muito aquém do que seria utilizado, se fossem facilmente alcançáveis. Mais adiante veremos quanto da economia da sociedade depende da quantidade limitada em que alguns dos agentes naturais mais importantes existem, e mais particularmente a terra. De momento observarei apenas que, enquanto a quantidade de um agente natural for praticamente ilimitada, ele não pode, a não ser que seja passível de monopólio artificial, ter valor algum no mercado, já que ninguém pagará nada por aquilo que se pode conseguir gratuitamente. Mas tão logo comece a existir na prática uma limitação, tão logo a quantidade disponível da coisa se torne inferior àquela de que as pessoas se apoderariam e utilizariam se a conseguissem gratuitamente, a propriedade ou uso do agente natural adquire um valor de troca. Quando em determinado distrito se necessita de energia hidráulica em volume superior à quantidade de quedas d’água que a fornecem, as pessoas pagarão um equivalente pelo uso de uma queda d’água. Quando em um lugar a quantidade de terra que se deseja cultivar é inferior àquela de que o lugar dispõe, ou superior à quantidade de terra de uma certa qualidade e determinadas vantagens de localização, a terra dessa qualidade e dessa localização pode ser vendida por um preço, ou então cedida por uma renda anual. Exporemos isso mais adiante, em detalhes; muitas vezes é útil antecipar, em sugestão sucinta, princípios e deduções que não é ainda o caso de expor e ilustrar plenamente. CAPÍTULO II O Trabalho como Agente de Produção § 1. O trabalho, que culmina na produção de um artigo apto para algum uso, é aplicado ou diretamente à coisa ou em operações prévias destinadas a facilitar as operações subsequentes, podendo essas operações prévias serem essenciais para possibilitar as seguintes. Ao fazer pão, por exemplo, o trabalho empregado na própria coisa é o do padeiro; mas o trabalho do moleiro, embora aplicado diretamente à produção da farinha, e não à do pão, faz igualmente parte da somatória de trabalho que entra na produção do pão, o mesmo acontecendo com o trabalho do semeador e do que colhe o trigo. Alguns pensam que se deveria considerar que todas essas pessoas aplicam seu trabalho diretamente à coisa, já que o trigo, a farinha e o pão constituiriam, segundo eles, uma única substância, em três estados diferentes. Sem querer discutir essa questão de mera linguagem, há ainda o arador, que preparou a terra para a semeadura, e cujo trabalho jamais entrou em contato com a substância em nenhum de seus estados, bem como quem fez o arado, cuja participação no resultado foi ainda mais remota. Em última análise, todas essas pessoas auferem a remuneração pelo seu trabalho do pão ou do preço deste — quem fez o arado, da mesma forma que os outros, pois, uma vez que os arados não servem para outra coisa senão para cultivar a terra, ninguém faria ou usaria arados se uma parte dos rendimentos obtidos da terra, aumentados pelo uso dessa ferramenta, não pudesse ser destinada a proporcionar um pagamento adequado para o trabalho do fabricante de arados. Se o produto é para ser usado ou consumido na forma de pão, é do pão que esse pagamento deve provir. O pão deve ser suficiente para remunerar todos esses trabalhadores e vários outros, tais como os carpinteiros e pedreiros que levantaram os edifícios da propriedade rural, os trabalhadores que cavaram e instalaram as cercas necessárias para a proteção da colheita, os mineiros e fundidores que extraíram ou prepararam o ferro do qual foram feitos o arado e outros implementos. Estes, porém, e o fabricante do arado, não dependem, para sua remuneração, do pão feito da produção de uma única safra, mas do pão feito da produção de todas as safras colhidas sucessivamente até o desgaste total do arado ou das edificações e cercas. Contudo, temos que acrescentar ainda outro tipo de trabalho: o de transportar os produtos do local de sua produção ao de seu uso destinado, o trabalho de transportar o trigo ao mercado, e do mercado ao moinho, e a farinha do moinho para a padaria, e o pão para o local de seu consumo final. Esse trabalho é às vezes bem considerável: a farinha é [1848] transportada à Inglaterra desde o outro lado do Atlântico, e o trigo vem do coração da Rússia; e além dos trabalhadores diretamente empregados, os carroceiros e os marinheiros, há também instrumentos caros, tais como navios, em cuja construção despendeu-se muito trabalho; este, porém, para sua remuneração, não depende totalmente do pão, mas apenas parcialmente, já que os navios costumam ser utilizados, no decurso de sua vida útil, para o transporte de muitos tipos diferentes de mercadorias. Está, pois, longe de ser uma operação simples calcular o trabalho do qual resultou uma determinada mercadoria. São muito numerosos os itens que entram no cálculo — e, para alguns, esse número pode parecer infinito; com efeito, se, como parte do trabalho empregado em fazer pão contarmos o trabalho do ferreiro que fez o arado, por que razão não contar também (como poderiam perguntar) o trabalho empregado para fazer as ferramentas usadas pelo ferreiro e as ferramentas utilizadas para fazer as do ferreiro, e assim por diante, até a origem das coisas? Acontece que, depois de subirmos um ou dois graus nessa escala ascendente, chegamos a uma região de frações excessivamente pequenas para cálculo. Suponhamos, a título de exemplo, que o mesmo arado dure, antes de desgastar-se totalmente, doze anos. Somente 1/12 do trabalho empregado para fazer o arado deve ser computado na colheita de cada ano. 1/12 do trabalho empregado em fazer um arado representa uma quantidade apreciável. Mas o mesmo conjunto de ferramentas talvez seja suficiente para que o fabricante de arados faça cem unidades que servem durante os doze anos de sua vida útil para preparar o solo de outras tantas propriedades rurais diferentes. Consequentemente, o que se gastou para a colheita de um ano de uma única propriedade foi 1/1 200 do trabalho empregado na feitura do arado; e quando tal fração for ulteriormente alocada distributivamente aos vários sacos de trigo ou pães, vê-se imediatamente que tais quantidades não devem ser levadas em conta para nenhum fim prático relacionado com a mercadoria. É verdade que, se quem faz as ferramentas não tivesse executado seu trabalho, o trigo e o pão nunca teriam sido produzidos; entretanto, o pão e o trigo não serão vendidos por nem um tostão a mais por causa desse trabalho. § 2. Também requer menção especial outro dos modos em que o trabalho é um meio indireto ou remoto para a produção de uma coisa: isto é, quando ele é empregado para produzir mantimentos para sustentar os trabalhadores enquanto estão ocupados na produção. Esse emprego prévio do trabalho é uma condição indispensável para toda operação produtiva, a menos que se trate de produção em escala reduzidíssima. Se excetuarmos o trabalho do caçador e do pescador, dificilmente existe algum tipo de trabalho cujos retornos sejam imediatos. As operações produtivas têm que prolongar-se por determinado tempo antes de se obterem seus frutos. A menos que o trabalhador, antes de começar o serviço, possua um estoque de alimentos ou possa ter acesso aos estoques de alguma outra pessoa, em quantidade suficiente para mantê-lo até se completar a produção, não pode empreender trabalho algum a não ser aquele que puder ser executado a intervalos irregulares, concorrentemente com a busca de sua subsistência. Ele não tem condições de conseguir nem mesmo alimento em abundância, pois toda forma de assim obtê-lo exige que já haja alimento estocado. A agricultura só gera alimentos no lapso de meses e embora os trabalhos do agricultor não sejam necessariamente contínuos durante o período inteiro, eles ocupam, necessariamente, uma parte considerável dele. A agricultura não somente é impossível sem alimento produzido antecipadamente, como também se requer antecipadamente uma quantidade muito grande para que qualquer comunidade considerável possa sustentar-se inteiramente com a agricultura. Um país como a Inglaterra ou a França só é capaz de manter a sua agricultura este ano porque a dos anos passados proporcionou, nesses países ou em algum outro, alimento suficiente para sustentar sua população agrícola até a próxima safra. Se têm condições de produzir tantas outras coisas além de alimentos, é somente porque estes, no encerramento da última safra, são suficientes para manter não somente os trabalhadores agrícolas, mas também todo o resto de uma grande população trabalhadora. O trabalho empregado em produzir esse estoque de gêneros forma uma parte grande e importante do trabalho passado que foi necessário para possibilitar a execução do trabalho atual. Existe, porém, uma diferença, que precisa ser bem notada, entre esse e os outros tipos de trabalho prévio ou preparatório. O moleiro, o que faz a colheita, o arador, o fabricante de arados, o carroceiro e o fabricante de carroças, mesmo o marujo e o construtor naval, quando empregados, tiram sua remuneração do produto último — o pão feito do trigo em que trabalharam duramente, ou então forneceram os instrumentos para tal trabalho. O trabalho que produziu o alimento que alimentou todos esses trabalhadores é tão necessário para o resultado — o pão da colheita atual — como qualquer uma dessas outras porções de trabalho, mas ele não é remunerado a partir do pão, como as outras. Aquele trabalho anterior recebeu sua remuneração do alimento anterior. Para produzir algum produto, necessita-se de trabalho, ferramentas e matérias-primas, bem como alimento para os trabalhadores. Ora, as ferramentas e as matérias-primas não servem para nada a não ser para obter o produto, ou pelo menos não se destinam a ser aplicadas para nenhuma outra coisa, e o trabalho de sua fabricação só pode ser remunerado a partir do produto, quando este estiver pronto. Ao contrário, o alimento é útil intrinsecamente, sendo aplicado para o fim direto de alimentar seres humanos. O trabalho despendido em produzir o alimento, e recompensado por ele, não precisa ser novamente remunerado a partir da produção do trabalho subsequente que ele alimentou. Se supusermos que o mesmo conjunto de trabalhadores trabalhou em uma manufatura e cultivou, ao mesmo tempo, o alimento para sustentar-se, esses trabalhadores obtiveram, em troca de seu trabalho, o alimento e o artigo manufaturado; mas, se eles também cultivarem a matéria-prima e fizerem as ferramentas, não obterão, em troca de seu trabalho, nada mais do que o artigo manufaturado. O direito à remuneração fundado na posse de alimento disponível para a manutenção de trabalhadores é de outro gênero: é remuneração por abstenção, e não por trabalho. Se uma pessoa tem um estoque de alimentos, tem o poder de consumi-los ela mesma sem trabalhar, ou de alimentar outros para cuidarem dela, ou para lutarem por ela, ou cantarem e dançarem para ela. Se, em vez disso, ela os dá a trabalhadores produtivos para sustentá-los durante seu trabalho, pode reivindicar uma remuneração pelo produto, e naturalmente o fará. Não se contentará simplesmente com a reposição do que investiu; se só receber isso, estará apenas na situação de início, não tendo auferido vantagem alguma do fato de adiar a aplicação de suas economias em seu próprio benefício ou prazer. Procurará algum equivalente para essa abstenção; esperará que o que adiantou em alimentos volte a ela com algo mais, que, na linguagem dos negócios, chama-se lucro; e a esperança desse lucro terá sido provavelmente parte do estímulo que a levou a acumular um estoque, economizando em seu próprio consumo, ou, em todo caso, que a levou a adiar a aplicação desse estoque, uma vez acumulado, à sua própria tranquilidade e satisfação. Também o alimento que sustentou outros operários, enquanto produziram as ferramentas ou os materiais, deve ter sido proporcionado adiantadamente por alguém, e também este deve auferir seu lucro do produto final; há, porém, esta diferença: aqui o produto final tem que assegurar não somente o lucro, mas também a remuneração da mão-de-obra. O fazedor de ferramentas (digamos, por exemplo, o que faz arados) não costuma esperar por seu pagamento até a colheita; o arrendatário adianta-lhe o pagamento, e toma seu lugar, tornando-se o proprietário do arado. Todavia, é da colheita que deve vir o pagamento, já que o arrendatário não assumiria esse gasto se não esperasse que a colheita o repagaria, e com um lucro sobre esse adiantamento vivo, ou seja, se a colheita não lhe assegurasse, além da remuneração dos que trabalham na propriedade (e um lucro pelo fato de adiantar-lhe essa remuneração), um resíduo suficiente para remunerar os operários que trabalharam para quem fez o arado, dando um lucro a quem fez o arado e ao arrendatário um lucro sobre ambos. § 3. A partir dessas considerações parece que, em uma enumeração e classificação dos tipos de trabalho destinados a promover indiretamente e ou remotamente outro trabalho produtivo, não precisamos incluir o trabalho de produção de mantimentos ou outros artigos de necessidade a serem consumidos pelos trabalhadores produtivos, pois o fim e o escopo principal desse trabalho é a própria subsistência; e ainda que a posse de um estoque de alimentos possibilite a execução de outros trabalhos, isso é apenas uma consequência casual. Os demais modos em que o trabalho é indiretamente um instrumento da produção podem ser dispostos em cinco itens. Primeiro, o trabalho empregado na produção de matérias-primas com as quais a indústria trabalhará posteriormente. Em muitos casos, isso consiste em trabalho de simples apropriação: a atividade extrativa, como foi adequadamente designada pelo Sr. Dunoyer. O trabalho do mineiro, por exemplo consiste em operações de escavar da terra substâncias conversíveis pelo trabalho em vários artigos aptos para o uso humano. Mas a atividade extrativa não está restrita à extração de matérias-primas. Assim, por exemplo, o carvão é empregado não somente no processo industrial, mas também em aquecer seres humanos diretamente. Quando assim utilizado, ele não é uma matéria-prima para produção, mas é em si mesmo o produto final. O mesmo ocorre no caso de uma mina de pedras preciosas. Estas são em pequena escala empregadas nas artes produtivas, como os diamantes, pelo cortador de vidro, ou o esmeril e o corindo, para o polimento, mas sua destinação principal, a de ornamento, constitui um uso direto, ainda que, antes de serem utilizados, costumem exigir algum processo de manufatura, que pode talvez justificar o fato de as considerarmos matérias-primas. Os minérios metálicos de todos os tipos são matérias-primas puras e simples. Sob o item de matérias-primas devemos incluir a atividade do madeireiro, quando empregado em cortar e preparar madeira para construção, ou madeira para os fins de carpintaria ou qualquer outro ofício. Nas florestas da América, da Noruega, da Alemanha, dos Pireneus e dos Alpes, esse tipo de trabalho é empregado em grande escala em árvores que crescem espontaneamente. Em outros casos, devemos acrescentar ao trabalho do madeireiro o do plantador e do cultivador. Sob o mesmo item englobam-se também os trabalhos dos agricultores que cultivam linho, cânhamo, algodão, bicho-da-seda e alimentos para o gado, que produzem quina, corantes, algumas plantas oleaginosas e muitas outras coisas, úteis somente porque exigidas em outros setores de atividade. Assim também acontece com o trabalho do caçador, desde que o seu objetivo seja peles ou plumas; do pastor e do criador de gado, no tocante à lã, couros, chifres, cerdas, crinas de cavalo e similares. As coisas utilizadas como matérias-primas em um ou outro processo de manufatura são de tipos altamente diversificados, tirados de quase todos os setores dos reinos animal, vegetal e mineral. Além disso, os produtos acabados de muitos setores de atividade são matérias-primas para outros. O fio produzido pelo fiador dificilmente é utilizado para outro fim senão como matéria-prima para o tecelão. Mesmo o produto do tear é sobretudo usado como matéria-prima para os fabricantes de artigos de vestuário e de mobília, ou de outros instrumentos de atividade produtiva, como no caso do veleiro. O surrador e o curtidor de couros ocupam-se exclusivamente em transformar matéria bruta naquilo que se pode chamar de material preparado. Falando rigorosamente, quase todos os alimentos, tal como vêm das mãos do agricultor, não passam de matérias-primas para a ocupação do padeiro ou do cozimento. § 4. O segundo tipo de trabalho indireto é o empregado em fazer ferramentas ou implementos para ajudar no trabalho. Utilizo esses termos em sua acepção mais abrangente, abarcando todos os instrumentos ou acessórios permanentes na produção, desde a pederneira e o aço para acender uma luz, até o navio a vapor, ou aparelho mais complexo de maquinaria para manufatura. Pode haver alguma hesitação sobre onde corre a linha divisória entre os implementos e as matérias-primas; e algumas coisas usadas na produção (tal como o combustível) dificilmente seriam, no linguajar comum, denominados com um desses termos, já que o modo de falar popular é formado com base em um tipo de necessidade diferente das que caracterizam a exposição científica. Para evitar a multiplicação de categorias e denominações correspondentes a distinções de nenhuma relevância científica, os autores de Economia Política costumam incluir todas as coisas que são usadas como meios imediatos de produção (os meios que não são imediatos serão considerados logo abaixo) ou na categoria de implementos ou na de matérias-primas. Talvez a maneira mais e mais indicada de traçar a linha divisória seja considerar matéria-prima todo instrumento de produção que só pode ser utilizado uma vez, sendo destruído (pelo menos como um instrumento para o fim em questão) por um único emprego. Assim, o combustível, uma vez queimado, não pode mais ser usado como combustível; o que pode ser assim utilizado é alguma parcela de combustível que ficou sem queimar na primeira vez. Não somente o combustível não pode ser usado sem ser consumido, como também só tem utilidade para ser consumido, pois se não se destruísse nenhuma parcela de combustível, não se geraria calor algum. Por sua vez, um velo de lã é destruído como velo por ser desfiado e transformado em fio; e o fio não pode ser utilizado como tal quando for transformado em tecido. Um machado, porém, não é destruído como machado pelo fato de com ele se cortar uma árvore, mas pode, posteriormente, ser ainda utilizado para abater 100 ou 1000 outras árvores mais; e embora ele se deteriore em grau reduzido com cada utilização, não executa seu trabalho pelo fato de deteriorar-se, assim como acontece com o carvão e os velos de lã, que só cumprem seu trabalho sendo destruídos; pelo contrário, o instrumento é tanto melhor quanto mais resistir à deterioração. Há algumas coisas, corretamente classificadas como matérias-primas, que podem ser utilizadas como tais uma segunda e uma terceira vez, mas não enquanto continuar existindo o produto para o qual contribuíram pela primeira vez. O ferro com o qual se fez um reservatório ou um conjunto de tubos pode ser fundido para se fazer um arado ou um motor a vapor; as pedras com as quais se construiu uma casa podem ser usadas para construir outra, depois de derrubada a primeira. Isso, porém, não pode ser feito enquanto subsistir o primeiro produto; sua função de matéria-prima está suspensa até que se esgote o primeiro uso para o qual foi empregada. Isso não acontece com as coisas classificadas como implementos; elas podem ser usadas repetidamente para novo serviço até o momento — que por vezes está muito distante — em que se desgastam totalmente, ao passo que o trabalho já executado por elas pode subsistir sem prejuízo; e quando esse trabalho deixa de existir, isso acontece devido às suas próprias leis, por fatores inerentes à própria coisa. (O competente e cordial recensor deste tratado na Edinburgh Review (outubro de 1848) concebe essa distinção entre matérias-primas e implementos de maneira um tanto diferente: propõe considerar matérias-primas “todas as coisas que depois de terem passado pela alteração implicada na produção, são elas mesmas matéria de troca” e como implementos (ou instrumentos) “as coisas que são empregadas na produção daquela mudança, mas não se tornam parte do resultado que é objeto de troca”. Segundo essas definições, o combustível consumido em uma manufatura não seria considerado matéria-prima, mas como instrumento. Esse uso dos termos concorda melhor no texto com o sentido físico primitivo da palavra “matéria-prima”, mas a distinção em que se baseia é quase irrelevante para a Economia Política). A única diferença prática de grande importância proveniente da distinção entre matérias-primas e implementos é uma que atraiu nossa atenção em outro caso. Já que as matérias-primas são destruídas por serem utilizadas uma vez, todo o trabalho exigido para sua produção, bem como a abstenção da pessoa que ofereceu os meios para executá-la, têm que ser remunerados com os frutos desse único uso. Ao contrário, no caso dos implementos, que podem ser usados repetidas vezes, o total dos produtos para cuja produção constituem instrumento representa um fundo ao qual se pode recorrer para remunerar o trabalho de sua construção, bem como a abstenção daqueles cujas economias sustentaram tal trabalho. Basta que cada produto contribua com uma fração, que geralmente é insignificante, para a remuneração desse trabalho e dessa abstenção, ou seja, para indenizar o produtor imediato pelo fato de adiantar tal remuneração à pessoa que produziu as ferramentas. § 5. Terceiro: Além das matérias-primas para que a atividade respectiva possa ser exercida, e dos implementos que nisso ajudam, deve-se ter o cuidado de evitar que suas operações sejam perturbadas e seus produtos sejam danificados pelos agentes destrutivos da Natureza ou pela violência ou rapacidade dos homens. Isso dá origem a um outro modo no qual o trabalho, não empregado diretamente no próprio produto, é um instrumento na sua produção, isto é, quando empregado para a proteção da atividade. Este é o objetivo de todas as construções feitas para fins industriais: todas as manufaturas, depósitos, estaleiros, celeiros, silos e instalações de fazenda destinadas ao gado ou às operações do trabalho agrícola. Excluo as instalações em que moram os trabalhadores, ou que se destinem à sua acomodação pessoal: estas, como seu alimento, atendem a necessidades efetivas, devendo ser computadas na remuneração de seu trabalho. Há muitos modos em que o trabalho é ainda mais diretamente aplicado à proteção de operações produtivas. O pastor tem pouca ocupação além de proteger o gado para que não seja danificado, e os fatores positivos envolvidos na realização do produto operam quase automaticamente. Já mencionei o trabalho do cavador e do instalador de cercas, do construtor de muros ou diques. A essas ocupações devem ser adicionadas a do soldado, do policial e do juiz. Esses funcionários, na realidade, não estão exclusivamente empregados na proteção do trabalho, nem seu pagamento constitui, para o produtor individual, uma parte das despesas de produção. Mas são pagos com os impostos que derivam da produção do trabalho, e em todo país razoavelmente bem governado eles prestam a esse trabalho um serviço muito mais que equivalente ao custo. Para a sociedade em geral, portanto, constituem uma parte das despesas de produção; e se os retornos para a produção não fossem suficientes para manter esses trabalhadores, além de todos os outros exigidos, não poderia ocorrer a produção, ou pelo menos não dessa forma. Além disso, se não fosse assegurada a proteção que o Governo oferece às operações do trabalho, ou os produtores estariam na necessidade de subtrair grande parte de seu tempo e trabalho da produção, empregando-o em sua proteção, ou então de contratar pessoas armadas para a sua defesa, sendo que todo esse trabalho, nesse caso, teria que ser diretamente remunerado com a produção e não seriam produzidas coisas que não pudessem pagar tal trabalho adicional. Na estrutura atual, o produto paga sua quota para a mesma proteção e, a despeito do desperdício e da prodigalidade inerentes aos gastos do Governo, obtém-na de melhor qualidade por um custo muito menor. § 6. Quarto: Existe uma grande soma de trabalho empregado, não para gerar o produto, mas para torná-lo acessível, quando já pronto, àqueles para os quais foi projetado. Muitas classes importantes de trabalhadores encontram seu emprego exclusivo em alguma dessas funções. Existe, antes de tudo, toda a classe dos transportadores, por terra ou por água: os arrieiros, os carroceiros, os barqueiros, os marujos, os estivadores, os que transportam carvão, os carregadores, os ferroviários e similares. Depois, vêm os construtores de todos os meios de transporte: navios, barcaças, carretas, locomotivas etc., aos quais é preciso acrescentar as estradas, os canais e as ferrovias. As rodovias são por vezes construídas pelo Governo, sendo gratuitamente abertas ao público; nem por isso o trabalho de construção deixa de ser pago a partir da produção. Cada produtor, ao pagar sua quota dos impostos geralmente recolhidos para a construção de estradas, paga o uso daquelas que atendem à sua conveniência; e se essas estradas forem construídas com razoável discernimento proporcionam à sua atividade um retorno muito maior que a soma aplicada. Outra classe numerosa de trabalhadores empregados em fazer com que as coisas produzidas se tornem acessíveis a seus pretensos consumidores, é a categoria dos negociantes e comerciantes, ou, como podem ser chamados, os distribuidores. Haveria grande desperdício de tempo e trabalho, e um inconveniente muitas vezes equivalente a inexequibilidade, se os consumidores só pudessem obter os artigos de que precisam tratando diretamente com os produtores. Tanto os produtores como os consumidores estão muito espalhados, e estes últimos muitas vezes estão excessivamente distantes dos primeiros. Para diminuir a perda de tempo e trabalho, cedo recorreu-se à ideia das feiras e mercados, onde os consumidores e os produtores pudessem encontrar-se periodicamente, sem qualquer intermediário; esse plano serve razoavelmente bem para muitos artigos, sobretudo de produção agrícola, já que em algumas estações os agricultores dispõem de algum tempo livre. Mas, mesmo nesse caso, o comparecimento às feiras é, muitas vezes, demasiado incômodo e inconveniente para compradores que têm outras ocupações e não vivem nas proximidades, ao passo que, para todos os artigos cuja produção exige atenção contínua dos produtores, tais mercados periódicos têm que realizar-se a intervalos tão grandes, e as necessidades dos consumidores devem ser atendidas com tanta antecipação, ou permanecer sem atendimento por tanto tempo, que mesmo antes que os recursos da sociedade comportassem a criação de lojas o atendimento dessas necessidades caiu universalmente nas mãos de agentes itinerantes; assim, o mascate, que podia aparecer uma vez por mês, seria preferível à feira, que só se realizava uma ou duas vezes por ano. Em distritos do país afastados de cidades ou aldeias grandes, a atividade do mascate ainda não está totalmente substituída. Mas um negociante que tenha residência e uma clientela fixas é tão mais seguro e confiável, que os consumidores preferem recorrer a ele, se for convenientemente acessível; e por isso, os negociantes encontram vantagens em se estabelecer em toda localidade em que haja suficientes consumidores à mão, que lhes proporcionem uma remuneração. Em muitos casos, os produtores e os negociantes são as mesmas pessoas, pelo menos quanto à propriedade dos fundos e ao controle das operações. O alfaiate, o sapateiro, o padeiro e muitos outros comerciantes são os produtores dos artigos com os quais negociam, no que tange ao último estágio na produção. Contudo, essa junção das funções do fabricante e do varejista só convém quando o artigo pode ser fabricado com vantagem com local conveniente para vendê-lo no varejo, ou pelo menos perto dele, e quando o artigo, além disso, é manufaturado e vendido em pequeno volume. Quando as coisas têm que ser trazidas de longe, a mesma pessoa não pode eficazmente supervisionar a manufatura como a venda dos artigos no varejo; quando é melhor e mais barato fabricá-las em grande escala, uma única fábrica exige tantos canais locais para comercializar o produto que a venda no varejo é mais convenientemente confiada a outros agentes; e mesmo sapatos e casacos, quando têm que ser fornecidos em grandes quantidades e de uma vez, como no caso do abastecimento de um regimento ou de um asilo, geralmente são comprados não diretamente dos produtores, mas de agentes intermediários, cujo negócio consiste em verificar de que produtores podem obter o artigo melhor a preço mais baixo. Mesmo quando as coisas são destinadas a serem finalmente vendidas no varejo, a conveniência logo cria uma classe de atacadistas. Quando os produtos e as transações se multiplicam além de um determinado ponto, quando uma manufatura abastece muitas lojas, e uma loja muitas vezes tem que comprar mercadorias de muitas manufaturas diferentes, a perda de tempo e o incômodo, tanto para os manufatores como para os varejistas, tendo que tratar diretamente uns com os outros, fazem com que lhes seja mais conveniente tratar com um número de grandes intermediários ou comerciantes, que só compram para revender, comprando mercadorias de vários produtores e distribuindo-as aos varejistas, para que, ulteriormente, eles as distribuam entre os consumidores. É desses vários elementos que se compõe a Classe Distribuidora, cuja atividade complementa a da Classe Produtora; e a produção assim distribuída, ou seja, seu preço, é a fonte da qual são remunerados os distribuidores pelas suas atividades, bem como pela abstenção que lhes possibilitou adiantar os fundos necessários para o negócio da distribuição. § 7. Completamos assim a enumeração dos modos pelos quais o trabalho empregado sobre a natureza externa serve à produção. Mas há ainda uma outra forma de empregar trabalho e que conduz igualmente, conquanto ainda mais remotamente, ao citado fim: o trabalho que tem por alvo seres humanos. Todo ser humano foi criado e educado, desde a infância, à custa de muito trabalho para alguma ou algumas pessoas, e se esse trabalho, ou uma parte dele, não tivesse sido prestado, a criança nunca teria atingido a idade e a força que lhe possibilitaram, por sua vez, tornar-se um trabalhador. Para a comunidade como um todo, o trabalho e a despesa para criar sua população infantil constituem uma parte do gasto que é uma condição da produção, e que tem que ser reposto com acréscimo, a partir da produção futura do trabalho dessa população. Por parte dos indivíduos, esse trabalho e essa despesa costumam ser feitos por motivos outros que obter tal retorno final, e, para a maior parte dos fins da Economia Política, não precisam ser levados em conta como despesas de produção. No entanto, a educação técnica ou industrial da comunidade, o trabalho empregado em aprender e em ensinar as artes da produção, na aquisição e na comunicação de habilidade nessas artes, é realmente feito — e geralmente só em função disso é feito — com vistas à produção maior e mais valiosa assim obtida, e para que uma remuneração, equivalente ou superior a esse trabalho, possa ser ganha pelo aprendiz, além de uma adequada remuneração pelo trabalho do instrutor, no caso de ter havido a intervenção deste. Uma vez que o trabalho que confere forças produtivas, sejam manuais ou mentais, pode ser considerado parte do trabalho através do qual a sociedade executa suas operações produtivas, ou, em outras palavras, parte daquilo que a produção custa à sociedade, o mesmo pode acontecer com o trabalho empregado em manter as forças produtivas, em impedir que elas sejam destruídas ou enfraquecidas por acidentes ou por doença. O trabalho de um médico ou de um cirurgião, quando dele fazem uso pessoas envolvidas na indústria, deve ser encarado, na economia da sociedade, como um sacrifício incorrido para impedir que pereça, por morte ou por doença, aquela parcela dos recursos produtivos da sociedade que está fixa nas vidas e nas forças corporais ou mentais de seus membros produtivos. Na verdade, para os indivíduos isso representa apenas uma parte, por vezes imperceptível, dos motivos que os induzem a submeter-se a tratamento médico, já que não é sobretudo por motivos econômicos que as pessoas deixam amputar um membro, ou procuram curar-se de uma febre, ainda que, quando o fazem, geralmente haja suficiente motivação para isso, mesmo com base exclusivamente nesse motivo. Esse é, pois, um dos casos de trabalho e despesa que, embora possam conduzir à produção, por não serem feitos em função dessa finalidade, ou em função dos retornos dela derivantes, estão fora da esfera da maioria das propostas gerais que a Economia Política tem oportunidade de afirmar no tocante ao trabalho produtivo, ainda que, quando se enfoca a sociedade, e não os indivíduos, esse trabalho e despesa devam ser encarados como parte do adiantamento pelo qual a sociedade executa suas operações produtivas, e pelo qual é indenizada pela produção. § 8. Outro tipo de trabalho, geralmente classificado como mental, mas que conduz ao produto final tão diretamente, embora não de maneira tão imediata, quanto ao próprio trabalho manual, é o trabalho dos inventores de processos industriais. Digo geralmente classificado como mental, pois na realidade ele não é somente tal. Toda atividade humana compõe-se de alguns elementos mentais e alguns corporais. O servente de pedreiro mais obtuso que repete diariamente o ato mecânico de subir uma escada, executa uma função que em parte é intelectual, tanto que, na verdade, o cão ou o elefante mais inteligente provavelmente não aprenderiam a fazer o mesmo. O ser humano mais obtuso, desde que seja antes instruído, é capaz de fazer girar um moinho, ao passo que um cavalo não o pode fazer, se não houver alguém que o dirija e cuide dele. Por outro lado, existe um ingrediente corporal no trabalho mais puramente mental, quando ele gera algum resultado externo. Newton não poderia ter engendrado os seus Principia sem a atividade corporal de escrever ou de ditar; além disso, necessariamente, deve ter traçado muitos diagramas e feito no papel muitos cálculos e demonstrações, quando esboçava os Principia em sua mente. Os inventores, além do trabalho cerebral, geralmente desenvolvem muito trabalho manual, nos modelos que constroem e nos experimentos que têm que executar antes que sua ideia seja posta em prática com êxito. Quer seja seu trabalho mental ou corporal, porém, esse trabalho faz parte daquele outro mediante o qual a produção se efetiva. O trabalho de Watt na invenção do motor a vapor constituiu um componente tão essencial da produção como o dos mecânicos que constroem ou dos engenheiros que operam o instrumento, e esse trabalho foi executado, tanto como o destes últimos, com vistas a uma remuneração a partir da produção. O trabalho de invenção muitas vezes é calculado e pago exatamente na mesma base que o da execução. Muitos manufatores de bens ornamentais têm inventores entre seus empregados, que recebem salários para projetarem modelos, exatamente da mesma forma que os recebem outros empregados para copiá-los. Tudo isso faz rigorosamente parte do trabalho de produção, como o trabalho do autor de um livro faz parte de sua produção, do mesmo modo que o trabalho do impressor ou do encadernador. Em uma perspectiva nacional ou universal, o trabalho do sábio ou do pensador especulativo representa uma parte da produção no sentido estritíssimo da palavra, tanto quanto o do inventor de uma arte prática; sabe-se, com efeito, que muitas dessas invenções foram consequências diretas de descobertas teóricas, e cada ampliação do conhecimento das forças da Natureza é fecunda em aplicações para os fins da vida externa. O telégrafo eletromagnético foi a consequência maravilhosa e inesperada dos experimentos de Oersted e das pesquisas matemáticas de Ampère; e a moderna arte da navegação é um produto imprevisível da pesquisa puramente especulativa e aparentemente apenas curiosa, feita pelos matemáticos de Alexandria sobre as propriedades de três curvas formadas pela intersecção de uma superfície plana e um cone. Não se pode colocar limite algum à importância do pensamento puro, mesmo partindo de um ponto de vista meramente produtivo e material. Na medida, porém, em que tais frutos materiais, embora sejam o resultado, raramente constituem a finalidade direta de tais buscas dos sábios, e sua remuneração geralmente não deriva do aumento de produção que pode resultar, acidentalmente e, na maioria dos casos, após muito tempo, de suas descobertas, essa influência final não precisa ser levada em consideração para a maior parte dos fins da Economia Política; e os pensadores especulativos costumam ser classificados como aqueles que produzem apenas livros ou outros artigos de uso ou de venda que emanam diretamente deles. Quando, porém (como se deve sempre estar preparado para fazer na Economia Política), deslocamos nosso ponto de enfoque e consideramos não os atos individuais e os motivos que os determinam, mas os resultados nacionais e universais, a especulação intelectual deve ser encarada como um componente altamente influente no trabalho produtivo da sociedade, e a porção dos recursos empregada na execução e na remuneração de tal trabalho deve ser considerada um componente altamente produtivo de seus gastos. § 9. Na análise que vem de ser feita a respeito dos modos de empregar trabalho na promoção da produção, pouco usei a distinção popular entre o trabalho aplicado à agricultura, às manufaturas e ao comércio. Isso porque, na verdade, essa divisão presta-se muito mal aos fins de uma classificação. Há muitos setores importantes do trabalho produtivo que não encontram lugar algum nessa classificação, ou só o encontram com muita dificuldade; por exemplo (para não falar dos caçadores ou dos pescadores), o mineiro, o construtor de estradas e o marujo. Também é impossível demarcar com precisão o limite entre a atividade agrícola e a manufatureira. Será que, por exemplo, o moleiro e o padeiro devem ser enquadrados na categoria agrícola ou na manufatureira? Por sua natureza, a ocupação deles é de manufatura; antes de ser-lhes entregue, o alimento foi finalmente separado do solo; contudo, o mesmo pode ser dito, com igual verdade, a respeito do debulhador, do joeirador, dos que fazem manteiga e queijo — operações estas sempre contadas como agrícolas, provavelmente porque, via de regra, são executadas por pessoas que residem nas propriedades rurais, e sob o mesmo comando que supervisiona a lavoura. Por muitas razões, todas essas pessoas — incluindo o moleiro e o padeiro — devem ser enquadradas na mesma classe que os que manejam o arado e os que colhem a produção agrícola. Todos eles estão envolvidos na produção de alimento, dependendo, quanto à sua remuneração, dos alimentos produzidos; quando uma classe está na abundância e floresce, o mesmo ocorre com as outras; constituem coletivamente o “interesse agrícola”; prestam apenas um serviço à comunidade por meio de seus trabalhos associados, sendo pagos a partir de uma fonte comum. Mesmo os que cultivam o solo, quando a produção não é alimento mais matérias-primas daquilo que se costuma denominar produtos manufaturados, pertencem sob muitos aspectos à mesma categoria que os manufatores, na economia da sociedade. O plantador de algodão da Carolina e o cultivador de lã da Austrália têm mais interesses em comum com o fiador e o tecelão do que com um plantador de trigo. Mas, por outro lado, a atividade que opera diretamente no solo tem, como veremos adiante, algumas propriedades das quais dependem muitas consequências importantes e que a distinguem de todos os estágios subsequentes da produção, sejam eles executados pela mesma pessoa ou não: tanto a atividade do debulhador e do joeirador quanto a do fiador de algodão. Quando, pois, falo de trabalho agrícola, geralmente me refiro a essa atividade, e exclusivamente a ela, a menos que o contrário seja explicitamente dito ou implicitamente sugerido pelo contexto. O termo manufatura é excessivamente vago para ser de grande utilidade quando se requer precisão; quando o empregar, pois, quero ser entendido no sentido popular, e não na acepção científica da palavra. CAPÍTULO III O Trabalho Improdutivo § 1. O trabalho é indispensável para a produção, mas nem sempre tem por efeito a produção. Há muitos trabalhos, e de um alto grau de utilidade, que não têm por objetivo a produção. Eis por que o trabalho foi dividido em Produtivo e Improdutivo. Grande tem sido a controvérsia entre os autores de Economia Política sobre que tipos de trabalho devem ser considerados improdutivos; e nem sempre se deram conta de que, na realidade, a controvérsia não versava sobre nenhum item de importância. Muitos autores têm hesitado em classificar como produtivo somente o trabalho cujo resultado é palpável em algum objeto material, capaz de ser transferido de uma pessoa para outra. Outros há (entre eles o Sr. McCulloch e o Sr. Say) que, considerando a palavra improdutivo como um termo depreciativo, recusam-se a empregá-lo para qualquer trabalho que seja considerado útil — que produz um benefício ou um prazer que valha o custo. O trabalho dos oficiais do Governo, do exército e da marinha, dos médicos, advogados, professores, músicos, dançarinos, atores, criados domésticos etc., quando fazem realmente o que são pagos para fazer, e quando o seu número não ultrapassa o contingente necessário para a realização do seu trabalho, não deve — dizem tais autores — ser “estigmatizado” como improdutivo, qualificativo que parecem interpretar como um sinônimo de antieconômico ou inútil. Isso, porém, representa uma interpretação equivocada do assunto em pauta. Não sendo a produção o fim exclusivo da existência humana, o termo improdutivo não representa necessariamente um estigma, nem pretendi jamais fazê-lo no presente caso. A questão é de mera linguagem e classificação. Ocorre que as diferenças de linguagem de forma alguma deixam de ter importância, mesmo quando não estão fundadas em diferenças de ponto de vista; com efeito, embora os dois termos possam concordar com a verdade integral, geralmente tendem a chamar a atenção para aspectos diferentes da mesma. Precisamos, pois, adentrar-nos um pouco na consideração dos vários significados que podem ter as palavras produtivo e improdutivo quando aplicadas ao trabalho. Em primeiro lugar, mesmo no que se chama produção de objetos materiais, importa lembrar que o que é produzido não é a matéria que os compõe. Nem mesmo todo o trabalho de todos os seres humanos do mundo seria capaz de produzir uma única partícula de matéria. Fazer tecido inglês não é outra coisa senão dispor, de uma forma peculiar, as partículas da lã; cultivar trigo não é outra coisa senão colocar uma porção de matéria, denominada semente, em um local em que ela possa coletar e combinar partículas de matéria da terra e do ar, para formar a nova combinação denominada planta. Ainda que não tenhamos condição de criar matéria, podemos fazer com que ela assuma propriedades, em virtude das quais se transforma de inútil em útil para nós. O que produzimos, ou desejamos produzir, é sempre, como diz com razão o Sr. Say, uma utilidade. O trabalho não cria objetos, mas utilidades. Tampouco consumimos e destruímos os objetos como tais; a matéria que os compõe permanece, mais ou menos alterada na forma; o que foi realmente consumido são apenas as qualidades em virtude das quais esses objetos foram adequados ao fim para o qual foram aplicados. É, portanto, pertinente a questão colocada pelo Sr. Say e por outros: visto que, quando se diz que produzimos objetos, só produzimos utilidades, por que não considerar produtivo todo trabalho que produza utilidade? Por que recusar esse título ao cirurgião que conserta um membro, ao juiz e ao legislador que proporcionam segurança, e atribuí-lo a um lapidador que corta o diamante e lhe dá polimento? Por que negá-lo ao instrutor do qual aprendo uma arte — pela qual posso ganhar meu pão — e atribuí-lo ao confeiteiro que faz bombons em função do prazer momentâneo de um paladar? É perfeitamente verdade que todos esses tipos de trabalhos produzem utilidades e a questão que nos ocupa não poderia nem sequer ter-se tornado uma questão controvertida, se a produção de utilidades fosse suficiente para atender satisfatoriamente à noção que a humanidade geralmente formou sobre o trabalho produtivo. Os termos produção e produtivo são naturalmente expressões elípticas, envolvendo a ideia de algo produzido; ora, esse algo, na acepção comum, entendo-o não como utilidade, mas como riqueza. Trabalho produtivo significa trabalho que produz riqueza. Recaímos, portanto, na questão abordada em nosso capítulo I, sobre o que é a riqueza, e se nela devemos incluir somente produtos materiais ou todos os produtos úteis. § 2. As utilidades produzidas pelo trabalho são de três tipos. São estes: Primeiramente, utilidades fixas e incorporadas em objetos externos mediante o trabalho empregado em conferir a coisas materiais externas propriedade que as tornam úteis aos seres humanos. Esse é o caso comum, não exigindo explicações. Em segundo lugar, as utilidades fixas e incorporadas em seres humanos; nesse caso, o trabalho é empregado para conferir a seres humanos qualidades que os tornam úteis a si mesmos e a outros. A esse gênero pertence o trabalho de todos os envolvidos na educação: não somente dos diretores de escolas, “tutores” e professores, mas também dos Governos, na medida em que visam com êxito ao desenvolvimento das pessoas; dos moralistas e dos eclesiásticos, na medida em que produzem benefícios; o trabalho dos médicos, na medida em que são instrumentos de preservação da vida e da eficiência física ou mental; dos instrutores de exercícios físicos, e das várias ocupações, ciências e artes, juntamente com o trabalho dos que aprendem tais coisas; bem como todo trabalho prestado por quaisquer pessoas, ao longo de sua vida, em melhorar o conhecimento ou cultivar as faculdades corporais ou mentais próprias ou de outros. Em terceiro e último lugar, utilidades não fixas ou incorporadas em algum objeto, mas que consistem em um simples serviço prestado: um prazer dado, um inconveniente ou uma dor afastada, durante um período mais longo ou mais curto, mas sem deixar uma aquisição permanente nas qualidades melhoradas de qualquer pessoa ou coisa; nesse caso, o trabalho é empregado para produzir uma utilidade diretamente, e não (como nos dois primeiros casos) em adequar outra coisa para proporcionar uma utilidade. Tal é, por exemplo, o trabalho do músico, do ator, do declamador ou recitador público, do que apresenta um espetáculo. Sem dúvida, pode-se com isso produzir algum bem para além do momento — e muito mais ainda poderia ser produzido — sobre os sentimentos e a disposição ou estado geral de prazer dos espectadores; ou então, em vez de bem pode haver prejuízo, mas nem um nem outro é o efeito tencionado, o resultado pelo qual o artista trabalha e o espectador paga; o que se visa e o que se paga é o prazer imediato. Tal é também o trabalho do exército e da marinha; na melhor das hipóteses, impedem que o país seja conquistado ou lesado ou insultado, o que certamente é um serviço, mas sob todos os demais aspectos isso não faz o país melhor nem pior. Tal é também o trabalho do legislador, do juiz, do oficial de justiça, e de todos os outros funcionários do Governo, em suas funções normais excetuando qualquer influência que possam exercer no desenvolvimento do espírito nacional. O serviço que prestam consiste em manter a paz e a segurança; são estas que compõem a utilidade que produzem. Poderia parecer a alguns que os transportadores e os comerciantes ou negociantes devam ser colocados nessa mesma categoria, já que seu trabalho não acrescenta propriedades aos objetos; respondo, porém, que acrescenta; acrescenta a propriedade de as coisas estarem no lugar em que se deseja que estejam, em vez de estarem em algum outro local — o que constitui uma propriedade extremamente útil, e a utilidade que tal propriedade proporciona está incorporada nas próprias coisas, que efetivamente estão no local em que delas se necessita para uso, e em consequência dessa maior utilidade poderiam ser vendidas a um preço maior, proporcional ao trabalho despendido em conferir-lhes tal propriedade. Esse tipo de trabalho, portanto, não pertence à terceira classe, mas à primeira. § 3. Temos agora que estudar qual dessas três categorias de trabalho deve ser contada como produtiva de riqueza, pois é isso o que se deve entender automaticamente ao se utilizar o termo produtivo. Utilidades da terceira classe, que consistem em prazeres que só existem enquanto estão sendo desfrutados, e serviços que só existem enquanto estão sendo executados, não podem ser qualificados como riqueza, a não ser por uma evidente metáfora. É essencial, para o conceito de riqueza, que ela seja suscetível de ser acumulada; coisas que, depois de serem produzidas, não podem ser mantidas por algum tempo antes de serem utilizadas, nunca são consideradas, creio, como riqueza, já que, por mais que delas se produza e desfrute, a pessoa por elas beneficiada não é mais rica, sua situação em nada melhora. No entanto, não há uma violação tão clara e positiva do uso comum em considerar riqueza qualquer produto que seja útil e ao mesmo tempo suscetível de ser acumulado. A habilidade, a energia e a perseverança dos artesãos de um país são computadas como parte de sua riqueza, não menos que suas ferramentas e máquinas. (Algumas autoridades consideram como um elemento essencial do conceito de riqueza que esta possa não somente ser acumulada, mas também transferida; na medida em que as qualidades de valor e mesmo as capacidades produtivas de um ser humano não podem ser separadas dele e transferidas a alguma outra pessoa, negam-lhes a denominação de riqueza, recusando também a denominação de trabalho produtivo àquele que é despendido na aquisição delas. Parece-me, porém, que, sendo a habilidade de um artesão (por exemplo) uma qualificação desejável e de certa durabilidade (para não dizer até mesmo produtiva de riqueza nacional), não há razão para recusar-lhe o título de riqueza pelo fato de estar vinculada a uma pessoa, da mesma forma como não há motivo para recusar a denominação de riqueza a uma hulheira ou a uma manufatura, pelo fato de estarem condicionadas a um lugar. Além disso, se é verdade que a habilidade em si mesma não pode ser transferida a um comprador, isso pode ocorrer com o uso dela; se é verdade que ela não pode ser vendida, pode ser alugada, podendo ser também, como é de fato, vendida, pura e simplesmente, a todos os países cujas leis permitem que se venda o próprio homem juntamente com sua habilidade. Sua falta de transferibilidade não resulta de um obstáculo natural, mas de um empecilho legal e moral. O ser humano como tal (como já observei), eu não o classifico como uma riqueza. Ele é a razão em função da qual existe a riqueza. Entretanto, a mim parece que a designação de riqueza cabe corretamente às capacidades adquiridas do homem, que só existem como meios e devem sua existência ao trabalho). De acordo com essa definição, devemos considerar produtivo todo trabalho que é empregado em criar utilidades permanentes, quer incorporadas em seres humanos quer em qualquer outros objetos animados ou inanimados. Recomendei essa nomenclatura em uma publicação anterior (Essays on Some Unsettled Questions of Political Economy. Ensaio III, sobre os termos produtivo e improdutivo) como a mais condizente para os fins de classificação; e continuo a defender essa opinião. Contudo, ao aplicar o termo riqueza às capacidades industriais de seres humanos, parece haver sempre, na compreensão popular, uma referência tácita a produtos materiais. Encara-se como riqueza a habilidade de um artesão somente na medida em que é o meio para adquirir riqueza em um sentido material; quaisquer qualidades que não tendam visivelmente a esse objetivo, dificilmente são consideradas como tal. Dificilmente se diria que um país é mais rico — a não ser por uma metáfora — por mais preciosas que fossem suas posses em matéria de gênios, virtudes ou realizações de seus habitantes, a menos que estes fossem encarados como artigos comercializáveis, com os quais o país pudesse atrair a riqueza material de outros países, como fizeram os antigos gregos e várias nações modernas. Eis por que, ao mesmo tempo que, se eu quisesse construir uma nova linguagem técnica, preferiria fazer com que a distinção incidisse sobre a permanência, em vez de fazê-la incidir sobre a materialidade do produto, ao empregar termos de que o uso comum tomou posse por completo, parece recomendável empregá-los de modo a fazer o mínimo de violência possível ao uso comum; com efeito, qualquer aprimoramento na terminologia, obtido mediante a deformação da acepção corrente de uma frase popular, geralmente se paga bem caro, devido à obscuridade derivante do conflito entre associações novas e antigas. Eis por que, neste tratado, quando falar em riqueza, entenderei somente o que se denomina riqueza material, e por trabalho produtivo entenderei somente aqueles tipos de atividade que produzem utilidades incorporadas em objetos materiais. Entretanto, ao limitar-me pessoalmente a essa acepção da palavra, pretendo aproveitar a plena extensão dessa acepção restrita, e não recusarei o qualificativo de produtivo ao trabalho que não proporciona nenhum produto material como seu resultado direto, contanto que tenha como sua última consequência um aumento de produtos materiais. Assim, classifico como produtivo o trabalho despendido na aquisição de habilidade manufatureira, não em virtude da habilidade em si mesma, mas dos produtos manufaturados criados pela habilidade, e para cuja criação conduz essencialmente o trabalho de aprender a profissão. O trabalho dos oficiais de Governo em assegurar a proteção, a qual, dispensada de uma ou outra forma, é indispensável para a prosperidade da indústria, deve ser classificado como produtivo até mesmo de riqueza material, pois sem a proteção não poderia existir riqueza material, em abundância similar à que atualmente existe. Pode-se dizer que tal trabalho é produtivo indireta ou mediatamente, em oposição ao trabalho do arador e do fiador de algodão, que são produtivos de maneira imediata. Todos assemelham-se no fato de deixarem a comunidade mais rica em produtos materiais do que no estado em que a encontraram; aumentam, ou tendem a aumentar, a riqueza material. § 4. Em contrapartida, por Trabalho Improdutivo entender-se-á o que não termina na criação de riqueza material; um trabalho que, por maior que seja a intensidade e o êxito com que é praticado, não torna a comunidade — e o mundo em geral — mais rica em produtos materiais, e sim mais pobre, devido a tudo o que é consumido pelos trabalhadores enquanto nele estejam engajados. Na linguagem da Economia Política, é improdutivo todo trabalho que termina no prazer imediato, sem qualquer aumento do estoque acumulado de meios permanentes de entretenimento. Deve ser classificado como improdutivo, segundo nossa definição atual, todo trabalho que finaliza em benefício permanente, por mais importante que seja, se nesse benefício não entra como parte constituinte um aumento de produtos materiais. O trabalho de salvar a vida de um amigo não é produtivo, a menos que o amigo seja um trabalhador produtivo, e produza mais do que consome. Para uma pessoa religiosa, a salvação de uma alma tem que parecer um serviço muito mais importante que a salvação de uma vida material; todavia, nem por isso qualificará um missionário ou um eclesiástico como trabalhadores produtivos, a menos que ensinem — como fizeram em alguns casos os missionários dos mares do Sul — as artes da civilização, além das doutrinas de sua religião. Ao contrário, é evidente que quanto maior for o contingente de missionários e eclesiásticos mantidos por uma nação, tanto menos terá ela para gastar com outras coisas; ao passo que, quanto mais despender, com critério, em manter agricultores e manufatores no trabalho, tanto mais terá à disposição para todas as outras finalidades. Fazendo o primeiro, o país faz diminuir, coeteris paribus, seu estoque de produtos materiais; fazendo o segundo, fá-los aumentar. O trabalho improdutivo pode ser tão útil quanto o produtivo; pode ser mais útil, mesmo em termos de vantagem permanente; ou então, sua utilidade pode consistir apenas em sensação de prazer, a qual, uma vez passada, não deixa vestígio algum; ou então, pode não proporcionar nem sequer isso, podendo ser um desperdício sob todos os aspectos. Em qualquer hipótese, tal trabalho não enriquece nenhuma sociedade nem a humanidade como tal, mas torna-as mais pobres. Todos os produtos materiais consumidos por alguém que nada produz são no mesmo montante subtraídos, de momento, dos produtos materiais que a sociedade possuiria, em caso contrário, não fosse esse consumo. Contudo, ainda que a sociedade como tal não enriqueça mediante o trabalho improdutivo, pode enriquecer o indivíduo. Um trabalhador improdutivo pode receber por seu trabalho, daqueles que derivam prazer ou benefício dele, uma remuneração que pode para ele ser uma fonte considerável de riqueza; mas seu ganho é contrabalançado pela perda deles; estes podem ter recebido em equivalente pleno pelo gasto feito, mas com essa despesa tornaram-se mais pobres, na mesma proporção. Quando um alfaiate faz um casaco e o vende, há uma transferência do preço, do cliente para o alfaiate, e além disso um casaco que não existia até ali; mas o que um ator ganha é uma simples transferência dos fundos do espectador para os dele, não permanecendo nenhum artigo de riqueza para indenizar o espectador. Assim, a comunidade coletivamente nada ganha com o trabalho do ator; ela perde, de sua renda, toda a parte que o ator consome, ficando apenas com aquela parte que ele gasta. Uma comunidade, porém, pode aumentar sua riqueza pelo trabalho improdutivo, a expensas de outras comunidades, como pode fazê-lo um indivíduo à custa de outros indivíduos. Os ganhos dos cantores de ópera italianos, das governantas alemãs, dos dançarinos de balé franceses etc. constituem uma fonte de riqueza para seus respectivos países, na medida em que voltarem para o país, depois de terem saído dele. Os pequenos Estados da Grécia, sobretudo os mais primitivos e atrasados dentre eles, eram sementeiras de soldados, que prestavam seus serviços aos príncipes e aos sátrapas do Oriente, para executar guerras inúteis e destrutivas, e retornavam para seu país com suas economias, para passarem seus últimos anos de vida no país nativo; eram trabalhadores improdutivos, e o pagamento que recebiam, juntamente com os saques que faziam, constituía um gasto sem retorno para os países que faziam o pagamento; mas, embora para o mundo isso não representasse ganho algum, era um ganho para a Grécia. Em um período posterior, o mesmo país e as suas colônias forneceram ao Império Romano uma outra classe de aventureiros, os quais, sob o nome de filósofos ou retóricos, ensinavam à juventude das classes superiores o que então era tido na conta das realizações mais valiosas; eram sobretudo trabalhadores improdutivos, mas sua generosa recompensa era uma fonte de riqueza para seu próprio país. Em nenhum desses casos o mundo como tal ficou mais rico. Os serviços dos trabalhadores, se úteis, foram obtidos com o sacrifício, para o mundo, de uma porção de riqueza material; se inútil, tudo o que esses trabalhadores consumiram representou um desperdício para o mundo. O desperdício, porém, é uma eventualidade a que não está sujeito somente o trabalho improdutivo. Também o trabalho produtivo pode ser igualmente desperdiçado, se a parte que se gasta dele supera a parcela que conduz à produção. Se a deficiência de habilidade nos trabalhadores ou a falta de critério naqueles que os dirigem geram uma má aplicação da atividade produtiva, se um arrendatário persiste em arar com três cavalos e dois homens, quando a experiência mostrou que dois cavalos e um homem são suficientes, desperdiça-se o excedente de trabalho, embora empregado para fins de produção. No caso de se adotar um novo processo que não se demonstra melhor, ou não se revela tão bom quanto os anteriormente em uso, fica desperdiçado o trabalho gasto em efetuar a invenção e em pô-la em prática, ainda que empregado para fins produtivos. O trabalho produtivo pode tornar uma nação mais pobre, se a riqueza que produz, isto é, o aumento que ele produz no estoque de coisas úteis ou agradáveis for de um tipo não imediatamente necessitado — como acontece quando se trata de uma mercadoria que não encontra mercado, pelo fato de ser produzida em uma quantidade que ultrapassa a demanda atual; ou então, quando os especuladores constroem docas e depósitos antes de existir qualquer comércio. Afirma-se que alguns dos Estados da América do Norte, ao construírem ferrovias e canais prematuramente, cometeram tal erro, duvidando-se também, por algum tempo, se a Inglaterra, no desenvolvimento desproporcional de seus empreendimentos ferroviários, não seguiu até certo ponto esse exemplo. A redução do trabalho com vistas a um retorno distante, quando as grandes necessidades ou os recursos limitados da comunidade exigem que o retorno seja rápido, pode não somente deixar o país mais pobre momentaneamente, em virtude de tudo o que tais trabalhadores consomem, como também, afinal de contas, menos rico que estaria se tivesse, em primeiro lugar, procurado obter retornos imediatos, adiando para mais tarde os empreendimentos que prometiam lucros apenas a longo prazo. § 5. A distinção entre o Produtivo e o improdutivo é aplicável tanto ao consumo quanto ao trabalho. Nem todos os membros de uma comunidade são trabalhadores, mas todos são consumidores, e consomem ou de forma improdutiva ou de forma produtiva. Todo aquele que em nada contribui, direta ou indiretamente, para a produção, é um consumidor improdutivo. Os únicos consumidores produtivos são os trabalhadores produtivos, incluindo-se naturalmente o trabalho de direção, bem como o de execução. Todavia, nem todo consumo, mesmo de trabalhadores produtivos, é produtivo. Consumidores produtivos podem apresentar um consumo improdutivo. O que estes consomem para manter ou melhorar sua saúde, seu vigor e suas capacidades de trabalho, ou em formar outros trabalhadores produtivos para suceder-lhes, é consumo produtivo. Mas o consumo consistente em prazeres ou artigos de luxo, tanto por parte dos ociosos como por parte dos que trabalham, deve ser contado como improdutivo, já que a produção não é o objetivo de tal consumo nem é de qualquer forma adiantada por ele — excetuado, talvez, um certo quantum de divertimento que tem que ser classificado como necessidade, pois ficar aquém desse quantum não se coadunaria com a eficiência máxima do trabalho. Só é consumo produtivo o que é destinado a manter e aumentar as forças produtivas de uma comunidade — quer se trate das forças existentes em seu solo, em suas matérias-primas, no número e na eficiência de seus instrumentos de produção, quer se trate das forças produtivas existentes na população dessa comunidade. São numerosos os produtos dos quais se pode dizer que não admitem outro consumo senão o improdutivo. O consumo anual de cordões de ouro, abacaxis ou champanha deve ser considerado Improdutivo, já que tais coisas não prestam nenhuma ajuda à produção nem representam reforço algum para a vida ou o vigor a não ser o que seria igualmente proporcionado por coisas muito menos caras. Daí se poderia supor que a mão-de-obra empregada na produção dessas coisas não deveria ser considerada produtiva, na acepção em que o termo é entendido por economistas políticos. Asseguro que não tende ao enriquecimento permanente da sociedade nenhum trabalho empregado em produzir coisas para o uso de consumidores improdutivos. O alfaiate que faz um casaco para um homem que nada produz é um trabalhador produtivo; mas em algumas semanas ou meses o casaco está gasto, porque quem o usa não produziu nada para repô-lo, e nesse caso a comunidade não fica mais rica pelo trabalho do alfaiate do que se a mesma soma tivesse sido gasta para pagar um assento na ópera. Contudo, a sociedade ficou mais rica com o trabalho enquanto durou o casaco, isto é, até o momento em que a sociedade, através de um de seus membros improdutivos, optou por consumir improdutivamente o produto do trabalho. O caso do cordão de ouro ou do abacaxi não é diferente, a não ser pelo fato de estar ainda mais longe que o casaco de ter a característica de artigo necessário. Também essas coisas constituem riquezas até serem consumidas. § 6. Vemos, porém, que há uma distinção mais importante para a riqueza de uma comunidade que a própria diferença entre o trabalho produtivo e o improdutivo, isto é, a distinção entre o trabalho destinado a atender ao consumo produtivo e ao consumo improdutivo. Da produção do país, somente uma parte é destinada a ser consumida produtivamente; o restante atende ao consumo improdutivo dos produtores e ao consumo integral das classes improdutivas. Suponhamos que a percentagem da produção anual aplicada ao primeiro fim represente a metade; nesse caso, o que é empregado nas operações das quais depende a riqueza permanente do país é apenas a metade dos trabalhadores produtivos do país; a outra metade está ocupada, de ano para ano e de geração a geração, em produzir coisas que são consumidas e desaparecem sem retorno; e tudo o que essa metade consome está tão completamente perdido, no que diz respeito a qualquer efeito permanente sobre os recursos nacionais, como se fosse consumido improdutivamente. Suponhamos que essa segunda metade da população trabalhadora deixasse de trabalhar, e que o Governo ou as respectivas paróquias a mantivessem na ociosidade, durante um ano inteiro; a primeira metade seria suficiente para produzir, como havia feito antes, os artigos de necessidade para si mesma e também os destinados à segunda metade, bem como para manter no mesmo nível o estoque de materiais e implementos; sem dúvida, as classes improdutivas ou definhariam ou seriam obrigadas a produzir sua própria subsistência, e durante um ano toda a comunidade seria reduzida aos artigos puramente necessários; no entanto, as fontes de produção não seriam afetadas, e no ano seguinte não haveria uma produção necessariamente menor do que se não houvesse ocorrido tal intervalo de inatividade; ao contrário, se o caso tivesse sido inverso, isto é, se a primeira metade dos trabalhadores tivesse suspendido suas ocupações costumeiras, e a segunda tivesse continuado nas suas, ao cabo de doze meses o país estaria totalmente empobrecido. Seria um grande erro lamentar a grande percentagem de produção anual que, em um país opulento, vai para o atendimento do consumo improdutivo. Seria o mesmo que lamentar que a comunidade tenha tanto a retirar dos seus artigos de necessidade para seus prazeres e para todos os usos mais elevados. Essa parte da produção constitui o fundo com o qual se atendem todas as necessidades da comunidade, que não sejam os da mera subsistência; ela é a medida de seus meios de prazer, bem como do seu poder de atender a todas as finalidades não produtivas. Só podemos congratular-nos com o fato de se dispor de um excedente tão grande para tais finalidades, e de tal excedente ser aplicado para isso. O que se deve lamentar, e pode ser remediado, é a prodigiosa desigualdade que caracteriza a distribuição desse excedente, e o reduzido valor dos objetivos aos quais se destina a maior parte desse excedente, e a grande porção que cabe à parcela de pessoas que não prestam nenhum serviço equivalente em retorno. CAPÍTULO IV O Capital § 1. Vimos nos capítulos precedentes que, além dos requisitos primários e universais da produção — o trabalho e os agentes naturais — há um outro requisito, sem o qual não há possibilidade de operações produtivas que vá além das fases iniciais, pobres e insuficientes, da atividade primitiva: um estoque, previamente acumulado, dos produtos do trabalho anterior. Esse estoque acumulado da produção do trabalho é denominado capital. É da maior importância entender em profundidade a função do capital na produção, uma vez que toda uma série de noções errôneas que grassam em torno do nosso tema tem sua origem em uma compreensão imperfeita e confusa desse ponto. Para pessoas totalmente alheias à reflexão sobre o assunto, o capital é supostamente sinônimo de dinheiro. Expor esse equívoco equivaleria a repetir o que ficou dito no capítulo introdutório. O dinheiro não é mais sinônimo de capital do que o é de riqueza. Por si mesmo, o dinheiro não pode cumprir função alguma de capital, já que não pode prestar ajuda alguma à produção. Para cumprir tal função, tem que ser trocado por outras coisas, e tudo o que é suscetível de ser trocado por outras coisas é capaz de contribuir para a produção, no mesmo grau. O que o capital faz para a produção é proporcionar cobertura, proteção, ferramentas e materiais que o serviço requer, bem como alimentar e manter os trabalhadores durante o processo. Esses são os serviços que o trabalho presente exige do trabalho passado e do produto do trabalho passado. Todas as coisas que são destinadas para isso — destinadas a assegurar esses vários pré-requisitos ao trabalho produtivo — constituem capital. Para nos familiarizar com essa concepção, consideremos o que se faz com o capital investido em qualquer um dos setores de negócios que compõem a atividade produtiva de um país. Um manufator, por exemplo, tem uma parte de seu capital sob a forma de construções, adequadas e destinadas a levar avante seu ramo de indústria; outra parte tem a forma de máquinas; uma terceira parte consiste, se for um fiandeiro, em algodão, linho ou lã brutos; se for um tecelão, em fios de linho, lã, seda ou algodão; e assim por diante, de acordo com a natureza da indústria. Quanto ao alimento e à roupa para seus operários, na época atual não é costume o manufator fornecê-los diretamente a eles; poucos são os donos de capital, excetuados os produtores de alimentos ou de roupas, que têm alguma parte de seu capital, digna de menção, em forma de alimentos ou roupas para os trabalhadores. Em lugar disso, todo capitalista possui dinheiro, com o qual paga seus trabalhadores, possibilitando-lhes assim abastecerem-se; possui também produtos acabados em seus depósitos através de cuja venda adquire mais dinheiro a ser empregado da mesma forma, bem como para completar seu estoque de matérias-primas, reparar construções e maquinaria, e substituí-las quando estiverem gastas. Todavia, dinheiro e produtos acabados não constituem seu capital em sua totalidade, pois o manufator não os destina inteiramente a esses fins; ele emprega uma parte do dinheiro e da receita proveniente das mercadorias acabadas para atender a seu consumo pessoal e ao de sua família, contratar criados, manter caçadores e cães de caça, educar os filhos, pagar impostos ou fazer caridade. Qual é então seu capital? Precisamente aquela parte de suas posses, quaisquer que sejam, que se destina a constituir seu fundo para efetuar nova produção. Não tem nenhuma importância que uma parte disso, ou mesmo tudo, esteja em uma forma que não permite atender diretamente às necessidades dos trabalhadores. Suponhamos, por exemplo, que o capitalista seja um fabricante de ferragens, e que seu estoque, além de suas máquinas, consista, no momento, inteiramente em produtos de ferro. Com estes não é possível alimentar trabalhadores. Todavia, por meio de uma simples mudança de destinação desses produtos de ferro, pode o capitalista fazer com que os trabalhadores se alimentem. Suponhamos que com uma parte da receita desses produtos ele tencionasse anteriormente manter uma matilha de cães de caça, ou uma série de criados; e suponhamos agora que ele mude seu projeto e a empregue em seu negócio, pagando com isso salários a mais operários. Esses trabalhadores têm assim a possibilidade de comprar e consumir alimento que, de outra forma, teria sido consumido pelos cães de caça ou pelos criados; assim, sem que o empregador tenha visto ou tocado uma única partícula dos alimentos, sua conduta determinou que uma parcela maior do alimento existente no país fosse destinada ao uso de trabalhadores produtivos e, portanto, se consumisse menos alimento de forma inteiramente improdutiva. Mudemos agora a hipótese, e suponhamos que a importância em questão fosse gasta, não em alimentar criados ou cães de caça, mas na aquisição de joias e objetos de ouro e prata; suponhamos agora que a destinação dessa considerável importância deixe de ser a compra de joias e objetos de ouro e prata e passe a ser o emprego de trabalhadores produtivos, supondo também que, anteriormente, esses trabalhadores estavam apenas semiempregados e eram semialimentados, como os camponeses da Irlanda [1848]. Os trabalhadores, ao receberem seus salários, não os empregarão em comprar objetos de ouro e prata e joias, mas em comprar alimentos. Todavia, suponhamos que não há alimento adicional no país, nem há trabalhadores ou animais improdutivos, como no caso anterior, cujo alimento possa ser liberado para fins produtivos. Nesse caso, se for possível, importar-se-ão alimentos; se não houver essa possibilidade, os trabalhadores permanecerão na penúria durante uma estação. A consequência dessa mudança na demanda de mercadorias, ocasionada pela mudança nos gastos dos capitalistas, de bens improdutivos para bens produtivos, será a de que, no ano seguinte, se produzirão mais alimentos e menos objetos de ouro e prata e joias; assim sendo, novamente, sem ter tido nada a ver diretamente com o alimento dos trabalhadores, a conversão, por determinados indivíduos, de uma parte de sua propriedade — de qualquer espécie que seja — de uma destinação improdutiva para uma produtiva, teve como efeito a produção de mais alimentos para o consumo de trabalhadores produtivos. Eis por que a distinção entre o que é capital e o que não é capital não reside no tipo de mercadorias, mas na mente do capitalista, em sua vontade de empregar o capital para uma determinada finalidade, preferencialmente a uma outra; e toda propriedade, por menos adequada que seja em si mesma para o uso dos trabalhadores, é uma parte do capital, tão logo ela, ou o valor a ser recebido por ela, for posta à parte para reinvestimento produtivo. A soma de todos os valores assim destinados pelos seus respectivos proprietários compõe o capital do país. Não faz nenhuma diferença se todos esses valores estão em uma forma diretamente aplicável a usos produtivos. A forma desses valores, qualquer que possa ser, é um acidente temporário; uma vez destinados à produção, eles não deixarão de encontrar maneira de transformar-se em coisas capazes de serem aplicadas à produção. § 2. Assim como qualquer parcela da produção do país que for destinada à produção é capital, assim também, inversamente, todo o capital do país é destinado à produção. Essa segunda proposição, no entanto, deve ser entendida com algumas limitações e explicações. Um determinado fundo pode estar à procura de emprego produtivo e não encontrar nenhum que seja adequado para as inclinações de seu proprietário; nesse caso, continuamos a ter capital, mas capital não empregado. Ou então, o estoque pode consistir em mercadorias não vendidas, não suscetíveis de aplicação direta a usos produtivos e, no momento, não comercializáveis; essas mercadorias, enquanto não forem vendidas, constituem um capital não empregado. Além disso, circunstâncias artificiais ou acidentais podem fazer com que seja necessário possuir antecipadamente um estoque maior, isto é, um capital maior, antes de iniciar a produção, do que o exigido pela natureza da empresa. Suponhamos que o Governo imponha um tributo à produção em um de seus primeiros estágios, como, por exemplo, taxando a matéria-prima. O manufator tem que pagar adiantadamente o imposto antes de iniciar a manufatura, e por isso necessita ter um fundo acumulado maior do que o exigido para a produção em que opera, ou do que o que é efetivamente empregado nela. Ele tem que possuir um capital maior, para manter o mesmo contingente de mão-de-obra produtiva, ou seja (o que é a mesma coisa), com um determinado capital ele mantém menos mão-de-obra. Eis por que essa forma de cobrar impostos limita desnecessariamente a atividade no país, já que uma parte do fundo destinado pelos seus donos à produção é desviada de seu propósito e mantida em um estado constante de pagamento adiantado ao Governo. Tomemos outro exemplo: um arrendatário pode iniciar o cultivo da propriedade em uma tal época do ano, que tenha que pagar 1/4, 2/4 ou até mesmo 3/4 da renda da terra antes de obter qualquer retorno da produção. Isso, portanto, tem que ser pago do capital do arrendatário. Ora, a renda, quando paga pelo uso da terra, e não por melhorias nela feitas pelo trabalho, não constitui um gasto produtivo. Não é um gasto feito para a sustentação da mão-de-obra ou para a provisão de implementos ou matérias-primas. A renda é o preço pago pelo uso de um agente natural do qual alguém se apropriou. Sem dúvida, esse agente natural é tão indispensável quanto (e até mais do que) qualquer implemento, mas não é indispensável o ter que pagar um preço por ele. No caso do implemento (uma coisa produzida pelo trabalho), algum preço é a condição necessária para sua existência, ao passo que a terra existe naturalmente. Eis por que o pagamento do uso da terra não constitui uma das despesas da produção e a necessidade de fazer o pagamento da renda da terra com o capital faz com que seja necessário dispor-se de um capital maior, de uma prévia maior acumulação de produtos do trabalho passado do que o naturalmente necessário, ou do que seria necessário onde a terra fosse ocupada com base em um sistema diferente. Esse capital extra, ainda que seus proprietários planejem empregá-lo na produção, na realidade é empregado de forma improdutiva, sendo anualmente reposto, não com alguma produção própria, mas com a produção do trabalho mantido pelo restante do capital do arrendatário. Finalmente, as consideráveis somas de capital produtivo de um país que são empregadas em pagar os salários dos trabalhadores evidentemente não são, em sua totalidade, estrita e indispensavelmente necessárias para a produção. A parte dessas somas que ultrapassa as necessidades efetivas de subsistência e de saúde (excedente este que, no caso de trabalhadores qualificados, costuma ser considerável) não é gasta para sustentar a mão-de-obra, mas para premiá-la, e os trabalhadores poderiam esperar por essa parte de sua remuneração até se completar a produção; essa parte não precisa necessariamente preexistir como capital, e mesmo que por infelicidade os trabalhadores tivessem que abrir mão dela totalmente, poder-se-ia obter o mesmo montante de produção. Para que toda a remuneração dos trabalhadores lhes seja adiantada em pagamentos diários ou semanais, deve haver antecipadamente, em estado adequado para uso produtivo, um estoque ou capital maior do que o que seria suficiente para manter o montante atual de produção: maior, na proporção de qualquer montante de remuneração que os trabalhadores recebam além daquilo que o interesse próprio de um prudente senhor de escravos pagaria a estes. Na verdade, somente depois de já se ter acumulado um capital abundante é que pode surgir a prática de pagar adiantadamente a parte da remuneração da mão-de-obra que vai além da simples subsistência do trabalhador. Tudo o que é assim pago, na realidade não é aplicado na produção, mas no consumo improdutivo de trabalhadores produtivos; isso indica a existência de um fundo para a produção suficientemente grande para permitir que uma parte dele seja habitualmente desviada para uma simples conveniência. Como se pode notar, supus que os trabalhadores sempre são mantidos como capital e isto é obviamente um fato, embora o capital não precise necessariamente ser fornecido por uma pessoa denominada capitalista. Quando o trabalhador se mantém com fundos de sua propriedade, assim como quando um arrendatário ou um proprietário de terras vive da produção de sua terra, ou um artesão trabalha por conta própria. Todos eles são sustentados pelo capital, isto é, por fundos providos antecipadamente. O camponês não se mantém este ano com a produção da colheita deste ano, mas com a produção do ano passado. O artesão não vive dos ganhos do trabalho que executa atualmente, mas do serviço executado e vendido anteriormente. Cada qual é sustentado por um pequeno capital próprio, que periodicamente repõe a partir da produção de seu trabalho. Também o grande capitalista, de forma semelhante, mantém-se com fundos anteriormente obtidos. Se ele dirige pessoalmente suas operações, aquele tanto de seu gasto pessoal ou familiar que não excede uma justa remuneração de seu trabalho, ao preço de mercado, deve ser considerado parte de seu capital, gasta, como qualquer outro capital, para a produção; seu consumo pessoal, na medida em que consiste em artigos de subsistência, é consumo produtivo. § 3. Correndo o risco de ser cansativo, devo acrescentar mais alguns esclarecimentos para projetar uma luz ainda mais clara e mais forte sobre o conceito de capital. Como observa corretamente o Sr. Say, é da máxima utilidade concentrar-se nos elementos verdadeiramente básicos do conceito de capital, já que os maiores erros cometidos em torno do assunto são devidos à falta de completo domínio dos conceitos elementares. Aliás, isso não é de estranhar: um ramo pode estar doente e todo o resto da planta pode ser saudável, mas a falta de saúde da raiz propaga a enfermidade por toda a árvore. Vejamos, pois, se, e em que casos, se pode considerar capital a propriedade daqueles que vivem dos juros do que possuem, sem estarem pessoalmente engajados na produção. Na linguagem comum isso é denominado capital, e, no que se refere ao indivíduo, a denominação não é incorreta. Todos os fundos dos quais o proprietário aufere uma renda, renda esta que pode usar sem comprometer e dissipar o próprio fundo, equivalem para ele a capital. Entretanto, a generalização precipitada e imprudente de proposições que são verdadeiras em se tratando do indivíduo tem constituído fonte de inúmeros erros em Economia Política. No caso em questão, aquilo que, virtualmente, é capital para o indivíduo, pode ou não ser capital para a nação, conforme alguma outra pessoa tiver ou não dissipado o fundo que, por suposição, o próprio indivíduo não dissipou. Por exemplo, suponhamos que uma propriedade no valor de 10 mil libras esterlinas, pertencentes a A, seja emprestada a B, um arrendatário ou manufator, e seja empregada lucrativamente na ocupação de B. Essa propriedade é capital, tanto quanto se pertencesse a B. A é, nesse caso, realmente um arrendatário ou manufator, não pessoalmente, mas com relação à sua propriedade. Eis o caso mais simples dessa situação: um capital de valor de 10 mil libras é empregado na produção, a fim de sustentar os trabalhadores e fornecer ferramentas e materiais; esse capital pertence a A, enquanto que B dá-se ao trabalho de empregá-lo, e recebe como remuneração, por isso, a diferença entre o lucro que o capital produz e os juros que paga a A. Suponhamos agora que as 10 mil libras de A, em vez de serem emprestadas a B, sejam emprestadas sob hipoteca a C, um proprietário de terras, e este emprega o dinheiro em aprimorar as forças produtivas de sua propriedade, cercando-a, drenando-a, construindo estradas, ou adubando a terra em caráter permanente. Trata-se de um emprego produtivo do capital de A. As 10 mil libras são empatadas, mas não dissipadas. Elas proporcionam um retorno permanente: a terra passa a produzir mais, aumento este suficiente, em alguns anos — se o investimento foi racional —, para repor o montante gasto e, com o decorrer do tempo, suficiente para multiplicá-lo várias vezes. Tem-se então, aqui, o valor de 10 mil libras empregado em aumentar a produção do país. Isso constitui um capital, pelo qual C, se arrendar sua terra, recebe os lucros sob a forma nominal de renda; a hipoteca dá a A o direito de receber desses lucros, na forma de juros, a quantia anual que foi combinada. Mudaremos agora as circunstâncias, supondo que C não empregue o empréstimo, para melhorar a terra, mas para liquidar uma hipoteca anterior, ou para fazer uma doação a crianças. Se as 10 mil libras assim empregadas são ou não capital, dependerá do uso que delas fará o último recebedor do montante. Se as crianças investirem suas fortunas em um emprego produtivo, ou se o credor hipotecário, ao ser pago, emprestar a soma a outro proprietário de terra para melhorar sua propriedade, ou a um manufator para que este amplie seu negócio, continuamos a ter capital, porque o dinheiro é empregado de forma produtiva. Suponhamos, porém, que C, o senhor de terra que toma o empréstimo, seja um perdulário, que onera sua terra não para aumentar sua fortuna, mas para dissipá-la, gastando a soma em pertences pessoais e divertimentos. Em um ou dois anos, a quantia estará dissipada, sem retorno. A continua tão rico como antes; não tem mais suas 10 mil libras, mas tem um título hipotecário em mãos, que poderia ainda vender por aquela importância. Ao contrário, C empobreceu de 10 mil libras em relação à situação anterior; e ninguém ficou mais rico. Pode-se dizer que ficaram mais ricos aqueles que tiraram lucro do dinheiro enquanto este estava sendo gasto. Sem dúvida, se C o perdeu no jogo ou foi roubado por seus criados, isso é uma simples transferência de dinheiro, não uma destruição, e aqueles que ganharam a soma podem empregá-la de maneira produtiva. Mas se C recebeu em troca da referida importância o equivalente em artigos de subsistência ou de luxo que consumiu pessoalmente ou por meio de seus criados ou hóspedes, esses artigos deixaram de existir, e nada se produziu para substituí-los; se a mesma soma fosse empregada na agricultura ou na manufatura, o consumo correspondente seria perfeitamente compensado, no final do ano, por novos produtos, criados pelo trabalho daqueles que, nesse caso, teriam sido os consumidores. Por meio da prodigalidade de C, aquilo que teria sido consumido deixando um lucro, é consumido sem gerar lucro. Os comerciantes que forneceram a C podem ter auferido lucro durante o processo, mas se o capital tivesse sido gasto produtivamente, um lucro equivalente teria sido auferido também por construtores, colocadores de cercas, fabricantes de ferramentas, e pelos comerciantes que fornecem para o consumo das classes trabalhadoras; em contrapartida, C, ao expirar o prazo do empréstimo teria de volta (sem falar de um possível acréscimo) as 10 mil libras, ou seu equivalente, que agora não mais possui. Consequentemente, existe, no resultado final, uma diferença em prejuízo da comunidade de, no mínimo, 10 mil libras, que representam o montante do gasto improdutivo de C. Para A, a diferença não é importante, já que sua renda lhe está assegurada e, enquanto a garantia for boa e a taxa de juros de mercado não se alterar, ele poderá sempre vender a hipoteca por seu valor original. Por isso, para A, o título hipotecário de 10 mil libras sobre a propriedade de C constitui virtualmente um capital da mesma importância. Ocorrerá o mesmo com a comunidade? Não. A possuía um capital de 10 mil libras, mas este se extinguiu, dissipado e destruído pela prodigalidade de C. A recebe agora sua renda, não da produção de seu capital, mas de alguma outra fonte de renda que pertence a C, provavelmente da renda da terra deste, de pagamentos a ele feitos por arrendatários, ou seja, do produto do capital destes. O capital nacional diminuiu de 10 mil libras, e a renda nacional diminuiu no montante equivalente a tudo aquilo que teriam produzido aquelas 10 mil libras, se tivessem sido empregadas como capital. A perda não recai sobre o proprietário do capital destruído, já que o destruidor concordou em indenizá-lo por ele. Mas sua perda é apenas uma pequena parte da perda sofrida pela comunidade, uma vez que aquilo que foi destinado ao uso e ao consumo do proprietário foram apenas os juros. O próprio capital foi, ou teria sido, empregado na contínua manutenção de um número equivalente de trabalhadores que reproduziriam regularmente o que consumissem; dessa manutenção eles são privados, sem compensação. Alteremos ainda mais a hipótese, e suponhamos, agora, que o dinheiro seja emprestado não a um proprietário de terra, mas ao Estado. A empresta seu capital ao Governo para que este custeie uma guerra; ele compra do Estado o que se chama títulos públicos, isto é, obrigações, da parte do Governo, de lhe pagar uma determinada renda anual. Se o Governo empregasse o dinheiro em construir uma ferrovia, isso poderia constituir um emprego produtivo, e a propriedade de A continuaria a ser utilizada como capital. Mas desde que o dinheiro é empregado na guerra, isto é, no pagamento de oficiais e soldados que nada produzem, e em destruir uma grande quantidade de pólvora e projéteis, sem retorno, o Governo está na mesma situação que C, o dono de terra perdulário, e as 10 mil libras de A não passam de um capital nacional que existiu, mas já não existe mais; na verdade, esse capital foi atirado ao mar, no que tange à riqueza ou à produção, ainda que, por outras razões, o emprego desse capital possa ter sido justificável. A renda subsequente de A provém, não do produto de seu próprio capital, mas de impostos tirados do produto do capital remanescente da comunidade; em relação a esta, seu capital não oferece nenhum retorno para indenizá-la pelo pagamento do que se perdeu; o que A possui agora é um direito aos lucros produzidos pelo capital e pelo trabalho de outras pessoas. A pode vender esse direito e reaver o equivalente de seu capital, que depois pode empregar de forma produtiva. Isso é verdade, mas ele não recebe de volta seu próprio capital ou algo que este tenha produzido, pois este, juntamente com todos os seus lucros possíveis, não existe mais; o que ele recupera é o capital de alguma outra pessoa, capital este que tal pessoa está disposta a trocar pelo direito que A tem sobre os impostos. Um outro capitalista entra no lugar de A, como credor hipotecário do Estado, e A entra no lugar do outro capitalista como proprietário de um fundo empregado na produção, ou disponível para tal fim. Com essas trocas, as forças produtivas da comunidade não aumentam nem diminuem. O rombo no capital do país ocorre quando o Governo gasta o dinheiro de A, ato este pelo qual um valor de 10 mil libras esterlinas é impedido de ser aplicado produtivamente, colocado no fundo destinado ao consumo improdutivo, e destruído sem gerar um valor equivalente. CAPÍTULO V Proposições Fundamentais sobre o Capital § 1. Caso as explicações precedentes tenham cumprido seu propósito, ofereceram-nos um conhecimento razoável do conceito de capital no tocante à sua definição, bem como certa familiaridade com o mesmo em concreto, em meio à obscuridade que cerca esse conceito pela complexidade das circunstâncias individuais, assim permitindo que até mesmo o leitor pouco versado possa compreender certas proposições ou teoremas elementares com referência ao capital, teoremas cuja plena compreensão já representa um passo considerável na transição da escuridão para a claridade. A primeira dessas proposições afirma que o trabalho é limitado pelo capital. Isso é tão óbvio que, sob muitas formas, aparece na linguagem habitual como ponto pacífico. Acontece, porém, que enxergar uma verdade ocasionalmente é uma coisa e outra coisa é reconhecê-la de modo habitual, sem admitir nenhuma proposição conflitante. Até pouco tempo atrás, esse axioma era universalmente desconsiderado pelos legisladores e autores versados em política; por outro lado, continuam professando e disseminando no geral doutrinas inconciliáveis com o referido axioma. Eis algumas expressões comuns relacionadas à veracidade do mencionado axioma. O ato de orientar o trabalho dando-lhe um emprego específico é descrito como “aplicar capital” em uma ocupação. Empregar trabalho na terra é aplicar capital na terra. Empregar mão-de-obra em manufatura é investir capital na manufatura. Isso implica que a extensão de emprego do trabalho não pode ser superior ao montante do capital que se tem para investir. Uma vez entendida com clareza, essa proposição tem que ser endossada. Evidentemente, a expressão “aplicar capital” é metafórica; o que na realidade se aplica é trabalho, sendo o capital a condição indispensável para tanto. Muitas vezes também falamos de “forças produtivas do capital”. A rigor, essa expressão não é correta. As únicas forças produtivas são as do trabalho e dos agentes naturais; ou então, se de alguma porção de capital se pode, por força de expressão, dizer que tem força produtiva própria, são somente as ferramentas e as máquinas, das quais, à semelhança do vento ou da água, pode dizer-se que cooperam com a mão-de-obra. O alimento dos trabalhadores e as matérias-primas de produção não têm força produtiva, embora a mão-de-obra não possa exercer sua força produtiva sem os mesmos. Não pode haver mais atividade do que aquela para a qual existem matérias-primas a processar e alimento a consumir. Por mais evidente que isso seja se esquece muitas vezes que a população de um país é mantida e tem suas necessidades atendidas, não com a produção do trabalho atual, mas com a do trabalho passado. Ela consome o que já foi produzido, não o que ainda está para ser produzido. Ora, daquilo que já foi produzido, somente uma parte é realmente destinada à manutenção de mão-de-obra produtiva; e não haverá — nem poderá haver — mais mão-de-obra produtiva do que a porção assim destinada (que é o capital do país) puder alimentar e prover de materiais e instrumentos de produção. Não obstante, e desrespeitando um fato tão evidente, continuou-se por muito tempo acreditando que as leis e os Governos poderiam criar atividades sem criar capital. Não me refiro ao fato de tornar o povo mais laborioso, ou de aumentar a eficiência de seu trabalho, pois estes são objetivos para os quais o Governo pode, até certo ponto, contribuir indiretamente. Mas mesmo sem qualquer aumento da habilidade ou da energia dos trabalhadores, e sem fazer com que passassem a trabalhar pessoas que anteriormente se mantinham na ociosidade, acreditou-se que o Governo, sem gerar fundos adicionais, pudesse criar mais empregos. Por meio de leis de proibição o Governo sustaria a importação de certas mercadorias e, se assim conseguisse que a mercadoria fosse produzida no próprio país, gabar-se-ia de ter enriquecido o país com um novo setor de atividade; haveria de apresentar ostensivamente suas estatísticas com o montante de produção e o total de mão-de-obra empregada nessa produção; haveria de creditar tudo isso como lucro para o país, com o lucro registrado pelas leis de proibição. Embora esse tipo de aritmética política tenha caído um pouco em descrédito na Inglaterra, ainda floresce em nações da Europa continental. Se os legisladores tivessem consciência desse fato, de que a atividade é limitada pelo capital, teriam visto que, não se verificando nenhum aumento no montante de capital do país, as parcelas canalizadas (por lei) para novos setores de atividade devem ter sido retiradas de outros ramos ou impedidas de neles serem aplicadas, setores nos quais a referida parcela de capital dava, ou teria dado, emprego provavelmente a mais ou menos a mesma quantidade de mão-de-obra que o capital emprega em sua nova ocupação. (Impõe-se admitir uma exceção, quando a atividade criada ou mantida pela lei restritiva pertence à classe das assim chamadas manufaturas domésticas. Sendo estas executadas por pessoas já sustentadas — por famílias trabalhadoras, nos intervalos de outra ocupação — esse tipo de empreendimento não exige nenhuma transferência de capital para sua execução, além do valor das matérias-primas e das ferramentas, que muitas vezes é pouco considerável. Se, portanto, uma tarifa protecionista faz com que essa ocupação seja executada, quando de outra forma não o seria, nesse caso existe um aumento real da produção do país. Para tornar invulnerável a nossa proposição teórica, temos que considerar esse caso especial; mas ele não afeta a doutrina prática do livre comércio. Pela própria natureza das coisas, as manufaturas domésticas não podem exigir proteção, já que, estando a subsistência desses trabalhadores garantida por outras fontes, o preço do produto, por mais que seja reduzido, é lucro líquido em sua quase totalidade. Se, portanto, os produtores domésticos se retiram da concorrência, nunca é por necessidade, mas porque o produto não vale o trabalho que custa, na opinião dos melhores conhecedores, os que desfrutam do produto e se submetem ao respectivo trabalho. Preferem o sacrifício de comprar a roupa ao trabalho de fazê-la eles mesmos. Não prolongarão seu trabalho se a sociedade não lhes pagar por esse trabalho mais do que aquilo que, no entender deles, vale seu produto). § 2. Pelo fato de ser a atividade limitada pelo capital, não devemos concluir que seja atingido sempre esse limite. O capital pode permanecer inaplicado temporariamente, como é o caso das mercadorias não vendidas, ou dos fundos que ainda não encontraram investimento; durante esse intervalo, o capital não põe em movimento nenhuma atividade. Pode acontecer também que não se consigam tantos trabalhadores quantos o capital poderia sustentar e empregar. Sabe-se que isso tem ocorrido nas novas colônias, onde o capital por vezes tem ficado sem emprego por falta de mão-de-obra: o núcleo colonial de Swan River (atual Austrália Ocidental) exemplifica bem esse fato nos primeiros anos de sua implantação. Muitas pessoas que nada produzem, ou que produzem menos do que são capazes, são sustentadas pelo capital existente. Se os trabalhadores tivessem seus salários reduzidos, ou fossem induzidos a trabalhar mais horas pelo mesmo salário, ou se as suas famílias, já mantidas pelo capital, fossem empregadas em maior escala do que atualmente para aumentar a produção, determinado capital garantiria emprego para mais atividade. Poderia cessar o consumo improdutivo de trabalhadores produtivos, consumo que atualmente se alimenta por inteiro de capital; ou então esse consumo poderia ser adiado até entrar a produção e, com esse montante, poder-se-ia manter mais trabalhadores produtivos. Com esses meios a sociedade poderia obter de seus recursos existentes uma quantidade maior de produção; e foi a esses meios que se viu obrigada a recorrer quando a destruição repentina de grande parcela de seu capital revelou a importância momentânea de se aplicar o capital remanescente com a máxima eficiência possível. Enquanto o trabalho não atingiu o limite imposto pelo capital, o Governo pode, por vários meios (por exemplo, importando mais trabalhadores), fazer com que ela se aproxime desse limite, como, por exemplo, pela importação de cules e negros livres nas Índias Ocidentais. Há outra forma ainda pela qual o Governo pode criar mais trabalho. Pode criar capital. Pode impor tributos e empregar o montante de maneira produtiva. Pode fazer também o que é mais ou menos equivalente: pode impor tributos sobre a renda ou sobre os gastos e aplicar o montante recolhido na liquidação das dívidas públicas. O detentor do fundo, depois do resgate, continuaria desejando uma renda própria, sendo que a maior parte dela, consequentemente, encontraria seu caminho para o emprego produtivo, enquanto uma grande parte dela teria sido retirada do fundo para gastos improdutivos, já que as pessoas não pagam seus impostos totalmente com o que teriam economizado, mas em parte, quando não principalmente, com o que teriam gasto. Pode-se acrescentar que todo aumento da força produtiva do capital (ou, com mais propriedade, da mão-de-obra), mediante aperfeiçoamentos profissionais ou outras formas, leva a um aumento de emprego de mão-de-obra, uma vez que, havendo uma produção maior no conjunto, sempre existe a probabilidade de alguma parcela do aumento ser economizada e convertida em capital, especialmente quando os maiores retornos para a atividade produtiva geram uma tentação adicional para a conversão de fundos de uma destinação improdutiva para uma produtiva. § 3. Se, por um lado, o trabalho é limitado pelo capital, por outro lado, todo aumento de capital dá mais emprego ao trabalho ou pelo menos é capaz de dá-lo, e isso ocorre sem limites determináveis. Não pretendo negar que o capital, ou parte dele, possa ser empregado de maneira a não manter trabalhadores, fixando-se em máquinas, construções, melhorias da terra e similares. Em todo grande aumento de capital, uma parcela considerável no geral assim se emprega e apenas coopera com os trabalhadores sem mantê-los. O que tenciono afirmar é que a porção destinada à manutenção dos trabalhadores pode ser aumentada indefinidamente (supondo que não haja alteração em nenhum outro fator) sem criar uma impossibilidade de encontrar-se emprego para eles; em outros termos, havendo seres humanos aptos para o trabalho, e alimento para nutri-los, os mesmos sempre podem ser empregados na produção de alguma coisa. Essa proposição exige certo aprofundamento, por ser do tipo ao qual é fácil assentir quando em termos gerais, porém difícil de sustentar em meio à multidão e confusão dos fatos da sociedade. Além disso, ela contraria muitíssimo as doutrinas comuns. Não existe entre os homens uma opinião mais difundida do que esta: que os gastos improdutivos dos ricos são necessários para dar emprego aos pobres. Antes de Adam Smith, essa doutrina dificilmente era questionada, e mesmo a partir de Smith, autores de maior renome e grande mérito (Por exemplo, o Sr. Malthus, o Dr. Chalmers, o Sr. de Sismondi) sustentavam ainda que, se os consumidores economizassem e convertessem mais do que uma porção limitada de sua renda em capital e não destinassem ao consumo improdutivo uma soma de recursos correspondente a uma taxa tão elevada em relação ao capital do país, a acumulação extra não ultrapassaria o desperdício, já que não haveria mercado para os bens produzidos pelo capital assim criado. Entendo que este é um dos muitos erros que têm surgido na Economia Política pela prática de não se partir de um exame de casos simples, caindo-se de imediato na complexidade dos fenômenos concretos. Qualquer pessoa entende que, se um Governo benévolo possuísse todos os alimentos, todos os implementos e todos os materiais da comunidade, poderia exigir trabalho produtivo de todos os que têm capacidade para isso, permitindo-lhes uma participação nos alimentos, e não haveria risco algum de faltar campo para empregar-se essa mão de obra produtiva, já que, enquanto houvesse uma única necessidade não atendida plenamente (que pudesse ser atendida com objetos materiais) de qualquer indivíduo, o trabalho da comunidade poderia ser convertido para a produção de alguma coisa capaz de satisfazer tal necessidade. Os proprietários individuais de capital, quando o aumentam com novas acumulações, estão fazendo exatamente a mesma coisa que supostamente seria feita por um Governo benevolente. Já que é permitido colocar qualquer caso a título de hipótese, imaginemos o mais extremo concebível. Suponhamos que todo capitalista viesse a pensar que, por não ter méritos maiores do que um trabalhador bem-comportado, não deve passar melhor do que ele, e que, consequentemente, por motivos de consciência, guardasse o excedente de seus lucros; ou, então, suponhamos que essa abstenção não fosse espontânea, mas imposta pela lei ou pela opinião pública a todos os capitalistas, bem como a todos os proprietários de terra. O gasto improdutivo encontra-se agora reduzido ao seu valor mais baixo, surgindo assim esta pergunta: de que maneira esse capital maior encontrará emprego? Quem comprará os bens que esse capital produzirá? Não há mais clientes, mesmo para aqueles bens que eram produzidos anteriormente. Consequentemente (assim se afirma), esses produtos não conseguirão ser vendidos, mas perecerão nos depósitos; isso sucederá até que o capital seja reduzido ao montante original, ou melhor, a um montante tanto menor quanto mais tiver diminuído a procura por parte dos consumidores. Acontece, porém, que dizer isso é ver apenas a metade do todo. No caso em hipótese já não haveria procura de artigos de luxo, da parte dos capitalistas e dos proprietários de terra. Mas quando essas classes convertem sua renda em capital, com isso não aniquilam seu poder de consumo; apenas o transferem deles próprios para os trabalhadores aos quais dão emprego. Ora, há duas suposições possíveis com referência aos trabalhadores: ou há aumento de seu número proporcionalmente ao aumento de capital ou não há. Havendo tal aumento, o caso não oferece dificuldade. A produção de artigos de primeira necessidade para a nova população toma o lugar da produção de artigos de luxo destinados a uma parte da população antiga e garante o montante exato de empregos perdidos. Suponhamos, porém, que não haja nenhum aumento da população. O total do que antes era gasto em artigos de luxo (pelos capitalistas e proprietários de terras) é distribuído entre os trabalhadores existentes sob a forma de salários adicionais. Suponhamos que eles já estejam suficientemente providos de artigos de primeira necessidade. Que segue disso? Que os trabalhadores tornar-se-ão consumidores de artigos de luxo, e que o capital anteriormente empregado na produção de tais artigos continuará capaz de ser empregado da mesma forma: a diferença está em que os artigos de luxo são partilhados pela comunidade em geral, em vez de reservados a poucos. A rigor, o aumento por acumulação e pela produção poderia prosseguir até que cada trabalhador obtivesse todos os privilégios da riqueza conciliáveis com a condição de continuidade do trabalho, suposto que a força de seu trabalho fosse fisicamente suficiente para a produção de todo esse montante de artigos de conforto para todo o contingente de trabalhadores. Assim sendo, o limite da riqueza nunca se estabelece pela ausência de consumidores, mas pela falta de produtores ou de força produtiva. Todo aumento de capital fornece à mão de obra um emprego ou uma remuneração adicional; ele enriquece o país, ou enriquece a classe trabalhadora. Encontrando mãos adicionais para o trabalho, o aumento de capital aumenta a produção total; se, porém, o contingente de trabalhadores for o mesmo, garantir-lhe-á uma participação maior na produção; mesmo nesse caso, talvez pelo fato de mais estimulá-los para o trabalho, aumente a própria produção. § 4. Um segundo teorema fundamental com referência ao capital diz respeito à fonte da qual ele deriva. O capital resulta de economias. A evidência desse fato ressalta em grande parte o que já foi dito sobre o assunto. No entanto, essa proposição exige esclarecimentos adicionais. Se todos gastassem em satisfações pessoais tudo que produzem e toda a renda recebida fosse produzida por terceiros, o capital não poderia aumentar. Todo capital, com raras exceções, resulta originalmente de uma poupança. Digo com raras exceções, pois quem trabalha por conta própria pode gastar por conta própria tudo que produz sem tornar-se indigente; não se pode dizer que a provisão de artigos de primeira necessidade, artigos com os quais subsiste até fazer sua colheita ou vender sua mercadoria, embora um capital real, constitua uma poupança, de vez que totalmente utilizada para o atendimento de suas necessidades, quiçá com a mesma rapidez que se fosse consumida na ociosidade. Imaginemos certo número de indivíduos ou de famílias estabelecidas em igual número de lotes individuais de terra, vivendo cada qual do que produz com trabalho próprio e consumindo o total de sua produção. Mesmo estes têm que poupar (isto é, poupar reduzindo o seu consumo pessoal) o quanto é necessário para a semeadura. Deve ter havido, pois, alguma poupança, mesmo nesse estágio mais simples de todos os tipos de relações econômicas; as pessoas devem ter produzido mais do que usaram, ou seja, utilizado menos do que produziram. Devem fazê-lo mais ainda antes de terem condições de dar emprego a outros trabalhadores ou de aumentar sua produção além da obtida com suas próprias mãos. Todos os meios que alguém emprega para manter e executar outro trabalho que não o próprio devem provir originariamente de poupança; houve necessariamente alguém que produzisse e se abstivesse de consumir. Podemos, pois, dizer, sem incidir em qualquer inexatidão material, que todo capital, particularmente o acréscimo de capital, é resultado de poupança. No estágio primitivo e violento da sociedade, continuamente acontece que alguém, que tenha capital, não seja o mesmo que o economizou, mas alguém que, por ser mais forte ou por pertencer a uma comunidade mais poderosa, apossou-se dele pelo saque. E mesmo numa situação que contasse com a proteção da propriedade, o aumento de capital normalmente proviria por muito tempo de privações que, embora essencialmente equivalentes à poupança, não costumam ser assim chamadas, por não serem voluntárias. Os atuais produtores já foram escravos obrigados a produzir quanto a força conseguia extorquir-lhes e a consumir tão pouco quanto o interesse próprio ou o normalmente escasso senso humanitário de seus senhores o permitisse. Esse tipo de poupança compulsória, porém, não teria gerado nenhum aumento de capital se uma parte desse montante não fosse poupada de novo e voluntariamente pelo senhor. Se ele consumisse tudo que os seus escravos produziram e se abstiveram de consumir e o fizesse na qualidade de satisfações pessoais, não teria aumentado o seu capital, nem teria sido capaz de manter um número crescente de escravos. A simples manutenção de escravos implicava a necessidade de poupar: pelo menos um estoque de alimentos, acumulado antecipadamente. No entanto, essa poupança pode não provir de alguma privação auto imposta pelo senhor; provavelmente foi conseguida a partir da privação dos próprios escravos, enquanto estes eram livres; vítimas de rapina ou da guerra e privados de sua liberdade pessoal, eles acabaram transferindo também a sua acumulação de capital ao conquistador. Há outros casos também em que o termo poupança (incluindo tudo que normalmente se associa ao mesmo) não designa apropriadamente a operação pela qual o aumento de capital ocorre. Se, por exemplo, disséssemos que o único meio de acelerar o aumento de capital é o de aumentar a poupança, provavelmente sugeriríamos o conceito de maior abstenção e de maior privação. Mas é óbvio que tudo que aumenta a força produtiva do trabalho cria um fundo adicional do qual se pode fazer poupança, criando a possibilidade de se aumentar o capital, não somente sem privação adicional, mas até simultaneamente com um aumento do consumo pessoal. Não obstante, existe, aqui, um aumento de poupança no sentido científico da palavra. Embora o consumo seja maior, maior também é o que sobra para poupar. O aumento de produção é maior que o aumento de consumo. É, pois, correto falar aqui de uma poupança maior. Embora o termo se preste a objeções, não existe nenhum outro que não esteja sujeito a objeções igualmente fortes. Consumir menos do que se produz é poupar, e este é o processo mediante o qual se aumenta o capital, não sendo necessário, para isso, que se consuma menos em termos absolutos. Não devemos permitir que as palavras nos escravizem a tal ponto, que não possamos usar o termo poupança nessa acepção; se isso não fizermos, incorreremos no perigo de esquecer que, para aumentar o capital, existe outro meio, além do de consumir menos: produzir mais. § 5. Um terceiro teorema fundamental no tocante ao capital e intimamente ligado com o que acabamos de apresentar, é que o capital, embora poupado e constituindo o resultado de poupança, é assim mesmo consumido. A palavra poupar não implica que o que se poupa não seja consumido, nem mesmo implica necessariamente que o consumo seja adiado; implica apenas que, se consumido imediatamente, não o seja pelo autor da poupança. Se a poupança for simplesmente guardada para ser usada no futuro, diz-se que é acumulada; enquanto acumulada, não é consumida. Se, porém, a poupança for empregada como capital, será totalmente consumida, ainda que não pelo próprio dono do capital. Parte dela é trocada por ferramentas ou máquinas que se desgastam pelo uso; parte dela é trocada por sementes ou matérias-primas que são destruídas, como tais, ao serem semeadas ou processadas, ou destruídas totalmente pelo consumo do produto acabado. O restante é pago em forma de salários aos trabalhadores produtivos, que os consomem para suas necessidades diárias; se estes chegam a economizar alguma parte desse capital, esta, no geral, não é acumulada, mas (por meio de bancos de poupança, de clubes beneficentes ou de outro meio) reempregada como capital, e novamente consumida. O princípio que acabamos de enunciar é um forte exemplo da necessidade de atenção às verdades mais elementares sobre a matéria em pauta, pois este é um dos mais elementares de todos os princípios; no entanto, ninguém que não se tenha ocupado com o assunto costuma ter consciência dele, e a maioria nem sequer se dispõe a admitir sua validade. Para o vulgo, não é de forma alguma evidente que o poupado seja consumido. Para ele, toda pessoa que economiza é vista como uma pessoa que entesoura. O vulgo pode pensar que tal conduta seja permissível ou mesmo digna de elogio, quando se trata de garantir as necessidades de uma família, ou de obter coisas desse gênero, mas não consegue entender que a poupança possa ser benéfica para outras pessoas. Para o vulgo, poupar é sinônimo de guardar coisas para si mesmo, ao passo que gastar é, para ele, sinônimo de distribuí-lo a terceiros. Quem gasta sua fortuna em consumo improdutivo é considerado uma pessoa que espalha benefícios ao redor de si, e tal pessoa é alvo de tanta consideração que parte dessa popularidade se estende até mesmo a quem gasta o que não lhe pertence, a quem, portanto, não só destrói seu próprio capital (se tiver algum) ou que, na condição de tomador de empréstimo, com a promessa de restituição, encontra-se de posse de um capital de terceiros, o qual destrói também. Esse erro popular provém do fato de só se atentar para uma pequena parte das consequências decorrentes do poupar ou do gastar, e de se perder de vista o conjunto dos efeitos desses dois atos, fora do campo de considerações do objeto. Os olhos acompanham o poupado até uma caixa forte imaginária, de onde o perde de vista; o que é gasto, os olhos veem e seguem até as mãos dos comerciantes e dos dependentes, mas sem a destinação última, seja do que foi poupado, seja do que foi gasto. A poupança (para investimento produtivo) e o gasto coincidem praticamente no primeiro estágio de suas operações. Os efeitos de ambos começam com o consumo, com a destruição de determinada parte da riqueza; diferentes são apenas as coisas consumidas e as pessoas que as consomem. No caso da poupança existe um desgaste de ferramentas, uma destruição de matérias-primas e o fornecimento de certa quantidade de alimentos e roupas aos trabalhadores, que estes destroem pelo uso; no caso do gasto, há um consumo, isto é, uma destruição de bebidas, pertences e mobiliário. Até aqui, a consequência para a riqueza nacional revela-se mais ou menos a mesma: nos dois casos destrói-se uma quantidade equivalente dessa riqueza. Entretanto, no consumo, esse primeiro estágio é também o final: o montante específico de produto do trabalho desaparece, e nada mais resta dele; pelo contrário, a pessoa que economizou durante todo o período em que se prolongou a destruição, esta teve trabalhadores em ação, repondo o que foi destruído, e ao final se verifica que esses trabalhadores repuseram, com acréscimo, o equivalente ao que foi consumido. E já que essa operação pode repetir-se indefinidamente sem qualquer novo ato de poupança, a poupança, uma vez feita, transforma-se em fundo para a manutenção de um número correspondente de trabalhadores perpétuos, os quais reproduzem anualmente sua própria manutenção, com lucro. É a intervenção do dinheiro que obscurece, para uma pessoa não familiarizada com o assunto, a verdadeira natureza desses fenômenos. Já que quase todo gasto é feito com dinheiro, acaba-se vendo no dinheiro o principal aspecto da transação; uma vez que este não perece e só muda de mão, as pessoas esquecem a destruição que ocorre no caso do gasto improdutivo. Pelo fato de o dinheiro ser apenas transferido de uma pessoa para outra, pensa-se também que a riqueza apenas passou do perdulário para outra pessoa. Ora, isso não é senão confundir o dinheiro com a riqueza. A riqueza destruída não foi o dinheiro; foram as bebidas, os pertences e o mobiliário comprados com o dinheiro; já que esses artigos foram destruídos sem gerar retorno algum, a sociedade empobreceu coletivamente no montante respectivo. Pode-se talvez alegar que as bebidas, os pertences e o mobiliário não constituem gêneros de subsistência, nem ferramentas nem matérias-primas, e que, em caso algum, poderiam ter sido aplicados para a manutenção da mão de obra; que tais bens não se prestam a nenhum outro fim a não ser para o consumo improdutivo; e que, portanto, o prejuízo para a riqueza da comunidade ocorreu quando esses bens foram produzidos, não quando foram consumidos. Estou disposto a admitir a objeção, na medida em que a discussão o exige; e a observação seria pertinente se esses artigos de luxo dispendiosos proviessem de um estoque existente, sem exigência de reposição. Já que, ao contrário, tais artigos continuam sendo produzidos enquanto existam consumidores para eles, e os mesmos são produzidos em quantidade crescente, para atender à demanda crescente, a opção feita por um consumidor, de gastar 5 mil libras esterlinas por ano em artigos de luxo, por exemplo, faz com que um número correspondente de trabalhadores seja empregado, de um ano para o outro, para produzir coisas que não têm nenhuma utilidade para a produção, pois a serventia desses artigos se perde no concernente ao aumento da riqueza nacional e, sob esse aspecto, as ferramentas, as matérias-primas e os alimentos anualmente consumidos por tais trabalhadores são subtraídos do estoque geral da comunidade, o qual é aplicável a fins produtivos. Na proporção em que uma classe for imprevidente ou dada ao luxo, a atividade do país orienta-se para a produção de artigos de luxo utilizados por essa classe; com isso não diminui somente o emprego para trabalhadores produtivos; diminuem também a subsistência e os instrumentos, meios para que tal emprego passe a existir efetivamente em menor quantidade. Em suma, a poupança enriquece a comunidade, juntamente com o indivíduo, ao passo que o gasto a empobrece; em outras palavras, seria o mesmo dizer que a sociedade, no geral, se torna mais rica mediante o que gasta colaborando na manutenção do trabalho produtivo, porém se torna mais pobre pelo que consome em seus prazeres e divertimentos. (Vale a pena voltar a atenção para várias circunstâncias que até certo ponto diminuem o prejuízo causado à riqueza geral pela prodigalidade de particulares, ou seja, que criam uma compensação maior ou menor, como consequência do prejuízo em si mesmo. Uma delas é que os perdulários geralmente não conseguem consumir tudo o que gastam. Sua despreocupação habitual no que tange aos gastos faz com que sejam enganados e roubados em todos os setores, muitas vezes por pessoas de hábitos moderados. Os agentes, administradores e mesmo os criados domésticos de pessoas abastadas e imprevidentes continuamente acumulam grandes somas, pagando por todas as compras preços muito mais altos do que as pessoas modestas, devendo-se a isso sua fama de bons clientes. Portanto, não têm efetivamente condições de ter em sua posse nem de destruir uma quantidade de riqueza de modo algum equivalente à fortuna que dissipam. Grande parte dela é simplesmente transferida a outros, os quais podem poupar uma parte. Outra coisa a ser observada é que a prodigalidade de alguns pode reduzir outros a uma economia forçada. Suponhamos uma demanda repentina de algum artigo de luxo, gerada pelo capricho de um pródigo, sendo que pelo fato de não se contar de antemão com esse aumento de demanda, não houve nenhum aumento da oferta costumeira. O preço aumentará, podendo elevar-se além dos recursos ou da inclinação de alguns dos consumidores habituais que, em consequência, podem deixar de atender a esse gosto habitual e assim poupar a respectiva quantia. Se não o fizerem, mas continuarem a gastar como antes um valor tão alto com a mercadoria, os que comercializam tal artigo obtêm, apenas pela mesma quantidade da mercadoria, um retorno maior, equivalente ao total do que o perdulário pagou: assim sendo, o montante que este perde é transferido integralmente a eles, podendo ser acrescentado ao capital deles: o aumento do consumo pessoal do perdulário é compensado pelas privações dos outros compradores, que obtiveram menos do que de costume de sua gratificação habitual pelo mesmo equivalente. Por outro lado, um processo contrário deve ocorrer em alguma parte, já que o pródigo deve ter diminuído suas compras em algum outro setor para contrabalançar o aumento neste: talvez tenha recorrido a fundos empregados em sustentar mão-de-obra produtiva, e os comerciantes de gêneros alimentícios e de instrumentos de produção ficaram com mercadorias acumuladas em seus estoques ou então receberam, pelo montante habitual de mercadorias, um retorno inferior ao costumeiro. Mas tais perdas de renda ou de capital por parte de pessoas laboriosas — exceção feita quando se trata de um montante extraordinário — geralmente são compensadas com maior penúria e privação, de sorte que, no global, o capital da comunidade pode não ser prejudicado, e o pródigo pode ter tido sua autossatisfação a expensas não dos recursos permanentes, mas dos prazeres e confortos temporários de outros. Com efeito, em todo caso a comunidade fica mais pobre com aquilo que alguém gasta, a menos que outros em consequência sejam levados a reduzir seus gastos. Existem ainda outros meios — e mais complicados — pelos quais a abastança de alguns pode encontrar sua compensação na economia extra de outros; estes, porém, só podem ser considerados na parte do Livro Quarto que trata do princípio limitador da acumulação de capital). § 6. Voltemos ao nosso teorema fundamental. Tudo que é produzido é consumido, tanto o que é poupado como o que se diz ter sido gasto; aliás, tanto o que é poupado quanto o que é gasto, gasta-se mais ou menos com a mesma rapidez. Todas as maneiras correntes de falar tendem a dissimular ou ocultar esse fato. Quando as pessoas falam da antiga riqueza de um país, de riquezas herdadas de antepassados, elas usam expressões similares. A ideia sugerida é a de que as riquezas assim transmitidas foram produzidas e adquiridas há muito tempo; que no presente ano não se produziu nenhuma parcela extra de capital do país a não ser o acréscimo natural do ano com referência ao montante do total existente. A realidade é, porém, bem outra. A maior parte do valor da riqueza atualmente existente na Inglaterra foi produzida por mãos humanas dentro dos últimos doze meses. Na verdade, apenas uma parte mínima dessa grande riqueza existia há dez anos — do capital produtivo atual do país pouco havia além de sedes de herdades e manufaturas, alguns navios e máquinas; e mesmo estes, na maioria dos casos, não teriam sobrevivido por tanto tempo se não houvesse o emprego de trabalho novo, no período, para repará-los. Resta a terra; esta é praticamente a única coisa que subsiste. Tudo que é produzido perece e a maioria perece mui rapidamente. Parte preponderante dos tipos de capital não se presta, por natureza, a uma preservação duradoura. Apenas poucos são os produtos capazes de existência prolongada. A catedral de Westminster perdura há muitos anos com reparos ocasionais; algumas esculturas gregas existem há mais de dois mil anos, e as Pirâmides talvez acusem uma existência duas ou três vezes maior. Trata-se, porém, de objetos destinados ao uso improdutivo. Se construirmos pontes e aquedutos (e em alguns países acrescentamos os reservatórios e barragens), poucos são os exemplos de edifícios com fins produtivos que tenham apresentado longa vida; tais construções não resistem ao desgaste, nem é econômico construí-las com a solidez que seria necessária para que durem. Conserva-se existente o capital, de uma época para outra, não por preservação, mas por meio de uma constante reprodução; cada porção do mesmo é usada e destruída, geralmente logo após sua produção, mas os que o consomem são, nesse meio tempo, empregados em produzir mais capital. O aumento de capital assemelha-se ao aumento da população. Todo indivíduo que nasce, morre, mas o número de nascidos supera o dos falecidos; por isso, a população aumenta sempre, ainda que, há pouco tempo, não vivesse nenhuma das pessoas que compõem a população atual. § 7. Esse perpétuo consumo e reprodução do capital exigem que se explique o que tanto tem causado admiração, isto é, a grande rapidez com a qual os países se recuperam de um estado de devastação, o desaparecimento, em pouco tempo, de todos os vestígios dos danos causados pelos terremotos, inundações, furacões e pela guerra. O inimigo deixa um país deserto seja pelo fogo, seja pela espada, destruindo ou levando embora praticamente toda a riqueza móvel existente; todos os habitantes veem-se arruinados; no entanto, dentro de poucos anos, quase tudo volta ao que era antes. Este poder curativo da natureza tem sido objeto de simples admiração, ou é citado como exemplo do poder maravilhoso do princípio da poupança, capaz de reparar perdas tão grandes em prazo tão reduzido. No caso, não existe absolutamente maravilha alguma. O que foi destruído pelo inimigo teria sido destruído em pouco tempo pelos próprios habitantes do país; a riqueza que eles reproduzem com tanta rapidez, necessariamente teria que ser reproduzida e seria efetivamente reproduzida em qualquer hipótese, provavelmente com a mesma rapidez. Nada muda, exceto que, durante a reprodução, agora os habitantes não contam com a vantagem de consumir o que havia sido produzido anteriormente. A possibilidade de uma recuperação rápida dos desastres do país depende sobretudo do fato de o país ter sido despovoado ou não. Se a população efetiva do país não foi extirpada na época e não morreu de fome posteriormente, nesse caso, com a mesma habilidade e conhecimento de antes, com a posse de sua terra, e a não destruição das melhorias existentes, com as construções de caráter mais durável provavelmente não prejudicadas, ou apenas parcialmente afetadas, possui a população quase todos os requisitos para atingir seu montante anterior de produção. Se aos habitantes restou tanto de alimento, ou de coisas de valor em troca, a ponto de, não obstante certo grau de privação, os mesmos conseguirem subsistir e manter-se em condições de trabalhar, em pouco tempo atingirão uma produção tão grande quanto a de antes e adquirirão uma riqueza e capital coletivos tão grandes quanto anteriormente — isto, simplesmente continuando a exercer o grau de atividade que estão acostumados a empregar em suas ocupações. Aliás, isso não demonstra nenhuma força inerente ao princípio de poupança (no sentido popular do termo), já que o que ocorre não é abstenção intencional, mas privação involuntária. Contudo, é tão fatal o hábito de raciocinar com base em apenas uma série única de frases técnicas, e tão pouca razão têm os estudiosos de se vangloriarem de sua isenção com referência exatamente aos mesmos vícios de pensamento que vitimam o vulgo, que essa simples explicação nunca foi dada por nenhum autor de Economia Política (quanto se saiba) anterior ao Dr. Chalmers — autor que, embora emitisse, a meu ver, muitas opiniões errôneas, sempre teve o mérito de estudar os fenômenos primários e de expressá-los em linguagem própria, o que muitas vezes revela aspectos da verdade que as formas de dizer correntes apenas procuram ocultar. § 8. Com essa forma de raciocinar, o referido autor ainda chega a outras conclusões importantes sobre um outro item intimamente relacionado com o mesmo objeto: o dos empréstimos governamentais para fins de guerra ou para outros gastos improdutivos. Esses empréstimos, por serem provenientes de um capital (em vez de retirados dos impostos geralmente pagos pela renda, repostos, em parte ou totalmente, pelo crescimento econômico), necessariamente tendem a empobrecer o país, segundo os princípios já apresentados; no entanto, nos anos em que os gastos desse tipo atingiram o ponto máximo, muitas vezes foram anos de grande prosperidade aparente: a riqueza e os recursos do país, em vez de diminuírem, revelaram todos os sinais de um rápido aumento durante o processo, e sinais de grande expansão depois de encerrado o processo. Esse foi reconhecidamente o caso da Grã-Bretanha durante a última e longa guerra continental; levar-nos-ia um tanto longe enumerar todas as teorias infundadas de Economia Política às quais esse fato deu origem, teorias às quais tal fato conferiu uma credibilidade provisória, no momento em que praticamente todas essas teorias tendiam a enaltecer o gasto improdutivo, a expensas do gasto produtivo. Sem pretender entrar no exame de todas as causas que, no caso, operaram ou costumam operar, impedindo que essas sangrias extraordinárias nos recursos produtivos do país fossem tão sentidas quanto se poderia esperar, suponhamos o caso mais desfavorável possível: que o empréstimo total contraído e destruído pelo Governo fosse sacado pelo fornecedor do empréstimo de um emprego produtivo no qual estivesse no momento investido. Nessa hipótese, consequentemente, o capital do país diminuiria em igual montante no referido ano. No entanto, a menos que o montante de capital retirado fosse algo de enorme, não haveria razão alguma, pela natureza do caso, para que no ano seguinte o capital nacional não voltasse novamente ao nível de sempre. O empréstimo não pode provir daquela porção de capital que, no país, consiste em ferramentas, máquinas e construções. Deve provir totalmente da parte de capital que é empregada para pagar os trabalhadores, e, consequentemente, estes sofrerão. Contudo, não chegando nenhum deles a morrer de fome e se os seus salários puderem suportar a redução, ou se entre eles e a indigência absoluta colocar-se a caridade, não haverá razão alguma para que o trabalho deles produza menos no ano próximo do que no ano anterior. Se produzirem o de costume e tiverem recebido uma remuneração inferior de vários milhões de libras esterlinas, esses milhões são ganhos pelos seus empregados. Com isso, o rombo ocorrido no capital do país é de imediato reparado, mas reparado pelas privações da classe trabalhadora, muitas vezes pela miséria desta. Temos aqui razões em abundância para explicar por que esses períodos, mesmo em circunstâncias mais desfavoráveis, podem ser tempos de grandes ganhos para indivíduos cuja prosperidade costuma passar por prosperidade nacional, na estima da sociedade. (Por outro lado, cumpre lembrar que a guerra priva de emprego produtivo não somente o capital, mas também os trabalhadores; que os fundos desviados da remuneração de trabalhadores produtivos são, em parte, destinados a pagar os mesmos ou outros indivíduos empregados em trabalho improdutivo; que sob esse aspecto de seus efeitos, os gastos de guerra atuam de maneira precisamente oposta à assinalada pelo Dr. Chalmers, neutralizando diretamente dessa maneira os efeitos descritos no texto. Na medida em que trabalhadores são tirados da produção, para preencherem postos no Exército e na Marinha, a classe trabalhadora não é prejudicada, os donos de capital não são beneficiados e a produção geral do país diminui por causa dos gastos de guerra. Eis por que a doutrina do Dr. Chalmers, embora verdadeira em relação a esse país, é totalmente inaplicável a países em situação diferente: à França, por exemplo, durante as Guerras Napoleônicas. Durante esse período, a sangria sofrida pelos trabalhadores da França durante uma série de anos foi enorme, enquanto os fundos de custeio da guerra eram, na maior parte dos casos, fornecidos por contribuições cobradas das regiões invadidas pelas forças francesas e apenas uma porção mínima desses recursos provinha do capital francês. Na França, portanto, os salários da mão-de-obra não caíram, mas aumentaram; os empregadores de mão-de-obra não foram beneficiados, mas prejudicados; por outro lado, a riqueza do país foi prejudicada pela suspensão ou perda total de um montante tão grande de sua mão-de-obra produtiva. Na Inglaterra deu-se o inverso. Esse país empregou comparativamente poucos soldados e marujos de reserva próprios do país, enquanto desviou centenas de milhões de capital produtivo, para fornecimento de material bélico e sustento dos exércitos de seus aliados do Continente. Em consequência, como se vê no texto, seus trabalhadores sofreram, seus capitalistas prosperaram e seus recursos produtivos permanentes não acusaram queda). Isso nos leva à questão controvertida para a qual o Dr. Chalmers adverte mui especialmente, a saber, se é melhor levantar os fundos exigidos por um Governo para um gasto improdutivo e extraordinário; se este levantamento deve ser feito por meio de empréstimo, com juros só cobertos por impostos, ou se é melhor impor diretamente o tributo para cobrir o montante integral da dívida — o que, no vocabulário financeiro, se entende por levantar o montante total de recursos no exercício. Dr. Chalmers pende fortemente para o segundo método. Segundo ele, a ideia geral é a de que, ao levantar-se a soma integral em um ano, ou se exige o que é impossível, ou se acarretam muitos inconvenientes; a população não pode, sem grande sacrifício, pagar o total de uma vez, tirando-o de sua renda anual; portanto, seria muito melhor exigir dela um pequeno pagamento por ano, sob a forma de juros, do que exigir-lhe um sacrifício tão grande, feito de uma só vez. A isso ele responde que o sacrifício se faz da mesma forma em ambos os casos. Tudo o que se gasta só pode ser tirado da renda anual. O total da riqueza produzida no país e cada parte dela formam ou ajudam a formar a renda anual de uma pessoa. A privação que supostamente deve resultar no caso de levantar-se o montante na forma de impostos não se evita se ela for levantada em forma de empréstimo. Não se evita o problema. Ele é apenas transferido para as classes trabalhadoras, para os menos capazes de suportá-lo, para aqueles aos quais menos caberia arcar com esse peso, sem falar nos inconvenientes físicos, morais e políticos, decorrentes do fato de se manterem impostos para o pagamento perpétuo dos juros que constituem pura perda. Toda vez que se retira capital da produção ou do fundo destinado à produção, para emprestar ao Estado, e esse capital for gasto improdutivamente, toda essa soma é subtraída das classes trabalhadoras; consequentemente, o empréstimo em sua totalidade é, na verdade, amortizado no mesmo ano; faz-se efetivamente todo o sacrifício necessário para amortizar o empréstimo; só que ele é pago às pessoas erradas, e portanto não extingue a exigência; além disso, ele é pago mediante o pior dos impostos, do imposto que recai exclusivamente sobre a classe trabalhadora. E depois de o país passar dessa maneira extremamente dolorosa e injusta por todo o esforço necessário à amortização da dívida, continua onerado pelo pagamento de seus juros em caráter perpétuo. Esses pontos de vista me parecem estritamente corretos, na medida em que o valor absorvido em empréstimos teria sido, do contrário, empregado em atividade produtiva dentro do país. Contudo, é raro o aspecto prático do caso corresponder exatamente a essa hipótese. Os empréstimos dos países menos ricos são obtidos sobretudo junto ao capital estrangeiro, que talvez não fosse introduzido no país sob forma de investimento menos garantido que o governamental; por sua vez, os contraídos de países ricos e prósperos não costumam ser feitos com fundos tirados de um setor produtivo, mas com as novas acumulações constantemente poupadas da renda, por vezes com parte destas, as quais, se não tomadas, teriam migrado para as colônias ou procurado outro tipo de investimento no exterior. Nesses casos (que serão examinados mais especificamente abaixo), a soma de que se precisa pode ser obtida por empréstimo, sem prejuízo para os trabalhadores e sem perturbação da atividade nacional, talvez mesmo com vantagem para os dois, em comparação com a arrecadação da importância por tributação, já que os impostos, especialmente quando pesados, quase sempre correm, em parte, por conta daquilo que, de outra forma, teria sido poupado e acrescido ao capital do país. Além disso, em um país que anualmente consegue aumentar sua riqueza tanto que permite que uma parte possa ser retirada e gasta improdutivamente (sem diminuir o capital ou mesmo impedir um aumento considerável deste), é evidente que, mesmo se convertendo em capital o empréstimo tomado e empregado no país, o efeito sobre as classes trabalhadoras seria muito menos prejudicial, e as razões contra o sistema de empréstimo seriam menos fortes do que na primeira hipótese. Essa breve antecipação de uma discussão que encontrará alhures seu lugar adequado, pareceu necessária para impedir deduções falsas das premissas até aqui enunciadas. § 9. Passemos agora para um quarto teorema fundamental com referência ao capital, teorema que talvez seja olvidado ou mal-entendido com frequência maior ainda do que qualquer um dos anteriores. O que mantém e dá emprego à mão-de-obra produtiva é o capital gasto para pô-la a trabalhar, e não a procura dos compradores em relação ao produto do trabalho, quando encerrado. Demanda de mercadorias não é a mesma coisa que demanda de mão-de-obra. A demanda de mercadorias determina em que setor específico de produção se empregará a mão-de-obra e o capital; ela determina em que direção será aplicada a mão-de-obra, mas não o quantum — maior ou menor — da mão-de-obra em si mesma, ou da manutenção ou do pagamento da mão-de-obra. Estes últimos dependem do montante de capital, ou de outros fundos diretamente destinados à manutenção e à remuneração de mão-de-obra. Suponhamos, por exemplo, que há demanda de veludo — um fundo pronto para ser aplicado na compra de veludo — mas que não haja capital para instalar a manufatura. Não tem importância alguma qual seja a amplitude da demanda; a menos que se consiga atrair capital para essa ocupação, não se produzirá veludo, e consequentemente não se comprará veludo, a menos, sem dúvida, que o desejo do pretenso comprador seja tão forte que ele mesmo empregue parte do preço que teria pago pelo produto em adiantamentos a trabalhadores para que estes se ocupem em manufaturar veludo, ou seja, a menos que o comprador converta parte de sua renda em capital e invista esse capital na manufatura de veludo. Invertamos agora a hipótese, supondo que há bastante capital pronto para manufaturar veludo, mas não haja demanda. Não se produzirá veludo, mas também não há nenhuma preferência específica, por parte do capital, para produzir veludo. Os manufatores e seus trabalhadores não produzem para dar prazer a seus clientes, mas para atenderem às suas próprias necessidades; e, possuindo ainda o capital e mão-de-obra que são os elementos essenciais da produção, podem produzir alguma outra coisa que é objeto de procura ou, então, se não houver nenhuma outra demanda, eles mesmos têm uma demanda e podem produzir as coisas de que necessitam para seu próprio consumo. Assim, o emprego assegurado à mão-de-obra não depende dos compradores, mas do capital. Evidentemente, não estou levando em conta os efeitos de uma mudança repentina. Se a demanda cessa inesperadamente, depois de já estar produzida a mercadoria para atendê-la, isso introduz um elemento diferente na questão: o capital foi efetivamente consumido para produzir algo que ninguém necessita ou usa e, por isso, pereceu, e o emprego que ele deu à mão-de-obra terminou — não porque não exista mais demanda, mas porque não há mais capital. Esse caso, portanto, não põe em risco o princípio. O teste adequado consiste em supor que a mudança seja gradual e prevista e não seja seguida de desperdício de capital pelo fato de a manufatura ser interrompida simplesmente por não se substituírem as máquinas à medida que elas se desgastam, e não se reinvestir o dinheiro à medida que este entra da venda da produção. O capital está assim pronto para uma nova aplicação, na qual manterá tanta mão-de-obra quanto anteriormente. O manufator e seus operários perdem o benefício da habilidade e do conhecimento que haviam adquirido na atividade específica e que só parcialmente lhes podem ser de utilidade em alguma outra atividade; este é o montante de perda que a comunidade sofre com essa mudança. Mas os trabalhadores podem continuar a trabalhar, e o capital que anteriormente lhes dava emprego estará nas mesmas mãos ou emprestado a outros, para ser aplicado nesses mesmos trabalhadores ou a um número equivalente deles, em alguma outra ocupação. Esse teorema, pelo qual comprar o produto não significa empregar mão-de-obra, pelo qual a demanda de mão-de-obra é constituída pelos salários que precedem à produção, e não pela demanda que possa existir em relação à mercadoria resultante da produção, constitui uma proposição que necessita de todo esclarecimento possível. Para o entendimento comum, a proposição representa um paradoxo; e mesmo entre autores de Economia Política de reputação, dificilmente posso apontar algum, excetuados os Srs. Ricardo e Say, que a tenha tido em mente de modo constante e firme. Quase todos os demais ocasionalmente se exprimem como se uma pessoa que compra mercadorias, produto do trabalho, fosse um empregador de mão-de-obra e criasse uma demanda de mão-de-obra tão real e do mesmo sentido quanto se ele contratasse diretamente mão-de-obra, mediante o pagamento de salários. Não há como estranhar que a Economia Política avance com lentidão se uma questão como esta ainda permanece aberta em seus elementos mais elementares. Entendo que, se por demanda de mão-de-obra se compreende a demanda que faz os salários subirem, ou faz aumentar o número de trabalhadores empregados, a demanda de mercadorias não constitui demanda de mão-de-obra. Entendo que uma pessoa que compra mercadorias e as consome não beneficia em nada as classes trabalhadoras, e que é somente por meio daquilo que deixa de consumir e que gasta em forma de pagamentos diretos a trabalhadores em troca de trabalho que ela beneficia as classes trabalhadoras, ou seja, acrescenta algo ao montante de empregos. Para melhor ilustrar o princípio, suponhamos o caso seguinte. Um consumidor pode gastar sua renda na compra de serviços ou na compra de mercadorias. Ele pode empregar parte de sua renda em contratar pedreiros para construir uma casa, escavadores para fazer lagos artificiais, trabalhadores para cultivar plantações e instalar áreas de lazer; ou, então, em vez disso, pode gastar a mesma importância comprando veludo e rendas. A questão é saber se a diferença entre esses dois modos de gastar seus rendimentos afeta o interesse das classes trabalhadoras. É manifesto que no primeiro caso tal consumidor emprega trabalhadores que, caso contrário, estariam sem emprego ou ao menos não teriam esse emprego. Ora, aqueles de quem discordo dizem que isso não tem importância, pois ao comprar veludo e rendas, ele emprega igualmente trabalhadores, isto é, os que manufaturam o veludo e as rendas. Afirmo, porém, que neste último caso ele não dá emprego a trabalhadores, mas simplesmente decide em que outro tipo de trabalho alguma pessoa os empregará. O consumidor não paga com seus próprios fundos os salários diários dos tecelões e dos que fazem as rendas. Ele compra a mercadoria acabada que foi produzida por mão-de-obra e por capital, sendo que nem a mão-de-obra é paga por ele nem o capital é por ele fornecido, mas pelo manufator. Suponhamos que o consumidor tivesse o hábito de gastar essa parte de sua renda em contratar pedreiros diaristas, que gastassem o montante de seus salários em alimentos e roupas, também estes produzidos com mão-de-obra e capital. Não obstante, ele resolve dar prioridade ao veludo, para o qual cria assim uma demanda extra. Essa demanda não pode ser atendida sem um fornecimento extra, nem esse fornecimento extra pode ser conseguido sem um capital extra: donde, então, virá o capital? Nada há, na mudança de finalidade da parte do consumidor, que torne o capital do país maior do que de outra forma era. Evidencia-se, então, que o aumento de demanda de veludo não poderia de momento ser atendido, se a própria circunstância que lhe deu origem não tivesse liberado um capital no montante exato exigido. A própria soma que o consumidor agora aplica em veludos, anteriormente passara para as mãos de pedreiros diaristas, que a gastavam em alimentos e artigos de primeira necessidade — artigos estes que eles agora dispensam ou então arrebatam, pela sua concorrência, de outros trabalhadores. Eis por que a mão-de-obra e o capital, que anteriormente produziam artigos de primeira necessidade para o uso desses pedreiros, são privados de seu mercado, devendo procurar outro emprego; e o encontram na manufatura de veludo para atender à nova demanda. Não pretendo afirmar que exatamente a mesma mão-de-obra e o mesmo capital que produziam os artigos de primeira necessidade se voltem para a produção de veludo; o que quero dizer é que, de uma ou de outra de cem modalidades possíveis, eles tomam o lugar daquelas que o fazem. Existia capital para uma das duas coisas — para fazer veludos, ou então para produzir artigos de primeira necessidade para os pedreiros diaristas; mas não existia capital para as duas coisas. Cabia à opção de o consumidor determinar qual das duas coisas ocorreria; e se ele escolher o veludo, os pedreiros diaristas ficarão sem os artigos de primeira necessidade. Para maior ilustração, suponhamos o mesmo caso invertido. O consumidor está habituado a comprar veludo, mas decide parar com esse gasto e empregar a mesma importância anual em contratar pedreiros. Se a opinião corrente fosse correta, essa mudança na forma de seu gasto não daria nenhum emprego adicional à mão-de-obra, senão que apenas transferiria emprego de manufatores de veludo para pedreiros. Todavia, à luz de uma análise mais atenta, ver-se-á que ocorre um aumento da importância total aplicada à remuneração de mão-de-obra. O manufator de veludo, supondo-se que tome consciência da diminuição da demanda de sua mercadoria, diminui a produção, liberando uma parcela correspondente do capital empregado nessa manufatura. Esse capital, retirado assim da manutenção de manufatores de veludo, não é o mesmo fundo que aquele que o consumidor emprega para manter pedreiros, senão que representa um segundo fundo. Há, pois, dois fundos a serem empregados na manutenção e na remuneração de mão-de-obra, ao passo que antes só havia um. Não há uma transferência de emprego de manufatores de veludo para pedreiros; o que há é um novo emprego criado para pedreiros, além disso uma transferência de emprego de manufatores de veludo para alguns outros trabalhadores, mais provavelmente para aqueles que produzem o alimento e outros artigos consumidos pelos pedreiros. Em resposta a isso alega-se que, embora o dinheiro empregado em comprar veludo não seja capital, ele repõe um capital; que, embora não crie uma demanda de mão-de-obra, é um meio necessário para possibilitar que a demanda existente se mantenha. Os fundos (pode-se dizer) do manufator, enquanto estiverem imobilizados na produção do veludo, não podem ser diretamente aplicados na manutenção de mão-de-obra; só começam a constituir uma demanda de mão-de-obra quando o veludo for vendido, e quando o capital que o produzir for reposto pelo gasto do comprador; e, portanto — poder-se-á dizer — o manufator de veludo e o comprador de veludo não têm entre si dois capitais, mas somente um, o qual, pelo ato da compra, o comprador transfere para o manufator, e se, em vez de comprar veludo, ele pagar mão-de-obra, simplesmente transfere esse capital para outra coisa, suprimindo tanta demanda de mão-de-obra em um setor quanto a que cria em outro. Não nego as premissas dessa argumentação. Liberar um capital que de outra forma ficaria amarrado em uma forma inútil para a manutenção de mão-de-obra é sem dúvida a mesma coisa, para os interesses dos trabalhadores, que a criação de um novo capital. É perfeitamente verdade que, se gasto 1 000 libras esterlinas na compra de veludo, possibilito ao manufator empregar 1 000 libras na manutenção de mão-de-obra, soma esta que não poderia ter sido empregada assim enquanto o veludo não fosse vendido; e se esse veludo tivesse permanecido para sempre no estoque, sem ser vendido, a não ser que eu o comprasse nesse caso, mudando eu o meu propósito e, em lugar disso, contratando pedreiros, sem dúvida não crio nenhuma nova demanda de mão-de-obra; com efeito, enquanto por um lado emprego 1 000 libras para contratar mão-de-obra, por outro lado aniquilo para sempre 1 000 libras do capital do manufator de veludo. Mas isso equivale a confundir os efeitos da mera repentinidade de uma mudança com os efeitos da mudança propriamente dita. Se, quando o comprador deixasse de comprar, perecesse necessariamente o capital empregado em manufaturar veludo para seu uso, nesse caso o fato de gastar ele a mesma importância em contratar pedreiros não representaria nenhuma criação de emprego, mas simplesmente uma transferência de emprego. O aumento de emprego que afirmo surgir para a mão-de-obra não ocorreria a não ser que o capital do manufator de veludo pudesse ser liberado, e não ocorreria antes de ser ele efetivamente liberado. Mas cada um sabe que o capital investido em um emprego pode ser dele retirado, se houver tempo suficiente. Se o manufator de veludo teve conhecimento prévio, pelo fato de não receber a encomenda usual, terá produzido 1 000 libras a menos de veludo, e com isso já estará liberada uma porção equivalente de seu capital. Se não teve conhecimento prévio e, consequentemente, o artigo permanece estocado em seus depósitos, o aumento de seu estoque o levará, no ano seguinte, a suspender ou a diminuir sua produção até vender o excedente. Quando esse processo estiver completo, o manufator estará tão rico quanto anteriormente, sem diminuição de seu poder de empregar mão-de-obra em geral, embora uma parte de seu capital seja agora empregada na manutenção de algum outro tipo de mão-de-obra. Enquanto esse ajuste não for feito, a demanda de mão-de-obra será simplesmente alterada, não aumentada; mas tão logo estiver feito esse ajuste, a demanda de mão-de-obra aumentará. Onde antes havia apenas um capital, empregado em manter tecelões para fazer veludo no valor de 1 000 libras esterlinas, existe agora esse mesmo capital empregado em fazer algo diferente, além disso 1 000 libras distribuídas entre pedreiros. Existem agora dois capitais empregados em remunerar dois contingentes de trabalhadores, ao passo que antes, um desses dois capitais, o do consumidor, servia apenas como uma roda na máquina, roda esta por meio da qual o outro capital, o do manufator, dava continuidade a seu emprego de mão-de-obra, de ano para ano. A proposição que defendo equivale, na realidade, à seguinte, que para alguns parece ser um truísmo, ao passo que para outros é um paradoxo: uma pessoa beneficia a classe trabalhadora, não comprando o que ele mesmo consome, mas somente pelo que deixa de consumir dessa forma. Se, em vez de gastar 100 libras com vinho ou seda, eu os gasto em salários, a demanda de mercadorias é precisamente igual nos dois casos: no primeiro, é uma demanda de vinho ou seda no valor de 100 libras; no segundo, é uma demanda, do mesmo valor, de pão, cerveja, roupa para trabalhadores, combustível e satisfações pessoais; todavia, no segundo caso distribui-se aos trabalhadores da comunidade o valor de 100 libras a mais da produção da comunidade. Consumi 100 libras a menos dessa produção, passando meu poder de consumo aos trabalhadores. Se assim não fosse, o fato de eu ter consumido menos não faria com que outros pudessem consumir mais, o que seria uma contradição evidente. Quando a produção não diminuir, o que uma pessoa deixa de consumir necessariamente será adicionado à porção daqueles a quem ela transfere seu poder de compra. No caso suposto, eu não consumo necessariamente menos em última análise, já que os trabalhadores que pago podem construir uma casa para mim ou fazer alguma outra coisa para meu consumo futuro. Mas em qualquer hipótese adiei meu consumo e transferi aos trabalhadores parte de minha porção na produção atual da comunidade. Se depois de certo tempo eu for indenizado por isso, não é da produção existente que sairá essa indenização, mas de um acréscimo adicional a ela feito. Por isso, deixei uma porção maior da produção existente para ser consumida por outros e dei aos trabalhadores o poder de consumir essa porção. Não pode haver uma melhor reductio ad absurdum da doutrina oposta do que a fornecida pela Lei dos Pobres. Se for igual o benefício para as classes trabalhadoras, consumir eu meus recursos sob a forma de coisas compradas para meu próprio uso ou separar uma parte dos mesmos na forma de salários ou esmola para o consumo direto dos trabalhadores, com que fundamento se pode justificar a política do Governo de tirar-me dinheiro para manter os indigentes — se o meu gasto improdutivo os teria beneficiado no mesmo grau, com a vantagem de também eu ter desfrutado dele? Se for possível à sociedade comer seu bolo e ao mesmo tempo continuar a possuí-lo, por que não lhe permitir as duas coisas? Ora, o bom senso ensina a cada um, em seu próprio caso (embora a pessoa não o enxergue em escala maior), que a taxa para os pobres, paga por ele, é realmente subtraída de seu próprio consumo e que não há transferência de pagamentos que consiga fazer com que duas pessoas comam o mesmo alimento. Se não se tivesse exigido da pessoa o pagamento da taxa para os pobres, e esta tivesse consequentemente gasto a quantia consigo mesma, os pobres teriam tido participação tanto menor na produção total do país quanto mais a própria pessoa tivesse consumido. (O seguinte caso, que apresenta o argumento de forma um tanto diferente, serve de ilustração suplementar. Suponhamos que um indivíduo rico, A, gaste diariamente certa quantia em salários ou esmolas, os quais, logo que recebidos, são gastos e consumidos, em forma de alimento comum, pelos que os recebem. Falece A, deixando sua propriedade a B, que, por sua vez, suspende essa forma de gasto, e, em lugar dela, despende diariamente a mesma quantia em comidas finas, em sua própria mesa. Escolhi essa hipótese para que os dois casos sejam similares sob todos os aspectos, exceto do ponto de vista do objeto da comparação. A fim de não obscurecer os fatos essenciais do caso mediante apresentação confusa de uma transação financeira, suponhamos ainda que A, e depois dele B, sejam senhores de propriedade fundiária na qual são produzidos o alimento consumido pelos beneficiários de A, bem como os artigos de luxo fornecidos para a mesa de B; suponhamos também que o aluguel lhes seja pago em espécie e que eles comuniquem previamente sobre a lista dos produtos exigidos. A questão é esta: se o dispêndio de B fornece tanto emprego ou tanto alimento a seus próximos mais pobres quanto fornecia o dispêndio de A. Do caso acima apresentado parece seguir que, enquanto A vivia, a parte da renda dele que ele gastava em salários ou esmolas seria tirada por ele da propriedade sob forma de alimento para trabalhadores e usada como tal; quanto a B, que veio depois dele, exigiria, em lugar disso, um valor equivalente em itens caros de alimentação, itens a consumir em sua própria casa, e que, portanto, o arrendatário, sob o regime de B, produziria aquele tanto a menos (de alimento comum) e aquele tanto a mais (de alimentos caros) para cada dia do ano em relação ao que era produzido no tempo de A, e que, durante o ano, aquele tanto de alimento comum (produzido a menos) deixaria de ser distribuído entre as classes trabalhadoras mais pobres. Seria isso que se deduziria dos princípios estabelecidos. Por outro lado, os que pensam de modo diferente devem supor que os artigos de luxo exigidos por B seriam produzidos, não em lugar do alimento anteriormente fornecido aos trabalhadores de A, mas em acréscimo ao mesmo, e que a produção total do país aumentaria em quantidade. Mas quando se pergunta como haveria de ocorrer essa dupla produção — ou seja, de que maneira o arrendatário, cujo capital e mão-de-obra já estavam totalmente empregados, seria capaz de atender às novas necessidades de B, sem produzir quantidade menor de outras coisas —, a única modalidade que se apresentaria seria esta: ele produziria primeiro o alimento, e depois daria este aos trabalhadores anteriormente alimentados por A, para, através do trabalho deles, produzir os artigos de luxo necessitados por B. Esta parece ser realmente a interpretação dos objetantes, quando se sentem pressionados. Mas é resposta óbvia que, nessa hipótese, B deve esperar por seus artigos de luxo até por dois anos, enquanto necessita no mesmo ano. De acordo com a hipótese original, ele consome seu jantar de luxo diariamente, no mesmo ritmo que as rações de pão e batatas antes servidas por A a seus trabalhadores. Não há tempo para alimentar primeiro os trabalhadores e em seguida fornecer os artigos de luxo a B; não é possível atender às necessidades simultâneas de B e dos trabalhadores de A; B só pode atender à sua própria demanda de mercadorias deixando de atender ao montante das necessidades dos trabalhadores, que era anteriormente atendido por esse fundo. Sem dúvida, poder-se-ia objetar o seguinte: já que, nessa base de raciocínio, o tempo é a única coisa que falta para conciliar o gasto de B com um montante tão grande de emprego de mão-de-obra (quanto o garantido por A), por que não supor que B adie seu maior consumo de artigos de luxo pessoais até que estes lhe possam ser fornecidos pelo trabalho das pessoas que A empregava? Nesse caso, poder-se-ia dizer que B empregaria e alimentaria tanta mão-de-obra quanto seus predecessores. Sem dúvida isso é verdade, mas por quê? Porque sua renda seria gasta exatamente da mesma forma que a de seu predecessor. Seria gasta em salários. A reservou, de seu consumo pessoal, um fundo que pagava diretamente aos trabalhadores; B faz o mesmo; somente que, em vez de pagar-lhes ele mesmo, deixa-o nas mãos do arrendatário, que o paga aos trabalhadores em seu lugar. Nesse caso, B, no primeiro ano, por não gastar a soma, no que lhe diz respeito, nem do modo pelo qual a gastava A nem de seu próprio modo, economiza realmente essa parte de sua renda e a empresta ao arrendatário. E se, em anos subsequentes, limitando-se dentro de sua renda anual, ele deixa o arrendatário em atraso quanto àquela soma, ela se transforma em um capital adicional, com o qual o arrendatário pode empregar e alimentar permanentemente os trabalhadores de A. Ninguém pretende que uma mudança como esta, uma mudança que consiste em gastar uma renda em salários de mão-de-obra para economizá-la para investimento, priva de emprego um trabalhador. O que se afirma ter esse efeito é a mudança que consiste em contratar trabalhadores para comprar mercadorias para uso pessoal, como descrito pela nossa hipótese original. Em nossa ilustração, supusemos não haver compra e venda, nem uso de dinheiro. O caso, como o colocamos, corresponde à realidade efetiva em tudo, exceto nos detalhes do mecanismo. Em seu conjunto, qualquer país equivale virtualmente a uma propriedade fundiária ou manufatura individual da qual cada membro da comunidade tira sua quota de produção de direito, passando a possuir um certo número de moedas, denominadas libras esterlinas, dinheiro que, conforme sua conveniência, ele recebe e troca pelas mercadorias que prefere, até o limite da soma possuída. Ele não noticia antecipadamente (como em nosso caso imaginaria) o que precisa; os comerciantes e os produtores são perfeitamente capazes de descobri-lo à primeira vista, e qualquer mudança ocorrida na demanda é prontamente seguida de uma adaptação no atendimento dessa demanda. Se o consumidor que costumava pagar parte de sua renda em salários, passa a gastá-la naquele mesmo dia (e não no dia subsequente ou depois) em coisas para o próprio consumo, e persevera nessa nova prática até a produção ter tempo de adaptar-se à mudança da demanda, a partir desse momento haverá no país uma produção menor de alimentos e de outros artigos para uso dos trabalhadores, equivalendo a diminuição desses produtos exatamente ao valor dos artigos de luxo extra agora em demanda; os trabalhadores, como classe, sofrerão um prejuízo equivalente a esse montante). Portanto, é óbvio que uma demanda adiada até se completar o serviço e que não fornece nenhum adiantamento, mas somente reembolsa adiantamentos feitos por outros, em nada contribui para a demanda de mão-de-obra, e que aquilo que é assim gasto não passa de zero, em todos os seus efeitos no que concerne ao emprego da classe trabalhadora; não cria e não pode criar nenhum emprego, a não ser a expensas de outro emprego já existente. Todavia, embora uma demanda de veludo não faça outra coisa, no tocante ao emprego de mão-de-obra e de capital, que determinar que tanto do emprego já existente seja canalizado para aquele setor específico, em vez de ser canalizado para qualquer outro, para os produtores já empenhados na manufatura de veludo e que não tencionam abandoná-la, isso é da máxima importância. Para eles, uma queda da demanda constitui uma perda real — perda que, mesmo que nenhuma de suas mercadorias ao final ficasse sem venda, pode equivaler a qualquer montante, até o ponto suficiente para fazê-los optar, como mal melhor, por abandonar o negócio. Ao contrário, um aumento de demanda lhes possibilita ampliar suas transações — auferir lucro de um capital maior, se dele dispõem ou se podem tomá-lo emprestado; e, pelo fato de poderem fazer girar seu capital com maior rapidez, poderão empregar seus trabalhadores com mais constância ou empregar um número superior ao de antes. Assim sendo, um aumento de demanda de mercadoria muitas vezes faz com que realmente, no setor específico, o mesmo capital possa dar emprego a um maior contingente de mão-de-obra. O erro está em não perceber que, nos casos supostos, a mão-de-obra e o capital se beneficiam dessa vantagem em um único setor, pelo fato de serem retirados de outro; e que, quando a mudança produziu seu efeito natural de atrair para o respectivo emprego capital adicional em proporção ao aumento da demanda, essa vantagem deixa de existir. Os fundamentos de uma proposição, quando bem entendidos, costumam dar uma indicação suficiente das limitações da mesma. O princípio geral que acabamos de enunciar é o de que a demanda de mercadorias determina simplesmente a direção da mão-de-obra e o tipo de riqueza produzida, mas não a quantidade ou a eficiência da mão-de-obra ou o conjunto da riqueza. Este princípio comporta, porém, duas exceções. Primeiro, quando se mantém mão-de-obra, mas esta não está plenamente ocupada, uma nova demanda de algo que ela pode produzir pode estimular a mão-de-obra assim mantida a aumentar seu desempenho, podendo resultar daí um aumento de riqueza para vantagem dos próprios trabalhadores e de outros. O serviço que pode ser feito nas horas vagas de pessoas que se mantêm com alguma outra fonte pode (como já observei) ser feito sem retirar capital de outra ocupação, além do montante (frequentemente muito pequeno) exigido para cobrir o gasto com ferramentas e matérias-primas, e mesmo isso muitas vezes será feito com economias feitas expressamente para essa finalidade. Faltando, no caso, a razão que dá sustentação ao teorema, perde validade o próprio teorema e, consequentemente, pode, no caso, surgir emprego desse tipo, em virtude do aumento de demanda da mercadoria, sem que isso gere um montante equivalente de desemprego em qualquer outro setor. Mesmo nesse caso, a demanda não afeta a mão-de-obra de outra forma a não ser por um capital existente, mas ela cria um estímulo, o qual faz com que esse capital movimente um contingente de mão-de-obra maior do que antes. A segunda exceção, da qual falarei em detalhe em um capítulo subsequente, consiste no conhecido efeito de uma ampliação do mercado para um determinado produto, possibilitando um maior desenvolvimento da divisão do trabalho, e, portanto, uma distribuição mais efetiva das forças produtivas da sociedade. Esta, como a primeira, é uma exceção mais aparente do que real. Não é o dinheiro pago pelo comprador que remunera a mão-de-obra, mas é o capital do produtor que o faz: a demanda apenas determina de que maneira esse capital será empregado e que tipo de trabalho o capital há de remunerar; mas, se a demanda determina que a mercadoria seja produzida em grande escala, possibilita ao mesmo capital produzir quantidade maior de mercadoria, e pode, por um efeito indireto em gerar um aumento de capital, produzir um eventual aumento da remuneração do trabalhador. A demanda de mercadorias é uma consideração de importância, mais para a teoria da troca do que para a teoria da produção. Visualizando as coisas em seu conjunto e de maneira permanente, a remuneração do produtor deriva da força produtiva de seu próprio capital. A venda da produção a dinheiro e o subsequente gasto do dinheiro para comprar outras mercadorias constituem uma simples troca de valores equivalentes para comodidade mútua. É verdade que, por ser a divisão de ocupações um dos meios principais para aumentar a força produtiva da mão-de-obra, o poder de troca gera um grande aumento da produção; mas mesmo então, é a produção, e não a troca, que remunera a mão-de-obra e o capital. Não podemos, em sentido excessivamente rigoroso, imaginar a operação de troca, seja ela feita por escambo ou por dinheiro, como sendo o mero mecanismo pelo qual cada pessoa transforma a remuneração de seu trabalho ou de seu capital na forma específica em que mais lhe convém possuí-la, mas de forma alguma podemos representar a troca como sendo a fonte da remuneração como tal. § 10. Os princípios precedentes demonstram a falácia de muitos argumentos e doutrinas populares que continuamente se reproduzem em novas formas. Por exemplo, tem-se afirmado, aliás por parte de alguns autores de quem se teria podido esperar coisas melhores, ser um erro o argumento a favor do imposto de renda, baseado no fato de recair este somente sobre as classes superiores e médias, poupando os pobres; alguns têm chegado a afirmar uma impostura, dizendo que, pelo fato de tirar dos ricos o que estes teriam gasto entre os pobres, o imposto prejudica os pobres tanto quanto se tivesse sido diretamente cobrado deles. A essa altura, sabemos o que pensar dessa doutrina. Sem dúvida, na medida em que aquilo que se tira dos ricos em impostos, caso não tivesse sido tirado, teria sido economizado e convertido em capital ou mesmo gasto na manutenção e em salários para criados ou para qualquer categoria de trabalhadores improdutivos, nessa medida, sem dúvida, a demanda de mão-de-obra é reduzida, e os pobres são prejudicados, pelo imposto incidente sobre os ricos; e já que esses efeitos são quase sempre produzidos, em grau maior ou menor, é impossível taxar os ricos de tal modo que nenhuma parcela do imposto possa recair sobre os pobres. Mas mesmo aqui surge a questão: o Governo, após receber a importância, não investirá porventura na compra direta de trabalho uma parcela tão grande quanto teriam feito os pagadores de impostos? Com respeito a toda aquela parte do imposto que, caso não fosse paga ao Governo, teria sido consumida na forma de mercadorias (ou mesmo gasta em serviços se o pagamento tivesse sido adiantado por um capitalista), essa parte, segundo os princípios que investigamos, recai certamente sobre os ricos, e de forma alguma sobre os pobres. No que concerne a essa parcela, depois do imposto existe exatamente a mesma demanda de mão-de-obra que antes dele. O capital até agora aplicado em empregar os trabalhadores do país permanece sendo ainda capaz de dar emprego ao mesmo número. É idêntico o montante de produção pago em forma de salários, ou seja, destinado a pagar a alimentação e a roupa dos trabalhadores. Se estivessem certos aqueles aos quais aqui me oponho, seria impossível taxar pessoas a não ser os pobres. Se taxar o que é investido no produto do trabalho equivale a taxar os trabalhadores, as classes trabalhadoras pagam todos os impostos. Todavia, o mesmo argumento prova igualmente ser de todo impossível taxar os trabalhadores, já que o imposto, sendo aplicado em trabalho ou em mercadorias, volta totalmente para eles, de maneira que a tributação tem a propriedade singular de não recair sobre ninguém. A crer nisso, não se prejudicaria em nada os trabalhadores tirando-lhes tudo o que têm, e distribuindo suas posses entre os demais membros da comunidade. Tudo seria “gasto entre eles”, o que nessa teoria vem a dar no mesmo. O erro provém de não se encarar diretamente as realidades dos fenômenos, atendendo-se exclusivamente ao mecanismo externo de pagar e gastar. Se atentarmos para os efeitos produzidos, não sobre o dinheiro — que apenas muda de mãos — mas sobre as mercadorias que são usadas e consumidas, veremos que, em consequência do imposto sobre a renda, as classes que o pagam realmente diminuem seu consumo. Exatamente na medida em que o fazem, são elas as pessoas sobre as quais recai o imposto. Ele é pago com aquilo que de outra forma teriam usado e desfrutado. Por outro lado, na medida em que o ônus recair, não sobre aquilo que teriam consumido, mas sobre aquilo que teriam poupado para manter a produção ou que teriam gasto na manutenção ou no pagamento de trabalhadores improdutivos, nessa medida o imposto representa uma dedução daquilo que teria sido usado e desfrutado pelas classes trabalhadoras. Se, porém, o Governo — como provavelmente acontece — gastar livremente tanto da importância recolhida quanto teriam gasto os pagadores do imposto no emprego direto de mão-de-obra, como na contratação de marinheiros, soldados e policiais, ou em liquidar dívidas — operação esta que até aumenta o capital —, as classes trabalhadoras não somente não perdem emprego com o imposto, senão que possivelmente podem até ganhar algum outro, e a totalidade do imposto recai nesse caso exclusivamente sobre quem se pretendia. Toda aquela parte da produção do país que qualquer pessoa que não seja um trabalhador consome efetiva e literalmente em seu próprio uso, não contribui em grau mínimo para a manutenção de mão-de-obra. Ninguém se beneficia com o mero consumo, a não ser a própria pessoa que consome. E uma pessoa não pode ao mesmo tempo consumir ela mesma sua renda e colocá-la à disposição para ser consumida por outros. Tirar de uma pessoa, através da tributação, uma certa porção, não pode privar dessa porção nem essa pessoa nem outras, mas somente uma das duas: ela ou as outras. Para saber quem é que sofre, temos que compreender qual é aquele cujo consumo terá que ser, em consequência, reduzido: este, quem quer que seja, é a pessoa sobre a qual recai realmente o imposto. CAPÍTULO VI O Capital Circulante e o Capital Fixo § 1. Para completar nossas explicações sobre o capital, é necessário dizer algo sobre os dois tipos em que ele normalmente se subdivide. Tal distinção é bastante óbvia e, embora não mencionada nominalmente, muitas vezes tem sido considerada nos dois capítulos precedentes; a esta altura, porém, é conveniente defini-la com precisão e assinalar algumas de suas consequências. No capital investido na produção de qualquer mercadoria existe uma parte que, uma vez usada, deixa de existir como capital: ela não é mais capaz de prestar serviço à produção ou, pelo menos, o mesmo serviço ou ao mesmo tipo de produção. Tal é, por exemplo, a parte de capital que consiste em matérias-primas. O sebo e o álcali de que é feito o sabão, uma vez usados na manufatura, são destruídos como álcali e como sebo, não podendo mais ser empregados na manufatura de sabão, embora em sua condição alterada, como sabão, sejam capazes de ser utilizados como matéria-prima ou instrumento em outros setores manufatureiros. Na mesma categoria deve ser enquadrada a parte de capital que é paga em forma de salários aos trabalhadores ou a que é consumida por estes como subsistência. A porção de capital de um fiandeiro de algodão, paga a seus operários, uma vez paga, não existe mais como capital dele, ou seja, como capital de um fiandeiro de algodão; a parte do capital que os operários consomem como alimento, não existe mais como capital; mesmo que estes economizem dele alguma parte, esta pode agora ser mais adequadamente considerada um novo capital, o resultado de uma segunda acumulação. Denomina-se capital circulante o capital que cumpre dessa forma a totalidade de suas funções na produção em que é investido, em uma utilização única. O termo, que não é muito apropriado, provém da circunstância de ter essa parte do capital que ser constantemente renovado pela venda do produto acabado, e quando renovada, é perpetuamente gasta na compra de matéria-prima e no pagamento de salários; assim sendo, esse tipo de capital cumpre a sua função, não sendo conservado, mas passando de um proprietário para outro. Uma outra grande parte do capital, porém, consiste em instrumentos de produção, de caráter mais ou menos permanente, os quais produzem seu efeito não sendo vendidos, mas sendo conservados, e a eficácia deles não se esgota em uma única utilização. A essa categoria pertencem as construções, as máquinas, bem como todas ou grande parte das coisas conhecidas sob o nome de implementos ou ferramentas. A durabilidade de algumas delas é considerável, e sua função como instrumentos produtivos se prolonga através de muitas repetições da operação produtiva. Nessa categoria deve-se também incluir o capital empatado (como reza a expressão) em melhorias permanentes da terra. O mesmo ocorre com o capital gasto uma vez por todas, no início de um empreendimento, a fim de preparar o caminho para operações subsequentes; os gastos com a abertura de uma mina, por exemplo, a despesa com a abertura de canais, com a construção de estradas ou estaleiros. Poder-se-ia acrescentar outros exemplos, mas estes são suficientes. O capital que existe em qualquer dessas formas duráveis e os retornos aos quais ele é distribuído em um período correspondente denomina-se capital fixo. Alguns tipos de capital fixo precisam ser ocasional ou periodicamente renovados. Tal é o caso de todas as melhorias e construções: dentro de certos intervalos têm que ser parcialmente renovadas mediante reparos, e ao final estão totalmente desgastadas, não podendo então ser mais de nenhuma utilidade como construções e implementos, recaindo na categoria de matérias-primas. Em outros casos o capital não precisa ser inteiramente renovado, a não ser em decorrência de algum acidente inesperado; todavia, sempre existe a necessidade de algum gasto, regular ou ao menos ocasional, para mantê-lo. Um estaleiro ou um canal, uma vez construído, não precisa ser novamente construído como uma máquina, a menos que seja propositadamente destruído ou a menos que um terremoto ou alguma catástrofe similar o tenha entulhado; no entanto, necessita-se de gastos regulares e frequentes para mantê-lo em bom estado. O custo de abertura de uma mina não precisa ser assumido uma segunda vez; em contrapartida, se alguém não arcar com a despesa de manter a mina livre de água, esta logo se torna sem utilidade. O mais permanente de todos os tipos de capital fixo é o empregado em conferir maior produtividade a um recurso natural como a terra. A drenagem de áreas pantanosas ou inundadas, como a planície de Bedford, a recuperação de terra no mar ou sua proteção por diques, são benfeitorias projetadas para sempre, mas os drenos e os diques exigem reparos frequentes. A mesma perpetuidade caracteriza a melhoria da terra pela drenagem do subsolo, que tanto aumenta a produtividade dos solos de argila, ou então pela adubação permanente, isto é, adicionando ao solo, não as substâncias que entram na composição dos vegetais — e que, portanto, são consumidas pela vegetação — mas aquelas que apenas alteram a relação do solo com o ar e com a água, tais como areia e cal nos solos pesados, argila e marga nos leves. Todavia, mesmo tais obras exigem algum gasto ocasional para manter seu pleno efeito, embora essa despesa possa ser muito pequena. Entretanto, tais melhorias, pelo próprio fato de merecerem esse nome, produzem um aumento de retornos, os quais, depois de cobrirem todas as despesas necessárias para a manutenção delas, ainda deixam um excedente. Este excedente constitui o retorno do capital empatado no primeiro exemplo, e o retorno não termina, como no caso das máquinas, com o desgaste da máquina, senão que continua para sempre. A terra, cuja produtividade foi assim aumentada, tem no mercado um valor proporcional a esse aumento, daí ser usual considerar o capital que foi investido ou empatado em efetuar a melhoria como ainda presente no valor acrescido da terra. Todavia, não deve haver equívoco no caso. Esse capital, como qualquer outro, foi consumido. Foi consumido na manutenção dos trabalhadores que executaram a benfeitoria, e no desgaste das ferramentas que estes utilizaram. Mas ele foi consumido produtivamente e deixou um resultado permanente na produtividade melhorada de um recurso natural objeto de apropriação, a terra. Podemos dizer que o aumento de produção é o resultado conjunto da terra e de um capital fixo na terra. Todavia, já que o capital, por ter sido na realidade consumido, não pode ser retirado, sua produtividade daqui em diante está indissoluvelmente fundida com a produtividade derivada das qualidades originais do solo; e a remuneração pelo uso desse capital, a partir daqui, não depende das leis que regem os retornos da mão-de-obra e do capital, mas das que regem o retorno proporcionado pelos recursos naturais. Quais sejam estas leis, veremos mais adiante. § 2. Existe uma grande diferença entre os efeitos do capital circulante e os do capital fixo sobre o montante da produção bruta do país. Pelo fato de ficar o capital circulante destruído como tal com uma única utilização, ou de se perder de qualquer modo, para o proprietário, em última análise, e pelo fato de ser o produto resultante desse único uso a única fonte com a qual o dono pode repor o capital ou obter alguma remuneração pelo emprego produtivo do mesmo, o produto deve naturalmente ser suficiente para essas finalidades, ou seja, o resultado de uma única utilização deve ser uma reprodução igual ao montante total do capital circulante usado, e além disso um lucro. Ora, isso de forma alguma é necessário no caso do capital fixo. Já que, por exemplo, a maquinaria não se consome totalmente com um único uso, não é necessário que ela seja totalmente reposta pelo produto dessa utilização. A máquina atende ao propósito de seu proprietário se proporcionar, durante cada intervalo de tempo, o suficiente para cobrir a despesa dos reparos, bem como a depreciação de valor que a máquina sofreu durante o mesmo período, mais um excedente suficiente para garantir o lucro normal do valor total da máquina. Daqui segue que todo aumento de capital fixo, quando ocorrer a expensas de capital circulante, deve ser, ao menos temporariamente, prejudicial aos interesses dos trabalhadores. Isso é verdade não somente com respeito às máquinas, mas também em relação a todas as melhorias nas quais se empata capital, isto é, onde se faz com que o capital se torne permanentemente incapaz de ser aplicado para o sustento e a remuneração da mão-de-obra. Suponhamos que uma pessoa explore sua própria terra, com um capital correspondente a 2 000 quarters de trigo, capital este empregado em manter trabalhadores durante um ano (para simplificar, omitimos a consideração das sementes e das ferramentas), sendo que esses trabalhadores produzem para ele anualmente 2 400 quarters, sendo o lucro de 20%. Suponhamos que esse proprietário consuma anualmente esse lucro, executando suas operações, de um ano para o outro, com o capital original de 2 000 quarters. Suponhamos agora que, com o gasto da metade de seu capital, ele consiga uma melhoria permanente de sua terra, melhoria esta que é executada pela metade de seus trabalhadores e que ocupe essa metade dos trabalhadores durante um ano, e que depois disso precise apenas da metade dos trabalhadores de antes para o cultivo eficiente de sua terra. O resto de seu capital, emprega-o como de costume. No primeiro ano não há diferença alguma na condição dos trabalhadores, a não ser que parte deles recebeu o mesmo pagamento por outro tipo de operação na terra, quando anteriormente o obtinha por arar, semear ou fazer a colheita. No final do ano, porém, o proprietário que fez a melhoria não tem, como antes, um capital de 2 000 quarters de trigo. Somente 1 000 quarters de seu capital reproduziram-se de forma usual: ele possui agora somente esses 1 000 quarters, mais a melhoria executada na terra. Ele empregará, no ano seguinte e em cada ano subsequente, somente a metade dos trabalhadores de antes e dividirá entre eles apenas a metade da quantidade anterior de gêneros de subsistência. Os trabalhadores logo se recuperarão dessa perda, se a terra melhorada, com o contingente de mão-de-obra, produzir 2 400 quarters como antes, pois um aumento tão grande de ganho provavelmente induzirá o proprietário a economizar uma parte, a acrescentá-la ao capital, e a empregar mais mão-de-obra. Mas pode-se imaginar que tal não aconteça; com efeito (supondo, como podemos fazer, que a melhoria dure indefinidamente, sem que seja necessário nenhum gasto digno de menção para mantê-la), o proprietário já terá ganho muito com a melhoria introduzida, se a terra agora produzir, não 2 400 quarters, mas apenas 1 500, já que isso é suficiente para repor os 1 000 quarters que perfazem seu atual capital circulante, com um lucro de 25% (em vez dos 20% de antes) sobre o total do capital, tanto fixo como circulante. Por conseguinte, a melhoria introduzida pode ser muito rentável para ele e, no entanto, muito prejudicial para os trabalhadores. A suposição nos termos em que foi colocada é puramente ideal, ou, no máximo, aplicável somente a um caso como o da conversão de terra arável em pastagem, o que, embora antigamente fosse uma prática frequente, é considerado pelos agricultores modernos [1849] o inverso de uma melhoria. (Todavia, o desaparecimento dos pequenos arrendatários no norte da Escócia, no século atual, foi um caso destes; e outro é o da Irlanda desde a crise da batata e da revogação das leis do trigo. Há todos os indícios de que o notável decréscimo observado ultimamente na produção bruta da agricultura irlandesa pode, em parte, ser atribuído à mudança de destinação da terra, passando da função de manutenção de trabalhadores humanos para a de alimentar o gado; isso poderia não ter ocorrido se não tivesse havido a remoção de uma grande parte da população irlandesa por efeito de emigração ou morte. Temos, assim, dois exemplos recentes em que aquilo que era considerado um aperfeiçoamento agrícola, acabou reduzindo a capacidade do país para sustentar sua população. Todavia, o efeito de todos os aperfeiçoamentos devidos à ciência moderna é aumentar, ou, em todo caso, não diminuir a produção bruta). Mas isso não afeta a substância da argumentação. Suponhamos que a melhoria não opere da forma suposta, ou seja, não permita dispensar uma parte da mão-de-obra anteriormente empregada na terra, mas que somente possibilite ao mesmo contingente de mão-de-obra conseguir uma produção maior. Suponhamos também que essa produção maior, que, devido à melhoria efetuada, pode ser conseguida do solo com o mesmo contingente de mão-de-obra, seja toda ela objeto de procura, e, portanto, encontre compradores. Nesse caso, o proprietário precisará do mesmo número de trabalhadores que antes, com os mesmos salários. Mas onde encontrará os meios para pagá-los? Não dispõe mais de seu capital original de 2 000 quarters de trigo para essa finalidade. A metade dele se perdeu, tendo sido consumida na introdução da melhoria. Se ele tiver que empregar tantos trabalhadores como antes, e lhes pagar o mesmo salário, terá que tomar emprestados, ou tirar de alguma outra fonte, 1 000 quarters para suprir esse déficit. Ora, esses 1 000 quarters já mantinham ou estavam destinados a manter uma quantidade equivalente de mão-de-obra. Não são uma criação nova; o que muda é apenas sua destinação, passando de um emprego produtivo para outro; e, embora o agricultor tenha remediado o déficit em seu próprio capital circulante, o rombo no capital circulante da comunidade permanece. O argumento invocado pela maioria daqueles que afirmam que as máquinas nunca podem prejudicar a classe trabalhadora é que, por baratearem a produção, elas criam um tal aumento de demanda da mercadoria, que esta possibilita a contratação de um número maior de pessoas para produzir tal mercadoria. Ao que me parece, esse argumento não tem o peso que se lhe costuma dar. Sem dúvida, o fato, embora afirmado em sentido excessivamente amplo, muitas vezes é verdadeiro. Os copistas que perderam o emprego com a invenção da imprensa sem dúvida foram logo superados em número pelos tipógrafos e impressores que entraram em seu lugar; e o número de trabalhadores atualmente ocupados na manufatura algodoeira é muitas vezes superior ao número daqueles que estavam empregados nessa ocupação antes das invenções de Hargreaves e Arkwright, o que mostra que, além do capital fixo atualmente empregado na manufatura, ela emprega também um capital circulante muito maior que em qualquer época anterior. Contudo, se esse capital foi desviado de outros empregos, se os fundos que substituíram o capital empatado em máquinas dispendiosas foram fornecidos, não por alguma poupança adicional resultante das melhorias, mas provieram de sangrias no capital geral da comunidade, que ganharam as classes trabalhadoras com essa simples transferência? De que maneira a perda sofrida por essa classe, em virtude da conversão de capital circulante em capital fixo, lhes foi compensada por uma simples transferência de uma parte do restante do capital circulante, de sua antiga aplicação para uma nova? Em meu entender, são necessariamente falaciosas todas as tentativas feitas para mostrar que as classes trabalhadoras, como um corpo coletivo, não podem temporariamente sofrer com a introdução das máquinas, ou seja, pelo fato de se empatar capital em melhorias permanentes. Que a classe sofreria no setor específico de atividade ao qual se aplica a mudança geralmente se admite, sendo isso óbvio para o bom senso comum; muitas vezes se alega, porém, que, embora haja diminuição de empregos em um setor, se abre um número exatamente equivalente de empregos em outros ramos, pois o que os consumidores poupam no preço mais baixo de um determinado artigo lhes possibilita aumentar seu consumo de outros, aumentando com isso a demanda de outros tipos de mão-de-obra. Isso é plausível, mas, como demonstrei no capítulo anterior, envolve uma falácia, já que a demanda de mercadorias é uma coisa totalmente diferente da demanda de mão-de-obra. É verdade que os consumidores têm agora novos recursos para comprar outras coisas; mas só isso não basta para criar os outros produtos, a menos que haja capital para produzi-los; e a melhoria não liberou capital algum, se é que não absorveu algum capital de outras aplicações. Consequentemente, não ocorrerá o suposto aumento de produção e de emprego de mão-de-obra em outros setores; e o aumento de demanda em relação a algumas mercadorias, da parte de alguns consumidores, será contrabalançado por uma cessação de demanda da parte de outros consumidores, isto é, os trabalhadores que foram substituídos pelas melhorias, e que a partir de agora serão sustentados — se é que o serão — partilhando daquilo que anteriormente era consumido por outras pessoas, seja mediante concorrência, seja mediante caridade pública. § 3. Em que pese isso, não creio que, na situação atual, as melhorias introduzidas na produção sejam com frequência — se é que chegam a sê-lo alguma vez — prejudiciais, mesmo temporariamente, para as classes trabalhadoras em seu conjunto. Assim seria se essas melhorias fossem introduzidas subitamente, em grande quantidade, pois nesse caso grande parte do capital empatado teria necessariamente que provir de fundos já aplicados como capital circulante. Acontece que as melhorias são sempre introduzidas muito gradualmente, e raramente ou nunca são efetuadas retirando capital circulante da produção efetiva, mas são efetuadas utilizando o aumento anual. Há poucos ou nenhum exemplo da ocorrência de um grande aumento de capital fixo, em um tempo e lugar em que também o capital circulante não tenha aumentado rapidamente. Não é em países pobres e atrasados que se fazem as melhorias importantes e dispendiosas na produção. Empatar capital na terra para um retorno permanente — instalar máquinas caras — são atos que envolvem sacrifício imediato para obtenção de objetivos longínquos; tais atos denotam, primeiramente, uma segurança relativamente completa da propriedade, e, em segundo lugar, um grau considerável de iniciativa no empreendimento industrial, e em terceiro lugar, um alto padrão daquilo que se tem chamado de “desejo efetivo de acumulação” — os três elementos característicos de uma sociedade que progride rapidamente em seu montante de capital. Embora, portanto, as classes trabalhadoras necessariamente sofram, não somente se o aumento de capital fixo ocorrer à custa do capital circulante, mas mesmo se esse aumento de capital fixo for tão grande e tão rápido a ponto de retardar aquele crescimento normal ao qual se adaptou habitualmente o crescimento da população, não obstante, em termos de realidade, isso tem muito pouca probabilidade de acontecer, já que provavelmente não há país algum cujo capital fixo aumente em uma taxa mais do que proporcional em relação a seu capital circulante. Caso se tivesse construído efetivamente a totalidade das ferrovias que, durante o frenesi de especulação de 1845, obtiveram a aprovação do Parlamento, dentro do cronograma fixado para cada uma delas, com muita probabilidade teria ocorrido realmente essa contingência improvável; mas justamente esse caso ofereceu um exemplo flagrante das dificuldades que obstam o desvio, para novas aplicações, de qualquer parcela considerável de capital que esteja aplicada em outros setores — dificuldades que geralmente são muito mais do que suficientes para impedir que os empreendimentos que envolvem o empate de capital possam se expandir com tal rapidez que prejudiquem as fontes de emprego de mão-de-obra já existentes. A essas considerações deve-se acrescentar que, mesmo que as melhorias durante algum tempo fizessem decrescer a produção conjunta e o capital circulante da comunidade, a longo prazo não teriam a mínima tendência em aumentar as duas. Elas aumentam o retorno para o capital, e o benefício derivado desse aumento necessariamente caberá aos donos de capital, na forma de lucros maiores, ou ao cliente, na forma de preços mais baixos, proporcionando, nos dois casos, um fundo maior do qual se pode fazer acumulação, enquanto o aumento de lucro também acarreta um estímulo crescente à acumulação. No caso que escolhemos acima, no qual o resultado imediato da melhoria foi diminuir a produção bruta, de 2400 quarters para 1500, pelo fato de ser agora o lucro do capitalista 500 quarters em vez de 400, os 100 quarters extras, se regularmente economizados, em poucos anos haveriam de repor os 1000 quarters subtraídos de seu capital circulante. Ora, a expansão do negócio, que quase certamente resulta de qualquer setor no qual se fez uma melhoria, gera um forte estímulo aos que estão nele empenhados no sentido de aumentar o investimento de capital nesse ramo e, portanto, ao passo lento em que costumam ser introduzidas as melhorias, grande parte do capital, em última análise absorvida pela melhoria, é tirada dos lucros e das poupanças maiores que ele mesmo gerou. Essa tendência para a melhoria da produção visando uma maior acumulação e atingir assim, em última análise, um aumento da produção bruta, mesmo com a diminuição temporária desta, assumirá um caráter ainda mais decisivo quando se revela a existência de limites determináveis, sejam à acumulação de capital, sejam ao aumento da produção agrária, limites que, uma vez atingidos, devem sustar qualquer aumento ulterior da produção; entretanto, essas melhorias na produção, quaisquer que sejam seus outros efeitos, tendem a afastar um desses limites, ou ambos. Estas são, porém, verdades que virão melhor à luz em um estágio posterior de nossa investigação. Ver-se-á que a futura quantidade de capital acumulado, ou mesmo capaz de ser acumulado em qualquer país, e o montante futuro da produção bruta conseguida, ou mesmo capaz de ser obtida, mantêm uma relação de proporção com o estado das técnicas de produção ali existentes; ver-se-á também que cada aperfeiçoamento, mesmo que de momento diminua o capital circulante e a produção bruta, ao final cria espaço para um maior montante dos dois, maior que os montantes eventualmente existentes de outra forma. Esta é a resposta conclusiva às objeções contra as máquinas; consequentemente se verá também que são conclusivas as provas daqui decorrentes, demonstrando que, em última análise, as invenções mecânicas beneficiam os trabalhadores. Isso, porém, não desonera o Governo da obrigação de aliviar e, se possível, evitar os males que essa fonte de benefício último acarreta ou pode acarretar para uma geração existente. Se o investimento e a imobilização de capital em máquinas ou obras ocorresse em tal ritmo que prejudicasse substancialmente os fundos destinados à manutenção da mão-de-obra, caberia aos legisladores tomar medidas para moderar sua rapidez; e já que os aperfeiçoamentos não diminuem o emprego globalmente, mas quase sempre deixam desempregada alguma classe de trabalhadores, não pode haver alvo mais legítimo da preocupação do legislador do que os interesses daqueles que são assim sacrificados aos ganhos de seus concidadãos e da posteridade. Voltemos à distinção teórica entre capital fixo e capital circulante. Uma vez que toda a riqueza destinada à reprodução recai sob a designação de capital, há partes do capital que não se enquadram na definição dos dois tipos de capital; por exemplo, o estoque de mercadorias acabadas que um manufator ou representante comercial em qualquer momento mantém em seus depósitos para venda. Isso, embora seja capital quanto à sua destinação, ainda não é capital em seu exercício efetivo: ainda não está engajado na produção, tendo antes que ser vendido ou trocado, isto é, convertido em um valor equivalente de outras mercadorias, e por isso ainda não é nem capital fixo, nem capital circulante; tornar-se-á um ou outro, ou em parte, eventualmente, um e outro. Com a receita da venda dessas mercadorias acabadas, um manufator em parte pagará seus operários, em parte reporá o estoque das matérias-primas para sua manufatura; em parte providenciará novas construções e máquinas, ou reparará as antigas; quanto disso servirá para um propósito, e quanto para o outro, dependerá da natureza de manufatura e das exigências do momento específico. Além disso, cumpre observar que a porção de capital consumido na forma de semente ou matéria-prima, embora, ao contrário do capital fixo, tenha que ser imediatamente reposta com a produção bruta, não obstante está na mesma relação com o emprego da mão-de-obra que o capital fixo. O que se gasta em matéria-prima é retirado da manutenção e remuneração dos trabalhadores, tanto quanto o imobilizado em máquinas; e se o capital atualmente gasto em salários fosse desviado para a compra de matérias-primas, o efeito para os trabalhadores seria tão prejudicial como se fosse convertido em capital fixo. Isso, porém, constitui um tipo de mudança que raramente acontece, se é que alguma vez ocorre. A tendência dos aperfeiçoamentos introduzidos na produção é sempre de economizar, nunca de aumentar os gastos com sementes ou matérias-primas para determinada produção; o interesse dos trabalhadores nada tem a temer por esse lado. CAPÍTULO VII De que Depende o Grau de Produtividade dos Agentes de Produção § 1. Concluindo nossa análise geral dos requisitos da produção, constatamos que eles podem reduzir-se a três: a mão-de-obra, o capital, e as matérias-primas e forças motrizes proporcionadas pela Natureza. Desses três, a mão-de-obra e a matéria-prima bruta do globo são primárias e indispensáveis. As forças motrizes naturais podem ser chamadas em apoio à mão-de-obra; são uma ajuda, mas não um elemento essencial da produção. O requisito que resta, o capital, é em si mesmo o produto do trabalho ou da mão-de-obra; sua instrumentalidade na produção é, na realidade, a do trabalho sob forma indireta. Não precisa absolutamente ser especificado em separado. Uma aplicação prévia do trabalho na produção do capital exigido para consumo durante o serviço não é menos essencial que a aplicação da mão-de-obra ao próprio serviço. Quanto ao capital, uma parte dele, aliás de longe a maior, conduz à produção somente enquanto serve para manter a mão-de-obra que produz; o restante, isto é, os instrumentos e os materiais, contribuem para a produção diretamente, da mesma forma que os agentes naturais, e os materiais fornecidos pela Natureza. Abordamos agora a segunda grande questão em Economia Política: de que depende o grau de produtividade desses agentes. Com efeito, é evidente que sua eficácia produtiva varia muito conforme os tempos e lugares. Com a mesma população e extensão territorial, alguns países têm um montante muito maior de produção que outros, e o mesmo país, em determinada época, tem um montante muito maior que em outra. Compare-se a Inglaterra com uma extensão similar de território na Rússia, ou então com uma população igual de russos. Compare-se a Inglaterra de hoje com a Inglaterra da Idade Média; a Sicília, o Norte da África, ou a Síria atual, com os mesmos países ao tempo de sua prosperidade máxima, antes da conquista dos romanos. Algumas das causas que contribuem para essa diferença de produtividade são óbvias, outras não tanto. Passamos a especificar várias delas. § 2. A causa mais evidente de uma produtividade maior está nas assim chamadas vantagens naturais. Estas são várias. A fertilidade do solo é uma das principais. Quanto a esta, há grandes variedades de solo, desde os desertos da Arábia até as planícies aluviais do Ganges, do Níger, do Mississipi. Um clima favorável é ainda mais importante que um solo rico. Há países capazes de serem habitados, mas excessivamente frios para serem compatíveis com a agricultura. Seus habitantes não podem ultrapassar o estágio nômade: têm que viver como os habitantes da Lapônia, da domesticação da rena, se não de caça ou pesca, como os míseros esquimós. Há regiões em que floresce a aveia, mas não o trigo como no Norte da Escócia, há outras em que se pode cultivar o trigo, mas onde, devido ao excesso de umidade e à falta de sol, as culturas proporcionam apenas uma colheita precária; é o caso de certas partes da Irlanda. Com cada avanço em direção ao sul ou, na região de clima temperado da Europa, em direção ao leste, algum novo setor de agricultura se torna primeiramente possível, depois rentável: apresentam-se nesta ordem, sucessivamente, a videira, o milho, a seda, a figueira, a oliveira, o arroz, a tamareira, até chegarmos ao açúcar, ao café, ao algodão, às especiarias etc., de climas que também proporcionam, dentre os produtos agrícolas mais comuns, e com pouquíssimo cultivo, duas ou até três colheitas ao ano. E não é somente na agricultura que são importantes as diferenças de clima. Sua influência se faz sentir em muitos outros setores de produção: na durabilidade de qualquer produto exposto ao ar, das construções, por exemplo. Se os templos de Karnac e Luxor não tivessem sido danificados pelo homem, poderiam ter subsistido em sua perfeição original quase para sempre, pois as inscrições em alguns deles, embora anteriores a qualquer história autêntica, se conservam mais nítidas que, em nosso clima, uma inscrição de cinquenta anos atrás; por outro lado, em São Petersburgo, as obras mais importantes solidamente executadas em granito há não mais de uma geração, já estão hoje, conforme nos relatam viajantes, em um estado que quase exige sua reconstrução devido à exposição alternada dessas obras ao calor do verão e ao frio intenso. A superioridade dos tecidos da Europa meridional em relação aos da Inglaterra, na riqueza e na nitidez de muitas de suas cores, é atribuída à qualidade superior da atmosfera, para a qual nem o conhecimento dos químicos, nem a habilidade dos tintureiros têm conseguido encontrar um equivalente completo em nosso clima nebuloso e úmido. Um outro aspecto da influência do clima é a redução das exigências físicas dos produtores. Em regiões quentes, a espécie humana pode viver confortavelmente com um alojamento menos perfeito, com menos roupa; o combustível, esse artigo absolutamente necessário para a vida em climas frios, os países quentes podem quase dispensá-lo, exceto para usos industriais. Tais populações requerem também menos alimentação, como tem demonstrado a experiência, muito antes que a teoria o atestasse, constatando que a maior parte do que consumimos como alimento não é exigido para a nutrição efetiva dos órgãos, mas para manter o calor animal e para garantir o estímulo necessário às funções vitais o que em climas quentes é quase suficientemente assegurado pelo ar e pela luz do sol. Portanto, não se requer em tais climas muito do trabalho alhures despendido para a obtenção dos simples artigos de primeira necessidade e sobra mais para os usos e prazeres mais elevados, a menos que as características dos habitantes não os levem antes a fazer uso de tais vantagens adquirindo a forma de uma população excessiva, ou entregando-se ao ócio. Entre as vantagens naturais, além do solo e do clima, deve-se mencionar a abundância de produtos minerais, em localizações favoráveis, com a possibilidade de seu processamento sem trabalho excessivo. Tais são as reservas de carvão da Grã-Bretanha, que tanto contribuem para a compensação de seus habitantes pelas desvantagens do clima, bem como as reservas, dificilmente inferiores, possuídas por esse país e pelos Estados Unidos, fornecendo com abundância um minério de ferro facilmente reduzido, que existe não muito abaixo da superfície da terra e em grande proximidade de reservas de carvão disponíveis para o processamento desse minério. Em distritos montanhosos e de colinas, a abundância de energia hidráulica natural compensa em muito a fertilidade geralmente inferior dessas regiões. Entretanto, uma vantagem talvez muito maior do que todas as citadas seja a localização marítima, especialmente quando acompanhada de bons portos naturais e, além disso, de grandes rios navegáveis. Essas vantagens consistem inteiramente na economia dos custos de transporte. Todavia, poucos dos que não estudaram mais detidamente o assunto têm uma noção adequada sobre a extensão da vantagem econômica que isso representa; aliás, essa vantagem não pode ser estimada plenamente sem considerar a influência exercida pelos intercâmbios e pelas trocas sobre a produção, ou pelo que se denomina divisão do trabalho ou de tarefas. Esse fator é tão importante, que muitas vezes compensa a esterilidade do solo, e quase todas as outras desvantagens naturais, sobretudo em se tratando daquele estágio primitivo da atividade humana em que o trabalho e a ciência ainda não ofereceram os meios de comunicação artificiais capazes de competir com os naturais. No mundo antigo e na Idade Média, as comunidades mais prósperas não eram aquelas que possuíam o maior território ou o solo mais fértil, mas antes aquelas que haviam sido forçadas pela esterilidade natural a fazer o máximo uso de uma localização marítima favorável, como Atenas, Tiro, Marselha, Veneza, as cidades livres do Báltico e similares. § 3. Isso quanto às vantagens naturais, cujo valor, em paridade de circunstâncias, é óbvio demais para ser subestimado. Contudo, a experiência atesta que as vantagens naturais dificilmente produzem, para uma comunidade, algo igual àquilo que, por sua natureza ou por sua capacidade, esta poderia fazer — aliás, da mesma forma como não o fazem, para o indivíduo, a fortuna e a posição. Nem hoje, nem em épocas anteriores, as nações de melhor clima e melhor solo foram as mais ricas ou as mais poderosas; pelo contrário (no que concerne à massa da população), geralmente figuram entre as mais pobres, ainda que, em meio à pobreza, sejam, no conjunto, as que mais os desfrutam. A vida humana, em tais países, pode sustentar-se com tão pouco, que raramente os pobres estão sujeitos à ansiedade; em climas nos quais a simples existência já constitui um prazer, o luxo que preferem é o ócio. Energia a serviço da paixão, possuem-na em abundância, mas não aquela que se manifesta na forma de trabalho contínuo e perseverante; e já que raramente se preocupam muito com objetivos remotos, como os de implantar boas instituições políticas, os incentivos para o trabalho são ainda mais enfraquecidos pela proteção insatisfatória dispensada aos frutos do trabalho. O sucesso na produção, como a maior parte dos outros tipos de sucesso, depende mais das qualidades dos agentes humanos do que das circunstâncias em que operam; e o que alimenta a energia física e mental são as dificuldades, não as facilidades. Consequentemente, as tribos da humanidade que sobrepujaram e conquistaram outras, que as obrigaram a trabalhar em benefício delas, na maioria dos casos ficaram atrasadas e na miséria. Elas provêm das florestas dos climas nórdicos, ou de onde a falta de dificuldades naturais foi suprida, como entre os gregos e os romanos, pelos rigores artificiais de uma dura disciplina militar. Desde que as circunstâncias da sociedade moderna permitiram a interrupção dessa disciplina, o Sul já não tem produzido nações conquistadoras: o vigor militar, bem como o pensamento especulativo e a energia do trabalho em sua totalidade, têm tido sua sede principal no Norte, o menos favorecido. Podemos, pois, considerar a maior energia no trabalho como a segunda causa de superioridade da produtividade. Entenda-se, porém, que esta seja a energia regular e habitual, não a ocasional. Ninguém mais que o índio norte-americano se submete, sem resmungar sequer, a uma quantidade maior de fadiga e dureza ocasional de condições; ninguém mais que ele solicita ao máximo, ocasionalmente, suas forças físicas e as faculdades mentais; todavia, é proverbial sua indolência, toda vez que se livra, por algum tempo, da pressão das necessidades presentes. Os indivíduos ou as nações não diferem tanto nos esforços de que são capazes e estão dispostos a fazer sob a força de fortes incentivos imediatos; diferem mais em sua capacidade de, no presente, se empenharem em função de um objetivo remoto e na seriedade de aplicação ao trabalho habitual. Certa dose dessas qualidades é condição necessária para qualquer aperfeiçoamento ou melhoria notável entre os homens. Para civilizar um selvagem, é necessário inspirar-lhe novas necessidades e desejos, mesmo que sejam de natureza não muito elevada e desde que a gratificação constitua uma motivação constante para a atividade física e mental. Se, após sua emancipação, os negros da Jamaica e Demerara se tivessem contentado, como se predissera que o fariam, com os bens de primeira necessidade e tivessem abandonado o trabalho além daquele pouco que, para um clima tropical, uma população reduzida e abundância da terra mais rica, é suficiente para a manutenção da existência, teriam caído em uma condição mais primitiva, porém menos infeliz, do que a anterior da escravatura. A motivação em que mais se confiou para levá-los a trabalhar foi sua predileção por roupas finas e ornamentos pessoais. Ninguém defenderá que esse gosto seja digno de ser cultivado; sua satisfação, na maioria das sociedades, tende mais a empobrecer que a enriquecer; todavia, na condição mental dos negros, pode ter sido esse o único incentivo capaz de levá-los a se submeterem voluntariamente ao trabalho sistemático e a adquirirem e manterem, assim, hábitos de trabalho voluntário que posteriormente podem ser convertidos em finalidades mais valiosas. Na Inglaterra, o que se precisa ensinar à população não é o desejo de riqueza, mas o uso da mesma, bem como a estima dos objetos de desejo que a riqueza é incapaz de comprar, ou para cuja consecução a riqueza não é necessária. Todo aperfeiçoamento real do caráter dos ingleses, quer consista em dar-lhes aspirações mais elevadas, quer consista apenas em inspirar-lhes uma estima mais justa do valor de seus atuais objetos de desejo, deve necessariamente moderar o ardor de sua dedicação à busca da riqueza. Contudo, não há nenhuma necessidade de tais aperfeiçoamentos diminuírem a aplicação estrênua dos ingleses ao objeto em consideração, visando o lucro, característica que se encontra nos melhores trabalhadores ingleses e constitui sua qualidade mais valiosa. O meio-termo desejável, este a humanidade poucas vezes soube atingir: fazer o trabalho com todas as forças, sobretudo com toda a força da mente; ao trabalho que visa apenas o ganho pecuniário, dedicar, porém, ao mesmo tempo, menos horas do dia, menos dias do ano, e menos anos da vida. § 4. O terceiro elemento que determina a produtividade do trabalho de uma comunidade é a habilidade e o conhecimento nela reinantes — quer se trate de habilidade e do conhecimento dos próprios trabalhadores, quer se trate dos que dirigem o trabalho deles. Não há necessidade de nenhuma ilustração para mostrar como a eficiência do trabalho é promovida pela destreza manual daqueles que executam processos meramente rotineiros, pela inteligência dos que se empenham em operações nas quais a mente apresenta uma participação considerável, ou pela soma de conhecimento das forças naturais e das propriedades de objetos que é aplicada aos objetivos do trabalho. É por demais evidente que a produtividade da mão-de-obra de um povo é limitada pelo seu conhecimento das técnicas profissionais, e que todo progresso nessas técnicas, ou qualquer aplicação mais aperfeiçoada dos objetos ou forças da natureza ao trabalho, permitem uma produção maior com a mesma quantidade e intensidade de trabalho. Uma das áreas principais dessas melhorias consiste na invenção e no uso de ferramentas e máquinas. É supérfluo, em uma obra como esta, detalhar especialmente a maneira como esses aperfeiçoamentos servem para aumentar a produção e economizar trabalho; isso se encontra explicado e exemplificado, de uma forma ao mesmo tempo científica e popular, na obra Economy of Machinery and Manufactures do Sr. Babbage. Um capítulo inteiro do livro do Sr. Babbage apresenta exemplos da eficiência das máquinas para “exercer forças excessivamente grandes para a força humana e executar operações excessivamente delicadas para o homem”. Não precisamos, porém, ir tão longe para encontrar exemplos de trabalhos que não poderiam ser executados de forma alguma por trabalhadores sem máquinas. Sem bombas, operadas por motores a vapor ou de outra forma, de maneira alguma seria possível, em muitos lugares, extrair a água que se junta nas minas; estas, após serem escavadas até uma pequena profundidade, teriam que ser abandonadas; sem navios ou barcos, nunca se teria podido atravessar o mar; sem ferramentas de algum gênero, não haveria a possibilidade de cortar árvores, nem de escavar as rochas; um arado, ou ao menos uma enxada, é necessário para qualquer cultura do solo. No entanto, instrumentos bem simples e primitivos são suficientes para permitir literalmente à espécie humana a execução da maior parte de seus trabalhos; as invenções subsequentes têm garantido principalmente a possibilidade de execução do trabalho com maior perfeição, sobretudo com uma quantidade de mão-de-obra muito menor, sendo que a mão-de-obra assim economizada pode ficar disponível para outros empregos. O uso de máquinas está longe de ser o único exemplo dos efeitos do conhecimento em auxílio da produção. Na agricultura e na horticultura, somente agora as máquinas estão começando a mostrar que podem fazer outras coisas importantes além da invenção e do aperfeiçoamento progressivo do arado e de outros instrumentos simples. As maiores invenções agrícolas têm sido as referentes à aplicação direta de processos mais criteriosos à própria terra e às plantas que nela crescem, tais como a rotatividade das colheitas (para evitar a necessidade de deixar a terra incultivada durante uma estação em cada duas ou três), melhor adubação (para renovar a fertilidade da terra quando esta se apresenta esgotada pelas colheitas), a aradura e drenagem do subsolo, bem como da superfície, a conversão de brejos e pântanos em terra cultivável, as maneiras de podar, de cultivar em espaldeiras e escorar plantas e árvores que a experiência demonstrou merecerem preferência; no caso das culturas mais dispendiosas, o plantio das raízes ou das sementes com maior espaçamento entre elas, a pulverização mais completa do solo no qual são colocadas etc. Nas manufaturas e no comércio, alguns dos aperfeiçoamentos mais importantes consistem na economia de tempo, em fazer com que seja mais rápido o retorno do trabalho e dos gastos efetuados. Outros há cuja vantagem consiste na economia de material. § 5. No entanto, os efeitos do maior conhecimento de uma comunidade sobre o aumento da riqueza carecem de tanto menos ilustração quanto mais estes se tornaram familiares às pessoas mais simples, partindo de exemplos manifestos, como o das ferrovias e dos navios a vapor. Uma coisa ainda não bem compreendida e reconhecida é o valor econômico da difusão geral da cultura e da instrução entre a população. O número de pessoas preparadas para dirigir e supervisionar qualquer empresa industrial, ou mesmo para executar qualquer processo praticamente irredutível à memória ou rotina, está quase sempre muito aquém da demanda, como o evidencia a enorme diferença entre os salários pagos a tais pessoas e os salários pagos à mão-de-obra comum. A falta de bom senso prático, que faz com que a maioria dos trabalhadores sejam tão maus calculadores — o que torna, por exemplo, sua economia doméstica tão imprevidente, relaxada e irregular — necessariamente os desqualifica para qualquer trabalho inteligente que não seja um de baixo nível, e torna seu trabalho muito menos produtivo do que este poderia ser com a mesma energia. A importância, mesmo nesse aspecto limitado, da instrução popular, bem merece a atenção dos políticos, sobretudo na Inglaterra, pois observadores competentes, acostumados a empregar trabalhadores de várias nações, testemunham que no trabalhador de outros países se encontra, muitas vezes, grande talento, mesmo que sem nenhuma instrução, ao passo que, se um trabalhador inglês chega a ser mais que um lenhador ou carregador de água, ele o deve à educação, por ser autodidata. O Sr. Escher, de Zurique (um engenheiro e manufator de algodão que emprega quase dois mil operários de várias nações diferentes), em seu depoimento anexado ao Report of the Poor Law Commissioners, de 1840, sobre a instrução de crianças pobres, apresenta uma descrição dos ingleses em contraste com trabalhadores do continente europeu, caracterização esta que, segundo entendo, será confirmada por todas as pessoas que tiverem experiência semelhante. “A rapidez de percepção dos italianos mostra-se na compreensão rápida de quaisquer novas descrições de trabalho que se lhes entregue, em um poder de compreender rapidamente o que o empregador quer dizer, na capacidade de se adaptarem a novas circunstâncias, muito além da capacidade que têm quaisquer outras categorias. Os trabalhadores franceses têm as mesmas características naturais, somente em grau um pouco inferior. Constatamos que os trabalhadores ingleses, suíços, alemães e holandeses têm todos eles uma compreensão natural muito mais lenta. Considerando-se as pessoas apenas como trabalhadores a preferência cabe sem dúvida aos ingleses, pois, como constatamos, todos eles são treinados para setores especiais, nos quais tiveram um treinamento relativamente superior e concentraram todas as suas preocupações. Todavia, comercialmente, ou por sua utilidade geral, e como homens dos quais o empregador mais gostaria de dispor decididamente preferiria os saxões e os suíços, porém mais especialmente os saxões, pois estes tiveram uma educação geral muito cuidadosa, ampliando o limite de suas capacidades para além de qualquer ocupação específica, capacitando-os a assumir, depois de uma breve preparação, qualquer ocupação para a qual possam ser chamados. Se tiver um operário inglês contatado para a instalação de um motor a vapor, saberá fazê-lo, e nada mais; para outras situações ou setores diferentes da mecânica, por mais afins que sejam, ele será relativamente incapaz de adaptar-se a todas as circunstâncias que possam surgir, de tomar providências relacionadas a elas, de apresentar boas sugestões ou escrever pareceres claros e cartas sobre seu trabalho nos vários ramos correlatos da mecânica”. Quanto à relação entre a cultura intelectual e a confiabilidade moral da classe trabalhadora, o mesmo autor diz: “Constatamos que os trabalhadores mais instruídos se distinguem por melhores hábitos morais sob todos os aspectos. Em primeiro lugar, são inteiramente sóbrios; são discretos em seus prazeres, que são de um tipo mais racional e refinado; apreciam as pessoas de melhor nível social e as abordam com respeito; consequentemente são admitidos na sociedade com muito mais facilidade; cultivam a música; leem; gostam de teatro e participam de excursões ao campo; são econômicos, e sua economia se estende não só à própria carteira, mas igualmente ao capital de seu patrão; consequentemente, são leais e confiáveis”. E, respondendo a uma pergunta sobre os trabalhadores ingleses, afirma: “Embora no tocante ao trabalho (para o qual foram especialmente treinados) sejam os mais habilidosos, quanto à conduta são os mais desordeiros, viciados e insubordinados, bem como os menos respeitáveis e menos confiáveis de qualquer nação que já empreguei; ao dizer isso, expresso a experiência de todo manufator do continente europeu com o qual já falei, sobretudo a dos manufatores ingleses, que têm apresentado as maiores queixas. Essa característica de depravação não se aplica aos trabalhadores ingleses que receberam educação; marca, porém, os outros na medida em que dela carecem. Quando os trabalhadores ingleses não educados se libertam dos laços da disciplina férrea à qual estavam sujeitos pelos seus empregadores na Inglaterra, e são tratados com a polidez e com a cordialidade que os trabalhadores mais instruídos do continente esperam e recebem de seus empregadores, eles, os trabalhadores ingleses, perdem totalmente as estribeiras: não compreendem sua posição, e depois de determinado tempo se tornam totalmente intratáveis e inúteis”. (Merece atenção a exposição completa desse inteligente e experimentado empregador de mão-de-obra; o mesmo vale para muitos depoimentos, sobre pontos similares, feitos por outras testemunhas, contidos no mesmo volume). Esse resultado da observação é confirmado pela experiência na própria Inglaterra. Tão logo alguma ideia de igualdade entra na cabeça de um trabalhador inglês sem instrução, esta lhe transtorna a cabeça. Quando ele deixa de ser servil, torna-se insolente. As qualidades morais dos trabalhadores são tão importantes para a eficiência e o valor de seu trabalho quanto as intelectuais. Independentemente dos efeitos da intemperança sobre suas faculdades físicas e mentais e da leviandade e inconstância habituais sobre a energia e a continuidade de seu trabalho (aspectos tão facilmente compreensíveis que não há necessidade de insistir neles), bem vale a pena meditar até que ponto o efeito global de seu trabalho depende de sua confiabilidade. Todo trabalho atualmente despendido em garantir o cumprimento de suas funções ou em verificar se as cumpriram realmente, é assim desviado do objeto real da produção, para ser dedicado a uma função subsidiária, que se tornou indispensável não pela necessidade das coisas, mas pela desonestidade das pessoas. Aliás, as maiores precauções externas são de eficácia muito reduzida, já que, como acontece invariavelmente hoje com os trabalhadores contratados, o mínimo relaxamento da vigilância representa uma oportunidade avidamente aproveitada pelo trabalhador para furtar-se ao cumprimento de seu compromisso. A vantagem que para a humanidade advém da capacidade de os homens confiarem uns nos outros estende-se a cada setor mínimo da vida humana; a vantagem econômica talvez seja a menor, mas mesmo esta é incalculável. Para limitarmo-nos apenas à parte mais óbvia do desperdício de riqueza ocasionado à sociedade pela improbidade humana, existe em todas as comunidades ricas uma população predatória, que vive da atividade de pilhar ou lograr as outras pessoas; não há possibilidade de indicar com certeza o número delas, mas, mesmo adotando-se a estimativa mais baixa, em um país como a Inglaterra esse número é elevadíssimo. A manutenção de tais pessoas é um ônus direto que pesa sobre a atividade nacional. A política, bem como todo o dispositivo penal da justiça criminal e, em parte, da civil, constituem um segundo ônus, que se tornou necessário em decorrência do primeiro. A profissão dos advogados, pagos com remunerações exorbitantes, na medida em que seu trabalho não é criado pelas falhas existentes na lei, inventadas por eles mesmos, é necessária e mantida principalmente pela desonestidade dos homens. À medida que sobe o padrão de integridade em uma comunidade, diminuem todas essas despesas. Ora, essa economia positiva seria de longe ultrapassada pelo imenso aumento na produção de todos os tipos de mão-de-obra e pela economia de tempo e de gastos que se teria se os trabalhadores cumprissem honestamente seus compromissos; mediante o espírito mais elevado e mediante o sentimento de poder e confiança com o qual as obras de todos os tipos seriam planejadas e realizadas por aqueles que sentissem a necessidade de toda essa ajuda, eles cumpririam fielmente sua parte segundo seus contratos. A ação conjunta é possível exatamente na medida em que os seres humanos podem confiar uns nos outros. Existem, na Europa, países dotados de capacidade industrial de primeiro plano, em que o obstáculo mais sério para conduzir empresas em grande parte consiste na escassez de pessoas às quais eventualmente se possa confiar o recebimento e o pagamento de grandes somas de dinheiro. Há nações cujas mercadorias são vistas pelos comerciantes com desconfiança, porque não podem confiar na correspondência entre a qualidade da amostra do artigo apresentado e a do efetivamente entregue. Tais fraudes, características de uma cisão comercial míope, estão longe de não ocorrer nas exportações inglesas. Todos já ouviram falar do “pó do diabo”; pois bem, entre os exemplos dados pelo Sr. Babbage, figura um em que um setor inteiro do comércio de exportação foi durante muito tempo efetivamente paralisado pelas fraudes e falsificações que nele ocorreram. Por outro lado, a mesma obra exemplifica, de maneira não menos notável, a vantagem substancial que deriva, nas transações comerciais, da honestidade comprovada. “Em uma das nossas maiores cidades, efetuam-se diariamente vendas e compras em escala muito grande, no decurso dos negócios, sem que nenhuma das partes jamais troque um documento escrito”. Se computarmos todas as transações de um ano, calcule-se como é grande o retorno, em economia de tempo, trabalho e despesas, para os produtores e os comerciantes de tal cidade, em decorrência de sua própria integridade. “A influência de um caráter íntegro, que gera confiança, atuou de forma notável sobre o Continente no tempo da exclusão dos manufaturados britânicos da Europa durante a última guerra. Um dos nossos maiores estabelecimentos costumava efetuar grandes negócios com uma casa localizada no centro da Alemanha; mas com o bloqueio dos portos do Continente europeu contra os nossos manufaturados, foram aplicadas duras penalidades a todos os que haviam infringido os decretos de Berlim e de Milão. Mesmo assim, o manufator inglês continuou recebendo encomendas, com instruções sobre a entrega e indicações sobre a data e a forma de efetuação dos pagamentos, em cartas cuja caligrafia lhe era conhecida, mas nunca eram assinadas senão com o primeiro nome de alguém da firma; em alguns casos essas cartas eram até destituídas de qualquer assinatura. Essas encomendas foram entregues e em nenhum caso houve a mínima irregularidade nos pagamentos”. (Podemos citar alguns exemplos menores notados pelo Sr. Babbage, para ilustrar melhor o desperdício ocasionado à sociedade pela incapacidade de seus membros confiarem uns nos outros. "O custo para o comprador é o preço que ele paga por qualquer artigo, mais o custo de verificar se o artigo tem efetivamente o grau de qualidade pelo qual o compra. Em alguns casos, a boa qualidade do artigo evidencia-se na simples inspeção, sendo que nesses casos não há muita diferença de preço em diferentes lojas. Por exemplo, a boa qualidade do açúcar para pão pode ser reconhecida num simples olhar; em consequência o preço é tão uniforme e o lucro sobre ele tão pequeno, que nenhum merceeiro tem vontade de vendê-lo; ao contrário, o chá, cuja qualidade é excessivamente difícil de avaliar e pode ser adulterado por misturas de modo a iludir até mesmo a perspicácia de um olho prático, habituado, apresenta uma grande variedade de preços, sendo o artigo que todo merceeiro mais deseja vender a seus clientes. A dificuldade e o custo de verificação em certos casos são tão grandes que justificam os desvios com referência aos princípios estabelecidos. Assim, é um princípio geral que o Governo possa comprar qualquer artigo a preço abaixo do custo pelo qual ele mesmo o poderia fabricar. A despeito disso, tem-se considerado mais econômico construir grandes moinhos de farinha (como os de Depford) e moer seu próprio trigo, do que verificar cada saco de farinha comprada e empregar pessoas para detectar novos meios de adulteração aos quais se poderia recorrer continuamente." Uma falta de confiança destas poderia privar uma nação, tal como os Estados Unidos, de um grande comércio de exportação de farinha. E continua: “De alguns anos para cá, certo modo de preparar trevo velho e sementes de trevo por um processo denominado medicação veio a prevalecer de tal maneira que despertou a atenção da Câmara dos Comuns. Um Comitê descobriu então que, para adulterar a semente velha do trevo branco, primeiro a umedeciam levemente e depois a secavam com a fumaça de enxofre queimado; que para melhorar a cor da semente do trevo vermelho, esta era misturada em um saco contendo uma pequena quantidade de índigo; uma vez isso descoberto, tempos depois os doctors (falsificadores) passaram a usar um preparado de pau-campeche diluído com um pouco de caparrosa verde, e as vezes com azinhave, melhorando assim imediatamente a aparência da semente velha e diminuindo (se não destruindo) sua força vegetativa, já enfraquecida pela idade. Mesmo supondo que não houvesse nenhum dano para a semente velha assim preparada, comprovou-se que devido à melhor aparência, o preço de mercado aumentaria em razão desse processo, de 5 para 25 xelins por quintal. Entretanto, um dos maiores males do processo era a circunstância de transformar sementes velhas e sem valor em parecidas com as melhores existentes. Uma das testemunhas experimentou algumas sementes adulteradas constatando que, de cada cem grãos, não mais do que um germinou, e que os grãos que se desenvolveram efetivamente, acabaram secando depois; no entanto, em se tratando de sementes boas, costumam vingar aproximadamente 80 ou 90%. As sementes assim tratadas eram vendidas a varejistas do país, os quais naturalmente procuravam comprar ao preço mais baixo; destes, as sementes chegavam às mãos dos agricultores, sendo que nem os varejistas nem os agricultores tinham condições de distinguir as sementes falsificadas das genuínas. Por isso, muitos agricultores diminuíram seu consumo desses artigos, e outros foram obrigados a pagar um preço mais alto àqueles que tinham habilidade para distinguir a semente misturada, homens cuja integridade e caráter os impediam de comercializar tal artigo”. O mesmo escritor afirma que o linho irlandês, embora sua qualidade natural não seja inferior à de nenhum outro, é vendido, ou era vendido ultimamente no mercado, por 1 a 2 pence por libra-peso a menos do que o linho estrangeiro ou o britânico, diferença que, em parte, provinha da negligência no preparo, em parte se devia à causa mencionada, conforme depoimento do Sr. Corry, Secretário da Comissão para o Linho Irlandês por muitos anos: “Os proprietários do linho, quase sempre pessoas das classes econômicas inferiores, acreditam salvaguardar melhor seus interesses fazendo imposições aos compradores. Sendo o linho vendido por peso, usam vários meios para aumentar o mesmo; cada um desses métodos é prejudicial, sobretudo o do umedecimento do linho — uma prática muito comum que o faz esquentar posteriormente. Cada feixe (cujo volume varia individualmente) muitas vezes se encontra cheio de seixos, ou de sujeira de toda espécie, para aumentar o peso. É nesse estado que o linho em rama é comprado e exportado para a Grã-Bretanha”. Demonstrou-se perante um Comitê da Câmara dos Comuns que o comércio de cordoaria em Nottingham decaíra muito, devido à fabricação de artigos falsificados e de má qualidade: que “se fabricava um tipo de cordão (continuo citando o Sr. Babbage), o qual, embora de boa qualidade à primeira vista, praticamente se estragava ao lavar, pelo fato de os fios escorregarem; que, dentre mil pessoas, não haveria uma que conseguisse distinguir a diferença entre o cordão simples e o duplo; que mesmo operários e manufatores tinham que empregar lente de aumento para esse fim; e que em outro artigo similar, o cordão de urdume, era essencial o uso desse recurso”). § 6. Entre as causas secundárias que determinam a produtividade dos agentes de produção, a mais importante é a segurança. Por segurança eu entendo a proteção completa que a sociedade proporciona a seus membros. Esta consiste na proteção por parte do Governo, e na proteção contra o Governo. A última é a mais importante. Onde se sabe que alguém possui qualquer coisa que valha a pena ser levada, e a pessoa nada mais pode esperar senão que essa coisa lhe seja arrebatada, com todas as características de violência de uma tirania, por agentes de um Governo voraz, é improvável que seja grande o número dos que se empenham em produzir o que vai além dos artigos de primeira necessidade. Eis o que reconhecidamente explica a pobreza de muitas áreas férteis da Ásia, que já foram prósperas e populosas. Entre esse grau de insegurança e o grau de segurança desfrutada nas regiões mais bem governadas da Europa existem numerosas gradações. Em muitas províncias da França, antes da Revolução, um sistema viciado de tributação sobre a terra e ainda mais a ausência de indenização contra as cobranças arbitrárias que eram feitas à guisa de impostos fizeram com que todo agricultor tivesse interesse em parecer pobre e, portanto, cultivasse mal a terra. A única insegurança que é totalmente paralisadora das energias ativas dos produtores é a proveniente do Governo ou das pessoas revestidas de sua autoridade. Contra todos os outros depredadores há esperança de autodefesa. A Grécia e as colônias gregas da Antiguidade, Flandres e a Itália na Idade Média, de forma alguma desfrutaram daquilo que toda pessoa imbuída de ideias modernas teria chamado de segurança; a situação da sociedade era altamente instável e turbulenta; a pessoa e a propriedade estavam expostas a um sem-número de perigos. Mas eram países livres; no geral, não eram arbitrariamente oprimidos pelo Governo, nem sistematicamente saqueados pelo mesmo. Contra os outros inimigos, a energia individual que suas instituições geravam lhes permitiu resistir com sucesso; eis por que seu trabalho era eminentemente produtivo e sua riqueza cresceu constantemente enquanto permaneceram países livres. O despotismo romano, pondo fim às guerras e aos conflitos internos do império, livraram a população conquistada de grande parte da insegurança anterior; mas pelo fato de deixá-la sob o jugo esmagador de sua própria capacidade, essa população ficou sem energia e empobrecida, até transformar-se em presa fácil para os invasores bárbaros, mas livres. Essas populações não queriam mais lutar nem trabalhar, porque já não se lhes permitia que desfrutasse daquilo pelo em que lutavam e trabalhavam. Grande parte da segurança pessoal e da propriedade nas nações modernas é efeito mais dos costumes e da opinião pública do que das leis. Existem — ou existiam ultimamente — países, na Europa, em que o monarca era nominalmente absoluto, mas onde, em razão das restrições impostas pelo uso estabelecido, nenhum súdito se sentia praticamente exposto ao mínimo perigo de ver suas posses arbitrariamente tomadas pelo Governo ou de ver este cobrar-lhe taxas arbitrárias. Contudo, há necessariamente, em tais Governos, muitos pequenos saques e outras tiranias, praticadas por agentes subordinados, atos para os quais não existe indenização, devido à falta de publicidade, que constitui a característica comum dos Governos absolutistas. Na Inglaterra, o público desfruta de uma proteção razoável contra os agentes do Governo, tanto por parte das instituições como em razão dos usos vigentes; todavia, quanto à segurança de que o público desfruta contra outros malfeitores, muito pouco desta deve-se hoje às instituições do país. Não se pode afirmar que as leis dispensem proteção à propriedade, quando a proporcionam somente a um custo tal que submeter-se à lesão constitui, em geral, a melhor solução. A segurança da propriedade na Inglaterra (excetuado o caso da violência aberta) deve-se à opinião pública e ao medo da publicidade, muito mais do que à ação da lei e à ação dos tribunais de justiça. Independentemente de todas as imperfeições dos baluartes que a sociedade propositadamente ergue em defesa do que reconhece como propriedade, há vários outros modos de a falha das instituições impedir que os recursos produtivos de um país sejam empregados com maior vantagem. Teremos ocasião de notar muitos deles no decurso de nossa exposição. Basta aqui notar o seguinte: pode-se esperar que seja grande a eficiência do trabalho na medida em que se asseguram ao trabalhador os frutos de sua atividade; além disso, note-se que todos os aperfeiçoamentos sociais conduzem à atividade útil, na medida em que se fizer com que a recompensa de cada um por seu trabalho seja proporcional, tanto quanto possível, ao benefício que esse trabalho produz. Todas as leis ou usos que favorecem uma classe ou tipo de pessoas em detrimento de outros, que agrilhoam os esforços de qualquer segmento da comunidade na busca de seu próprio bem ou se intrometem entre esses esforços e seus frutos naturais — constituem (independentemente de todos os outros motivos de condenação) violações dos princípios fundamentais da política econômica, tendendo a fazer com que o conjunto das forças produtivas da comunidade produzam efetivamente menos do que de outra forma produziriam. CAPÍTULO VIII A Cooperação ou União de Esforços no Trabalho § 1. Na enumeração das circunstâncias que favorecem a produtividade da mão-de-obra, aqui deixamos de mencionar uma que, devido à sua importância e aos muitos itens de discussão que envolve, deve ser tratada em separado. Trata-se da cooperação, ou seja, da ação combinada de muitos. Um setor isolado desse setor auxiliar da produção, conhecido pelo nome de divisão do trabalho, tem absorvido boa parte da atenção dos autores de Economia Política — merecidamente, sem dúvida, mas excluindo outros casos e exemplificações da mesma lei abrangente. Ao que me parece, o Sr. Wakefield foi o primeiro a assinalar que uma parte do assunto havia sido confundida com o todo, tendo um efeito pernicioso; apontou ele que, subjacente ao princípio da divisão do trabalho, havia um princípio mais fundamental, no qual aquele se incluía. Observa que a cooperação “pode ser de dois tipos diferentes: primeiro, aquela que ocorre quando várias pessoas se ajudam entre si na mesma ocupação; segundo, a cooperação que tem lugar quando várias pessoas se ajudam entre si em ocupações diferentes. O primeiro tipo chama-se cooperação simples, e o segundo, cooperação complexa. “A vantagem da cooperação simples é ilustrada com o caso de dois galgos correndo juntos, os quais, como se diz, matarão mais lebres do que quatro galgos correndo separados. Em grande número de operações simples executadas pela atividade humana, é perfeitamente óbvio que duas pessoas trabalhando juntas farão mais do que quatro, ou seja, mais do que quatro vezes o que fazem quatro pessoas trabalhando cada uma separada das demais. Por exemplo: levantando grandes pesos, cortando árvores, serrando madeira, juntando grandes porções de feno ou de trigo durante o breve período de bom tempo, drenando grande área de terra durante uma curta estação em que se pode adequadamente executar esse trabalho, puxando cabos a bordo de navios, remando grandes barcos em operações de mineração, levantando andaimes para construção, ou quebrando pedras para reparar uma estrada, de sorte que a estrada toda seja mantida sempre em boa ordem; em todas essas operações simples, e em um sem-número de outras, é absolutamente necessário que muitas pessoas trabalhem junto, ao mesmo tempo, no mesmo lugar e da mesma forma. Os selvagens da Nova Holanda nunca prestam ajuda uns aos outros, mesmo nas operações mais simples, sendo a sua condição dificilmente superior — sob alguns aspectos até inferior — à dos animais selvagens que abatem de vez em quando. Imagine alguém que os trabalhadores da Inglaterra subitamente deixem de ajudar-se em tarefas simples; ele verá de imediato a vantagem prodigiosa da cooperação simples. Em um número incontável de ocupações o produto do trabalho é, até certo ponto, proporcional a essa ajuda mútua praticada entre operários. Este é o primeiro passo no aperfeiçoamento social”. O segundo ocorre quando “um grupo de pessoas junta seu trabalho para produzir mais alimento do que necessita, e um outro grupo de pessoas é levado a juntar seu trabalho a fim de produzir mais roupas do que necessita, comprando com essas roupas o excedente de alimentos do primeiro grupo de trabalhadores; se os dois grupos juntos produziram mais alimentos e mais roupas do que o necessário para ambos, os dois grupos conseguem, mediante a troca, um capital suficiente para colocar mais trabalhadores em suas respectivas atividades”. Acrescenta-se assim à cooperação simples o que o Sr. Wakefield denomina cooperação complexa. A primeira consiste na cooperação de vários trabalhadores em mútuo auxílio no mesmo conjunto de operações; a segunda é a união de vários trabalhadores para se ajudarem mediante uma divisão de operações. Existe “uma distinção importante entre a cooperação simples e a complexa. Na primeira, a pessoa tem sempre consciência dela no momento em que a pratica — ela é óbvia para o observador comum e não informado. Quanto à segunda, poucos dos grandes contingentes de trabalhadores que a praticam têm consciência dela. É fácil ver a razão dessa diferença. Quando se empregam várias pessoas para levantar o mesmo peso ou para puxar o mesmo cabo, ao mesmo tempo e no mesmo lugar, não pode haver dúvida que cooperem umas com as outras; a necessidade de cooperar grava-se na mente pela simples constatação visual; mas quando várias pessoas ou grupos de pessoas estão empenhadas em momentos e lugares distintos, em atividades diferentes, sua cooperação mútua, embora possa ser tão certa como no primeiro caso, não é percebida prontamente como no outro caso; percebê-la exige uma operação complexa da mente”. No presente estado da sociedade, a criação e alimentação de ovelhas constitui a ocupação de um conjunto de pessoas; pentear a lã a fim de prepará-la para o fiandeiro é outra; transformá-la em fios é uma terceira ocupação; tecer os fios para a obtenção do tecido é uma quarta; tingir o tecido é uma quinta, e fazer com o tecido um casaco é uma sexta, sem contar a multidão de transportadores, comerciantes, agentes e varejistas solicitados nos estágios sucessivos desse processo. Todas essas pessoas, sem conhecerem umas às outras ou sem um prévio entendimento, cooperam na produção do resultado último — um casaco. Mas não são absolutamente os únicos que cooperam na feitura do casaco; com efeito, cada uma dessas pessoas demanda alimentos e muitos outros artigos de consumo; se não tivesse podido confiar em que outras pessoas os produziriam para elas, não poderiam ter dedicado seu tempo integral a um único passo na sucessão de operações que produz uma única mercadoria, um casaco. Toda pessoa que participou da produção de alimentos ou na construção de casas para essa série de produtores, associou, embora não tenha consciência individual disso, seu trabalho ao deles. É por uma associação real, embora não expressa, “que um grupo produzindo mais alimentos do que necessita, pode efetuar uma troca com o grupo que produz mais roupas do que necessita; e se os dois grupos fossem separados pela distância ou por antipatia — a menos que os dois grupos formassem virtualmente um só, para o propósito comum de produzir alimentos e roupas suficientes para o todo — não poderiam dividir em duas partes distintas a operação total de produzir uma quantidade suficiente de alimentos e de roupas”. § 2. A influência exercida na produção pela divisão das ocupações é mais fundamental do que um leitor poderia ser levado a supor, com base na forma em que o assunto costuma ser tratado. Não só ocorre que, quando a produção de coisas diferentes se torna a única ou principal ocupação de pessoas diferentes, produz-se uma quantidade muito maior de cada tipo de artigo. A verdade ainda vai muito além disso. Se não houvesse divisão de ocupações, muito poucas seriam as coisas que poderiam ser produzidas. Suponhamos que um conjunto de pessoas ou de certo número de famílias exerçam todas a mesma atividade; cada família estabelecida em um pedaço de terra própria, na qual, com seu trabalho, cultivaria o alimento necessário para o próprio sustento, e, em não havendo pessoas para comprar qualquer excedente de produção porquanto todos fossem produtores, cada família teria que produzir para si quaisquer outros artigos de consumo. Em tais circunstâncias, se o solo fosse razoavelmente fértil, e se a população não tivesse que lutar demais pela subsistência, sem dúvida haveria algum tipo de manufatura doméstica; talvez dentro da própria família se pudesse fiar e tecer alguma roupa, provavelmente com o trabalho das mulheres (um primeiro passo na divisão das ocupações), e se levantaria e manteria, com o trabalho unido da família, algum tipo de moradia. Mas além de alimentos simples (também estes precários, devido às variações das estações), roupas grosseiras e alojamento imperfeito, dificilmente seria possível que a família produzisse algo mais. No geral, teriam que empenhar-se ao máximo para produzir isso. Seu poder, mesmo o de extrair alimento do solo, permaneceria dentro de limites estreitos, devido à qualidade de suas ferramentas, que necessariamente seriam as mais primitivas. Fazer qualquer coisa no sentido de produzir para si artigos de conveniência ou de luxo demandaria tempo excessivo e, em muitos casos, sua presença em lugar diverso. Por isso, existiriam muito poucas espécies de atividade; e as que existissem, isto é, a produção de artigos de primeira necessidade, seriam extremamente ineficientes, não somente em razão da imperfeição dos implementos, mas também porque, quando o solo e o trabalho doméstico por ele alimentado tivessem fornecido o necessário para uma única família, em abundância razoável, haveria pouca motivação para fazer-se com que a terra ou o trabalho produzissem mais, já que o número dos componentes da família permaneceria o mesmo. Suponhamos, porém, que ocorresse um evento que equivaleria a uma revolução nas circunstâncias dessa pequena colônia. Suponhamos que chegasse à região e se estabelecesse entre essa população uma companhia de artesãos, providos de ferramentas, com alimentos suficientes para se manterem por um ano. Que esses novos colonizados se ocupassem em produzir utensílios ou artigos para a ornamentação, adaptados ao gosto de uma população simples; que antes de se esgotarem seus alimentos, produzissem tais artigos em quantidade considerável, estando dispostos a trocá-los por mais alimentos. A posição econômica da população agrícola estaria, então, profundamente alterada do ponto de vista material. Teria, agora, uma oportunidade de adquirir artigos de conforto e de luxo, coisas que, enquanto dependia exclusivamente de seu próprio trabalho, nunca poderia ter conseguido, porque não poderia tê-las produzido; estas lhe são, agora, acessíveis, se conseguir produzir uma quantidade adicional de alimentos e de artigos de necessidade. São assim estimulados a aumentar a produtividade de seu trabalho. Entre os utensílios aos quais pela primeira vez tem acesso, um deles talvez sejam as melhores ferramentas; além disso, tem motivação para trabalhar com mais assiduidade e para adotar invenções com o fim de tornar seu trabalho mais eficiente. Com esses recursos no geral conseguirá forçar o solo a produzir não somente os alimentos para si, mas também um excedente para os novos que chegaram, com o que poderá comprar o produto do artesanato deles. Os recém-chegados constituem o que se denomina um mercado para o excedente de produtos agrícolas; a chegada dos novos moradores enriqueceu a colônia não somente com os artigos manufaturados que produzem, mas também com os alimentos que não teriam sido produzidos, caso estes não estivessem lá para consumi-los. Não existe nenhuma incongruência entre essa doutrina e a proposição anteriormente defendida de que um mercado para mercadorias de uso comum não constitui emprego para mão-de-obra. A mão-de-obra dos agricultores já estava empregada; estes não devem à demanda dos recém-chegados o fato de poderem sustentar-se a si mesmos. O que a demanda faz por eles é incitar sua mão-de-obra a trabalhar mais e com maior eficiência, estimulá-los com novas motivações para novas atividades. Tampouco os recém-chegados devem sua manutenção e seu emprego à demanda dos agricultores: com estoque de alimentos para um ano, poderiam ter-se estabelecido ao lado dos habitantes anteriores e produzir um escasso estoque similar de alimentos e de artigos de necessidade. Vemos, contudo, a importância suprema que tem, para a produtividade do trabalho dos produtores, a existência de outros produtores no local, ao seu alcance, e empregados em tipos diferentes de atividade. Poder trocar os produtos de um tipo de trabalho pelos de outro é apenas uma condição, mas uma condição sem a qual haveria quase sempre uma quantidade menor de trabalho no conjunto. Quando se abre um novo mercado para algum produto do trabalho, e, consequentemente, se produz uma quantidade maior do artigo, o aumento de produção nem sempre é obtido à custa de outro produto; por vezes é uma nova criação, resultado do trabalho que de outra forma não teria sido executado, ou, então, da ajuda prestada à mão-de-obra por aperfeiçoamentos ou por formas de cooperação às quais não se teria recorrido, se não se tivesse oferecido um estímulo para produzir mais. § 3. A partir dessas considerações, parece que um país raramente terá uma agricultura produtiva se não tiver uma grande população urbana, ou como o único fator substitutivo, um grande comércio de exportação de produtos agrícolas para atender a população de outras regiões. Uso aqui a expressão população urbana para ser breve e significar uma população não agrícola que, geralmente, se congrega em cidades ou em grandes aldeias para fins de associação de mão-de-obra. A aplicação dessa verdade (pelo Sr. Wakefield) à teoria da colonização despertou grande atenção e, sem dúvida, está destinada a suscitar ainda mais. É uma dessas grandes descobertas práticas que, uma vez feitas, se apresentam tão óbvias, que o mérito de a haver feito parece menor. O Sr. Wakefield foi o primeiro a assinalar que a maneira então praticada de fundar novas colônias — colocando, lado a lado, certo número de famílias, cada uma em seu pedaço de terra, e cada uma delas exercendo exatamente a mesma atividade — embora, em condições favoráveis, seja capaz de assegurar a elas uma abundância vigorosa de artigos estritamente necessários, nunca pode ser favorável a uma grande produção ou a um crescimento rápido; o sistema proposto consiste em dispositivos que assegurem que cada colônia tenha, desde o início, uma população urbana devidamente proporcional à sua população agrícola, e que os cultivadores do solo não estejam tão espalhados a ponto de ficarem privados, pela distância, do benefício dessa população citadina, que constitui um mercado para a sua produção. O princípio sobre o qual se baseia o esquema não depende de qualquer teoria concernente à maior produtividade da terra possuída em grandes latifúndios e cultivada por mão-de-obra contratada. Supondo verdadeiro que a terra assegura a maior produção quando dividida em pequenas quantidades e quando cultivada por proprietários camponeses, mesmo assim a população urbana será igualmente necessária para levar esses proprietários a produzirem mais; e se esses proprietários rurais estivessem excessivamente longe da sede mais próxima da atividade não-agrícola, para poder utilizá-la como um mercado na venda de seus excedentes e com isso suprirem suas próprias necessidades, não produziriam, em termos gerais, nem o referido excedente, nem qualquer quantidade equivalente ao mesmo. É antes de tudo a falta de população urbana que limita [1848] a produtividade do trabalho em um país como a Índia. A agricultura da Índia é inteiramente baseada no sistema de pequenas propriedades. Existe, porém, uma proporção considerável de trabalho associado. As instituições e os costumes da aldeia, que constituem a estrutura real da sociedade indiana, asseguram a ação conjunta nos casos em que há necessidade; ou, então, onde deixam de fazê-lo o Governo (quando razoavelmente administrado) intervém, e, com meios oriundos da receita, constrói, recorrendo ao trabalho conjunto, os reservatórios, barragens e obras de irrigação, que são indispensáveis. Todavia, os implementos e processos agrícolas são tão precários, que é extremamente reduzida a produção do solo, a despeito da grande fertilidade natural e do clima altamente favorável à vegetação; na realidade, poder-se-ia fazer a terra produzir alimento em abundância, o suficiente para um número bem maior de habitantes que o atual, sem abandonar o sistema de pequenas propriedades. Mas para isso falta o estímulo assegurado por uma grande população citadina ligada aos distritos rurais por meios fáceis e baratos de comunicação. Por sua vez, essa população citadina não floresce porque as poucas necessidades e a falta de aspiração dos agricultores (fatores associados, até recentemente, a uma grande insegurança da propriedade, devido à rapacidade militar e fiscal) os impedem de tentarem transformar-se em consumidores de produtos urbanos. Em tais circunstâncias, a melhor chance para um rápido desenvolvimento dos recursos produtivos da Índia consiste no crescimento rápido de sua exportação de produtos agrícolas (algodão, índigo, açúcar, café etc.) aos mercados europeus. Os produtores desses artigos são consumidores de alimentos produzidos por seus colegas agricultores da Índia; o mercado assim aberto para o excedente de alimentos, se acompanhado de um bom Governo, gradualmente criará na população maiores necessidades e desejos voltados para mercadorias europeias ou para coisas que, para a sua produção na própria Índia, exigirão uma população maior de manufatores. § 4. Isso quanto à separação em ocupações, forma de associação de trabalho sem a qual não podem existir os primeiros rudimentos de civilização industrial. Mas quando essa separação se encontra totalmente estabelecida, quando se torna geral a prática de cada produtor fornecer a muitos outros determinada mercadoria e de receber de outros a maior parte das coisas que consome, há razões não menos reais, embora menos imperativas, que constituem um convite à ampliação do mesmo princípio. Constata-se que a força produtiva do trabalho aumenta com a diversificação crescente das ocupações, com a subdivisão constante do processo de trabalho, de maneira que cada trabalhador se limite a um número ainda menor de operações simples. E assim surgem no devido momento os casos notáveis da assim chamada divisão do trabalho, com a qual estão familiarizados todos os que leem sobre assuntos dessa natureza. A descrição que Adam Smith faz da manufatura de alfinetes, embora tão conhecida, vem tão a propósito, que ouso repetir sua transcrição. “A atividade de fazer um alfinete está dividida em aproximadamente dezoito operações diferentes. Uma pessoa estende o arame, outra o endireita, uma terceira o corta, uma quarta faz a ponta, uma quinta prepara a ponta para receber a cabeça; fazer a cabeça exige duas ou três operações distintas; afixá-la é uma ocupação específica; polir os alfinetes é outra; até mesmo colocá-los no papel é ocupação específica. (...) Vi uma pequena manufatura na qual estavam empregados apenas dez homens, onde, por conseguinte, alguns executavam duas ou três operações diferentes. Mas, embora fossem muito pobres e pouco afeitos ao uso das máquinas necessárias, conseguiam, quando se empenhavam, fazer juntos cerca de 12 libras de alfinetes por dia. Em 1 libra há mais de 4 mil alfinetes de tamanho médio. Essas dez pessoas conseguiam, pois, fazer em conjunto mais de 48 mil alfinetes por dia. Portanto, fazendo cada pessoa a décima parte de 48 mil alfinetes, poder-se-ia admitir que cada uma fizesse diariamente 4 800 alfinetes. Entretanto, se todas tivessem trabalhado separadas e independentes uma da outra e sem que nenhuma delas fosse treinada para essa atividade específica, com certeza cada uma delas não teria conseguido fazer 20 alfinetes por dia, talvez nem mesmo 1 por dia”. O Sr. Say apresenta um exemplo ainda mais significativo do efeito da divisão do trabalho, extraído de uma atividade de fato não muito importante, a manufatura de baralhos. “Os que trabalham nessa atividade dizem que cada carta, isto é, um pedaço de papelão do tamanho da mão, antes de pronta para a venda, passa por nada menos de setenta operações, cada uma das quais poderia ser ocupação de uma categoria diferente de operários. E, se não há setenta categorias de operários em cada manufatura de baralhos, é porque a divisão do trabalho não está implantada na extensão em que o poderia ser, porque um mesmo trabalhador se encarrega de duas, três ou quatro operações diferentes. É imensa a influência dessa distribuição de ocupações. Visitei uma manufatura de baralhos em que trinta operários produziam diariamente 15 500 cartas, portanto acima de 500 cartas por operário; pode-se pressupor que se cada um deles fosse obrigado a executar todas as operações sozinho, mesmo admitindo que fosse uma pessoa com prática, talvez não terminasse duas cartas por dia; e os trinta trabalhadores, em vez de 15 500 cartas, fariam apenas 60”. (Prova notável da economia de trabalho que é ocasionada por essa minuciosa divisão de ocupações está em que um artigo, cuja produção resulta de tal multidão de operações manuais, pode ser vendido por um preço insignificante). Na manufatura de relógios, como observa o Sr. Babbage, “ficou evidenciado perante um Comitê da Câmara dos Comuns que há 102 ocupações ou operações diferentes, sendo que em cada uma delas pode-se colocar um aprendiz; que este somente aprende a ocupação ensinada pelo mestre, e depois de determinada a aprendizagem, é incapaz de trabalhar em qualquer outro setor, sem treinamento subsequente. O montador final, cuja atividade consiste em juntar e montar os componentes separados, é o único dentre as 102 pessoas que é capaz de trabalhar em qualquer outro setor diferente”. § 5. Algumas das causas da maior eficiência assegurada ao trabalho pela divisão de ocupações são por demais familiares e dispensam explicação, porém vale a pena tentar uma enumeração completa delas. Adam Smith as reduz a três. “Primeiro, o aumento de destreza em cada operário individual; segundo, a economia do tempo comumente gasto em passar de um tipo de trabalho para o outro; finalmente, a invenção de um grande número de máquinas que facilitam e abreviam o trabalho, possibilitando a uma só pessoa executar o trabalho de muitos”. Dessas três causas, o aumento de destreza do operário individual é a mais óbvia e universal. Daí não se conclui que, pelo fato de uma coisa ter sido feita mais vezes, mais bem-feita será. Isso depende do talento do trabalhador e do grau em que a mente trabalha em conjunto com suas mãos. Mas o trabalho vai desenvolver-se mais facilmente. Os próprios órgãos adquirem maior força: os músculos empregados tornam-se mais fortes com o exercício frequente, os tendões mais flexíveis e dóceis, as forças mentais mais eficientes e menos sensíveis à fadiga. O que pode ser feito com mais facilidade tem, no mínimo, uma chance a mais de ser bem executado, sendo certo que será feito com maior desembaraço. O que antes se fazia lentamente passa a ser feito com rapidez; o que antes era feito lentamente com exatidão, ao final é feito rapidamente e com a mesma precisão. Isso é verdade tanto para as operações mentais quanto para as corporais. Mesmo uma criança, depois de muito praticar, soma uma coluna de números com a rapidez que se assemelha à intuição. O ato de falar uma língua qualquer, de ler com fluência, de tocar música lendo as notas são casos tão notáveis quanto conhecidos. Entre as expressões corporais, a dança, os exercícios de ginástica, a facilidade e o brilhantismo da execução ao tocar um instrumento musical constituem exemplos da rapidez e facilidade adquiridas com a repetição. Em operações manuais mais simples, o efeito se verifica naturalmente mais cedo. Observa Adam Smith que “a rapidez com a qual se executam algumas das operações de certas manufaturas supera aquilo que (na suposição das pessoas que nunca viram tais operações) a mão humana seria capaz de adquirir”. (Em observações astronômicas, o hábito torna os sentidos do operador tão agudos que ele consegue calcular diferenças de tempo de até 1/10 de segundo e ajustar seus instrumentos de medição a graduações tais que 5 mil delas ocupam apenas uma polegada. O mesmo ocorre nos processos mais comuns de manufatura. Uma criança que afixa as cabeças de alfinetes repetirá operações que exigem vários movimentos distintos dos músculos, cem vezes por minuto, durante várias horas sucessivas. Em um jornal recente de Manchester afirmavam que um tipo especial de torcedura ou gimp, cuja feitura custava 3 xelins quando introduzida pela primeira vez, agora se manufaturava por 1 pêni; e isso, não, como de costume, pela invenção de uma nova máquina, mas exclusivamente devido à maior destreza do trabalhador"). Naturalmente, essa habilidade se consegue com prática menor, na medida em que a divisão do trabalho é mais minuciosa, e não se consegue no mesmo grau, se o trabalhador tiver que executar uma variedade de operações superior àquela que permite uma repetição frequente o suficiente de cada uma delas. A vantagem não se limita à maior eficiência atingida ao final, mas inclui também a menor perda de tempo e o menor dispêndio de material na aprendizagem da ocupação. Segundo observa o Sr. Babbage “certa quantidade de material será desperdiçada ou estragada sem proveito em todos os casos por toda pessoa que aprende um ofício; e que a pessoa se aplica a um novo processo, desperdiçará parte da matéria-prima, ou da mercadoria em parte manufaturada. Mas, se cada um cometesse esse desperdício ao aprender sucessivamente cada processo diferente, a quantidade desperdiçada seria muito maior do que se cada pessoa limitasse sua atenção a um único processo”. Além disso, em geral, cada um se qualifica muito antes para executar o seu processo único se, enquanto o estiver aprendendo, não for distraído pela necessidade de aprender outros. Quanto à segunda vantagem enumerada por Adam Smith como decorrente da divisão do trabalho, não posso deixar de pensar que tanto ele como outros a enfatizam mais do que merece. Para fazer um juízo justo sobre sua opinião, citarei suas próprias palavras sobre o assunto. “A vantagem que se obtém economizando o tempo comumente perdido na passagem de um tipo de trabalho para outro é muito maior do que à primeira vista estaríamos inclinados a imaginar. É impossível passar com muita rapidez de um tipo de serviço para outro, que é executado em lugar diferente e com ferramentas bem diferentes. Um tecelão do campo que cultiva uma pequena propriedade, necessariamente perde muito tempo ao passar de seu tear para o trabalho do campo, ou deste trabalho para o seu tear. Quando as duas ocupações puderem ser executadas na mesma oficina, sem dúvida a perda de tempo é muito menor. Mesmo nesse caso, porém, ela é considerável. Em geral, uma pessoa vadia um pouco enquanto passa de um tipo de ocupação para outro. Quando finalmente inicia o novo trabalho, raramente ela procura engajar-se seriamente; sua mente não está aí, como se diz, e durante algum tempo mais vadia do que se aplica de verdade. O hábito de fazer hora e da aplicação indolente e despreocupada, necessariamente adquirido por todo trabalhador do campo que é obrigado a trocar seu trabalho e suas ferramentas a cada meia hora, e o hábito de aplicar-se de vinte modos diferentes cada dia que passa, quase sempre o torna indolente e preguiçoso, incapaz de qualquer aplicação diligente, mesmo em ocasiões as mais prementes”. Eis uma descrição (sem dúvida altamente exagerada) da ineficiência do trabalhador do campo onde se lhe oferece alguma motivação adequada. Poucos são os trabalhadores que mudam de trabalho e trocam suas ferramentas com maior frequência do que o jardineiro; será por ventura incapaz de uma aplicação vigorosa? Muitos artesãos de categoria mais elevada têm que executar múltiplas operações com diferentes ferramentas. Não executam cada uma dessas operações com a mesma rapidez de um operário de fábrica executando uma operação individual; no entanto, exceto no sentido puramente manual, são trabalhadores mais habilidosos e, em todos os demais sentidos, são mais fortes, têm mais energia. O Sr. Babbage, seguindo as pegadas de Adam Smith, afirma: “Quando, durante algum tempo, a mão ou a cabeça do homem estão ocupadas em qualquer tipo de trabalho, não conseguem instantaneamente mudar de ocupação com plena eficiência. Os músculos dos membros empregados adquiriram flexibilidade durante sua atividade, enquanto os músculos não ativados se entorpecem durante o repouso, o que torna toda mudança lenta e irregular de início. O longo hábito também produz nos músculos exercitados uma capacidade de suportar a fadiga em grau muito mais elevado do que poderia em outras circunstâncias. Resultado similar parece ocorrer em toda mudança de atividade mental: a atenção dispensada à nova atividade não é tão perfeita no início quanto se torna depois de algum exercício. O emprego de ferramentas diferentes nos processos sucessivos constitui outra causa da perda de tempo na mudança de uma operação para outra. Se essas ferramentas forem simples e a mudança não for frequente, a perda de tempo não é considerável; mas em muitos processos artesanais as ferramentas são muito delicadas, exigindo uma adaptação acurada toda vez que forem usadas; em muitos casos o tempo empregado na adaptação se apresenta em grande proporção com o tempo de utilização da ferramenta. A espera do torno, o divisor e a furadeira são desse tipo; eis por que, em manufaturas de razoável porte, considera-se econômico manter uma só máquina constantemente ocupada com um único tipo de serviço, assim, por exemplo, um torno, com movimento helicoidal na espera, ao longo de todo o comprimento da bancada, permanece em constante operação de fazer cilindros; outro, que tem um movimento capaz de igualar a velocidade do trabalho no ponto em que passa a ferramenta, é mantido em operação para tornear superfícies, ao passo que um terceiro é constantemente empregado para usinar engrenagens”. Longe de mim dar a entender que essas diversas considerações carecem de importância; entendo, porém, que se omitem considerações em contrário. Se um tipo de trabalho muscular ou mental é diferente do outro, por essa mesma razão representa até certo ponto um descanso daquele outro; e se na segunda ocupação não se consegue de imediato o vigor máximo, também a primeira não poderia ter sido prolongada indefinidamente sem alguma diminuição da energia. A experiência corrente ensina que muitas vezes uma mudança de ocupação representa um alívio onde, caso contrário, seria necessário o repouso, e que uma pessoa consegue trabalhar mais horas sem fadiga desenvolvendo ocupações sucessivas do que se estivesse limitada a uma única durante todo o tempo. Ocupações diferentes solicitam músculos diferentes, associados a energias mentais diferentes, alguns dos quais descansam e se retemperam enquanto outros trabalham. O próprio trabalho físico entra em repouso com o trabalho mental, e vice-versa. O próprio fato de variar apresenta um efeito revigorante sobre aquilo que, por falta de outra denominação mais filosófica, devemos chamar de moral animal, tão importante para a eficiência de todo trabalho não mecânico, sem deixar de ser importante mesmo para este. A importância comparativa atribuída a essas considerações difere de indivíduo para indivíduo; alguns são mais aptos que outros para persistir em uma única ocupação, e menos aptos para a mudança; necessitam de mais tempo para se “aquecerem” (para nos servirmos de uma metáfora corrente); é mais prolongado o tédio que sentem ao começar o trabalho, e carecem de mais tempo para colocar suas faculdades em plena ação; por esse motivo, uma vez feito isso, não gostam de deixar o trabalho, mas continuam sem interrupção por muito tempo, prejudicando mesmo a saúde. Por vezes o temperamento tem algo a ver com essas diferenças. Há pessoas cujas faculdades, por natureza, parecem estar em ação apenas lentamente, realizando pouco enquanto não tiverem muita prática na ocupação. Outros, ao contrário, passam rapidamente à ação, mas não conseguem prolongá-la por muito tempo sem se cansarem. Nisso, porém, como na maior parte das outras coisas, embora as diferenças de natureza representem algo, muito mais conta o hábito. Pode-se adquirir o hábito de passar rapidamente de uma ocupação para outra, como qualquer costume, cultivando-o desde cedo; e uma vez adquirido esse hábito, nada mais sobra dessa vadiagem depois de cada mudança, de que fala Adam Smith; não há mais falta de energia e de interesse; o trabalhador enfrenta cada parte de sua ocupação com um frescor e espírito elevado que não consegue manter se persistir em qualquer outra parte (a não ser no caso de excitação extraordinária) por um período maior de tempo que o de costume. Via de regra as mulheres (pelo menos em sua atual situação social) apresentam muito mais versatilidade do que os homens; aliás, o tema em pauta constitui um exemplo entre muitos de quão pouco as ideias e a experiência das mulheres foram levadas em consideração na formação das opiniões da humanidade. Poucas são as mulheres que não rejeitariam a ideia de que o trabalho é fortalecido pela prolongação e é ineficiente durante algum tempo depois da mudança para uma nova atividade. Mesmo nesse caso, penso eu, a causa da diferença está muito mais no hábito do que na natureza. As ocupações de nove dentre cada dez homens são especiais; ao passo que as de nove dentre cada dez mulheres são gerais, abarcando um grande número de detalhes, cada um dos quais exige pouco tempo. As mulheres passam constante e rapidamente de um trabalho manual para outro, e com maior rapidez ainda de uma operação mental para outra; por esse motivo raramente isso lhes custa esforço ou perda de tempo, ao passo que a ocupação de um homem em geral consiste em trabalhar sem parar durante longo tempo em uma só coisa, ou em uma categoria limitada de coisas. Entretanto, essas situações por vezes se invertem, e com elas também os personagens. Não se constatou que as mulheres sejam menos eficientes que os homens no tocante à uniformidade do trabalho de fábrica, caso contrário seu emprego não seria tão generalizado em tal atividade; por outro lado, um homem que cultivou o hábito de ocupar-se com muitas coisas, longe de ser a pessoa indolente e preguiçosa descrita por Adam Smith, costuma ser notavelmente vivo e ativo. No entanto, é verdade que a mudança de ocupação pode ser excessivamente frequente, mesmo para os mais versáteis. A variedade incessante é até mais cansativa do que a uniformidade perpétua. A terceira vantagem atribuída por Adam Smith à divisão do trabalho é real até certo ponto. Invenções que procuram economizar trabalho em uma operação específica ocorrem mais provavelmente a alguém que tiver seus pensamentos intensamente voltados para aquela ocupação e estiver continuamente ocupado nessa atividade. Não tem tanta probabilidade de introduzir aperfeiçoamentos práticos em um setor a pessoa cuja atenção for muito desviada para outros ramos. Isso, porém, depende muito mais do talento geral e da atividade habitual da mente do que da exclusividade ocupacional; e se essa exclusividade for levada até um grau desfavorável para o uso da inteligência, haverá nesse tipo de vantagem mais uma perda do que um ganho. Podemos acrescentar que, seja qual for a causa que leve às invenções, uma vez feitas, a maior eficiência do trabalho se deve à própria invenção, não à divisão do trabalho. A maior vantagem (depois da destreza dos trabalhadores) decorrente da minuciosa divisão do trabalho, que ocorre na indústria manufatureira moderna, é a que Adam Smith não menciona, mas o Sr. Babbage nos aponta: a da distribuição mais econômica das tarefas, classificando os trabalhadores segundo sua capacidade. Partes diferentes da mesma série de operações requerem graus desiguais de habilidade e força física; os que têm habilidade suficiente para as operações mais difíceis ou força suficiente para as partes mais duras do trabalho tornam-se muito mais úteis pelo fato de serem empregados exclusivamente nelas, ficando as outras operações, de que qualquer um é capaz, para os que não servem para nenhuma outra. A produção atinge sua eficiência máxima quando nela se emprega a quantidade exata de habilidade e de força que exige cada parte do processo, e nunca mais do que isso. Ao que parece, a operação de fazer alfinetes exige, em suas diversas partes, graus tão diferentes de habilidade, que os salários dos empregados variam de 4 1/2 pence a 6 xelins por dia; se o operário que recebe esse salário mais alto tivesse que executar o processo inteiro, estaria trabalhando parte de seu tempo com um desperdício diário equivalente à diferença de 6 xelins menos 4 1/2 pence. Abstraindo da perda sofrida na quantidade de serviço realizado e supondo mesmo que ele pudesse produzir 1 libra-peso de alfinetes no mesmo período em que dez trabalhadores, trabalhando juntos, podem fazer 10 libras-peso, o Sr. Babbage calcula que estes custariam, na manufatura, 3 3/4 vezes mais do que custam agora com a divisão do trabalho. Acrescenta ele que na manufatura de agulhas a diferença seria maior ainda, pois aí a escala de remuneração para as diferentes partes do processo varia de 6 pence a 20 xelins por dia. À vantagem de se extrair a quantidade máxima de mercadoria da habilidade do trabalhador pode-se acrescentar uma vantagem análoga: a de se obter a utilidade máxima possível das ferramentas. “Se alguém” — diz um autor entendido — “possuísse todas as ferramentas exigidas por muitas ocupações diferentes, no mínimo 3/4 delas permaneceriam constantemente ociosas e sem utilidade. Seria então manifestamente melhor, se existisse alguma sociedade em que cada um possuísse todas as ferramentas e executasse alternadamente cada uma dessas ocupações, que os membros dessa comunidade, se possível, as dividissem entre si, limitando-se cada um a alguma ocupação específica. Grandes são as vantagens da mudança para a comunidade inteira e, portanto, para cada indivíduo integrante. Em primeiro lugar, pelo fato de se utilizarem os vários implementos constantemente, eles propiciariam um retorno melhor para o investimento feito na compra deles. Em consequência, seus proprietários poderiam permitir-se ferramentas de melhor qualidade e de construção mais perfeitas. O resultado dos dois eventos é o de que se atenderão melhor as futuras necessidades da sociedade inteira”. § 6. Como têm observado todos os que já escreveram sobre o assunto, a divisão do trabalho é limitada pela extensão do mercado. Se, com a divisão da manufatura de alfinetes em dez ocupações diferentes, se conseguir fazer 48 mil alfinetes por dia, essa divisão só será aconselhável se o número de consumidores atingíveis for tal que exija, por dia, algo em torno de 48 mil alfinetes. Se a demanda for de apenas 24 mil, a divisão do trabalho só pode ser praticada com vantagem na medida em que, por dia, se produzir essa quantidade menor. Eis, portanto, um outro modo de o aumento da demanda de uma mercadoria aumentar a eficiência da mão-de-obra empregada na produção da mesma. A extensão do mercado pode ser limitada por várias causas: por uma população excessivamente reduzida; pelo fato de a população estar muito espalhada e distante, não permitindo o fácil acesso; pela deficiência de estradas e do transporte por hidrovia; ou, finalmente, pela pobreza excessiva da população, isto é, pelo fato de seu trabalho coletivo ser ineficiente demais para que ela possa tornar-se uma grande consumidora. A indolência, a falta de habilidade e a ausência de combinação de trabalho, entre aqueles que de outra forma seriam compradores de uma mercadoria, limitam, pois, a dimensão prática da associação de trabalho entre os produtores dessa mercadoria. Em um estágio primitivo da civilização, quando a demanda de qualquer localidade específica era necessariamente pequena, o trabalho florescia somente entre aqueles que, pelo controle exercido sobre a costa marítima ou sobre um rio navegável, podiam ter como mercado para os seus produtos o mundo inteiro, ou sua parte costeira, senão a localizada ao longo de rios navegáveis. O aumento da riqueza geral do mundo, quando acompanhado de liberdade no intercâmbio comercial, os aperfeiçoamentos introduzidos na navegação e a comunicação interna através de estradas, canais ou ferrovias tendem a proporcionar maior produtividade ao trabalho de cada nação em particular, e isso pelo fato de permitirem que cada localidade forneça seus produtos especiais a um mercado tão maior que uma expansão da divisão do trabalho em sua produção se torne consequência necessária. Em muitos casos, a divisão do trabalho também é limitada pela natureza da atividade. A agricultura, por exemplo, não é suscetível de uma divisão de ocupações tão ampla quanto muitos setores manufatureiros, pois é impossível que suas diferentes operações sejam simultâneas. Não é possível que um homem sempre esteja arando, outro semeando e outro colhendo. Um trabalhador que exercesse uma só operação agrícola estaria ocioso durante onze meses do ano. A mesma pessoa pode executar todas essas operações sucessivamente e, mesmo assim, na maioria dos climas, pode dispor de muito tempo ocioso. Para executar uma grande melhoria agrícola, muitas vezes é necessário que muitos trabalhadores atuem juntos; em geral, porém, todos eles fazem o mesmo trabalho, excetuados os poucos que cumprem a função de supervisor. Um canal ou uma terraplenagem não podem ser feitos sem a combinação de muitos trabalhadores, todos escavadores, excetuados os engenheiros e alguns funcionários. CAPÍTULO IX A Produção em Grande Escala e a Produção em Pequena Escala § 1. Da importância da combinação do trabalho segue-se como conclusão óbvia que há muitos casos em que a produção se torna muito mais eficiente se for conduzida em larga escala. Sempre que for essencial para a eficiência máxima do trabalho que muitos trabalhadores se associem, mesmo que apenas na forma de cooperação simples, a escala em que opera o empreendimento deve ser tal que associe muitos trabalhadores, e o capital deve ser suficientemente grande para sustentá-los. Isso é ainda mais necessário quando a natureza da ocupação permite e quando a extensão do mercado possível encoraja uma considerável divisão de tarefas. Quanto maior for o empreendimento, tanto maior pode ser a divisão de tarefas. Esta é uma das causas principais das grandes manufaturas. Mesmo quando uma ampliação das operações não fosse seguida de nenhuma subdivisão adicional do trabalho, haverá uma boa economia em ampliá-las até o ponto em que cada pessoa à qual for conveniente atribuir uma ocupação especial tenha pleno emprego naquela ocupação. Esse ponto é bem ilustrado pelo Sr. Babbage. “Se mantivermos as máquinas trabalhando durante as vinte e quatro horas (o que é evidentemente a única forma econômica de empregá-las) é necessário que haja alguém encarregado de abrir as portas para os operários no horário em que se revezam, e se o porteiro — ou outra pessoa designada para isso — abrir as portas para uma pessoa ou para vinte, nos dois casos seu descanso será perturbado da mesma forma. Ocasionalmente será necessário também regular ou reparar a máquina, o que pode ser muito mais bem realizado por um operário habituado à construção de máquinas do que pela pessoa que as utiliza. Ora, já que o bom desempenho e a duração das máquinas dependem muitíssimo de corrigir toda a trepidação ou imperfeição nos seus componentes logo que se fizerem sentir, o atendimento pronto de um trabalhador permanente no local reduzirá consideravelmente o gasto proveniente do desgaste das máquinas. No caso de um único bastidor de renda ou de um único tear, este seria um esquema excessivamente dispendioso. Surge então aqui outra circunstância que tende a aumentar as dimensões de uma fábrica. Ela deve constar de um tal número de máquinas que possa ocupar o tempo integral de um operário encarregado de mantê-las em ordem; se o número passar disso, o mesmo princípio da economia mostraria a necessidade de dobrar ou triplicar o número de máquinas para empregar o tempo integral de dois ou três operários experientes. “Quando uma parte do trabalho do operário consiste no exercício de pura força física, como na tecelagem e em muitos ofícios similares, logo o manufator perceberá que, se essa parte fosse executada por uma máquina a vapor, o mesmo homem poderia, no caso da tecelagem, atender a dois ou mais teares ao mesmo tempo; e, por já supormos que se tenha contratado um ou dois engenheiros de operação, o total de teares pode ser disposto de tal forma que o tempo deles seja inteiramente ocupado em manter em ordem a máquina a vapor e os teares. "Seguindo os mesmos princípios, a manufatura se torna gradualmente tão grande que a despesa de iluminação durante a noite ascende a uma soma considerável; e uma vez que já foram contratadas pelo estabelecimento pessoas que ficam acordadas a noite toda e podem portanto recorrer constantemente à iluminação, bem como engenheiros para construir e reparar quaisquer máquinas, a adoção de um sistema para produzir gás para iluminar a fábrica leva a uma nova expansão, ao mesmo tempo que, por diminuir as despesas com iluminação e os riscos de incêndio, contribui para deduzir os custos de produção. "Muito antes de uma fábrica ter atingido essa expansão, ter-se-á constatado a necessidade de criar um setor de contabilidade com funcionários que façam o pagamento aos operários e que cuidem que estes cheguem ao serviço nos horários estabelecidos; esse setor deve estar em comunicação com os agentes que compram os produtos brutos e com os que vendem o artigo manufaturado." A esses funcionários e contadores não custará muito mais tempo e trabalho pagar um número elevado do que um número reduzido de trabalhadores, conferir as contas das transações grandes como das pequenas. Se a empresa aumentasse o dobro provavelmente seria necessário aumentar, mas não certamente dobrar, o número dos contadores ou dos agentes de compra e de venda. Todo aumento da empresa possibilitaria fazer tudo com um montante de mão-de-obra proporcionalmente menor. Como norma geral, as despesas de um empreendimento não crescem de forma alguma proporcionalmente ao montante dos negócios. Tomemos como exemplo um conjunto de operações que estamos acostumados a ver executado por um único e grande estabelecimento, o Correio. Suponhamos que o negócio, digamos, somente o do serviço de correios de Londres, em vez de ser centralizado em uma única empresa, fosse dividido entre cinco ou seis companhias concorrentes. Cada uma destas seria obrigada a manter um estabelecimento quase tão grande como o que é atualmente suficiente para o total. Já que cada uma delas deve cuidar de receber e entregar cartas em todas as partes da cidade, cada qual tem que enviar carteiros para cada rua e para quase todas as vielas, e isso tantas vezes por dia quantas atualmente faz o Correio, se quisermos que o serviço seja executado com a mesma perfeição. Cada uma das companhias deve ter um escritório para receber cartas em todos os quarteirões, com todos os dispositivos subsidiários para coletar as cartas das diferentes agências e redistribuí-las. A isso devemos acrescentar o número muito maior de funcionários de escalão superior que seriam necessários para fiscalizar e controlar os subordinados, implicando não somente um maior custo e salários para tais funcionários responsáveis, mas talvez também a necessidade de a empresa se satisfazer em muitos casos com um padrão de qualificação inferior, falhando assim no seu objetivo. Em uma situação de livre concorrência há um teste que não falha, se quisermos verificar se as vantagens obtidas operando em larga escala são ou não preponderantes, em qualquer caso específico, sobre o cuidado mais atento e a maior atenção a ganhos e perdas menores, que normalmente se encontram em estabelecimentos pequenos. Em toda parte, onde há estabelecimentos grandes e pequenos operando no mesmo negócio, entre os dois, aquele que, nas circunstâncias vigentes, produzir com a maior vantagem, será capaz de vender a preço mais baixo que o outro. Falando genericamente, a capacidade de vender permanentemente abaixo do preço dos outros só pode provir da maior eficiência do trabalho; e quando se consegue isso por uma maior divisão das ocupações ou por uma classificação que provoca melhor economia de habilidade, implica sempre que a mesma mão-de-obra produza mais, e não simplesmente que menos mão-de-obra produza o mesmo montante; isso aumenta não somente o excedente, mas também a produção bruta do trabalho. Se não for necessário aumentar a quantidade do artigo específico, e consequentemente uma parte dos trabalhadores perderem seu emprego, fica em compensação, liberado o capital que sustentava e dava emprego a esses operários; e a produção geral do país aumenta em virtude de alguma outra aplicação de sua mão-de-obra. Outra causa que leva à criação de grandes manufaturas está na adoção de processos que exigem máquinas dispendiosas. Máquinas caras supõem um grande capital, ao qual não se recorre a não ser com a intenção de produzir e a esperança de vender uma quantidade tal da respectiva mercadoria que aproveite plenamente a capacidade da máquina. Por essas duas razões, sempre que se utilizam máquinas caras, é inevitável o sistema de produção em larga escala. Todavia, nesse caso a capacidade de vender a preço mais baixo não é um teste tão infalível, como no caso anterior, do efeito benéfico sobre a produção total da comunidade. A capacidade de vender a preço mais baixo não depende do aumento absoluto da produção, mas do fato de apresentar ela uma proporção maior em relação às despesas; isso, como foi mostrado em um capítulo anterior, é possível e conciliável até mesmo com uma diminuição da produção bruta anual. Ao se adotarem máquinas, um capital circulante, que era constantemente consumido e reproduzido, foi convertido em capital fixo, cuja manutenção exige apenas uma despesa anual reduzida, sendo que uma produção muito menor será suficiente para cobrir essa despesa e para repor o remanescente capital circulante do produtor. As máquinas poderiam, portanto, atender perfeitamente bem ao manufator e possibilitar vender a preços mais baixos que os de seus concorrentes, ainda que o efeito sobre a produção do país fosse uma diminuição, e não um aumento. É verdade que a mercadoria será vendida a preço mais baixo, e por isso provavelmente se venderá desse artigo específico uma quantidade maior, e não menor, pois a perda para a comunidade coletivamente recaiu sobre os trabalhadores, os quais não são os clientes principais da maior parte dos setores manufatureiros, se é que chegam a ser consumidores desse tipo de produto. Mas, embora esse setor específico de atividade se possa ampliar, isso se fará completando seu capital circulante diminuído com o capital circulante da comunidade em geral; e se os trabalhadores empregados nesse setor escaparem à perda de emprego, é porque a perda se repartirá entre a população trabalhadora em geral. Se alguns forem reduzidos à condição de trabalhadores improdutivos, sustentados pela caridade voluntária ou legal, diminui permanentemente, no mesmo montante, a produção bruta do país, até que o progresso normal do acúmulo a recomponha. Mas se a condição das classes trabalhadoras lhes tornar possível suportar uma redução temporária de salários, e se os trabalhadores substituídos forem absorvidos em outros empregos, seu trabalho é ainda produtivo, reparando-se assim o rombo na produção bruta da comunidade, ainda que não esteja reparado o prejuízo infligido aos trabalhadores. Repeti essa exposição, que já foi feita mais acima, no intuito de inculcar com mais força a verdade segundo a qual uma forma de produção não aumenta necessariamente o efeito produtivo da mão-de-obra coletiva de uma comunidade, pelo simples fato de gerar a possibilidade de vender uma determinada mercadoria mais barato. Geralmente uma consequência acompanha a outra, mas não necessariamente. Não quero repetir aqui as razões dadas anteriormente nem antecipar aquelas que serão depois mostradas mais detalhadamente, pois acredito que a exceção é antes um caso abstratamente possível que um caso que se verifica com frequência na realidade. Uma parte considerável da economia de mão-de-obra gerada pela substituição da produção em pequena escala pela produção em larga escala consiste na economia de trabalho dos próprios capitalistas. Se cem produtores, com capitais pequenos, movimentam separadamente o mesmo negócio, a supervisão de cada estabelecimento provavelmente exigirá a atenção integral da pessoa que o dirige, ou ao menos exigirá em grau suficiente para impedi-lo de poder dedicar seu tempo ou seus pensamentos a qualquer outra coisa; em contrapartida, um único manufator, possuindo um capital igual à soma dos capitais dos cem produtores, com dez ou doze funcionários poderia dirigir todo o conjunto dos seus negócios e ainda teria tempo para outras ocupações. É bem verdade que o capitalista pequeno geralmente associa à atividade de direção uma parte dos detalhes que o grande deixa para seus subordinados: o pequeno arrendatário maneja seu próprio arado, o pequeno comerciante atende em sua própria loja, o pequeno tecelão trabalha em seu próprio tear. Todavia, exatamente nessa associação de funções reside, em grande percentagem de casos, uma falta de economia. O chefe da empresa está desperdiçando na rotina da empresa habilidades que são adequadas para a direção dela, ou ele então só serve para tais rotinas, e nesse caso a direção será malconduzida. Devo observar, porém, que não atribuo a essa economia de trabalho a importância que muitas vezes lhe têm dado. Sem dúvida gasta-se muito mais trabalho na supervisão de muitos capitais pequenos do que na de um capital grande. Acontece, porém, que por esse trabalho os pequenos produtores geralmente têm uma compensação plena por se sentirem seus próprios patrões e não estarem a serviço de um empregador. Pode-se dizer que se eles valorizam essa independência, sujeitar-se-ão a pagar o preço dela, bem como a vender sua mercadoria aos preços reduzidos impostos pela concorrência do grande comerciante ou manufator. Contudo, nem sempre podem fazer isso e continuar ao mesmo tempo ganhando a subsistência. Dessa forma eles desaparecem gradualmente da sociedade. Após terem consumido seu pequeno capital em prolongar a luta sem êxito, caem na condição de trabalhadores contratados ou então passam a depender de outros para seu sustento. § 2. A produção em larga escala é extremamente favorecida pela prática de constituir um grande capital mediante a associação de muitas contribuições menores, ou seja, em outras palavras, pela formação de sociedades por ações. São numerosas e importantes as vantagens do sistema de capital social. Em primeiro lugar, muitos empreendimentos demandam um montante de capital que vai além dos recursos do indivíduo ou da companhia privada mais rica. Nenhum indivíduo poderia ter construído uma ferrovia de Londres até Liverpool; é muito duvidoso que alguém individualmente pudesse sequer operar o tráfego existente, agora que ela está construída. Sem dúvida, o Governo poderia ter feito as duas coisas, e em países onde a prática da cooperação está apenas nos estágios iniciais do seu desenvolvimento, somente se pode contar com o Governo para empreender qualquer grande obra que requeira grande associação de recursos, pois ele os pode conseguir mediante tributação compulsória, e por estar já habituado a dirigir operações de grande porte. Todavia, por motivos que são razoavelmente bem conhecidos e dos quais trataremos detalhadamente mais adiante, a intervenção governamental na direção de operações industriais costuma ser um dos recursos aos quais menos se deve recorrer, caso se disponha de alguma outra opção. Em segundo lugar, há empreendimentos que as pessoas individualmente seriam capazes de realizar, porém não os poderiam realizar na escala e com a continuidade que uma sociedade em estágio avançado exige sempre com mais insistência. As pessoas particulares são perfeitamente capazes de despachar navios da Inglaterra para todas ou quase todas as partes do mundo, de transportar passageiros e cartas; isso era feito antes mesmo que se ouvisse falar de sociedades anônimas organizadas para esse fim. Mas quando, em razão do aumento da população e das transações, bem como dos meios de pagamento, o público já não se contenta com oportunidades ocasionais, mas exige a certeza de que os barcos partam com regularidade para alguns lugares, uma ou até duas vezes por dia, e para outros, uma vez por semana, e para outros, que um navio a vapor, de grande calado e de construção dispendiosa zarpe em determinados dias, duas vezes por mês, é evidente que, para garantir com certeza que se mantenha com pontualidade tal círculo de operações dispendiosas, requer-se um capital muito maior e bem maior quadro de subordinados qualificados do que os controlados individualmente por um capitalista. Por outro lado, outros casos há em que, embora o negócio pudesse ser perfeitamente efetuado com capitais pequenos ou médios, a garantia de um grande capital subscrito é necessária ou desejável como uma segurança para o público em relação ao cumprimento de compromissos financeiros. Tal acontece sobretudo quando a natureza do empreendimento exige que muitas pessoas estejam dispostas a confiar seu dinheiro ao empreendimento, tal como ocorre nos empreendimentos bancários e nos de seguros, dois tipos de empresas para as quais o sistema de sociedades anônimas é altamente adequado. Constitui um exemplo da insensatez e da corrupção dos governantes da humanidade o fato de que, até em época recente, o sistema de sociedades anônimas, como recurso geral, era neste país proibido por lei, nos dois citados ramos de negócios: inteiramente proibido aos empreendimentos bancários, e às empresas de seguros no setor de riscos marítimos; isso foi feito para assegurar monopólio lucrativo a determinados estabelecimentos que o Governo se comprazia em privilegiar excepcionalmente, isto é, o Banco da Inglaterra e duas companhias de seguros, a London e a Royal Exchange. Uma outra vantagem da sociedade anônima ou gestão associada consiste em seu direito à publicidade. Isso não é consequência invariável do sistema de sociedades anônimas, mas decorrência natural do mesmo, podendo ser compulsório, como já acontece em alguns casos importantes. No setor bancário, securitário e em outros negócios que dependem totalmente da confiança, a publicidade é ainda um elemento de sucesso mais importante do que um grande capital subscrito. Pode-se manter em segredo uma grande perda que ocorra em um banco particular; mesmo que a perda fosse de tal dimensão que gerasse a ruína do empreendimento, mesmo assim o banqueiro poderia mantê-lo durante anos, tentando recuperar a posição da empresa, somente para sofrer, no fim, um desastre bem maior; isso dificilmente pode acontecer no caso da sociedade por ações, cujas contas são publicadas periodicamente. A contabilidade, mesmo viciada, permite algum controle, e as suspeitas dos acionistas, que se manifestam nas assembleias gerais, põem o público de sobreaviso. Essas são algumas das vantagens da sociedade por ações sobre a gestão individual. Mas se atentarmos para o outro lado da questão constataremos que a gestão individual também apresenta vantagens muito grandes sobre a sociedade por ações. A maior delas é o interesse muito mais vivo dos administradores pelo sucesso do empreendimento. A administração de uma sociedade por ações é, no essencial, uma administração por empregados contratados. Mesmo a diretoria, que supostamente supervisiona a administração e que realmente nomeia e demite os administradores, não tem nenhum interesse pecuniário especial no bom andamento da empresa senão pelas ações que os membros dela possuem individualmente, ações que apenas representam parte mínima do capital da empresa, e em geral apenas uma parte muito pequena das fortunas dos próprios diretores; a participação que têm na administração costuma estender-se a muitas outras ocupações que, por seu próprio interesse, têm importância igual ou até maior; os negócios da sociedade não constituem a preocupação principal de ninguém, a não ser daqueles que são contratados para dirigi-los. Todavia, a experiência mostra, e os provérbios, expressão da experiência popular, atestam, o quanto é inferior a qualidade de empregados contratados, comparada ao serviço daqueles que estão pessoalmente interessados no trabalho, e o quanto é indispensável, quando se tem que lançar mão de serviço contratado, “o olho do patrão” para supervisioná-lo. O êxito na administração de uma empresa industrial demanda duas qualificações bem distintas: a fidelidade e o zelo. É possível garantir a fidelidade dos administradores contratados de uma empresa. Quando o trabalho deles é suscetível de ser reduzido a uma série definida de regras, a violação destas é algo que dificilmente a consciência pode ocultar e de que se pode cobrar responsabilidade, sob pena da perda do emprego. Mas dirigir uma grande empresa com sucesso demanda uma centena de coisas que, por não poderem ser definidas de antemão, não podem ser convertidas em obrigações distintas e positivas. Primeiro e principalmente, exige-se que a mente que dirige esteja incessantemente ocupada com a empresa, continuamente elaborando esquemas por meio dos quais se possa conseguir maiores lucros ou economizar despesas. Raramente se pode esperar que alguém que está dirigindo um negócio como empregado contratado e para o lucro de um outro sinta essa intensidade de interesse no assunto. Há experiências no mundo dos negócios que são conclusivas a esse respeito. Vejamos toda a classe de governantes e de funcionários do Estado. O trabalho que lhes é confiado figura entre as mais interessantes e estimulantes de todas as ocupações; a parte pessoal que eles mesmos têm nos benefícios ou nos prejuízos nacionais que afetam o Estado que está sob seu governo está longe de ser insignificante, e as recompensas e reprovações que podem esperar da opinião pública são manifestas e palpáveis, sendo vivamente sentidas e amplamente reconhecidas. Apesar disso, como é raro encontrar um estadista cuja indolência mental não seja mais forte do que todos os estímulos! Como é ínfima a percentagem daqueles que se dão ao trabalho de elaborar ou até mesmo de aplicar planos de melhorias públicas — a não ser quando lhes é ainda mais incômodo permanecerem inativos — ou daqueles que têm algum outro desejo real que não o de ir controlando os negócios de forma a escapar à censura geral. Em escala menor, todos os que já empregaram mão-de-obra contratada têm tido ampla experiência dos esforços feitos para dar em troca dos salários tão pouco serviço quanto seja compatível com a conservação do cargo. É de todos conhecido o descaso que em geral os criados domésticos demonstram em relação aos interesses do empregador, sempre que estes não estiverem protegidos por normas estáveis — excetuados os casos em que a longa permanência no mesmo serviço e a prestação recíproca de favores tenham levado à afeição pessoal ou então a algum sentimento de interesse comum. Uma outra desvantagem das sociedades por ações, que até certo ponto é comum a todas as empresas que operam em larga escala, é a falta de atenção aos pequenos ganhos e às pequenas economias. Na administração de um grande capital e de grandes transações, especialmente quando os administradores não têm neles muito interesse próprio, as quantias pequenas praticamente não tendem a ser levadas em conta; nunca parece valer a pena o cuidado e o incômodo que acarreta a preocupação com elas, sendo até que o menosprezo de tais coisas insignificantes compra a baixo preço a fama de ser liberal e perdulário. Ora, os pequenos lucros e as pequenas despesas, reproduzidos muitas vezes, representam grandes ganhos e grandes perdas, e um grande capitalista muitas vezes é um calculador suficientemente bom para estar, na prática, consciente desse fato e para estruturar seus negócios em um sistema que, se aplicado por uma supervisão suficientemente vigilante, fecha a possibilidade ao desperdício habitual que, em caso contrário, afeta uma grande empresa. Ora, os administradores de uma sociedade por ações raramente se dedicam ao trabalho o suficiente para impor de forma constante e em cada detalhe da empresa, um sistema realmente econômico, mesmo que este já seja o sistema adotado. Partindo de considerações dessa natureza, Adam Smith foi levado a enunciar como princípio que nunca se poderia esperar que as sociedades por ações consigam manter-se, caso não se lhes outorgue um privilégio de exclusividade, a não ser em setores de negócios que, como o bancário, o securitário e alguns outros, sejam passíveis de se enquadrar, em grau considerável, dentro de regras fixas. Isso, porém, é um desses exageros de um princípio verdadeiro, com que muitas vezes nos deparamos em Adam Smith. Em sua época havia poucos exemplos de sociedades por ações que tivessem tido sucesso permanente sem um monopólio, excetuado o tipo de casos referidos por ele; acontece que, desde então, tem havido muitas, e não há dúvidas de que o crescimento regular do espírito e da habilidade de cooperação produzirá ainda muitas outras. Adam Smith fixou sua observação com exclusividade excessiva na maior energia e na atenção mais constante dedicadas a um negócio em que todo o risco e todo o ganho pertencem às pessoas que o dirigem, tendo ignorado várias considerações em contrário, que muito contribuem para neutralizar até mesmo esse item de superioridade. Dessas considerações, uma das mais importantes é a que se refere às qualificações intelectuais e práticas do cérebro que dirige. O estímulo do interesse individual constitui certa garantia para o trabalho, mas este é de pouca valia se a inteligência em ação é de ordem inferior, o que necessariamente ocorre na maioria das empresas dirigidas pelas pessoas mais interessadas nelas. Quando a empresa é grande e em condições de proporcionar remuneração suficiente para atrair uma categoria de candidatos superiores à média comum, é possível selecionar para a administração geral e para todos os cargos subordinados que exigem preparo, pessoas com um grau de aptidão e de inteligência cultivada que compensem bem o interesse menor delas no resultado. A perspicácia superior dessas pessoas as capacita, mesmo que empreguem apenas uma parte de sua inteligência, a ver probabilidades de vantagem que nunca ocorrem às pessoas comuns, com o exercício contínuo de toda a sua inteligência; e, por outro lado, o conhecimento superior dessas pessoas e seu acerto habitual na percepção e nos julgamentos os preservam de tropeções, cujo receio impediria os outros de arriscar seus interesses em qualquer tentativa que saia da simples rotina. Cumpre, além disso, observar que não é uma consequência necessária das sociedades por ações que as pessoas empregadas, tanto em cargos superiores como em postos subordinados, sejam inteiramente pagas com salários fixos. Há maneiras de vincular mais ou menos estreitamente o interesse dos empregados ao sucesso pecuniário da empresa. Há uma longa série de posições intermediárias entre trabalhar totalmente por conta própria e trabalhar por dia, por semana ou por ano, por uma remuneração fixa. Mesmo no caso de mão-de-obra comum e não qualificada existe o que se chama de trabalho por tarefa cumprida ou trabalho por peça; e a maior eficiência deste último é tão bem conhecida que empregadores criteriosos sempre têm recorrido a ele quando o serviço comporta divisão em porções definidas, sem necessidade de uma supervisão excessivamente trabalhosa para impedir um desempenho inferior. No caso dos administradores de sociedades por ações e dos funcionários supervisores e controladores de muitos estabelecimentos privados, é prática suficientemente generalizada vincular o interesse pecuniário deles ao interesse de seus empregadores, dando-lhes parte da remuneração na forma de percentagem sobre os lucros. O interesse pessoal dado assim a empregados contratados não é comparável em intensidade ao do proprietário do capital, mas é suficiente como um estímulo bem substancial para o zelo e o cuidado, e, quando somado à vantagem de uma inteligência superior, muitas vezes faz com que a qualidade do serviço vá muito além daquilo que os patrões em geral são capazes de prestar a si mesmos. Sendo de grande importância social e econômica as ulteriores ampliações de que é suscetível esse princípio de remuneração, elas serão mais detalhadamente abordadas em um estágio subsequente desta investigação. Como já observei acerca dos grandes estabelecimentos em geral, quando comparados aos pequenos, sempre que a concorrência for livre, seus resultados mostrarão se, para o caso específico, é mais apropriada a gestão individual ou a sociedade por ações, pois aquela que for mais eficiente e mais econômica sempre conseguirá, ao final, vender seus produtos a preço mais baixo que as demais. § 3. Evidentemente, a possibilidade de substituir o sistema de produção em pequena escala por um sistema de produção em grande escala depende, primeiramente, da extensão do mercado. O sistema de grande escala só pode apresentar vantagens quando for grande o volume de negócios a ser efetuados: ele implica, portanto, uma comunidade populosa e florescente ou então uma grande abertura para a exportação. Por sua vez, como qualquer outra mudança no sistema de produção, isso é altamente favorecido por uma condição de progresso do capital. Sobretudo quando o capital de um país está registrando um crescimento anual grande é que há um grande montante de capital à procura de investimento, e uma nova empresa é muito mais rápida e muito mais facilmente alimentada com capital novo do que com capital retirado de aplicações já existentes. A mudança da operação em pequena escala para a operação em grande escala é também muito facilitada pela existência de grandes capitais em poucas mãos. É verdade que o mesmo montante de capital pode ser levantado juntando muitas quantias pequenas. Isso, porém — além do fato de não ser igualmente indicado para todos os ramos de atividade — supõe um grau muito maior de confiança e de iniciativa comercial difundidos na comunidade, e requer sem dúvida um estágio mais avançado de progresso industrial. Nos países em que se encontram os maiores mercados, a maior difusão da confiança e da iniciativa empresarial, o maior aumento anual de capital e o maior número de grandes capitais possuídos por indivíduos, há uma tendência cada vez maior de substituir, num ramo de atividade após outro, os pequenos estabelecimentos pelos grandes. Na Inglaterra, o modelo principal com todas essas características, há um perpétuo crescimento não somente de grandes estabelecimentos manufatureiros, mas também, onde quer que esteja reunido um número suficiente de compradores, de lojas e depósitos para o comércio varejista em grande escala. Estes quase sempre têm condições de vender mais barato que os pequenos comerciantes — em parte, como se subentende, devido à divisão do trabalho e à economia ocasionada por se limitar a contratação de mão-de-obra qualificada a casos em que tal qualificação é exigida, e, em parte, sem dúvida, em razão da economia de mão-de-obra por se efetuarem transações em grande escala, já que não custa mais tempo nem muito mais exercício mental fazer, por exemplo, uma compra grande do que uma pequena e, muito menos, do que fazer uma série de compras pequenas. Quando se visa apenas à produção e à eficiência máxima do trabalho, essa mudança é totalmente benéfica. Em alguns casos registram-se inconvenientes mais sociais do que econômicos, a cuja natureza já acenamos. Entretanto, quaisquer que sejam as desvantagens que se possa supor acarreta a mudança de um sistema de produção em pequena escala para um de grande escala, elas não são aplicáveis à mudança de um sistema de produção em grande escala para um de produção em escala ainda maior. Quando, numa ocupação qualquer, o regime de produtores pequenos e independentes nunca foi possível ou já foi substituído, e se estabeleceu plenamente o sistema de muitos trabalhadores sob uma direção, a partir desse momento, qualquer ampliação ulterior na escala de produção constitui geralmente um benefício incondicional. É óbvio, por exemplo, que se obteria grande economia de mão-de-obra se Londres fosse suprida por uma única empresa fornecedora de gás ou de água, em vez da pluralidade atualmente existente. Havendo mais empresas, mesmo que não sejam mais que duas, isso implica instituições duplas de todos os gêneros, quando apenas uma, com pequena ampliação, provavelmente poderia cumprir igualmente bem todas as operações; há um duplo conjunto de máquinas e de obras, quando todo o gás ou a água requeridos poderiam geralmente ser produzidos por um único conjunto; há até mesmo duplicidade de gasodutos ou aquedutos, se as empresas não evitarem essa despesa desnecessária dividindo entre si o território a ser servido. Se houvesse apenas uma empresa, esta poderia cobrar taxas menores, sem com isso deixar de obter a mesma taxa de lucro atualmente recebida. Mas, seria isso verdade? Mesmo que assim não fosse, a comunidade como um todo ainda continuaria ganhando, já que os acionistas fazem parte da comunidade, e estes teriam maiores lucros, enquanto os consumidores continuariam a pagar o mesmo que agora. Contudo, é um erro supor que os preços sempre sejam mantidos baixos com a concorrência dessas empresas. Quando os concorrentes são poucos, sempre acabam por combinar em não competir entre si. Podem empreender uma corrida pelos preços baixos para levar à ruína um novo concorrente, mas tão logo este tiver firmado pé, eles se aliam a ele. Quando, portanto, um negócio de importância pública real só pode ser levado vantajosamente em escala tão grande a ponto de tornar mais ou menos ilusória a livre concorrência, equivale a uma utilização improfícua de os recursos públicos manterem vários conjuntos dispendiosos de instituições para prestar à comunidade esse único serviço. É muito melhor tratá-lo logo como uma função pública; e, se o serviço a prestar for de tipo tal que o próprio Governo não possa assumi-lo de forma rentável, ele deve ser totalmente entregue à empresa ou à associação que o preste nas condições que forem melhores para o público. No caso das ferrovias, por exemplo, ninguém pode desejar ver o enorme desperdício de capital e de terra (para não falar de prejuízos maiores) envolvido na construção de uma segunda ferrovia para ligar as mesmas localidades unidas por uma ferrovia já existente; durante algum tempo as duas não executariam o serviço melhor do que faria uma só, e depois de breve tempo provavelmente se uniriam. Só se deveria permitir uma dessas linhas, mas o Estado nunca deveria entregar o controle sobre ela, a não ser em forma de concessão temporária, como na França; e o direito adquirido que o Parlamento concedeu às empresas existentes, como todos os outros direitos de propriedade que contrariam a utilidade pública, é moralmente válido somente como um direito a compensação. § 4. A questão dos sistemas de produção em grande ou em pequena escala, aplicados à agricultura — a cultura em grande e em pequena escala, a grande e a petite culture — sob muitos aspectos se coloca em bases diferentes das da questão geral relativa aos estabelecimentos industriais grandes e pequenos. Em seu aspecto social e como um elemento na distribuição da riqueza, esse problema nos ocupará mais adiante; mas mesmo como questão de produção, a superioridade do sistema de agricultura em grande escala de forma alguma está tão claramente consolidada como nas manufaturas. Já observei que as atividades agrícolas pouco benefício podem obter da divisão das tarefas. É reduzida a divisão de tarefas, mesmo na propriedade agrícola de maior porte. É possível que as mesmas pessoas não possam, de modo geral, cuidar do gado, da comercialização e do cultivo do solo, mas a subdivisão não pode avançar muito além dessa classificação primária e simples. A combinação de tarefas possível na agricultura é sobretudo aquela que o Sr. Wakefield denomina cooperação simples, que consiste em várias pessoas se ajudarem mutuamente no mesmo trabalho, ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Confesso, porém, que, em meu entender, esse competente autor atribui a esse tipo de cooperação, com referência à agricultura propriamente dita, mais importância do que ela merece. Nenhuma das atividades agrícolas comuns exige muita cooperação simples. Não há nenhuma vantagem especial em colocar muitas pessoas colaborando na tarefa de arar, cavar ou semear o mesmo campo, ou mesmo de ceifar ou fazer a colheita, a menos que o tempo urja. Uma única família geralmente tem condições de fornecer toda a combinação de trabalho necessária para essas finalidades. E nas tarefas em que uma união de muitos esforços é realmente necessária, raramente existe qualquer impossibilidade de consegui-la onde as propriedades agrícolas forem pequenas. O desperdício de força produtiva em razão da subdivisão da terra muitas vezes significa um grande mal; isso, porém, se aplica sobretudo a uma subdivisão tão pequena que os cultivadores não têm terra suficiente para ocupar seu tempo. Até esse ponto, são aplicáveis à agricultura os mesmos princípios que recomendam grandes manufaturas. Em função da eficiência produtiva máxima, geralmente é desejável (embora mesmo essa proposição deva ser recebida com ressalvas) que nenhuma família que possua alguma terra tenha menos do que a área que tem condições de cultivar, ou seja, que possa tirar pleno proveito de seu gado e seus instrumentos de trabalho. Ora, estas não são as dimensões de grandes propriedades agrícolas, mas daquilo que na Inglaterra é considerado propriedade muito pequena. A grande propriedade agrícola tem alguma vantagem no tocante às edificações. Não custa tanto alojar muitas cabeças de gado em uma construção quanto alojá-lo com igual facilidade em várias construções. Há também alguma vantagem quanto aos instrumentos de trabalho. Um pequeno proprietário não tem tanta probabilidade de possuir instrumentos caros. Acontece que os principais instrumentos agrícolas, mesmo que sejam da melhor fabricação, não são dispendiosos. Pode não compensar a um pequeno arrendatário possuir uma debulhadeira para a pequena quantidade de trigo que tem para debulhar; mas não há motivo algum para que tal máquina não seja possuída em comum pela vizinhança, ou então para que ela não seja posta à disposição por alguma pessoa à qual as outras pagam pelo seu uso, sobretudo porque, quando movidas a vapor, tais máquinas são construídas como instrumentos móveis. (As observações do texto podem futuramente exigir alguma modificação devido a invenções como a do arado a vapor e a máquina colheitadeira. Contudo, o efeito desses aperfeiçoamentos sobre as vantagens relativas na cultura em grande e em pequena escala não dependerá da eficiência dos instrumentos, mas de seu custo. Não vejo motivo algum para esperar que esse custo possa ser tal que torne tais instrumentos inacessíveis a arrendatários pequenos ou a grupos de arrendatários pequenos). O grande produtor agrícola pode poupar algo no transporte. Dá mais ou menos tanto trabalho transportar uma pequena quantidade de produto ao mercado quanto transportar uma carga muito maior, trazer para casa uma quantidade pequena de adubo e de artigos de consumo diário quanto trazer uma quantidade muito maior. Há também o aspecto dos preços mais baixos na compra de coisas em grandes quantidades. Essas diversas vantagens devem ser levadas em conta, mas não parece que importem muito. Na Inglaterra, durante algumas gerações, tem havido pouca experiência com propriedades agrícolas pequenas, mas na Irlanda a experiência tem sido ampla não somente sob uma administração deficiente, mas também sob uma eficiente; ora, as mais altas autoridades irlandesas podem ser invocadas contra a opinião que na Inglaterra costuma prevalecer sobre o assunto. O Sr. Blacker, por exemplo, um dos mais experientes agricultores e um dos mais bem-sucedidos defensores de melhorias para o norte da Irlanda, e que tem experiência sobretudo nas regiões mais bem cultivadas do país, que são também aquelas onde há mais minifúndios, era de opinião que os arrendatários de propriedades não superiores a cinco, oito ou dez acres conseguiam viver confortavelmente e pagar uma renda tão alta quanto qualquer arrendatário de propriedade grande. “Estou firmemente persuadido” — diz ele — “de que o pequeno arrendatário que maneja seu próprio arado e cava sua própria terra, se seguir uma adequada rotação de culturas e se alimentar seu gado no estábulo, pode vender a preços mais baixos que o grande proprietário rural, ou seja, tem condições de pagar uma renda que o outro não consegue pagar; esse ponto de vista é confirmado pela opinião de muitas pessoas práticas que estudaram a questão com seriedade. (...) O arrendatário inglês de 700 a 800 acres é um tipo de pessoa que se aproxima do que é conhecido sob o nome de aristocrata rural. Ele precisa ter seu cavalo de sela, o seu cabriolé e talvez um supervisor para cuidar de seus trabalhadores; ele certamente não tem condições de supervisionar pessoalmente o trabalho feito em uma propriedade de 800 acres.” Depois de algumas outras observações, acrescenta: “Além de todos esses inconvenientes que o pequeno arrendatário pouco conhece, há a grande despesa com o transporte do estrume em carroças, da sede para distâncias tão grandes, bem como a de trazer para casa os produtos colhidos. Um único cavalo consumirá a produção de mais terra do que a suficiente para alimentar um pequeno arrendatário, sua mulher e dois filhos. E, mais que tudo, o grande arrendatário diz a seus trabalhadores: vá fazer seu serviço, ao passo que quando o pequeno arrendatário precisa contratar trabalhadores, ele diz: venha; atrevo-me a crer que o leitor inteligente entende a diferença”. Uma das objeções mais frequentes contra as pequenas propriedades é que elas não mantêm nem podem manter, em proporção à sua extensão, tanto gado quanto as propriedades grandes, o que acarreta uma deficiência tão grande de adubo que um terreno muito subdividido sempre se empobrecerá necessariamente. Constatar-se-á, todavia, que a subdivisão da terra só produz esse efeito quando se entrega a terra a cultivadores tão pobres que não possuem a quantidade de gado conveniente para o tamanho de suas propriedades. Propriedade pequena não é sinônimo de propriedade mal provida de gado. Para que a comparação seja honesta, devemos supor que o mesmo montante de capital possuído pelos grandes arrendatários esteja disseminado entre os pequenos. Quando se cumpre essa condição — ou mesmo algo próximo a ela — e quando se adota a prática de alimentar o gado nos estábulos (e atualmente essa prática começa a ser considerada econômica mesmo em propriedades grandes), a experiência, longe de confirmar a afirmação de que a agricultura em pequena escala é desfavorável à multiplicação do gado, prova, de maneira conclusiva, exatamente o contrário. A abundância de gado, e o uso copioso de adubo, nas pequenas propriedades do País de Flandres, são as características que mais impressionam nessa agricultura flamenga que é alvo da admiração de todos os avaliadores competentes, quer ingleses, quer da Europa continental. ("O número de animais alimentados em uma propriedade composta integralmente de terra arável" (diz o detalhado e inteligente tratado Flemish Husbandry, baseado em observação pessoal e nas melhores fontes, e publicado pela Library of The Society for the Diffusion of Useful Knowledge) “é surpreendente para aqueles que não estão familiarizados com a maneira de preparar o alimento para o gado. Um animal para cada três acres de terra é uma proporção comum, e em propriedades muito pequenas, onde ainda se trabalha muito com a pá, a proporção é ainda maior. Depois de comparar os dados fornecidos por uma série de lugares e situações sobre a quantidade média de leite que uma vaca dá quando alimentada no estábulo, o resultado é que ela supera em muito a das nossas melhores propriedades produtoras de leite, e a quantidade de manteiga feita com uma determinada quantidade de leite também é maior. Parece assombroso que o ocupante de apenas dez ou doze acres de terra arável leve seja capaz de manter quatro ou cinco vacas, mas o fato é notório na região de Waes”. (p. 59-60). Esse assunto é tratado com muita inteligência na obra do Sr. Passy, Des Systèmes de Culture et de leur Influence sur L’Économie Sociale, uma das exposições mais imparciais que apareceram na França sobre os dois sistemas. "Sem dúvida, é a Inglaterra que, em uma área igual, alimenta o maior número de animais; somente a Holanda e algumas partes da Lombardia podem ombrear com ela sob esse aspecto; contudo, será isso uma consequência da maneira de cultivar, e o clima e a localização não têm algo a ver com o fato? Quanto a isso penso não poder pairar dúvida alguma. Na realidade, o que quer que possa ter sido dito sobre o assunto, sempre que o cultivo em grande e em pequena escala se encontra no mesmo lugar, este último, embora não tenha condições de manter tantas ovelhas, possui, levando-se tudo em consideração, a maior quantidade de animais produtores de esterco. "Na Bélgica, por exemplo, as duas províncias em que existem as menores propriedades são Antuérpia e Flandres Oriental, e elas possuem, em média, por cada 100 hectares (250 acres) de terra cultivada, 74 cabeças de gado vacum e 14 ovelhas. As duas províncias em que encontramos as propriedades grandes são Namur e Hainaut, e elas têm, em média, por cada 100 hectares de solo cultivado apenas 30 cabeças de gado vacum e 45 ovelhas. Contando, como é costume, dez ovelhas como equivalentes a uma cabeça de gado vacum, no primeiro caso constatamos o equivalente de 76 animais para manter a fecundidade do solo e, no segundo caso, menos de 35, uma diferença que temos que qualificar como enorme. (Ver os documentos estatísticos publicados pelo Ministro do Interior.) O grande número de animais nas regiões da Bélgica que estão mais divididas em pequenas propriedades é quase tanto como o que existe na Inglaterra. Calculando o número existente na Inglaterra somente em proporção com o solo cultivado, há para cada 100 hectares 65 cabeças de gado vacum e aproximadamente 260 ovelhas, equivalendo o total de animais aptos para manter a fecundidade do solo a 91, sendo a diferença a mais de apenas 15. Além disso, cumpre lembrar que, pelo fato de prolongar-se a alimentação no estábulo por quase todo o ano, dificilmente se perde algum estrume, ao passo que na Inglaterra, pelo fato de os animais pastarem nos campos abertos, é muito menor a quantidade de estrume que pode ser totalmente utilizada. "Por outro lado, nos Departamentos do Norte, os distritos que possuem as propriedades menores sustentam a quantidade máxima de animais. Enquanto os distritos de Lille e Hazebrouck mantêm, além de um grande número de cavalos, o equivalente a 52 e 46 cabeças de gado vacum, os de Dunquerque e Avesnes, onde as propriedades são maiores, produzem o equivalente a apenas 44 e 40 cabeças. (Ver as estatísticas da França, publicadas pelo Ministro do Comércio.) Um estudo similar estendido a outras partes da França daria resultados semelhantes. Na proximidade imediata de cidades, sem dúvida, os pequenos arrendatários, por não terem dificuldades em comprar estrume, não mantêm animais; mas, como regra geral, o tipo de cultivo que mais exige da terra deve ser aquele que for mais ativo em renovar sua fertilidade. Com certeza, as pequenas propriedades não podem ter numerosos rebanhos de ovelhas, o que é um inconveniente; mas sustentam mais gado vacum do que as propriedades grandes. Isso é uma necessidade da qual não podem escapar, em todo país em que a demanda dos consumidores exige a existência delas: se não pudessem atender a essa condição, teriam que perecer. "Eis detalhes cuja exatidão está plenamente atestada pela quantidade do trabalho do qual os extraio, as estatísticas da comuna de Vensat (departamento de Puy de Dôme), ultimamente publicadas pelo Dr. Jusseraud, prefeito da comuna. Os dados são tanto mais valiosos pelo fato de projetarem plena luz sobre a natureza das mudanças que a extensão do cultivo em pequena escala tem produzido, naquele distrito, quanto ao número e ao tipo de animais cujo esterco mantém e aumenta a produtividade do solo. A comuna consta de 1612 hectares, divididos em 4600 parcelles, cujos proprietários são 591, sendo que dessa área 1466 hectares são cultivados. Em 1790, dezessete propriedades ocupavam 2/3 do total, e vinte outras ocupavam o resto. Desde então a terra passou por grandes divisões, e a subdivisão chegou agora ao extremo. Qual foi o seu efeito sobre a quantidade de gado? Um aumento considerável. Em 1790 havia apenas cerca de 300 cabeças de gado vacum, e 1800 a 2000 ovelhas: agora há 676 cabeças de gado vacum e apenas 533 de ovelhas. Assim, 1300 ovelhas foram substituídas por 376 bois e vacas, e (levando-se tudo em conta) a quantidade de esterco aumentou à razão de 490 para 729, ou seja, mais de 48%, para não mencionar o fato de que, por serem os animais agora mais fortes e mais bem alimentados, dão uma contribuição muito maior do que antes para a fertilização do solo. "Este é o testemunho dos fatos sobre o assunto. Não é, pois, verdade que as pequenas propriedades alimentam menos animais que as grandes: pelo contrário, se as circunstâncias locais forem as mesmas, elas alimentam um número maior: e isso não é outra coisa senão o que se teria podido presumir: com efeito, pelo fato de exigir mais do solo, a propriedade pequena é obrigada a empenhar-se mais em manter sua produtividade. Constatar-se-á que não têm melhor fundamento todas as outras censuras lançadas à cultura em pequena escala, se comparadas uma a uma com fatos apreciados com isenção de ânimo; ver-se-á que tais censuras foram feitas só porque as regiões comparadas entre si apresentam uma situação diferente em relação às causas gerais da prosperidade agrícola). A desvantagem — se é que há desvantagem — da agricultura em pequena escala ou da agricultura de camponeses, se comparada à cultura mantida por capitalistas, deve consistir sobretudo na menor habilidade e no menor conhecimento; mas não é verdade, como fato geral, que tal inferioridade efetivamente exista. Países de pequenas propriedades e de agricultura de camponeses, o País de Flandres e a Itália tinham uma boa agricultura, muitas gerações antes da Inglaterra, e ainda têm [1848], provavelmente, em seu conjunto, a melhor agricultura do mundo. Os camponeses habitualmente possuem em alto grau a habilidade prática que se adquire na observação diária e atenta. É extraordinário, por exemplo, o conhecimento tradicional da cultura da videira que têm os camponeses das regiões em que são produzidos os melhores vinhos. Sem dúvida, existe uma ausência de ciência, ou ao menos de teoria; até certo ponto existe também a falta de espírito progressista, no tocante à introdução de processos novos. Há também uma falta de recursos para fazer experimentos, os quais raramente podem ser efetuados com vantagem senão por proprietários ricos ou por capitalistas. Quanto àquelas melhorias sistemáticas que beneficiam de uma vez uma grande extensão de terra (tais como grandes obras de drenagem e irrigação), ou que por quaisquer outros motivos realmente demandam grande número de operários em trabalho combinado, geralmente não se pode esperá-las de pequenos arrendatários, ou mesmo de pequenos proprietários, embora de forma alguma faltem exemplos de associação entre eles para tais propósitos, exemplos estes que, aliás, se tornarão mais comuns à medida que suas inteligências se desenvolverem mais. Contra essas desvantagens deve-se colocar, onde a ocupação da terra for do tipo adequado, um entusiasmo no trabalho absolutamente sem similar em qualquer outra condição de agricultura. Eis um item sobre o qual é unânime o depoimento de testemunhas competentes. O funcionamento da petite culture não pode ser julgado com justiça onde o pequeno cultivador é apenas um rendeiro, e nem sequer um rendeiro em condições estáveis, mas (como acontecia até pouco tempo na Irlanda) pagando uma renda nominal superior à que tem condições de pagar e, portanto, praticamente, uma renda variável, sempre equivalente ao máximo que possa pagar. Para compreender isso, deve-se fazer a pesquisa onde o cultivador é o proprietário, ou ao menos o métayer (meeiro) com um título de locação permanente, onde o trabalho realizado por ele para aumentar a produção e o valor da terra reverte totalmente, ou ao menos em parte, em seu próprio benefício ou no de seus descendentes. Em outra parte discutiremos com certos detalhes o importante tema da ocupação da terra, e deixo para lá toda citação de depoimentos sobre o trabalho maravilhoso dos proprietários camponeses. Aqui pode bastar uma referência à quantidade imensa de produção bruta que, mesmo sem posse permanente da terra, os trabalhadores ingleses costumam obter de suas pequenas propriedades — uma produção incomparavelmente maior do que a que um arrendatário de grande porte consegue da mesma área de terra ou teria interesse em conseguir. Considero ser esta a verdadeira razão pela qual o cultivo em grande escala é, via de regra, altamente vantajoso como simples investimento para efeito de lucro. A terra ocupada por um grande arrendatário não é, em um sentido da palavra, cultivada com tanta seriedade. Nem de longe se emprega tanto trabalho nela. Isso, não devido a qualquer economia oriunda da combinação de trabalho, mas simplesmente porque, empregando menos mão-de-obra, se obtém um retorno maior em proporção ao investido. Não interessa a ninguém pagar a outros para desempenharem todo o trabalho ao qual o camponês, ou mesmo o foreiro, se submete com prazer quando os frutos colhidos serão inteiramente seus. No entanto, esse trabalho não é improdutivo: todo ele aumenta a produção bruta. Com igual habilidade e conhecimento, o grande arrendatário nem de longe obtém tanto do solo quanto o pequeno proprietário ou quanto o pequeno arrendatário que tem motivação adequada para o trabalho; mas, embora seus retornos sejam menores, o trabalho empregado é menor em um grau ainda maior, e já que toda mão-de-obra que ele empregar tem que ser paga, não atende a seu objetivo empregar mais mão-de-obra. Contudo, ainda que, em paridade de condições, a produção da terra seja a máxima na agricultura em pequena escala, e embora, consequentemente, um país baseado nesse sistema tenha condições de sustentar uma população maior, os autores ingleses costumam supor que deve ser menor aquilo que se chama produção líquida, isto é, o que sobra após alimentar os cultivadores; que, portanto, deve ser menos numerosa a população disponível para todas as outras finalidades, para as manufaturas, para o comércio e a navegação, para a defesa nacional, para a promoção da cultura, para as profissões liberais, para as várias funções do governo, para as artes e a literatura, pois todas elas dependem dessa sobra para existirem como ocupações; e que, por conseguinte, a nação (prescindindo de qualquer questão quanto à condição dos cultivadores efetivos) deve necessariamente ficar em pior condição nos elementos principais do poder nacional, e em muitos dos elementos do bem-estar geral. Acontece que houve excessiva precipitação em considerar isso certo. Sem dúvida, no caso de uma agricultura em pequena escala, a população não agrícola apresentará uma taxa inferior em relação à população agrícola do que no regime de cultivo em grande escala. Mas de forma alguma se conclui daí que a população não agrícola seja menos numerosa, em termos absolutos. Se a população total, incluindo a agrícola e a não agrícola, for maior, a parte não agrícola pode ser mais numerosa em si mesma, e, no entanto, pode representar uma percentagem menor no todo. Se a produção bruta for maior, a produção líquida pode ser maior, e apesar disso representar uma percentagem menor em relação à produção bruta. Acontece que até mesmo o Sr. Wakefield parece às vezes confundir esses conceitos diferentes. Calcula-se que na França 2/3 de toda a população é agrícola. Na Inglaterra, no máximo 1/3. Daqui o Sr. Wakefield conclui: “Já que na França somente três pessoas são sustentadas pelo trabalho de dois agricultores, ao passo que na Inglaterra o trabalho de dois agricultores sustenta seis pessoas, a agricultura inglesa é duas vezes mais produtiva do que a francesa”, devido à maior eficiência da cultura em grande escala, possibilitada pela combinação de trabalho. Acontece, primeiramente, que os próprios fatos são exagerados. O trabalho de duas pessoas na Inglaterra não sustenta inteiramente seis pessoas, pois não pouco [1848] dos alimentos são importados de países estrangeiros e da Irlanda. Quanto à França, o trabalho de dois cultivadores sustenta muito mais do que três pessoas. Ele garante às três pessoas, e ocasionalmente a estrangeiros, linho, cânhamo e até certo ponto também seda, óleos, fumo e ultimamente açúcar, produtos que na Inglaterra são exclusivamente importados; quase toda a madeira utilizada na França é produzida no país, ao passo que quase toda a que é usada na Inglaterra vem de fora; o combustível principal da França é [1848] produzido e comercializado por pessoas tidas como agricultores, ao passo que na Inglaterra isso é feito por pessoas não consideradas agricultores. Não incluo no cálculo couros crus e lãs, por serem produtos comuns aos dois países, nem o vinho ou a aguardente produzidos para consumo interno, já que a Inglaterra tem uma produção correspondente de cerveja e bebidas alcoólicas; mas a Inglaterra [1848] não tem nenhuma exportação relevante dos dois artigos, tendo, sim, uma grande importação do último, enquanto a França fornece vinhos e bebidas alcoólicas ao mundo todo. Nada digo sobre frutas, ovos e artigos de produção agrícola de menor importância, dos quais o comércio de exportação da França é [1865] enorme. Mas para não colocar ênfase indevida sobre essas deduções, tomaremos a afirmação como ela está. Suponhamos, pois, que duas pessoas na Inglaterra produzam de bom grado o alimento de seis, ao passo que na França, para o mesmo propósito, se requeira o trabalho de quatro. Conclui-se disso que a Inglaterra necessariamente tem um excedente maior de alimentos para o sustento de uma população não agrícola? Não; o que se conclui é simplesmente que ela pode destinar 2/3 de sua produção total a esse fim, em vez de apenas 1/3. Suponhamos que a produção seja o dobro, e aquele 1/3 chegue a 2/3. A realidade poderia ser que, devido à maior quantidade de mão-de-obra empregada no sistema francês, a mesma terra produzisse alimento para doze pessoas, terra esta que, no sistema inglês, só produziria para seis; e se assim fosse — o que seria perfeitamente conciliável com as condições da hipótese — nesse caso, embora o alimento para doze fosse produzido pelo trabalho de oito, enquanto as seis seriam alimentadas pelo trabalho de apenas duas, nos dois países seria igual o número de pessoas disponíveis para outras ocupações. Não estou afirmando que a realidade seja esta. Sei que a produção bruta por acre na França, no conjunto (ainda que não em seus distritos mais adiantados) é, em média, muito menor do que na Inglaterra, e que, em proporção com a extensão e a fertilidade dos dois países, a Inglaterra tem, no sentido em que estamos agora falando, a máxima população disponível. Contudo, a desproporção certamente não deve ser medida pelo critério simples do Sr. Wakefield. Com o mesmo direito se poderia dizer que a mão-de-obra nos Estados Unidos, onde, segundo um recenseamento recente (1840), se constata que quatro de cada cinco famílias estão ocupadas na agricultura, deve ser ainda mais ineficiente do que na França. A inferioridade da agricultura francesa (a qual, considerando o país como um todo, tem que ser admitida como real, ainda que seja bastante exagerada) provavelmente se deve mais à média geral mais baixa de habilidade e energia no trabalho do que a alguma causa especial; e mesmo que em parte tal inferioridade se devesse à divisão em propriedades muito pequenas, isso não prova que o cultivo em pequena escala seja desvantajoso, mas somente (o que sem dúvida é a realidade) que as propriedades na França, com elevadíssima frequência, são excessivamente pequenas, e, o que é pior, divididas em um número quase incrível de nesgas ou parcelles, com o grandíssimo inconveniente de serem espalhadas e afastadas umas das outras. Como uma questão de produção líquida, e não de produção bruta, os méritos comparativos da grande e da petite culture, sobretudo quando o pequeno lavrador é ao mesmo tempo o proprietário, não podem ser considerados um problema resolvido. É uma questão sobre a qual os bons conhecedores atualmente divergem. A opinião corrente na Inglaterra [1848] é a favor de grandes propriedades; na Europa continental, o peso da autoridade parece estar do outro lado. O Prof. Rau, de Heidelberg, autor de um dos mais abrangentes e mais elaborados tratados existentes sobre Economia Política e que tem aquela grande familiaridade com fatos e autoridades de sua especialidade, o que geralmente caracteriza seus compatrícios, estabelece como verdade incontestável que as propriedades pequenas ou de tamanho médio dão não somente uma produção bruta maior, mas também uma produção líquida maior, embora — acrescenta ele — seja desejável que haja alguns grandes proprietários, para abrir caminho a novos aperfeiçoamentos. O julgamento aparentemente mais imparcial e perspicaz que encontrei é o do Sr. Passy, que (sempre falando com referência à produção líquida) dá seu veredicto a favor das grandes propriedades, em se tratando do cultivo de cereais e forragem, mas, para os tipos de cultura que requerem muita mão-de-obra e atenção, coloca a vantagem totalmente do lado do cultivo em pequena escala, incluindo nessa descrição não somente a videira e a oliveira, onde cada planta individualmente exige um montante considerável de cuidados e de trabalho, mas também os tubérculos, as plantas leguminosas e aquelas que fornecem as matérias-primas para as manufaturas. A pequena extensão e a consequente multiplicação de propriedades agrícolas, segundo todas as autoridades, são extremamente favoráveis à abundância de muitos produtos agrícolas de menor importância. ("No Departamento do Norte" — diz o Sr. Passy — “uma propriedade de 20 hectares (50 acres) produz em bezerros, laticínios, galináceos e ovos, um valor que por vezes equivale a 1 000 francos (£ 40) por ano; isso, deduzidas as despesas, representa um acréscimo à produção líquida de 15 a 20 francos por hectare.” Des Systèmes de Culture). É evidente que todo trabalhador que extrai da terra mais do que seu próprio alimento e o da família que possa ter aumenta os recursos para o sustento de uma população não agrícola. Mesmo que seu excedente baste apenas para comprar roupas, os trabalhadores que fazem as roupas são uma população não agrícola, que pode sobreviver em virtude do alimento que ele produz. Por isso, toda família agrícola que produz seu próprio sustento aumenta a produção líquida da agricultura; e isso fazem todas as pessoas nascidas no campo, que, trabalhando nele, acrescentam mais à produção bruta da terra do que o simples alimento que consomem. É discutível se, mesmo nas regiões mais subdivididas da Europa que são cultivadas pelos proprietários a multiplicação de mão-de-obra empregada no solo se aproximou muito — ou tende a aproximar-se — desse limite. Na França, onde a subdivisão é reconhecidamente grande demais, há provas positivas de que ela está longe de haver atingido o ponto no qual começaria a diminuir o poder de sustentar uma população não agrícola. Isso é demonstrado pelo grande aumento das cidades, as quais ultimamente [1848] aumentam em uma proporção muito maior do que a população em geral (Durante o intervalo entre o censo de 1851 e o de 1856, somente o aumento da população de Paris superou o aumento da França inteira, sendo que quase todas as outras grandes cidades também acusaram aumento), mostrando (a menos que a condição dos trabalhadores urbanos esteja se deteriorando rapidamente, o que não há razão alguma para crer) que, mesmo pelo teste desleal e inaplicável das proporções, a produtividade da agricultura deve estar aumentando. Isso, aliás, somado à mais ampla evidência de que, nas regiões mais avançadas da França e em algumas que até recentemente estavam entre as atrasadas, existe um aumento considerável do consumo de produtos do campo pela própria população do campo. Convicto de que, de todas as faltas que possam ser cometidas por um autor científico que escreve sobre assuntos políticos e sociais, o exagero e as afirmações que vão além da evidência são aquelas contra as quais mais é necessário precaver-se, limitei-me, nas primeiras edições desta obra, às afirmações bem moderadas acima enunciadas. Tinha eu pouca consciência de que minha linguagem poderia ter sido bem mais forte, sem ultrapassar a verdade. Ignorava também que o progresso efetivo da agricultura francesa superou tudo o que naquela época eu tinha motivos suficientes para afirmar. As investigações dessa autoridade eminente em estatísticas agrícolas que é o Sr. Léonce de Lavergne, empreendidas por desejo da Academia de Ciências Morais e Políticas do Instituto da França, levaram à conclusão de que, desde a Revolução de 1789, a produção total da agricultura francesa duplicou, e que os lucros e os salários registraram mais ou menos o mesmo aumento, e a renda de terras aumentou em proporção ainda maior. O Sr. Lavergne, que tem a imparcialidade como um de seus maiores méritos, está, além disso, tão longe, nesse caso, da suspeita de defender causa própria, que tem se empenhado em mostrar, não quanto a agricultura francesa já realizou, mas quanto ainda resta a ser feito. “Tivemos necessidade” — diz ele — “de nada menos de setenta anos para estender o cultivo a 2 milhões de hectares” (5 milhões de acres ingleses) “de terra inculta, para eliminar a metade das nossas terras de pousio, dobrar nossa produção agrícola, aumentar nossa população em 30%, nossos salários em 100%, nossa renda em 150%. A esse ritmo precisaremos de 3/4 de um século a mais para chegar ao ponto que a Inglaterra já atingiu”. Com esse depoimento, certamente ouvimos o máximo sobre a incompatibilidade de pequenas propriedades e pequenas terras arrendadas com o incremento agrícola. A única questão que permanece em aberto é a que concerne ao grau: a rapidez comparativa do incremento agrícola sob os dois sistemas; ora, a opinião generalizada daqueles que estão igualmente familiarizados com os dois sistemas é que o incremento atinge o máximo com a devida combinação dos dois sistemas. No presente capítulo, não abordo a questão do cultivo em grande e em pequena escala sob nenhum outro aspecto senão como uma questão de produção e da eficiência do trabalho. Mais adiante voltaremos à questão enquanto afeta a distribuição da produção, bem como o bem-estar físico e social dos próprios agricultores; sob esses aspectos, a questão merece um exame ainda mais especial. CAPÍTULO X A Lei do Aumento da Mão-de-Obra § 1. Consideramos sucessivamente cada um dos agentes ou condições da produção, e cada um dos meios pelos quais se promove a eficiência desses vários agentes. Para encerrar as questões relacionadas exclusivamente com a produção, resta ainda uma de primordial importância. A produção não é algo fixo, mas algo em crescimento. Quando não é freada por más instituições ou por condição deficiente das técnicas profissionais, a produção do trabalho normalmente tem tendido a aumentar, estimulada não somente pelo desejo dos produtores de aumentar seus meios de consumo, mas também pelo crescente número de consumidores. Nada em Economia Política pode ser mais importante do que determinar a lei deste aumento de produção, as condições às quais ela está sujeita: se a produção tem praticamente algum limite e quais são esses limites. Ao mesmo tempo, não há nenhuma questão da Economia Política que seja menos compreendida vulgarmente, ou seja, em que os erros cometidos não sejam de molde a produzir — e produzem de fato — mais danos. Vimos que são três os requisitos essenciais da produção: mão-de-obra, capital e agentes naturais, sendo que o termo capital inclui todos os requisitos externos e físicos que são produzidos pelo trabalho, e o termo agentes naturais inclui todos os requisitos que não são produzidos pelo trabalho. Mas entre os agentes naturais não precisamos levar em conta aqueles que, existindo em quantidade ilimitada, sendo incapazes de apropriação e nunca se alterando em suas qualidades, estão sempre prontos a prestar uma cota igual de ajuda à produção, qualquer que seja a extensão desta: assim são o ar e a luz do sol. Por estarmos agora considerando os obstáculos à produção, e não os fatores que a facilitam, não precisamos atender a outros agentes naturais senão àqueles que podem vir a acusar deficiência, seja em quantidade ou em força produtiva. Estes podem ser todos englobados no termo terra. A terra, na acepção mais restrita, como fonte da produção agrícola, é o principal deles; e se estendermos o termo às minas e à pesca — aquilo que se encontra no seio da própria terra, ou nas águas que em parte a cobrem, bem como àquilo que é cultivado ou alimentado em sua superfície, o termo abarca tudo aquilo com o que precisamos agora ocupar-nos. Podemos então dizer, sem forçar a linguagem mais do que o permissível para a necessária explicação, que os requisitos para a produção são o trabalho, o capital e a terra. Por isso, o aumento da produção depende das propriedades desses elementos. Ele é o resultado do aumento dos próprios elementos ou do aumento de sua produtividade. A lei do aumento da produção é necessariamente uma consequência das leis que regem esses elementos: os limites do aumento da produção necessariamente são os limites colocados por essas leis, quaisquer que elas sejam. Passamos a considerar os três elementos sucessivamente, no tocante a esse efeito; ou, em outras palavras, a lei do aumento da produção, visualizada com respeito à dependência dela, primeiro, em relação ao trabalho (ou mão-de-obra), segundo, em relação ao capital e finalmente em relação à terra. § 2. O aumento da mão-de-obra é o aumento da espécie humana, da população. Quanto a esse assunto, as discussões suscitadas pelo Essay do Sr. Malthus fizeram com que a verdade fosse, se não ainda, de forma alguma, universalmente admitida, pelo menos conhecida tão amplamente que é provável baste agora examinar a questão de modo mais breve do que de outra forma teria sido necessário. Pode-se considerar infinito o poder de multiplicação inerente a toda vida orgânica. Não existe uma só espécie de vegetal ou animal que, se a terra fosse inteiramente entregue a ela e às coisas das quais se alimenta, em poucos anos não se espalhasse sobre todas as regiões do globo, cujo clima fosse compatível com sua existência. O grau de rapidez de proliferação é diferente nas diversas classes de seres, porém em todas elas são suficientes para que a terra muito rapidamente se encha. Há muitas espécies de vegetais dos quais uma única planta produzirá em um só ano os germes de mil outras; se apenas duas chegarem a amadurecer, em catorze anos as duas se terão multiplicado por 16 mil ou mais. É só um exemplo modesto de fecundidade o fato de serem os animais capazes de quadruplicar seu número em um único ano; se fizerem isso apenas no prazo de meio século, 10 mil deles elevar-se-ão, dentro de dois séculos, para mais de 2,5 milhões. A capacidade de aumento apresenta-se necessariamente em forma de uma progressão geométrica; somente a proporção numérica é diferente. Quanto a essa propriedade dos seres organizados, a espécie humana não faz exceção. O poder de aumento que possui a espécie humana é indefinido, e a multiplicação efetiva seria extraordinariamente rápida se esse poder fosse exercido ao máximo. Ele nunca é exercido ao máximo e, apesar disso, nas circunstâncias mais favoráveis de que se tenha conhecimento, que são as de uma região fértil colonizada por uma comunidade operosa e civilizada, a população tem continuado, durante várias gerações, independentemente de nova imigração, a duplicar em um prazo não muito superior a vinte anos. (Isso tem sido objeto de controvérsia; mas a estimativa máxima de que tomei conhecimento do prazo que a população demanda para se duplicar nos Estados Unidos, independentemente dos imigrantes e seus descendentes — a do Sr. Carey — não ultrapassa trinta anos). Que a capacidade de multiplicação da espécie humana supera até isso, é evidente, se considerarmos quão grande é comumente o número de crianças existentes em uma família, em locais onde o clima é bom e as pessoas costumam casar cedo; e quão pequena é a percentagem dos que morrem antes de atingirem a maturidade, na atual condição dos conhecimentos de higiene, onde a localidade é saudável e a família tem os meios de vida adequados. Estaremos fazendo uma estimativa muito baixa dessa capacidade de aumento, se apenas supusermos que, em boa condição sanitária da população, cada geração pode duplicar o número da geração que a precedeu. Há vinte ou trinta anos, possivelmente essas proposições ainda demandavam considerável comprovação e esclarecimentos; mas sua evidência é tão ampla e incontestável que elas venceram todos os tipos de contestação, podendo hoje ser consideradas como axiomáticas, embora a relutância extrema que se sente em admiti-las dê por vezes origem a alguma teoria efêmera, rapidamente esquecida, de uma lei diferente de aumento em circunstâncias diferentes, mediante uma adaptação providencial da fecundidade da espécie humana às exigências da sociedade. (Pode-se pensar que uma dessas teorias, a do Sr. Doubleday, requer uma observação de passagem, pelo fato de ter ultimamente conseguido alguns adeptos, e porque as analogias gerais da vida orgânica lhe dariam uma sustentação aparente. Essa teoria afirma que a fecundidade do animal humano e de todos os demais seres vivos está em proporção inversa à quantidade de alimentos; que uma população subalimentada se multiplica rapidamente, ao passo que todas as classes que desfrutam de situação confortável são, por uma lei fisiológica, tão pouco prolíficas que raramente mantêm seu contingente a não ser recrutando de uma classe mais pobre. Não cabe dúvida alguma de que um excesso efetivo de alimento, tanto nos animais como nas árvores frutíferas, é desfavorável à reprodução; é também perfeitamente possível, conquanto de forma alguma esteja provado, que as condições fisiológicas da fecundidade possam existir no grau máximo quando a provisão de alimentos é algo limitada; todavia, quem quer que possa estar propenso a tirar disso — mesmo que fosse admitido — conclusões discordantes dos princípios do Sr. Malthus, precisa apenas ser convidado a relancear os olhos em um volume sobre o pariato e observar as famílias descomunalmente numerosas, que quase sempre se encontram nessa classe: ou relembrar as famílias numerosas do clero inglês e de modo geral as das classes médias da Inglaterra. Além disso, o Sr. Carey observa muito bem que, para ser compatível com a teoria do Sr. Doubleday, o aumento da população dos Estados Unidos, prescindindo da imigração, deveria ser um dos mais lentos que se conhecem. O Sr. Carey tem uma teoria própria, também ela baseada em uma verdade fisiológica: que o total de alimentos ingeridos por um corpo organizado se dirige em maior proporção para partes do sistema que são mais utilizadas; disso prevê ele uma diminuição na fecundidade dos seres humanos, não devido à alimentação mais abundante, mas em razão do maior uso de seu cérebro, como acontece em uma civilização adiantada. Há uma plausibilidade considerável nesse raciocínio, e a experiência futura pode até confirmá-lo. Mas a mudança na constituição humana, que esse raciocínio supõe, se é que ocorrerá um dia, conduzirá ao efeito esperado, antes tornando mais fácil o autocontrole físico do que dispensando a necessidade do mesmo, já que a taxa mais rápida de multiplicação da espécie que se conhece é perfeitamente compatível com um emprego muito restrito do poder de multiplicação). O obstáculo para a correta compreensão do assunto não provém dessas teorias, mas de uma noção excessivamente confusa das causas que, na maioria dos tempos e lugares, mantêm o aumento efetivo da humanidade tão aquém da sua capacidade real. § 3. Essas causas, no entanto, nada têm de misterioso. Que impede à população de lebres e de coelhos de superpovoar a terra? Não a falta de fecundidade, mas causas muito diferentes: muitos inimigos e alimentação insuficiente; em outros termos: a insuficiência de alimentos e a possibilidade de ser devorado por outros. Na espécie humana, que geralmente não está sujeita ao último inconveniente, os equivalentes das causas citadas são a guerra e a doença. Se a multiplicação da espécie humana ocorresse da mesma forma que a dos outros animais, na base de um instinto cego, ela seria limitada da mesma forma que a deles: os nascimentos seriam tão numerosos quanto comportasse a constituição física da espécie, e a população se manteria baixa pelos óbitos. (O Sr. Carey divaga sobre o absurdo de supor que a matéria tende a assumir a forma mais perfeita de organização, a humana, a uma velocidade mais rápida do que assumem as formas mais baixas, que compõem o alimento humano: que os seres humanos se multiplicam mais rapidamente do que os nabos e as couves. Acontece que o limite para o aumento da humanidade, segundo a doutrina do Sr. Malthus, não depende do poder de multiplicação dos nabos e das couves, mas da quantidade limitada da terra na qual estes podem ser cultivados. Enquanto a quantidade de terra for praticamente ilimitada — como ocorre nos Estados Unidos — e, portanto, o alimento puder aumentar à velocidade máxima que lhe é natural, também a população humana pode aumentar à sua velocidade máxima, sem maior dificuldade na obtenção de alimentos. No momento em que o Sr. Carey puder mostrar, não que os nabos e as couves, mas que o próprio solo ou os elementos nutritivos nele contidos tendem naturalmente a multiplicar-se e isso a uma velocidade que ultrapasse o aumento mais rápido possível da espécie humana, nesse momento ele terá dito algo pertinente. Até lá, ao menos essa parte de seu argumento pode ser considerada inexistente). Mas a conduta das criaturas humanas é influenciada em grau maior ou menor pela previsão das consequências, e por impulsos superiores aos meros instintos animais, e por isso elas não se propagam como os suínos, mas elas são passíveis, ainda que em graus muito desiguais, de serem impedidas, pela prudência ou pelas tendências sociais, de gerar seres destinados apenas à miséria e à morte prematura. Na medida em que a humanidade está acima da condição dos animais, a população é limitada pelo medo de passar necessidades mais do que pela própria falta efetiva de alimentos. Mesmo onde não há perigo de morrer de fome, muitos são de forma similar afetados pelo medo de perder aquilo que passou a ser considerado sua condigna condição de vida. Até agora, constatou-se que só esses dois motivos têm sido suficientemente fortes, na generalidade da espécie humana, para neutralizar a tendência ao aumento. Tem sido costume de uma grande maioria das classes média e mais pobre, sempre que isentas de controle externo, casarem tão cedo — e, na maioria dos países, ter tantos filhos — quanto considerassem conciliável com o imperativo de se manterem na condição de vida na qual nasceram ou na qual estão habituados a se enquadrar. Entre as classes médias, em muitos casos individuais, há uma limitação adicional, praticada em razão do desejo de melhorar e não só manter sua situação habitual — tal desejo, porém, raramente se encontra ou raramente tem esse efeito nas classes trabalhadoras. Se conseguirem criar uma família à altura da condição econômica em que eles mesmos foram criados, mesmo os mais prudentes dentre eles estão geralmente satisfeitos. Com muita frequência eles não pensam sequer nisso, mas confiam na fortuna ou nos recursos que acreditam encontrar na generosidade das leis ou na boa vontade das pessoas. Em um estágio social bem atrasado, como o da Europa na Idade Média e em muitas regiões da Ásia ainda hoje [1848], a população se mantém reduzida pelo fato de muitos morrerem de fome. Isso não ocorre em anos normais, mas em épocas de escassez, que naquelas condições sociais são muito mais frequentes e mais extremas do que aquelas às quais hoje estamos habituados na Europa. Quando sobrevêm tais épocas de escassez, a falta efetiva de alimentos ou as consequentes doenças dizimam grandes contingentes da população e esta aumenta novamente em uma sucessão de anos favoráveis, para ser então de novo cruelmente dizimada. Em condição social superior, poucos, mesmo entre os mais pobres da população, estão limitados aos gêneros de primeira necessidade e ao estritamente suficiente para sobreviver: aqui o aumento populacional é limitado não pelo excesso de óbitos, mas pela limitação dos nascimentos. Esta é praticada de vários modos. Em alguns países, ela é o resultado de autocontrole imposto pela prudência ou pela consciência. Há uma condição à qual a classe trabalhadora está habituada: ela percebe que, se tiver família excessivamente numerosa, terá que rebaixar sua condição, ou então, não terá condições de transmiti-la a seus filhos e acaba optando por não se submeter a isso. Nos países em que, quanto se saiba, se tem há mais tempo exercido um grande grau de prudência intencional nessa matéria são [1848] a Noruega e certas regiões da Suíça. A respeito desses dois países, acontece que temos informação extraordinariamente autêntica; muitos fatos foram cuidadosamente coligidos pelo Sr. Malthus, e desde o tempo dele se conseguiram muitos dados adicionais. Nesses dois países o crescimento é muito lento, e o que o dificulta não é a quantidade de óbitos, mas o número reduzido de nascimentos. Tanto os nascimentos como os óbitos são acentuadamente poucos em proporção com a população; a duração média de vida é a máxima na Europa; a população conta menos crianças e um número proporcionalmente maior de pessoas no vigor da vida do que se tem conhecimento em qualquer outra parte do mundo. O número reduzido de nascimentos tende diretamente a prolongar a vida mantendo a população em situação confortável; e a mesma prudência é sem dúvida praticada tanto para evitar causas de doenças como para manter-se imune da causa principal da pobreza. É digno de nota que os dois países que assim se distinguem honrosamente são países de pequenos proprietários rurais. Outros casos há em que a prudência e a previdência, que talvez poderiam não ser praticados pela própria população, são exercidas pelo Estado em benefício dela: só se permite o casamento quando as partes contratantes puderem provar que têm a perspectiva de uma manutenção satisfatória. Sob tais leis, das quais adiante falarei mais detalhadamente, afirma-se que a condição da população é boa, e que os nascimentos ilegítimos não são tão numerosos quanto se poderia esperar. Por outro lado, há lugares em que a causa limitadora parece ser não tanto a prudência individual, mas antes algum hábito generalizado e talvez até mesmo casual do país. Nos distritos rurais da Inglaterra, durante o século passado, o crescimento da população era reprimido com muita eficiência pela dificuldade de conseguir uma pequena casa para morar. Era costume que os trabalhadores solteiros residissem e comessem com seus empregadores; os casados costumavam ter uma pequena casa; e a norma, na Inglaterra, imposta pelas leis dos pobres, que impunham à paróquia o dever de sustentar seus pobres desempregados, fazia com que os proprietários de terras fossem avessos a favorecer o casamento. Por volta do fim do século, a grande demanda de varões para a guerra e para as manufaturas fez com que se considerasse uma atitude patriótica estimular o aumento da população; pela mesma época, a tendência crescente dos arrendatários de viver como pessoas ricas — favorecida que era por um longo período de preços altos — despertou neles o desejo de manterem os inferiores a uma grande distância; por outro lado, sobrevindo também motivos pecuniários oriundos de abusos das leis dos pobres, gradualmente os arrendatários obrigaram seus trabalhadores a morar nas pequenas casas para cuja construção, a essa altura, os proprietários de terras já não recusavam permissão. Em alguns países, afirma-se que o crescimento da população foi grandemente impedido por um velho e consagrado costume de que uma moça não se casasse antes de haver fiado e tecido para si mesma um grande enxoval (que devia servir-lhe para o resto de sua vida). Na Inglaterra, atualmente [1848], a influência da prudência em manter baixo o crescimento populacional pode ser observada no reduzido número de casamentos nos distritos manufatureiros nos anos em que o comércio vai mal. Quaisquer que sejam, porém, as causas pelas quais a população é limitada a uma taxa comparativamente lenta de aumento, toda diminuição da motivação para limitar é muito rapidamente seguida de uma aceleração da taxa de aumento. É raro que as melhorias na condição das classes trabalhadoras façam mais do que dar uma folga temporária, rapidamente seguida de um aumento do número de trabalhadores. Os trabalhadores costumam aproveitar qualquer mudança vantajosa que haja em sua situação econômica, de forma que, aumentando a população, priva a geração seguinte do benefício. A menos que se lhes consiga ensinar a fazer melhor uso de circunstâncias favoráveis, seja aprimorando generalizadamente sua cultura intelectual e moral, seja ao menos elevando seu habitual padrão de vida confortável, nada de permanente se pode fazer por eles; os esquemas mais promissores dão como resultado apenas uma população mais numerosa, mas não uma população mais feliz. Pela expressão “seu padrão habitual” (se é que existe tal padrão) entendo aquele abaixo do qual eles deixarão de se multiplicar. Todo progresso que fizerem em instrução, civilização e aperfeiçoamento social tende a elevar esse padrão; e não há dúvida alguma de que esse padrão está subindo gradualmente, embora com lentidão, nos países mais adiantados da Europa ocidental. A alimentação e o emprego na Inglaterra nunca aumentaram com maior rapidez do que nos últimos quarenta anos [1862], mas cada censo, desde 1821, demonstrou um aumento de população proporcionalmente menor do que o registrado no período precedente; por outro lado, na França a produção agrícola e industrial está aumentando a uma taxa progressiva, enquanto a população apresenta, em cada censo quinquenal, uma taxa de nascimentos menor em relação à população. Entretanto, a questão da população, enquanto conexa com a condição das classes trabalhadoras, será considerada alhures; no momento ocupamo-nos dela apenas como um dos elementos da produção; e sob esse aspecto não podíamos deixar de destacar a extensão ilimitada de suas forças naturais de aumento, bem como os motivos em razão dos quais é tão pequena a porção dessa força ilimitada que na maioria dos casos é de fato exercida. Depois dessa breve indicação, analisaremos os outros elementos. CAPÍTULO XI A Lei do Aumento do Capital § 1. Sendo requisitos da produção a mão-de-obra, o capital e a terra, viu-se no capítulo precedente que os impedimentos para o aumento da produção não provêm do primeiro desses elementos. Da parte da mão-de-obra não há obstáculo para um aumento da produção, indefinido em extensão e de rapidez crescente. A população tem o poder de aumentar a uma razão geométrica uniforme e rápida. Se a única condição essencial da produção fosse a mão-de-obra, a produção poderia crescer — e naturalmente cresceria — na mesma proporção, e não haveria limite algum, até que parasse o aumento da população, por falta efetiva de espaço. Acontece que a produção tem outros requisitos, e destes, o que examinaremos agora é o capital. Não pode haver mais população, em algum país ou no mundo, do que a que pode ser sustentada com a produção do trabalho já efetuado, até que o trabalho presente dê seus frutos. Não haverá número maior de trabalhadores produtivos, em qualquer país ou no mundo, do que o que pode ser sustentado com aquela parte da produção do trabalho passado, cujo proprietário poupa e deixa de desfrutar a fim de reproduzi-lo; essa parte chama-se capital. Por isso, cabe-nos agora investigar as condições do aumento do capital: as causas que determinam a rapidez do seu crescimento e as limitações necessárias do mesmo. Pelo fato de todo capital ser resultado de poupança, isto é, da abstenção de consumo atual em função de um bem futuro, o aumento do capital depende necessariamente de duas coisas: o montante do fundo do qual se pode fazer a poupança e a força das disposições humanas que levam a poupar. O fundo do qual se pode fazer a poupança é o excedente da produção do trabalho que resta após o atendimento de todas as necessidades de subsistência de todos os envolvidos na produção, incluindo os empregados na reposição das matérias-primas e na restauração do capital fixo. Em nenhuma circunstância se pode poupar mais do que esse excedente. Da mesma forma, esse excedente é o que sempre pode ser poupado, embora, em sua totalidade, nunca o seja efetivamente. Esse excedente é o fundo com o qual se atende aos prazeres (enquanto distintos dos artigos de primeira necessidade) dos produtores; é o fundo com o qual se sustentam todos aqueles que não estão pessoalmente envolvidos na produção, e do qual se fazem todos os acréscimos ao capital. É a produção líquida real do país. A expressão produção líquida muitas vezes é utilizada em sentido mais limitado, para designar apenas os lucros do capitalista e a renda do dono da terra, supondo-se que nada pode ser incluído na produção líquida do capital a não ser o que retorna ao proprietário do capital após a reposição de suas despesas. Mas esta é uma acepção demasiadamente restrita do termo. O capital do empregador forma os proventos dos trabalhadores, e se esses proventos superam as necessidades de subsistência, dá-lhes um excedente que eles podem gastar em coisas dispensáveis ou economizar. Toda vez que se deva falar de produção líquida do trabalho, esse excedente deve ser incluído nela. Quando esse excedente é incluído, e não de outro modo, a produção líquida do país é a medida de sua força efetiva, daquilo que o país pode poupar para qualquer fim de utilidade pública ou satisfação particular. A produção líquida do país é a parte da produção da qual ele pode dispor à vontade, utilizando-a para atingir quaisquer objetivos: satisfazer a quaisquer desejos, quer do Governo quer dos indivíduos; é aquilo que o país pode gastar para sua satisfação ou poupar para vantagem futura. O montante desse fundo, essa produção líquida, esse excedente de produção acima das necessidades físicas dos produtores, é um dos elementos que determinam o montante de poupança. Quanto maior for a produção do trabalho que resta após sustentar os trabalhadores, tanto maior será a parte que poderá ser poupada. A mesma coisa contribui em parte também para determinar quanto será efetivamente poupado. Uma parte da motivação para a poupança consiste na perspectiva de obter um rendimento da poupança, no fato de o capital, empatado na produção, ser capaz não somente de manter seu valor, mas também de crescer. Quanto maior for o lucro que se puder obter do capital, tanto maior será a motivação para acumular capital. Com efeito, o que gera o estímulo para poupar, não é o total do fundo que proporciona os meios de poupar, nem o total da produção líquida da terra, do capital e do trabalho do país, mas somente uma parte desse total, a que constitui a remuneração do dono do capital, e que se chama lucro do capital. Todavia, entender-se-á logo, antes mesmo das explicações que serão dadas adiante, que, quando a produtividade geral do trabalho e do capital é grande, os retornos para o capitalista têm probabilidade de ser igualmente grandes, e que normalmente haverá alguma proporcionalidade, embora não uniforme, entre as duas coisas. § 2. Mas propensão a poupar não depende totalmente do estímulo externo para poupar, do montante de lucro que se poderá obter. Com o mesmo estímulo pecuniário, a inclinação a poupar é muito diferente em pessoas diferentes e em comunidades diferentes. O desejo efetivo de acumular tem força desigual, não somente de acordo com as variedades de caráter individual, mas também de acordo com o estado geral da sociedade e da civilização. Como todos os outros atributos morais, esse desejo é um daqueles nos quais a espécie humana apresenta grandes diferenças, conforme a diversidade de suas circunstâncias e o estágio de seu progresso. Em se tratando de tópicos que, se fossem investigados em sua plenitude, superariam os limites que podemos conceder-lhes neste tratado, é suficiente remeter a outras obras em que seus necessários desdobramentos foram apresentados mais detalhadamente. No tocante ao tema População, esse valioso serviço foi prestado pelo célebre Essay do Sr. Malthus; quanto ao ponto que agora nos ocupa posso remeter, com igual confiança, a uma outra, embora menos conhecida, New Principles of Political Economy do Dr. Rae. (Esse tratado é um exemplo, não raro, de que a aceitação de um livro é determinada mais por acidentes do que por suas qualidades intrínsecas. Se ele tivesse aparecido em momento oportuno e fosse favorecido pelas circunstâncias, teria tido todos os requisitos para alcançar grande sucesso. O autor, um escocês estabelecido nos Estados Unidos, reúne muito saber, um modo de pensar original, um pendor considerável por generalizações filosóficas e uma forma de expor e ilustrar, adequada para fazer as ideias dizerem não somente para que servem, mas para mais do que servem, e que, às vezes, penso eu, tem esse efeito na própria mente do autor. A falha principal do livro está na posição de antagonismo em que o autor, com todo o espírito de controvérsia fácil de encontrar naqueles que têm ideias novas sobre temas velhos, se colocou em relação a Adam Smith. Qualifico isso como falha (embora considere muitas críticas justas, e algumas delas como de grande visão), pois as diferenças reais de opinião são muito menores do que se pode supor com base nas observações do Dr. Rae, e porque aquilo que encontrou de vulnerável em seu grande predecessor é sobretudo a “excessiva predominância do humano” em suas premissas, ou seja, aquilo que vai além do que é exigido ou efetivamente utilizado para demonstrar suas conclusões). Nenhum outro livro de meu conhecimento projeta tanta luz, quer do ponto de vista do princípio quer do da História, sobre as causas que determinam a acumulação de capital. Toda acumulação envolve o sacrifício de um bem presente em função de um futuro. Acontece que a conveniência de fazer tal sacrifício varia muitíssimo em circunstâncias diferentes; e a disposição real para fazê-lo varia ainda mais. Ao comparar o futuro com o presente, a incerteza de todas as coisas futuras representa um elemento-chave, e essa incerteza é de graus muito diversos. Por isso, “todas as circunstâncias que aumentam a probabilidade de que a provisão que fazemos para o futuro será desfrutada por nós mesmos ou por outros, tendem” justa e razoavelmente “a dar força ao desejo eficaz de acumular. Assim, um clima ou uma ocupação saudável, por aumentarem a probabilidade de viver, têm tendência a aumentar esse desejo. Quando estão engajadas em ocupações seguras, e vivem em países saudáveis, as pessoas têm muito mais propensão a serem frugais do que em ocupações insalubres ou perigosas e em climas perniciosos à vida humana. Os marujos e os soldados são pessoas pródigas. Nas Índias Ocidentais, em New Orleans, nas Índias Orientais, as pessoas gastam muito. As mesmas pessoas, se vierem a residir nas regiões saudáveis da Europa, e não sucumbirem ao vórtice da moda extravagante, viverão economicamente. A guerra e a peste sempre acarretam o desperdício e o luxo entre os outros males que vêm em sua esteira. Por motivos similares, tudo o que dá segurança aos negócios da comunidade favorece a força desse princípio. Sob esse aspecto, a prevalência geral da lei e da ordem e a perspectiva de continuidade de paz e tranquilidade exercem influência considerável”. Quanto maior for a segurança, tanto maior será a força eficaz do desejo de acumular. Onde a propriedade é menos segura ou as vicissitudes prejudiciais à fortuna são mais frequentes e duras, serão menos numerosas as pessoas que pouparão, e, dentre as que o fazem, muitas precisarão do estímulo de uma taxa maior de lucro do capital para preferirem um futuro duvidoso à tentação de desfrutar no presente. Estas são considerações que mostram a conveniência, aos olhos da razão, de pensar nos interesses futuros em detrimento do presente. Mas a inclinação para fazer o sacrifício não depende exclusivamente da conveniência de fazê-lo. A disposição para poupar fica frequentemente muito aquém daquilo que a razão ditaria, e, em outros casos, pode ir muito além disso. A ausência de força do desejo de acumular pode provir da imprevidência ou então da falta de interesse por outros. A imprevidência pode estar ligada a causas intelectuais ou morais. Indivíduos e comunidades de um grau de inteligência muito baixo são sempre imprevidentes. Parece necessário certo grau de desenvolvimento intelectual para fazer com que as coisas ausentes, e especialmente coisas futuras, ajam com alguma força sobre a imaginação e a vontade. Admitir-se-á o efeito da falta de interesse por outros como fator de diminuição do desejo de acumular, se considerarmos quão grande é a poupança que se faz atualmente e que tem por objeto o interesse de outros, mais do que o nosso próprio: a educação dos filhos, seu progresso na vida, os interesses futuros de outros parentes, a força para promover, pela doação em dinheiro ou em tempo, objetivos de utilidade pública ou particular. Se a humanidade estivesse naquele estado de espírito do qual se viu uma imagem aproximada no período declinante do Império Romano — despreocupação total das pessoas pelos herdeiros, pelos amigos, pelo público ou por qualquer objetivo que lhes sobrevivesse — raramente elas se negariam algum prazer a bem da poupança, além do que fosse necessário para seus próprios anos futuros, poupança esta que, nesse caso, elas colocariam em forma de anuidades vitalícias ou de alguma outra modalidade na qual a existência da poupança terminasse com a sua morte. § 3. Por essas várias causas, intelectuais e morais, a força efetiva de acumular para o futuro apresenta, em partes diferentes da humanidade, uma diversidade maior do que aquela que se costuma perceber. Um estado atrasado de civilização muitas vezes é mais efeito de falha nesse ponto do que de falha em muitos outros pontos que chamam mais atenção. Por exemplo, nas circunstâncias de uma tribo de caçadores “pode-se dizer que o homem é necessariamente imprevidente e despreocupado com o futuro porque, nesse estado, o futuro nada apresenta que possa ser previsto ou administrado com certeza. (...) Além de uma falta de motivações que levariam a prover às necessidades do futuro mediante os recursos do presente, faltam os hábitos de percepção e ação, que levam a juntar efetivamente, na mente, esses pontos distantes e a série de eventos que servem para uni-los entre si. Por isso, mesmo que se despertem motivações capazes de produzir a iniciativa necessária para fazer essa vinculação, resta a tarefa de treinar a mente a pensar e a agir de maneira a consolidar essa vinculação, resta a tarefa de treinar a mente a pensar e agir de maneira a consolidar essa vinculação entre o presente e o futuro”. Por exemplo: “Às margens do rio São Lourenço há várias pequenas aldeias de índios. Em geral estão circundadas de bastante terra, da qual a madeira parece ter sido extirpada há muito, e, além disso, estão ligadas a extensas áreas de florestas. A terra, após o corte das árvores, raramente é cultivada — posso quase dizer: nunca — nem se avança na floresta para fins de cultivo do solo. No entanto, a terra é fértil, e mesmo que não o fosse, o esterco se encontra aos montes em torno das moradias dos habitantes. Se cada família cercasse meio acre de terreno, o cultivasse e plantasse nele batatas e milho, ele produziria o suficiente para sustenta-los durante meio ano. De vez em quando, os habitantes passam por períodos de extrema necessidade, a tal ponto que, associada à intemperança ocasional, ela está provocando uma rápida redução do seu número. Essa apatia, a nós tão estranha, não provém em grau algum da repugnância ao trabalho; ao contrário, eles se aplicam a ele com muita diligência quando a recompensa é imediata. Assim, além de suas ocupações peculiares de caçar e pescar, nas quais sempre estão prontos a engajar-se, dão-se muito à navegação do rio São Lourenço, podendo-se vê-los manejando o remo ou junto ao mastro, nos grandes barcos utilizados para essa finalidade, e sempre dispõem da maior parte da mão-de-obra adicional necessária para conduzir jangadas por algumas das corredeiras do rio. Tampouco o obstáculo é a aversão ao trabalho agrícola. Sem dúvida, este é um preconceito que têm; mas simples preconceitos sempre cedem, ao passo que os princípios de ação não se criam. Quando as recompensas pelo trabalho agrícola são rápidas e grandes, esses índios são também agricultores. Assim, algumas das pequenas ilhas do lago São Francisco, perto da aldeia de índios de São Régis, são favoráveis ao cultivo do milho, planta que dá um retorno centuplicado, proporcionando uma comida gostosa e substanciosa, mesmo sem arar a terra. Por isso, áreas da melhor terra existente nessas ilhas são, cada ano, cultivadas para esse fim. Uma vez que sua localização as torna inacessíveis ao gado, não se requer nenhuma cerca; se essa despesa adicional fosse necessária, suspeito que essas terras ficariam negligenciadas, como as terras comuns adjacentes à sua aldeia. Ao que parece, houve época em que estas eram cultivadas. Agora, porém, o gado dos moradores vizinhos destruiria qualquer colheita que não estivesse cercada com segurança, e consequentemente essa despesa adicional necessária impede que as terras sejam hoje cultivadas pelos índios. Isso os leva a lançar mão de um tipo de recurso de retorno mais lento do que aquele que corresponde à força do desejo efetivo de acumular existente nesta pequena sociedade. “Cabe aqui notar que os recursos desse tipo a que recorrem são utilizados de maneira plena e total. As pequenas plantações de cereais que cultivam são muito bem carpidas. Com efeito, uma pequena negligência reduziria muitíssimo a colheita; disso a experiência os tornou perfeitamente conscientes, e por esse motivo agem com seriedade. Evidentemente, não é a falta de mão-de-obra necessária que constitui o obstáculo a uma cultura mais ampla, mas o fato de ser demorado o retorno proporcionado por esse trabalho. Estou, efetivamente, certo de que, entre algumas das tribos mais afastadas, o trabalho agrícola supera de muito o executado pelos brancos. Pelo fato de nas mesmas áreas se fazerem colheitas sem interrupção, e por não se usar adubo, dificilmente elas proporcionariam algum resultado se o solo não fosse remexido e destorroado com o máximo cuidado, tanto com a enxada como com as mãos. Em tal situação, um homem branco limparia e roçaria uma nova área de terra. Dificilmente esse trabalho inicial seria reembolsado no primeiro ano; ele teria que esperar sua recompensa nos anos seguintes. Para o índio, os anos seguintes estão demasiado distantes para impressioná-lo suficientemente, se bem que, para conseguir o que o trabalho pode proporcionar no decurso de apenas alguns meses, ele trabalhe até com maior assiduidade que o homem branco”. Essa visão das coisas é confirmada pela experiência dos jesuítas, em seus interessantes esforços no sentido de civilizar os índios do Paraguai. Ganharam a confiança daqueles selvagens em grau extraordinário. Adquiriram autoridade sobre eles, suficiente para fazê-los mudar toda sua maneira de viver. Conseguiram submissão e obediência absoluta. Consolidaram a paz. Ensinaram-lhes todas as operações da agricultura europeia, e muitos dos ofícios mais complexos. Em toda parte, podiam-se observar, segundo Charlevoix, “oficinas de douradores, pintores, escultores, ourives, montadores de relógios, carpinteiros, marceneiros, tintureiros” etc. Essas ocupações não eram exercidas visando o ganho prático dos artesãos: a produção estava totalmente à disposição dos missionários que governavam a população com um despotismo voluntariamente aceito. Portanto, os obstáculos provenientes da aversão ao trabalho foram completamente superados. A dificuldade real estava na imprevidência da população, em sua incapacidade de pensar no futuro, e, portanto, na necessidade de supervisão incessante e minuciosa da parte de seus instrutores. “Assim, de início, se estes lhes confiassem o cuidado dos bois com os quais aravam, sua despreocupação indolente provavelmente os levaria a deixar os bois, no fim da tarde, ainda atrelados ao arado. Pior que isso, ocorriam exemplos em que os índios picavam os bois em pedaços para comer-lhes a carne no jantar, pensando que o justificariam a contento, quando repreendidos, alegando estarem com fome. (...) Esses padres” — diz Ulloa — “têm que visitar as casas, examinar o que está realmente faltando, pois sem esse cuidado os próprios índios jamais procurariam coisa alguma. Os padres têm que estar presentes também quando os animais são abatidos, não somente para que a carne seja dividida com igualdade, mas também para que nada se perca”. “Mas, apesar de todo esse cuidado e supervisão” — diz Charlevoix — “e de todas as precauções que se tomam para impedir toda falta de gêneros de primeira necessidade, os missionários por vezes se encontram em situações embaraçosas. Com frequência acontece que eles” (os índios) “não guardam a quantidade suficiente de cereais, mesmo para a semeadura. Quanto aos outros gêneros, se não se olhasse bem por eles, cedo não teriam com que sustentar-se”. Como um exemplo intermediário da força do desejo eficaz de acumular, entre o estado de coisas ora descrito e o da Europa moderna, merece atenção o caso dos chineses. Devido a várias circunstâncias em seus hábitos pessoais e em sua condição social, pode-se até antecipar que eles possuem um grau de prudência e autocontrole superior ao de outros asiáticos, porém inferior ao da maioria das nações europeias; esse fato é atestado pelo seguinte depoimento: “A durabilidade é uma das qualidades principais que marcam um alto grau do desejo eficaz de acumular para o futuro. O testemunho de viajantes atribui aos instrumentos inventados pelos chineses uma durabilidade bem inferior a instrumentos similares construídos por europeus. Somos informados de que as casas, a não ser as das categorias mais altas, são geralmente construídas de tijolos não cozidos, de barro ou de tapumes de vime entrelaçados e rebocados com terra; os telhados são feitos de juncos fixados a ripas. Dificilmente podemos conceber construções mais frágeis ou provisórias. As divisórias são de papel, tendo que ser renovadas cada ano. Observação similar pode ser feita com respeito aos seus instrumentos agrícolas e a outros utensílios. São quase inteiramente de madeira, sendo que os metais entram em pouquíssima escala na sua fabricação; em consequência, logo se desgastam, tendo que ser renovados com frequência. Um maior grau de força no desejo eficaz de acumular faria com que eles fossem feitos de materiais que demandam um gasto inicial maior, mas que seriam muito mais duráveis. Pela mesma causa, fica sem cultivar muita terra que em outros países seria cultivada. Todos os viajantes notam grandes extensões de terra, sobretudo pântanos que continuam no estado natural. Transformar um pântano numa área cultivável constitui geralmente um processo que, para ficar completo, requer vários anos. A área tem que ser primeiro drenada, a superfície deve permanecer muito tempo exposta ao sol, devendo-se executar muitas operações antes de se poder tirar uma colheita de tal solo. Conquanto proporcione provavelmente uma recompensa bem considerável pelo trabalho despendido, essa recompensa só ocorre depois de decorrer longo tempo. O cultivo de tal tipo de terra implica uma força do desejo efetivo de acumular, maior do que o existente no império. “O fruto da colheita é, como já observamos, sempre um instrumento de um ou outro tipo, é uma provisão para futuras necessidades, e portanto, regulada pelas mesmas leis às quais obedecem outros meios para se atingir objetivos similares. Lá essa provisão é sobretudo arroz, colhido em duas safras, a primeira em junho e a segunda em outubro. Portanto, é para o período de oito meses, entre outubro e junho, que se faz provisão de cada ano; a estimativa diferente que fazem, de hoje e de daqui a oito meses, aparecerá na auto renúncia que praticam agora, a fim de se precaverem contra a carência futura. Ao que parece, esse grau de auto renúncia é pequeno. Com efeito, o padre Parennin (que parece ter sido um dos mais inteligentes jesuítas que passaram uma longa vida entre os chineses de todas as classes) afirma que é em sua grande falta de preocupação com o futuro e em sua falta de frugalidade que reside a causa das crises de escassez e de fome que ocorrem com frequência". Que é a falta de previdência, e não a falta de trabalho, que limita a produção entre os chineses, é ainda mais óbvio do que no caso dos índios “semi-agricultorizados”. “Lá onde os retornos são rápidos, lá onde os instrumentos criados demandam pouco tempo para produzir os efeitos para os quais foram inventados”, é bem sabido que “o grande progresso que tem sido feito no conhecimento das técnicas adequadas à natureza do país e às necessidades de seus habitantes” faz com que o trabalho seja vigoroso e eficiente. “O calor do clima, a fertilidade natural do solo, o conhecimento que os habitantes adquiriram das técnicas agrícolas e a descoberta e adaptação gradual, a cada solo, dos produtos vegetais mais úteis, tudo isso lhes possibilita, muito rapidamente, tirar de qualquer parte da superfície aquilo que lá é considerado equivalente a muito mais do que o trabalho dispensado à cultura e à colheita. Normalmente, eles têm colheitas duplas, por vezes triplas. Quando estas consistem em cereais tão produtivos como o arroz, a safra usual dificilmente pode deixar de proporcionar à habilidade dos chineses retornos muito grandes, de quase toda porção de solo que puder ser cultivado imediatamente. Consequentemente, não há nenhuma área, suscetível de ser cultivada imediatamente, da qual o trabalho não consiga extrair tal retorno. Sobe-se às colinas e até mesmo às montanhas, formando-se terraços nelas; a água, que naquele país é o grande agente produtivo, é levada a toda parte por drenos, ou então por máquinas hidráulicas, engenhosas e simples, usadas desde tempos imemoriais por esse povo singular. Eles o fazem muito corriqueiramente porque o solo, mesmo nessas localizações, é muito profundo e coberto com muito húmus. Todavia, o que ainda mais do que isso mostra a presteza com a qual a mão-de-obra é estimulada a transformar os mais caprichosos elementos em recursos — lá onde tais recursos logo geram os frutos para os quais são criados — é a ocorrência frequente, em muitos de seus lagos e rios, de estruturas que se parecem aos jardins suspensos dos peruanos, balsas cobertas com terra fértil e cultivada. Trabalhar dessa maneira faz com que se obtenham, das matérias-primas sobre as quais se age, retornos muito rápidos. Nada pode superar a luxuriante vegetação, quando as forças vivificantes de um sol fecundo são secundadas por uma terra rica e por umidade abundante. A coisa é diferente, como vimos, em casos em que o retorno, embora copioso, é demorado. Viajantes europeus surpreendem-se ao deparar com essas pequenas propriedades em forma de jardins flutuantes, ao lado de pantanais que só precisariam de drenagem para se tornarem cultiváveis. Parece-lhes estranho que não se trabalhe antes em terra firme, onde seus frutos poderiam durar, do que em estruturas que necessariamente degeneram e perecem em alguns anos. A população entre a qual se encontram esses viajantes não pensa tanto em termos de anos futuros quanto em termos de momento atual. O desejo efetivo de acumular tem força muito diferente em um caso e no outro. A visão do europeu abarca um futuro distante, e por isso ele se surpreende com os chineses, condenados, pela imprevidência e pela falta de suficiente cuidado prospectivo, ao trabalho incessante e, em seu entender, à miséria insuportável. A visão do chinês está circunscrita a limites mais estreitos; ele se contenta com viver de um dia para o outro, tendo aprendido a considerar uma bênção até mesmo uma vida cheia de trabalho e sofrimento”. Quando um país atingiu uma produção igual àquela que, no atual estágio dos conhecimentos, se pode atingir, com um retorno correspondente à força média do desejo efetivo de acumular nesse país, ele alcançou o que se chama estado estacionário — estado este em que não se fará mais nenhum acréscimo ao capital, a menos que ocorra ou algum aperfeiçoamento das técnicas produtivas ou então algum aumento da força do desejo de acumular. No estado estacionário, embora o capital não cresça como um todo, algumas pessoas se tornam mais ricas e outras mais pobres. Empobrecem aqueles cujo grau de previdência estiver abaixo do padrão usual; seu capital perece, dando lugar às poupanças daqueles cujo desejo efetivo de acumular supera a média. Estes tornam-se os compradores naturais das terras, das manufaturas e de outros meios de produção em posse dos seus concidadãos menos previdentes. Mais adiante aparecerá quais são as causas que fazem com que o retorno do capital seja maior em um país do que em outro, e que, em determinadas circunstâncias, fazem com que seja impossível que algum capital adicional encontre investimento, a não ser com retornos menores. Na China, se esse país efetivamente atingiu — como se supõe haver ocorrido — o estado estacionário, a acumulação de capital parou, embora os retornos do capital sejam ainda [1848] tão altos quanto é indicado por uma taxa de juros que, por lei, é de 12%, e na prática varia (como se afirma) de 18 a 36%. É de se presumir, pois, que não pode encontrar aplicação, a essa alta taxa de lucro, nenhum montante de capital superior àquele que o país já possui, e que qualquer taxa abaixo disso não constitui para um chinês estímulo suficiente para induzi-lo a abster-se de desfrutar do capital já no presente. Que contraste com a Holanda, onde, durante o período mais florescente de sua História, o Governo tinha condições de, habitualmente, tomar empréstimo a 2%, e indivíduos particulares, com boa garantia a 3%! Já que a China não é um país como Burna ou os estados da Índia — onde os juros exorbitantes não passam de uma compensação indispensável pelo risco corrido em razão da má-fé ou da pobreza do Estado e de quase todos os tomadores particulares de empréstimos — o fato (se é que o fato é real) de que o aumento do capital estacionou, ao passo que os retornos dele são ainda tão grandes, denota um grau muito inferior do desejo efetivo de acumular, em outras palavras, uma estima muito menor do futuro em relação ao presente do que aquele que se observa na maioria das nações europeias. § 4. Falamos até aqui de países em que a força média do desejo de acumular está aquém daquilo que, em circunstâncias de segurança razoável, a razão e o cálculo sensato aprovariam. Temos agora que falar de outros países, nos quais a força média do citado desejo de acumular vai decididamente além desse nível. Nos países mais prósperos da Europa, há abundância de pródigos; em alguns deles (e em nenhum mais do que na Inglaterra) não se pode considerar elevado o grau normal de economia e previdência entre aqueles que vivem de trabalho manual; em contrapartida, em uma percentagem muito elevada da comunidade — as classes dos profissionais liberais, dos manufatores e dos comerciantes, por serem aquelas que, de modo geral, acumulam mais recursos, com mais motivação para poupar do que qualquer outra categoria — o espírito de acumulação é tão forte que todos podem observar os sinais de uma riqueza em rápido aumento; e o grande montante de capital à procura de investimento suscita admiração toda vez que circunstâncias peculiares — que fazem com que grande parte desse capital seja aplicado em algum investimento único, tais como a construção de ferrovias ou a aventura especulativa no Exterior — evidenciam a magnitude do montante total. Há muitas circunstâncias que na Inglaterra dão um reforço especial à propensão à acumulação de capital. A longa ausência de guerras no país e o fato de a propriedade gozar de segurança contra a violência militar ou contra a espoliação arbitrária, muito antes de isso ter ocorrido alhures, produziram sólida e hereditária confiança na segurança de fundos entregues aos cuidados de outros que não seus proprietários; essa confiança, na maioria dos outros países, é de origem muito mais recente e é menos firme. As causas geográficas responsáveis pelo fato de que a fonte natural do poder e da importância da Grã-Bretanha resida mais no trabalho do que na guerra, fizeram também com que uma percentagem incomum de pessoas dotadas de maior energia e de espírito de iniciativa se voltasse para as manufaturas e para o comércio, e atendessem a seus desejos e à sua ambição, produzindo e poupando mais do que se apropriando daquilo que foi produzido e poupado. Em grande parte, isso se deveu também à existência de instituições políticas melhores neste país, as quais, por terem aberto maior espaço à liberdade individual de ação, têm encorajado a atividade pessoal e a autoconfiança, ao mesmo tempo que, pela liberdade de associação e de conjugação de forças que proporcionam, facilitam o surgimento de empresas industriais em grande escala. Sob outro aspecto ainda, as mesmas instituições proporcionam um estímulo muito direto e poderoso ao desejo de adquirir riqueza. Pelo fato de o declínio do feudalismo, ocorrido mais cedo, ter eliminado ou enfraquecido muito as distinções invejosas e odiosas entre a classe dos primeiros comerciantes e aqueles que estavam habituados a desprezá-los, bem como pelo fato de ter-se desenvolvido uma forma de Governo que fez da riqueza uma fonte real de influência política, a aquisição da riqueza passou a ter um valor artificial independente de sua utilidade intrínseca. A riqueza tornou-se sinônimo de poder, e já que, para a massa do povo, poder chama poder, a riqueza tornou-se a fonte principal do prestígio pessoal, bem como a medida e o símbolo do êxito na vida. Sair de uma classe social para subir ao grau próximo acima representa o grande objetivo da classe média inglesa, e a aquisição de riqueza é o meio para isso. E na medida em que ser rico sem trabalhar sempre constituiu, na escala social, um nível superior ao daqueles que enriquecem pelo trabalho, ambiciona-se poupar não somente o quanto proporciona uma alta renda enquanto se estiver na ativa, mas também o suficiente para se retirar da ativa e viver na fartura de ganhos já conquistados. Essas causas têm sido altamente secundadas, na Inglaterra, por essa incapacidade extrema de desfrutar a vida, que constitui uma característica da população de países influenciados pelo puritanismo. Ora, se a acumulação de capital é, por um lado, facilitada pela ausência de um gosto pelo prazer, por outro lado é dificultada pela presença de um marcado gosto pelos gastos. Tão forte é a associação entre a alta posição social e os sinais de riqueza que o tolo desejo de aparentar um grande gasto tem a força de uma verdadeira paixão entre extensas parcelas de uma nação que aufere, daquilo que gasta, menos prazer do que qualquer outra nação do mundo. Em razão dessa circunstância, o desejo efetivo de acumular nunca alcançou um pico tão alto na Inglaterra quanto na Holanda, onde, não existindo nenhuma classe rica ociosa para dar o exemplo de gastos imprudentes, e onde por se ter deixado que as classes mercantis, que possuíam o poder substancial pelo qual sempre se pauta a influência social, estabelecessem seu próprio padrão de vida e seu próprio padrão de conveniência, os hábitos dessas classes permaneceram frugais e despidos de ostentação. Eis por que na Inglaterra e na Holanda, durante muito tempo no passado e atualmente na maioria dos demais países europeus (que estão seguindo rapidamente a Inglaterra na mesma corrida), o desejo de acumular não precisa, para ser eficiente, dos retornos abundantes que exige na Ásia, senão que atua suficientemente com uma taxa de lucros tão baixa, que a acumulação, em vez de diminuir, parece hoje avançar mais rapidamente do que nunca. O segundo requisito para aumento de produção, o aumento de capital, não acusa sinal algum de declínio; no que concerne a esse elemento, a produção é passível de um aumento sem limites determináveis. O progresso da acumulação seria sem dúvida posto em xeque de maneira considerável, se os retornos do capital viessem a descer a níveis ainda mais baixos do que os atuais. Mas por que um possível aumento de capital teria tal efeito? Essa pergunta nos leva ao outro dos três requisitos da produção. Se os obstáculos à produção não consistem em nenhum dos limites inevitáveis para o aumento dos dois elementos já abordados — a mão-de-obra e o capital —, eles devem advir das propriedades do único elemento da produção que é, pela própria natureza e em si mesmo, limitado em quantidade: essas limitações devem, pois, advir das propriedades da terra. CAPÍTULO XII A Lei do Aumento da Produção da Terra § 1. A terra difere dos demais elementos de produção — o trabalho e o capital — por não ser suscetível de aumento indefinido. Sua extensão é limitada, sendo ainda mais limitada a extensão dos tipos mais produtivos da terra. É igualmente manifesto que não é indefinida a quantidade de produção que se pode colher de um determinado pedaço de terra. Essa quantidade limitada da terra, e sua produtividade limitada, constituem os limites reais do aumento de produção. Que estes são os limites últimos, eis algo que sempre deveria ter sido visto com clareza. Todavia, uma vez que essa barreira final nunca foi atingida em caso algum — pois não há país algum em que toda a terra capaz de produzir alimentos seja tão bem cultivada que não se possa (mesmo sem supor nenhum avanço novo no conhecimento agrícola) tirar dela uma produção maior, e também porque ainda permanece totalmente incultivada uma grande parte da superfície terrestre — costuma-se pensar — e essa suposição é de saída muito natural — que, de momento, está infinitamente distante qualquer limitação da produção ou da população e que devem passar anos e anos antes de se tornarem necessárias quaisquer medidas práticas para levar seriamente em consideração esse princípio limitador. Entendo que isso não somente é um erro, mas o erro mais sério que se encontra em todo o campo da Economia Política. A questão é mais importante e fundamental que qualquer outra; ela envolve todo o tema das causas da pobreza, em uma comunidade rica e operosa; e se esse assunto não for profundamente compreendido, não tem sentido algum prosseguir nossa investigação. § 2. A limitação à produção, por parte das propriedades do solo, não é como o obstáculo de uma parede, que está imóvel em um determinado lugar e, portanto, impede o movimento, não parcialmente, mas totalmente. Podemos antes comparar esse tipo de limitação a uma fita altamente elástica e passível de extensão, fita esta que dificilmente é solicitada com tanta violência a ponto de não poder ser esticada ainda mais, mas que mesmo assim apresenta uma pressão que é sentida muito antes de se atingir o limite final, e ressentida tanto mais quanto mais perto se chega desse limite último. Depois de um determinado estágio — não muito avançado — do progresso da agricultura, a lei da produção da terra reza que, qualquer que seja o estágio de habilidade e conhecimento agrícola, o aumento do trabalho não acarreta um grau igual de aumento da produção; dobrar o trabalho não implica, nessas circunstâncias, dobrar a produção; ou então, para expressar a mesma coisa em outras palavras, todo aumento da produção é obtido por um aumento mais que proporcional na aplicação do trabalho à terra. Essa lei geral da atividade agrícola representa a proposição mais importante da Economia Política. Se essa lei fosse diferente, quase todos os fenômenos da produção e da distribuição da riqueza seriam diferentes do que são. Os principais erros que ainda persistem com referência ao nosso objeto resultam de não se perceber que essa lei está subjacente aos fenômenos mais superficiais aos quais se prende a atenção; confundem-se esses fenômenos com as causas últimas dos efeitos cuja forma e modalidade podem ser influenciadas por esses fenômenos, mas cuja essência é determinada exclusivamente pela citada lei geral. Quando, para se conseguir uma produção maior, se recorre a uma terra inferior, é evidente que a produção não aumentará na mesma proporção que o trabalho. O próprio sentido da expressão “terra inferior” indica que se trata de terra que com trabalho igual proporciona um montante de produção menor. A terra pode ser inferior sob o aspecto da fertilidade ou sob o da localização. O primeiro tipo de inferioridade exige um montante proporcionalmente maior de trabalho para aumentar a produção, o segundo o exige para comercializá-la. Se a terra A produz 1 000 quarters de trigo, com determinado gasto em salários, adubo etc., e se para colher outros 1 000 quarters se tem que recorrer à terra B, que é menos fértil ou está mais distante do mercado, os 2 000 quarters custarão mais que o dobro do trabalho exigido pelos 1 000 quarters originais, e a produção agrícola aumentará em uma proporção menor do que o trabalho empregado em consegui-la. Em vez de cultivar a terra B, seria possível, cultivando melhor, fazer a terra A produzir mais. Ela poderia ser arada ou gradeada duas vezes, em vez de uma só, três vezes, em lugar de duas; ela poderia ser cavada mais profundamente em vez de ser arada apenas superficialmente; depois de arada poder-se-ia passar-lhe uma enxada em vez de uma grade, e o solo poderia ser mais bem destorroado; também se poderia carpi-lo com mais frequência ou de forma mais satisfatória: os implementos utilizados poderiam ser de melhor qualidade ou de construção melhor; poder-se-ia aplicar-lhe maior quantidade de adubo, ou tipos mais caros de adubo, ou então, quando aplicados, esses adubos poderiam ser misturados e incorporados ao solo com mais cuidado. Eis alguns dos modos pelos quais se pode fazer a mesma terra produzir mais; e quando se precisa obter uma produção maior, alguns desses meios estão entre os normalmente empregados. Todavia, que tal produção maior se obtém com um aumento de gastos mais do que proporcional é evidente pelo fato de se estarem cultivando terras inferiores. Terras de qualidade inferior, ou terras mais distantes do mercado, evidentemente proporcionam um lucro menor, e não é possível atender com tais terras uma demanda maior a não ser aumentando os custos, e, portanto, o preço. Se a demanda adicional pudesse continuar a ser atendida pelas terras superiores, aplicando mais trabalho e mais capital, sem um custo proporcionalmente maior do que o necessário para a produção anteriormente delas exigida, os proprietários ou arrendatários dessas terras poderiam vender o produto a um preço inferior ao de todos os outros, encampando todo o mercado. As terras de fertilidade menor ou localizadas mais longe do mercado poderiam então, sem dúvida, ser cultivadas pelos respectivos proprietários, para garantirem sua subsistência ou sua independência, mas nenhum deles poderia ter interesse em cultivá-las visando a lucro. O fato de se poder auferir um lucro delas, suficiente para atrair capital para tal investimento, é uma prova de que o cultivo das terras mais selecionadas atingiu um ponto além do qual toda aplicação maior de trabalho e capital daria, na melhor das hipóteses, um retorno não superior ao que se pode obter, com o mesmo custo, de terras menos férteis e menos bem localizadas. O cultivo cuidadoso de um bom distrito rural da Inglaterra ou da Escócia é um sintoma e um efeito das condições menos favoráveis que a terra começou a oferecer para se obter dela um retorno maior. Tal cultivo esmerado custa muito mais, proporcionalmente, e para ser ele rentável, requer-se um preço maior do que cultivar com menor esmero; e esse sistema não seria adotado caso se pudesse ter acesso a uma terra de fertilidade igual, ainda não ocupada. Onde existe a opção de atender ao aumento da demanda da sociedade com terra nova de qualidade tão boa quanto a da terra já cultivada, não se deve extrair da terra algo que se aproxime daquilo que ela proporcionaria se cultivada com os métodos de cultivo considerados os melhores na Europa. A terra é forçada até o ponto em que se obtém o retorno máximo proporcional ao trabalho nela empregado, mas não além desse ponto; qualquer trabalho adicional é aplicado alhures. “Leva muito tempo” — diz um inteligente viajante nos Estados Unidos — “para um inglês compreender e aceitar a facilidade das colheitas e o cultivo pouco esmerado (como o denominaríamos nós) com que se depara. Esquece-se que onde a terra é tão abundante e a mão-de-obra é tão cara como aqui, deve-se aplicar um princípio totalmente diferente do que prevalece em países populosos, e a consequência será naturalmente uma falta de esmero, como se houvesse, e fim, em tudo o que exige mão-de-obra”. Das duas causas mencionadas, a abundância de terras me parece ser a explicação verdadeira, mais do que o alto preço da mão-de-obra; pois, por mais cara que possa ser a mão-de-obra, quando faltam alimentos sempre se aplicará a mão-de-obra em produzi-los, de preferência a qualquer outra coisa. Acontece que esse trabalho, é mais eficaz, em função de seu objetivo, se for aplicado em terra nova do que se fosse empregado em cultivar melhor o solo já ocupado. Somente quando não há mais solo a cultivar, restando apenas solos que, devido à distância ou à sua qualidade inferior, exigem um aumento notável de custo para tornar seu cultivo rentável, somente então pode ser vantajoso aplicar o refinado sistema de cultivo europeu a quaisquer terras americanas — a não ser, talvez, que se trate de terras imediatamente próximas às cidades, onde a economia de custos de transporte pode compensar uma grande inferioridade do retorno garantido pelo próprio solo. Como o tipo de cultivo norte-americano está para a Inglaterra, assim está o tipo comum de cultivo inglês para Flandres, a Toscana ou a Terra di Lavoro, onde, com a aplicação de uma quantidade muito maior de trabalho se obtém uma produção bruta muito maior, mas em condições que nunca seriam vantajosas para quem apenas visar lucro — a não ser que tal vantagem fosse garantida por preços muito mais altos dos produtos agrícolas. Não há dúvida de que o princípio por nós estabelecido precisa de certas explicações e limitações para ser aceito. Mesmo depois que a terra seja tão bem cultivada que a simples aplicação de mais trabalho ou de um montante adicional de preparo normal não gere retorno proporcional à despesa, mesmo então pode acontecer que a aplicação de um adicional muito maior de trabalho e de capital para aprimorar o próprio solo, mediante drenagem ou adubação permanente, seria tão generosamente remunerado pela produção quanto qualquer montante de trabalho e de capital já empregado. Em alguns casos tal aplicação seria muito mais bem remunerada. Isso poderia não ser assim se o capital sempre procurasse e encontrasse a aplicação mais vantajosa; mas se esta tiver que esperar muitíssimo para sua remuneração, é somente em um estágio mais avançado de desenvolvimento industrial que a ela se dará preferência; mesmo em tal estágio avançado, as leis ou usos relacionados com a propriedade fundiária e o direito de posse muitas vezes são tais, que impedem o capital disponível do país de fluir livremente para a melhoria da agricultura; por causa disso, o aumento de produção exigido pelo aumento da população, por vezes, é conseguido a um custo maior devido a um cultivo mais esmerado, quando se conhecem e são acessíveis os meios de conseguir tal aumento de produção sem aumento de custos. Não pode haver dúvida de que, se surgisse capital para executar, no próximo ano, todos os melhoramentos conhecidos e reconhecidos como tais, nas terras do Reino Unido, que fossem compensadores aos preços vigentes, isto é, que fizessem aumentar a produção em uma proporção tão grande quanto ou superior à despesa, o resultado seria tal (especialmente se incluirmos na suposição a Irlanda) que por muito tempo não seria mais necessário cultivar terras inferiores. Provavelmente, uma parte considerável das terras menos produtivas, atualmente cultivadas, que não estão particularmente bem localizadas, deixariam de ser cultivadas, ou (já que os aprimoramentos em questão não são muito aplicáveis à terra boa, antes operando na conversão de terra má em terra boa) a diminuição do cultivo poderia ocorrer sobretudo mediante um preparo menos exigente e um cultivo menos esmerado da terra em geral. Com isso teríamos um retorno algo mais próximo do tipo de cultivo americano, e abandonar-se-iam totalmente apenas as terras que se constatasse serem incapazes de aprimoramento. Assim, a produção global de toda a terra cultivada apresentaria uma dimensão maior do que a anterior em relação ao trabalho nela empregado, e a lei geral do lucro decrescente da terra ficaria temporariamente suspensa. Todavia, ninguém pode supor que, mesmo nessas circunstâncias, a produção total necessária para o país se poderia obter exclusivamente das melhores terras, juntamente com as que apresentassem vantagens de localização que as pusessem em pé de igualdade com as melhores. Sem dúvida se continuaria a produzir muito em condições menos vantajosas, e com retorno proporcionalmente inferior ao obtido dos melhores solos e das terras de melhor localização. Na medida em que o ulterior aumento da população exigisse um aumento ainda maior de produção, a lei geral retomaria seu curso e o aumento ulterior se obteria com um gasto mais do que proporcional de mão-de-obra e de capital. § 3. Que a produção da terra aumenta, caeteris paribus, a uma taxa decrescente em relação ao aumento do trabalho empregado, eis uma verdade não propriamente negada, mas frequentemente ignorada ou não levada em conta. No entanto, ela encontrou um opositor direto no bem conhecido autor americano de Economia Política, o Sr. H. C. Carey, segundo o qual a lei real da atividade agrícola é exatamente o inverso: a produção aumenta em proporção maior que o trabalho, ou, em outros termos, proporciona ao trabalho um retorno sempre maior. Para provar essa asserção, o autor afirma que o cultivo não começa nos solos melhores, estendendo-se deles aos mais pobres, à medida que cresce a demanda; ao contrário, começa nas terras mais pobres e somente muito depois se estende às mais férteis. Os que se estabelecem em um país novo invariavelmente começam a cultivar as terras altas e magras; os solos ricos mas pantanosos, que são as terras baixas aluviais das margens dos rios, não podem ser logo cultivados, por serem insalubres e por exigirem um trabalho intenso e prolongado para limpá-los e drená-los. À medida que aumenta a população e a riqueza, o cultivo desce para as colinas, limpando as terras na medida em que avança; os solos mais baixos geralmente (ele até chega a dizer universalmente) são os últimos a serem cultivados. Essas proposições, com as conclusões que o Sr. Carey delas tira, são apresentadas com muitos detalhes em seu tratado mais recente e mais elaborado, Principles of Social Science; ele considera que elas deitam por terra os próprios fundamentos do que chama de Economia Política inglesa, juntamente com todas as suas consequências práticas, especialmente a doutrina do livre comércio. Quanto ao alcance das afirmações, o Sr. Carey se opõe com razão a várias das maiores autoridades em Economia Política, que certamente enunciaram de maneira por demais universal a lei que estabeleceram, não observando que ela não é verdadeira em relação ao primeiro cultivo de um país de fundação recente. Onde a população é pequena e o capital reduzido, têm que permanecer incultas as terras que requerem altos gastos para se tornarem boas para o cultivo, mesmo que tais terras, quando chega o momento oportuno, frequentemente produzam mais do que as cultivadas mais cedo, não só em termos absolutos, mas proporcionalmente ao trabalho empregado, mesmo incluindo o que foi gasto em prepará-las para o cultivo. Não se pretende, porém, que a lei do retorno decrescente tenha funcionado desde o próprio início da sociedade; embora alguns autores da Economia Política possam ter pensado que a lei começou a operar antes do período em que isso efetivamente aconteceu, o fato é que ela começou a operar bastante cedo, o suficiente para confirmar as conclusões que fundamentaram na lei. Dificilmente o Sr. Carey afirmará que em algum país antigo — na Inglaterra ou na França, por exemplo — as terras que permaneceram incultas são, ou foram durante séculos, naturalmente mais férteis do que as efetivamente cultivadas. Mesmo julgando com base em seu próprio critério imperfeito, o da localização — não preciso demorar-me em assinalar quão imperfeito é este critério —, será verdade que na Inglaterra ou na França, atualmente, os solos não cultivados são as planícies e vales, e os cultivados são as colinas? Todo mundo sabe, pelo contrário, que são as terras altas e magras, que foram abandonadas à natureza, e que, quando o aumento da população demanda um aumento de cultivo, a ampliação se faz das planícies para as colinas. Ocorre quiçá uma vez por século que se possa drenar um Bedford Level, ou então bombear a água de um lago de Harlem, mas estas são exceções desprezíveis e passageiras no curso normal das coisas; em países antigos, de adiantada civilização, poucas são as obras desse tipo que ainda restam por executar. (Pode-se aduzir a Irlanda como uma exceção, pois uma grande parte de todo o solo desse país ainda não comporta cultivo, por falta de drenagem. Contudo, embora a Irlanda seja um país antigo, circunstâncias sociais e políticas desastrosas a mantiveram no estágio de um país pobre e atrasado. Tampouco é de todo certo que os brejos da Irlanda, se drenados e depois disso cultivados, ombreariam com as férteis margens de rios de que fala o Sr. Carey, ou poderiam contar-se entre os solos outros que não os mais pobres). O próprio Sr. Carey inconscientemente dá o testemunho mais forte em favor da lei que ele mesmo contesta, pois, uma das proposições mantidas com mais firmeza por ele é a de que os produtos brutos do solo, em uma comunidade em progresso, tendem a aumentar constantemente de preço. Ora, as verdades mais elementares da Economia Política mostram que isso não poderia ocorrer a menos que o custo de produção desses artigos, medido em mão-de-obra, tendesse a subir. Se a aplicação de mais trabalho à terra gerasse, como norma geral, um aumento proporcional do lucro, o preço da produção, em vez de aumentar, deveria necessariamente baixar na medida em que a sociedade progride, a menos que o custo de produção de ouro e prata caísse ainda mais, caso tão raro que há somente dois períodos em toda a História em que se sabe haver isso ocorrido, sendo o primeiro deles o que seguiu à abertura das minas do México e do Peru, e o outro, aquele em que hoje vivemos. Em todos os períodos de que se tem conhecimento, excetuados os dois citados, o custo de produção dos metais preciosos estacionou ou aumentou. Se, portanto, for verdade que a tendência da produção agrícola é aumentar de preço em dinheiro, à medida que aumentam a riqueza e a população, não há necessidade de outra evidência para provar que o trabalho exigido para extrair os produtos agrícolas do solo tende a aumentar, quando se requer uma quantidade maior de produção. Não vou tão longe como o Sr. Carey; não afirmo que o custo da produção, e consequentemente o preço da produção agrícola, sempre e necessariamente, cresça com o aumento da população. Ele tende a crescer, mas essa tendência pode ser, e por vezes é de fato, sustada, mesmo durante períodos longos. O efeito não depende de um princípio único, mas de dois princípios antagônicos. Existe um outro fator, em antagonismo habitual à lei do lucro decrescente da terra, cabendo-nos agora analisá-lo: é o progresso da civilização. Utilizo essa expressão geral e algo vaga, porque as coisas a serem nela incluídas são tão variadas que dificilmente haveria algum termo de significação mais restrita que pudesse englobá-las todas. Dentre essas coisas, a mais óbvia é o progresso do conhecimento, da habilidade e das invenções agrícolas. Os processos de aperfeiçoamento agrícola são de dois tipos: alguns possibilitam à terra dar uma produção absoluta maior, sem um aumento equivalente de mão-de-obra, e outros não têm o poder de aumentar a produção, mas têm o de reduzir o trabalho e o gasto necessários para lograr esse aumento. Entre os primeiros deve-se contar a substituição do trabalho de arar a terra pela rotação das plantações, bem como pela introdução de novos gêneros de cultivo, capazes de entrar com vantagens na rotação. A mudança efetuada na agricultura britânica no fim do século passado, com a introdução da cultura do nabo, é considerada equivalente à sua revolução. Esses aperfeiçoamentos não somente possibilitam à terra produzir uma colheita por ano, em vez de permanecer ociosa um ano em cada dois ou três, para que ela renove sua força, mas também geram um aumento direto da produtividade, já que o grande aumento do rebanho, em razão do aumento do alimento a ele destinado, proporciona maior abundância de esterco para fertilizar as terras de trigo. A segunda melhoria é a introdução de novos itens de alimentos, que contêm um teor nutritivo maior, como a batata, ou então espécies ou variedades mais produtivas da mesma planta, tal como o nabo sueco. Na mesma categoria de aperfeiçoamentos deve-se enquadrar um melhor conhecimento das propriedades dos adubos e dos modos mais eficientes de aplicá-los, a introdução de fertilizantes novos e mais poderosos, tais como o guano, bem como a transformação de substâncias anteriormente desperdiçadas em fertilizantes; além disso, invenções como o arado de subsolo e a manilha de drenagem, aperfeiçoamentos na criação ou na alimentação de gado para o trabalho, o aumento do número de animais que consomem e convertem em alimento humano coisas que de outra forma seriam desperdiçadas e similares. Os outros tipos de aperfeiçoamentos, os que implicam redução de mão-de-obra, mas sem aumentarem a capacidade produtiva da terra, são, entre outros, a melhor construção de ferramentas, a introdução de novos instrumentos que poupam trabalho manual, como as máquinas para joeirar e debulhar, uma aplicação mais habilidosa e econômica do trabalho muscular, tal como a introdução, que levou tanto tempo para ser feita na Inglaterra, da aração escocesa, com dois cavalos lado a lado e um só homem, em vez de três ou quatro cavalos em parelha e dois homens etc. Esses aperfeiçoamentos não aumentam a produtividade da terra, mas visam, como as primeiras, a neutralizar a tendência de o custo da produção agrícola crescer com o aumento da população e da demanda de alimentos. Análogos, quanto ao efeito, a essa segunda categoria de aperfeiçoamentos agrícolas são melhores meios de comunicação. Boas estradas equivalem a boas ferramentas. Não importa se a economia de trabalho ocorre na extração do produto do solo ou no transporte do mesmo ao local de consumo. Não é preciso acrescentar que o próprio trabalho de cultivo diminui por efeito de tudo aquilo que diminui o custo do transporte de adubo de longe ou facilita as muitas operações de transporte de um lugar a outro, que ocorrem dentro dos limites da propriedade. As ferrovias e os canais representam virtualmente uma redução do custo de produção de todos os artigos que são enviados através deles ao mercado, bem como também do custo de todos aqueles artigos, instrumentos e recursos de produção desses artigos que as ferrovias e os canais ajudam a transportar. As ferrovias e os canais permitem cultivar terras que de outra forma não possibilitariam uma boa remuneração para seus cultivadores sem aumento de preço. Os aperfeiçoamentos na navegação têm um efeito correspondente com relação aos alimentos e matérias-primas transportados de além-mar. Considerações similares levam a concluir que muitos aperfeiçoamentos puramente mecânicos — que, ao menos aparentemente, não têm nenhuma relação especial com a agricultura — possibilitam obter determinada quantidade de alimentos com emprego menor de mão-de-obra. Um aperfeiçoamento maior dos processos de fundir ferro tenderia a baratear os implementos agrícolas, a diminuir os custos das ferrovias, dos vagões e das carroças, dos navios e talvez das construções e de muitas outras coisas nas quais no momento não se utiliza ferro por ser ele excessivamente caro; consequentemente, reduzir-se-ia o custo de produção dos alimentos. O mesmo efeito adviria de um aperfeiçoamento daqueles processos que podem ser chamados de manufaturas, aos quais é submetida a matéria-prima dos alimentos, após ser ela extraída do solo. A primeira aplicação do vento ou da água para moer trigo tendeu a baratear o pão, tanto quanto o teria feito uma descoberta muito importante no setor da própria agricultura; todo grande aperfeiçoamento na construção de moinhos de trigo teria, proporcionalmente, um efeito similar. Já consideramos os efeitos da redução dos custos de transporte. Há também invenções de engenharia que facilitam todas as grandes operações na superfície da terra. Um aperfeiçoamento na técnica de medição de nível é de importância para a drenagem, para não falar da construção de canais e ferrovias. Os brejos da Holanda e de algumas regiões da Inglaterra são drenados por bombas acionadas a vento ou a vapor. Onde são necessários canais de irrigação, reservatórios ou barragens, a habilidade mecânica é um grande recurso para baratear a produção. Os aperfeiçoamentos industriais que não podem ser utilizados para facilitar, em nenhum de seus estágios, a produção de alimentos, e, portanto, não ajudam a neutralizar ou retardar a redução do retorno proporcional do trabalho no solo, têm, contudo, um outro efeito, que é praticamente equivalente. Não impedem certas coisas, mas até certo ponto neutralizam os efeitos delas. Sendo as matérias-primas para a indústria todas elas extraídas da terra, e muitas delas da agricultura, que em particular fornece todas as matérias-primas para o vestuário, a lei geral da produção da terra, isto é, a lei do retorno decrescente, em última análise deve ser aplicável tanto à evolução das manufaturas quanto à da agricultura. À medida que a população aumenta, e se solicita cada vez mais o poder da terra de produzir mais, toda produção adicional de matéria-prima, bem como de alimentos, tem que ser obtida através de um emprego de trabalho que aumenta mais do que proporcionalmente. Ora, representando o custo da matéria-prima em geral apenas uma porção mínima do custo total da indústria, a mão-de-obra agrícola envolvida na produção de bens manufaturados perfaz apenas uma fração pequena da mão-de-obra atuante na mercadoria. Todo o resto da mão-de-obra tende constante e fortemente a diminuir à medida que o montante da produção aumenta. As manufaturas são muito mais suscetíveis que a agricultura aos aperfeiçoamentos mecânicos e às invenções destinadas a economizar mão-de-obra; por outro lado, já vimos quanto a divisão do trabalho e sua distribuição habilidosa e econômica dependem da extensão do mercado e da possibilidade de produzir em grande escala. Nas manufaturas, portanto, as causas tendentes a aumentar a produtividade do trabalho preponderam altamente sobre a única causa que tende a reduzi-la; e o aumento da produção, provocado pelo progresso da sociedade, ocorre não com um custo proporcional crescente, mas com um custo proporcional continuamente decrescente. Isso tem-se manifestado na queda progressiva dos preços e valores de quase todos os tipos de bens manufaturados no decurso dos dois últimos séculos — queda esta acelerada pelas invenções mecânicas dos últimos setenta ou oitenta anos, que podem ser prolongadas e ampliadas além de qualquer limite que se possa especificar com certeza. Assim sendo, é perfeitamente concebível que a eficiência da mão-de-obra agrícola esteja acusando, com o aumento da produção, uma diminuição gradual, e que, em consequência, o preço dos alimentos esteja aumentando progressivamente e seja preciso engajar na agricultura, visando cultivar alimentos para toda a população, uma percentagem sempre crescente de pessoas; ao mesmo tempo, e a despeito disso, a força produtiva da mão-de-obra em todos os outros ramos industriais poderia estar aumentando com tanta rapidez que os manufatores poderiam fazer economia no contingente exigido de mão-de-obra, mas assim mesmo obter uma produção maior, sendo o conjunto das necessidades da comunidade mais bem supridos do que antes. O benefício poderia estender-se até mesmo à classe mais pobre. A baixa dos preços do vestuário e da moradia poderia compensá-los pelo maior custo de seus alimentos. Não existe, portanto, nenhum aperfeiçoamento possível das técnicas de produção que, de uma forma ou outra, não exerça uma influência contrária à lei do retorno decrescente do trabalho agrícola. Aliás, não são exclusivamente os aperfeiçoamentos industriais que têm tal efeito. Os aperfeiçoamentos no Governo e quase todos os tipos de progresso moral e social operam do mesmo modo. Suponhamos um país na condição da França antes da Revolução: tributos impostos quase exclusivamente aos industriais, e com base em um princípio tal que equivaliam a um real castigo aos produtores; isso, somado ao fato de não haver possibilidade de indenização por qualquer lesão à propriedade ou à pessoa quando tais lesões fossem infligidas por pessoas de posição ou de influência na corte. Será que o furacão que varreu esse sistema, mesmo não considerando outros aspectos a não ser seu efeito em aumentar a produtividade do trabalho, não equivaleu a muitas invenções industriais? A supressão de um ônus fiscal que pesava sobre a agricultura, como o dízimo, tem o mesmo efeito que se obteria se a mão-de-obra necessária para obter a produção atual fosse repentinamente reduzida de 1/10. A abolição das leis do trigo, ou de quaisquer outras restrições que impedem a produção de mercadorias onde o custo de sua produção é o mais baixo, representa um grande aperfeiçoamento da produção. Quando uma terra fértil, anteriormente reservada à caça ou a qualquer outro tipo de entretenimento, é liberada para a cultura, aumenta-se a produtividade global da atividade agrícola. Sabe-se qual tem sido o efeito, na Inglaterra, das mal administradas leis dos pobres e o efeito ainda pior, na Irlanda, de um mau sistema de ocupação da terra, que tornou o trabalho agrícola negligente e ineficiente. Nenhum aperfeiçoamento influi mais diretamente sobre a produtividade do trabalho do que os que se introduzem na ocupação das propriedades e nas leis relativas à propriedade fundiária. A cessação do morgadio, o barateamento da transferência de propriedade e tudo o mais que fomente a tendência natural da terra, em um sistema de liberdade, a passar de mãos que pouco podem conseguir dela para mãos que podem tirar mais, a substituição das locações a longo prazo por arrendamentos rescindíveis à vontade e do mísero sistema de cottier por qualquer sistema razoável de locação, e, acima de tudo, o fato de o próprio cultivador adquirir um interesse permanente no solo, tudo isso são aperfeiçoamentos da produção, tão reais, e alguns deles tão grandes quanto a invenção da máquina de fiar ou do motor a vapor. Podemos dizer o mesmo dos aperfeiçoamentos em educação. A inteligência de um trabalhador é um elemento dos mais importantes para a produtividade do trabalho. Em alguns dos países mais civilizados, tão baixo é, hoje [1848], o padrão intelectual, que dificilmente há alguma outra fonte da qual se possa esperar obter maior aumento de força produtiva do que dando cérebros àqueles que atualmente só dispõem de mãos. O cuidado, o espírito de economia e a confiabilidade geral dos trabalhadores são tão importantes quanto sua inteligência. Em alto grau, são também importantes o relacionamento amistoso, a comunidade de interesse e sentimentos entre os trabalhadores e os empregadores; ou melhor, seria, pois não sei onde existe, atualmente, tal sentimento de relacionamento amistoso entre empregados e empregadores. Aliás, não é somente na classe trabalhadora que o aperfeiçoamento da mente e do caráter atua com efeito benéfico. Nas classes ricas e ociosas, uma energia mental maior, uma instrução mais sólida e sentimentos de consciência mais fortes, espírito público ou filantropia — tudo isso as qualificaria para criar e fomentar os mais valiosos aperfeiçoamentos, tanto nos recursos econômicos de seus países como em suas instituições e costumes. Para focalizar apenas os fenômenos mais óbvios: o atraso da agricultura francesa, precisamente em pontos nos quais se poderia esperar benefícios da atuação de uma classe culta, é devido, em parte, ao fato de os proprietários de terra mais ricos se dedicarem exclusivamente aos interesses e aos prazeres da cidade. Dificilmente há algum aperfeiçoamento possível na vida humana que, entre outros benefícios, não tenha um efeito favorável, direto ou indireto, sobre a produtividade do trabalho. A intensidade de dedicação a ocupações produtivas, sem dúvida, diminuiria em muitos casos, sob o efeito de uma cultura intelectual mais liberal e mais suave, porém o trabalho efetivamente desenvolvido em tais ocupações quase sempre se tornaria mais eficiente. Antes de apontar as consequências principais a serem tiradas da natureza das duas forças antagônicas que determinam a produtividade da atividade agrícola, devemos observar que aquilo que dissemos da agricultura é verdadeiro, com poucas alterações, das demais ocupações que a ela se equivalem: todas as profissões que extraem matérias-primas da terra. A mineração, por exemplo, costuma proporcionar um aumento de produção com aumento de despesas mais do que proporcional. É ainda pior, pois mesmo sua produção anual costumeira demanda, para ser extraída, um gasto cada vez maior de mão-de-obra e de capital. Já que uma mina não reproduz o carvão ou o minério extraído, ao final, não somente todas as minas acabam esgotadas, como, mesmo quando ainda não demonstram sinais de exaustão, têm que ser operadas a um custo continuamente crescente; os poços precisam ser cavados em maior profundidade, as galerias têm que avançar mais, é necessário aplicar mais força para conservá-las livres da água, a produção tem que ser içada de uma profundidade maior ou transportada de uma distância maior. Por conseguinte, a lei do retorno decrescente aplica-se à mineração, em um sentido ainda mais incondicional do que à agricultura; em compensação, porém, o fator que age em direção antagônica, o dos aperfeiçoamentos na produção, também se aplica a ela em grau ainda maior. As operações da mineração prestam-se muito mais a aperfeiçoamentos mecânicos do que as da agricultura: a primeira grande aplicação do motor a vapor foi feita na mineração. Por outro lado, há possibilidades ilimitadas de aperfeiçoamento dos processos químicos pelos quais se faz a extração de metais. Há uma outra contingência, cuja ocorrência não é rara e que age no sentido de contrabalançar o fato de todas as minas existentes caminharem para o esgotamento: a descoberta de minas novas, iguais ou superiores em riqueza. Em resumo, todos os agentes naturais cuja quantidade é limitada, não somente são limitados em sua força produtiva última, como, muito antes de essa força ser solicitada ao máximo, respondem a todas as solicitações adicionais sob condições cada vez mais rigorosas. Todavia, essa lei pode ser suspensa ou temporariamente mantida sob controle por tudo aquilo que aumentar o poder geral da humanidade sobre a natureza, e, de modo especial, por qualquer enriquecimento do poder humano e do consequente domínio dos homens sobre as propriedades e as forças dos agentes naturais. CAPÍTULO XIII Consequências das Leis Precedentes § 1. Da exposição que precedeu infere-se que o limite para o aumento da produção é duplo: falta de capital ou falta de terra. A produção estaciona, ou porque o desejo eficiente de acumular não é suficiente para gerar nenhum outro aumento de capital, ou porque, por mais dispostos que os donos do excedente de renda possam estar no sentido de poupar uma parte dela, a terra limitada que está à disposição da comunidade não permite que se empregue mais capital, com retorno tal que para eles equivalha ao valor da abstenção que praticam. Em países em que o princípio da acumulação é tão fraco quanto nas várias nações da Ásia, onde a população não quer poupar nem trabalhar para conseguir os meios de poupar, a não ser que haja o estímulo de lucros extraordinariamente elevados, e nem mesmo então se para isso for necessário esperar muito por tais retornos; em que a produção permanece escassa ou a dureza do trabalho permanece grande, porque não aparece capital nem há previdência suficiente para adotar as invenções que fazem com que os agentes naturais realizem o trabalho da mão-de-obra humana, o desideratum para tais países, do ponto de vista econômico, é um aumento do trabalho e do desejo efetivo de acumular. Os meios para isso são: em primeiro lugar, um Governo melhor: segurança mais plena para a propriedade, impostos moderados e imunidade de cobranças arbitrárias sob o nome de tributos; além disso, uma ocupação mais permanente e mais vantajosa da terra que assegure ao cultivador, na medida do possível, os benefícios integrais do trabalho, da habilidade e da economia que ele possa exercer. Em segundo lugar, elevar o nível intelectual da população: a cessação de usos ou superstições que obstaculizam o emprego eficiente do trabalho, e o aumento da atividade mental, fazendo o povo despertar para novos objetos de desejo. Em terceiro lugar, a introdução de técnicas de fora, que fazem aumentar os retornos que se podem obter de capital adicional, e isso a um ritmo correspondente à reduzida força do desejo de acumular; além disso, a importação de capital estrangeiro, fazendo com que o aumento da produção não mais dependa exclusivamente da poupança ou da previdência dos próprios habitantes, colocando ao mesmo tempo diante deles um exemplo estimulante, inculcando novas ideias e rompendo as algemas do hábito, senão melhorando a condição efetiva da população, tende a criar neles novas necessidades, mais ambição e mais preocupação com o futuro. Essas considerações aplicam-se, em grau maior ou menor, a todas as populações asiáticas, bem como às regiões menos civilizadas e menos operosas da Europa, como a Rússia, a Turquia, a Espanha e a Irlanda. § 2. Há, porém, outros países — e a Inglaterra está à testa deles — em que nem o espírito de trabalho nem o desejo efetivo de acumular carecem de estímulo; onde a população está disposta a trabalhar duro por uma remuneração baixa e a poupar muito em função de um lucro reduzido; onde, conquanto a frugalidade geral da classe trabalhadora esteja muito abaixo do desejável, o espírito de acumulação na parcela mais próspera da comunidade precisa diminuir, antes que aumentar. Em tais países nunca haveria falta de capital se o aumento dele nunca fosse impedido ou nunca tivesse que estacionar devido a uma redução excessiva de seus retornos. É a tendência dos retornos a diminuírem progressivamente que faz com que o aumento da produção muitas vezes venha acompanhado da condição dos produtores; e essa tendência, que em determinado momento poria fim ao aumento da produção como um todo, é um resultado das condições inevitáveis e inerentes da produção da terra. Em todos os países que ultrapassaram um estágio relativamente primitivo do desenvolvimento agrícola, todo aumento da demanda de alimentos, gerado pelo crescimento da população, sempre diminuirá a porção que em uma divisão justa caberia a cada indivíduo, a menos que haja uma melhoria simultânea da produção. Na falta de áreas de terra fértil desocupadas ou de aperfeiçoamentos novos tendentes a baratear os gêneros, nunca se pode conseguir uma produção maior senão aumentando o trabalho numa proporção superior. A população tem que trabalhar mais ou comer menos, ou então deverá obter seu alimento costumeiro sacrificando parte de seus outros confortos habituais. Sempre que essa necessidade for adiada, apesar de um crescimento da população, isso ocorre porque continuam a progredir os aperfeiçoamentos que facilitam a produção, porque as invenções humanas para tornar seu trabalho mais eficiente mantêm uma luta de igual para igual com a Natureza e extraem recursos novos das relutantes forças naturais com a mesma rapidez com que as necessidades humanas fazem ocupar e encampar os recursos antigos. Disso resulta o importante corolário de que a necessidade de limitar a população não é, como pensam muitos, peculiar a uma condição em que reina uma grande desigualdade de propriedade. É impossível suprir coletivamente e com a mesma fartura um número maior de pessoas, em qualquer estágio de civilização, que um número menor. A escassez da Natureza, e não a injustiça da sociedade, é a causa do castigo infligido à superpopulação. Uma distribuição injusta da riqueza nem sequer chega a agravar o mal; no máximo, faz com que ele seja sentido algo mais cedo. É inútil alegar que todas as bocas geradas pelo aumento da população trazem consigo mãos para trabalhar. As novas bocas demandam tanto alimento quanto as já existentes, ao passo que as novas mãos não produzem tanto. Se todos os recursos de produção fossem possuídos conjuntamente por toda a população, e a produção fosse dividida com perfeita igualdade entre ela e se, em uma sociedade assim constituída, o trabalho fosse tão intensivo e a produção fosse tão grande quanto atualmente são, haveria o suficiente para fazer com que toda a população existente vivesse com extremo conforto; mas quando essa população dobrasse — o que, com os hábitos vigentes das pessoas e com tal estímulo, certamente aconteceria em pouco mais de vinte anos — qual seria então a condição dessa população? A menos que as técnicas de produção se tivessem ao mesmo tempo aprimorado, em um grau quase sem precedentes, os solos inferiores aos quais se teria que recorrer, e o cultivo mais laborioso e menos remunerador que se teria que aplicar aos solos melhores, para proporcionar alimento para uma população tão aumentada, fariam com que, por uma necessidade insuperável, cada indivíduo da comunidade se tornasse mais pobre do que antes. Se a população continuasse a crescer à mesma taxa, logo chegaria um momento em que ninguém teria mais do que o necessário para viver e, pouco depois, viria um momento em que ninguém teria o suficiente para sobreviver; e o ulterior aumento da população seria impedido pela morte. Se, atualmente ou em qualquer outro momento, a produção oriunda do trabalho, proporcionalmente ao trabalho empregado, está aumentando ou diminuindo, e se a condição média da população está melhorando ou piorando, isso depende de se a população está crescendo mais rapidamente do que a melhoria da condição média da população, ou se é esta que está avançando mais rapidamente do que a população. Depois de se atingir certo grau de densidade, suficiente para permitir os benefícios principais da combinação do trabalho, todo ulterior aumento em si mesmo tende a ser prejudicial no que concerne à condição média da população; mas o progresso dos aperfeiçoamentos tem um efeito contrário e neutralizante, permitindo uma população maior sem qualquer deterioração, e até mesmo juntamente com uma média de conforto mais elevada. Os aperfeiçoamentos devem ser aqui entendidos em sentido lato, incluindo não somente novas invenções no campo do trabalho, ou uma utilização mais ampla das já existentes, mas também aprimoramentos nas instituições, na educação, na opinião pública e na vida humana em geral, desde que tendam, como ocorre com quase todos os aprimoramentos, a gerar novas motivações ou novas facilidades para a produção. Se as forças produtivas do país crescerem com a mesma rapidez com a qual o aumento da população reclama um aumento de produção, não é necessário obter tal aumento de produção pelo cultivo de solos mais estéreis do que os piores já em cultivo, ou aplicando mais trabalho aos solos velhos, com um lucro reduzido; ou, em qualquer hipótese, esta perda de poder é compensada pela maior eficiência com a qual, progredindo os aprimoramentos, o trabalho é empregado nas manufaturas. De um modo ou de outro, provê-se a população acrescida, e todos ficam tão bem como antes. Mas, se o domínio humano sobre a Natureza decrescer ou diminuir, e a população não deixar de aumentar; se, apenas com o domínio já conseguido sobre os fatores naturais, esses fatores forem solicitados a dar uma produção maior, a população acrescida não terá essa produção maior, se não se exigir, em média, um esforço maior de cada um, ou então se não se reduzir, na média, a ração que a cada um cabe, do total da produção. Na realidade, em alguns períodos o crescimento da população foi mais rápido que o aumento dos aperfeiçoamentos, ao passo que em outros ocorreu o inverso. Na Inglaterra, durante um longo intervalo antes da Revolução Francesa, a população cresceu lentamente; em contrapartida, o progresso dos aprimoramentos, ao menos na agricultura, parece ter sido ainda mais lento, já que, embora nada ocorresse que fizesse baixar o valor dos metais preciosos, o preço do trigo subiu consideravelmente, e a Inglaterra transformou-se de país exportador em país importador. Todavia, essa evidência não é conclusiva, na medida em que, por não continuar durante a segunda metade do século o número extraordinário de estações de fartura ocorridas durante a primeira metade do século, houve como efeito um aumento de preço no período mais recente, aumento esse extrínseco ao progresso normal havido na sociedade. Não se pode determinar com certeza se durante o mesmo período os aperfeiçoamentos registrados nas manufaturas, ou o custo mais baixo de mercadorias importadas compensaram a produtividade menor do trabalho agrícola. Todavia, desde as grandes invenções mecânicas de Watt, Arkwright e seus contemporâneos, os retornos obtidos do trabalho provavelmente aumentaram tão rapidamente quanto a população, e provavelmente a teriam sobrepujado, se exatamente esse aumento dos retornos não tivesse provocado um reforço adicional do poder de multiplicação inerente à espécie humana. Durante os últimos vinte ou trinta anos [1857], tão rápida tem sido a ampliação de processos mais aperfeiçoados na agricultura, que mesmo a terra proporciona uma produção maior em proporção ao trabalho empregado; o preço médio do trigo baixou consideravelmente, mesmo antes que a revogação das leis do trigo aliviasse assim substancialmente, de momento, a pressão da população sobre a produção. Mas, embora os aperfeiçoamentos possam, durante certo espaço de tempo, manter o passo com o aumento efetivo da população, ou até superá-lo, eles certamente nunca atingem a taxa de aumento de que é capaz a população; e nada poderia ter evitado um deterioramento geral da condição da espécie humana, se a população não tivesse sido efetivamente limitada. Se ela tivesse sido limitada ainda mais e se tivessem ocorrido os mesmos aprimoramentos, teria havido mais dividendos que atualmente há, para a nação ou para a espécie humana em geral. A nova vitória arrebatada à natureza pelos aperfeiçoamentos não teria sido totalmente esgotada no sustento da população aumentada. Ainda que a produção bruta não tivesse sido tão grande, teria havido uma produção maior para a população, per capita. § 3. Quando o crescimento da população sobrepuja o progresso dos aperfeiçoamentos, e um país é obrigado a obter os meios de subsistência em condições cada vez menos favoráveis, devido à incapacidade de sua terra de atender a demandas adicionais a não ser sob condições mais onerosas, há dois expedientes para o país poder mitigar essa necessidade desagradável, não havendo nenhuma mudança nos hábitos da população com respeito à sua taxa de crescimento. Um deles é a importação de alimentos do exterior. O outro é a emigração. A introdução de alimentos mais baratos, provenientes de país estrangeiro, equivale a uma invenção agrícola pela qual se poderia obter no próprio país alimento a custo similarmente reduzido. Anteriormente, o retorno era tanto alimento por tanto mais trabalho empregado no cultivo de alimentos; agora, o retorno é uma quantidade maior de alimentos, pela mesma quantidade de trabalho empregada em produzir algodão ou ferragens ou alguma outra mercadoria, a serem dados em troca de alimentos. Tanto uma melhoria como a outra adia um tanto o declínio da força produtiva do trabalho, mas tanto em um caso como no outro este declínio retoma imediatamente o seu curso; a maré recuou, mas recomeça a avançar de novo. Poderia parecer, sem dúvida, que quando um país tira seus alimentos de área tão ampla quanto é o globo habitável, qualquer aumento de bocas em um único pequeno canto da Terra só poderia produzir na grande extensão do globo um efeito tão reduzido que os habitantes do país podem dobrar e triplicar sua população, sem sentirem o efeito na forma de alguma tensão maior nas molas da produção ou na forma de algum aumento do preço dos alimentos no mundo em geral. Acontece que nesse cálculo se deixam de levar em conta várias coisas. Em primeiro lugar, as regiões estrangeiras das quais se pode importar trigo não englobam o mundo todo, mas sobretudo aquelas regiões que estão localizadas imediatamente perto de costas ou rios navegáveis. Na maioria dos países, costa é a região que é povoada antes e com mais densidade, e raramente ela dispõe de excedente de alimentos. Por isso, a fonte principal de suprimento é a faixa de terra ao longo das margens de algum rio navegável, como o Nilo, o Vístula o Mississípi; ora, nas regiões produtivas da Terra, a quantidade de tais terras não é tão grande que seja suficiente, durante tempo indefinido, e sem solicitar mais as forças produtivas do solo para atender a uma demanda que cresce rapidamente. No atual estágio das comunicações [1871], na maioria dos casos é impraticável obter suprimentos adicionais e abundantes de trigo do interior. Mediante o aprimoramento de estradas e mediante canais e ferrovias, eventualmente esse obstáculo será reduzido ao ponto de não ser insuperável; mas esse é um progresso lento; em todos os países que exportam alimentos, excetuada a América, é um progresso muito lento; além disso, é também um progresso que não consegue acompanhar o passo do crescimento populacional, a menos que este seja limitado com muita eficiência. Em segundo lugar, mesmo que o suprimento de alimentos fosse tirado de toda a superfície dos países exportadores, e não apenas de uma parte dessa superfície, mesmo então seria limitada a quantidade de alimentos que deles se poderia obter sem um aumento dos custos proporcionais. Os países que exportam alimentos podem ser divididos em duas categorias: aqueles em que é forte o desejo efetivo de acumular, e aqueles em que esse desejo é fraco. Na Austrália e nos Estados Unidos da América, esse desejo de acumular é forte; o capital aumenta rapidamente, e a produção de alimentos poderia aumentar com rapidez muito grande. Acontece que em tais países também a população cresce com rapidez extraordinária. Sua agricultura tem que prover a população própria, que aumenta, e também a dos países importadores. Por isso, conforme a natureza do caso, tais países são rapidamente obrigados a recorrer, se não a terras menos férteis, ao menos àquilo que é equivalente, isto é, terras mais afastadas e menos acessíveis, e a modos de cultivo iguais aos vigentes em países velhos, modos estes menos produtivos em proporção ao trabalho e aos gastos empregados. Ora, são poucos os países que têm ao mesmo tempo alimentos baratos e grande prosperidade industrial: são somente aqueles em que as técnicas da vida civilizada foram transferidas, já plenamente desenvolvidas, para um solo rico e inculto. Entre os países antigos, os que podem exportar alimentos podem fazê-lo somente porque sua indústria está em estágio bem atrasado — porque o capital e, portanto, a população nunca aumentaram suficientemente para fazer subir o preço dos alimentos. Tais países são [1848] a Rússia, a Polônia e as planícies do Danúbio. Nessas regiões, é fraco o desejo efetivo de acumular, são muito imperfeitas as técnicas de produção, o capital é escasso, e o aumento deste é lento, sobretudo em se tratando de capital nacional. Se surgisse uma demanda maior de alimentos a exportar para outros países, só muito gradualmente se conseguiria produzir esse alimento adicional para exportar. O capital necessário para esse aumento de produção de alimentos não se poderia obter desviando-o de outras atividades, pois estas não existem. O algodão e as ferragens que seriam recebidos da Inglaterra em troca de trigo, não são produzidos atualmente pelos russos e poloneses em seu país; eles passam sem esses produtos. Com o tempo se poderia esperar algo de maior atividade à qual os produtores seriam estimulados pela abertura de novo mercado para sua produção agrícola; entretanto, esse aumento de atividade é dificultado pelos hábitos reinantes em países cuja população agrícola consta de servos ou escravos ou então de camponeses que apenas saíram de uma condição servil, hábitos estes que não mudam rapidamente, mesmo nesta época de movimentação. Se se confia em maior investimento de capital, como fonte para se aumentar a produção, os recursos para isso precisam ser obtidos mediante lento processo de poupança, sob o impulso dado por novas mercadorias e mais amplo intercâmbio (e nesse caso a população provavelmente aumentaria com a mesma rapidez), ou então esses recursos de capital têm que ser carreados de países estrangeiros. Se a Inglaterra quiser obter um suprimento rapidamente crescente de trigo da Rússia ou da Polônia, deverá primeiro enviar para lá capital inglês, para produzir esse excedente de trigo. Ora, isso envolve tantas dificuldades, que equivalem a grandes desvantagens reais. A isso opõem-se diferenças de idiomas, diferenças de modos de ser, bem como um sem-número de obstáculos oriundos das instituições e das relações sociais do país; e, ao final, isso inevitavelmente estimularia a população de lá a tal ponto que quase todo o aumento de produção de alimentos, gerado por tais recursos, provavelmente acabaria sendo consumido no próprio país; assim sendo, se a importação de capital de fora não fosse quase a única maneira de introduzir técnicas e ideias estrangeiras, e de dar um estímulo efetivo à civilização atrasada daqueles países, pouca fé se poderia colocar nesse recurso como meio para aumentar as exportações e para fornecer a outros países uma quantidade progressiva e indefinidamente crescente de alimentos. Ora, aperfeiçoar a civilização de um país representa um processo lento, o que dá tempo para um crescimento populacional tão grande, tanto no próprio país como naqueles por ele supridos, que seu efeito para manter baixo o preço dos alimentos contra o aumento da demanda não tem probabilidade de ser mais decisivo na escala de toda a Europa do que na escala menor de uma nação específica. Por conseguinte, a lei do retorno decrescente do trabalho, sempre que a população aumenta com mais rapidez que os aperfeiçoamentos, é aplicável não somente a países que se alimentam do solo próprio, senão que substancialmente se aplica também, na mesma intensidade, àqueles que estão dispostos a comprar seus alimentos de qualquer parte acessível que os possa fornecer mais barato. Efetivamente, um barateamento repentino e grande dos alimentos, de qualquer forma que seja gerado, haveria de, como qualquer outro aperfeiçoamento repentino na vida humana, fazer retroceder a tendência natural dos negócios de um ou mais estágios, embora sem alterar seu curso. Existe uma contingência ligada à liberdade de importação, a qual, sem embaraço, pode produzir efeitos temporários maiores que aqueles já pensados pelos mais acirrados inimigos ou pelos mais ardentes defensores do livre comércio de alimentos. O milho, ou seja, o chamado “trigo da Índia”, é um produto que pode ser fornecido em quantidades suficientes para alimentar o país inteiro, a um custo que, compensando a diferença de valor nutritivo, é mais barato que o da própria batata. Se um dia o trigo fosse substituído pelo milho, como alimento básico dos pobres, a força produtiva da mão-de-obra empregada na obtenção de alimentos aumentaria em grau descomunal, e as despesas de manutenção de uma família diminuiriam tanto que talvez levasse algumas gerações para que uma população — mesmo crescendo ao ritmo característico dos americanos — crescesse a ponto de anular os efeitos desse grande acesso aos recursos de seu sustento. § 4. Além da importação de trigo, há um outro recurso do qual pode lançar mão uma nação cuja população crescente exerce pressão, não contra seu capital, mas contra a capacidade produtiva de sua terra: refiro-me à emigração, sobretudo na forma de colonização. Dentro dos devidos limites, a eficácia dessa solução é real, pois consiste em procurar alhures aquelas áreas desocupadas de terra fértil que, se existissem no próprio país, possibilitariam atender à demanda de uma população crescente sem qualquer queda da produtividade do trabalho. Consequentemente, quando a região a ser colonizada está à mão, e os hábitos e gostos da população são suficientemente migratórios, essa solução é totalmente eficaz. A migração, das regiões mais velhas da Confederação Americana para os territórios novos, que para todos os efeitos e propósitos é uma colonização, é o que possibilita à população da União norte-americana continuar a manter-se dentro dos limites, sem ainda decrescerem os retornos gerados pelo trabalho, ou sem ver aumentar a dificuldade de ganhar a subsistência. Se a Austrália ou o interior do Canadá estivessem tão perto da Grã-Bretanha como o Wiscounsin e o Iowa estão de Nova York, se a nossa população excedente pudesse ir para lá sem atravessar o mar, e se ela tivesse um caráter tão aventureiro, fosse tão irrequieta e tivesse tanta facilidade de deixar sua terra quanto seus parentes da Nova Inglaterra, se assim fosse, aqueles continentes despovoados prestariam ao Reino Unido o mesmo serviço que os Estados velhos da América obtêm dos Estados novos. Entretanto, sendo a realidade como é — ainda que uma emigração criteriosamente conduzida constitua um recurso altamente importante para aliviar repentinamente a pressão da população com um único esforço — e embora em um caso tão extraordinário como o da Irlanda — sob o triplo efeito do fracasso da cultura da batata, da lei dos pobres, e da demissão geral do conjunto dos arrendatários de terra em todo o país — a emigração espontânea possa em uma crise específica remover multidões maiores do que as que já se propuseram remover de uma vez por qualquer esquema nacional, não obstante tudo isso, digo, a experiência ainda precisa mostrar se é possível manter um fluxo permanente de emigração, de tal porte que seja suficiente, como na América, para levar embora do país todo aquele contingente do aumento anual da população (quando esse crescimento ocorre na sua rapidez máxima) que, por sobrepujar o progresso feito no mesmo período quanto às técnicas, tende a tornar a condição de vida mais difícil para todo indivíduo de condição média na comunidade. Ora, se isso não se conseguir, a emigração, mesmo do ponto de vista econômico, não pode dispensar a necessidade de limitar a população. Mais do que isso não temos a dizer no presente contexto. O tema geral da colonização como problema de ordem prática, sua importância para países velhos, bem como os princípios segundo os quais a colonização deve ser conduzida, são temas a serem discutidos com algum detalhamento em uma parte subsequente deste tratado. LIVRO SEGUNDO A Distribuição CAPÍTULO I A Propriedade § 1. Os princípios apresentados na primeira parte deste tratado são, sob certos aspectos, profundamente distintos daqueles cujo exame passaremos agora a empreender. As leis e as condições da produção da riqueza têm o caráter de verdades físicas. Não há nelas nada de opcional ou arbitrário. Tudo o que a humanidade produzir, tem que ser produzido das maneiras e sob condições impostas pela constituição de coisas externas e pelas propriedades inerentes de sua própria estrutura corporal e mental. Queiram os homens ou não, a produção deles será limitada pelo montante de suas poupanças anteriores, e, isso posto, tal montante será proporcional à sua energia, à sua habilidade, à perfeição de suas máquinas e à utilização criteriosa que fizerem das vantagens oferecidas pela cooperação no trabalho. Queiram ou não queiram, uma quantidade dupla de trabalho não conseguirá tirar da mesma terra uma quantidade dupla de alimentos, a menos que ocorra algum aperfeiçoamento nos processos agrícolas. Queiram ou não, o gasto improdutivo de indivíduos tenderá, na mesma proporção, a empobrecer a comunidade, e somente o gasto produtivo deles a enriquecerá. As opiniões ou os desejos que possam existir sobre esses diversos assuntos não governam as coisas em si mesmas. Sem dúvida, não temos condições de prever até onde as maneiras de produzir podem ser alteradas, ou de que forma pode ser incrementada a produtividade da mão-de-obra em virtude de futuras ampliações do nosso conhecimento das leis da Natureza, sugerindo novos processos de trabalho, dos quais no momento não temos noção alguma. Entretanto, qualquer que seja o êxito que possamos ter em conquistar mais terreno dentro dos limites colocados pela natureza das coisas, sabemos que deve haver limites. Não temos o poder de alterar as propriedades últimas da matéria nem da mente; podemos apenas fazer uso dessas propriedades com maior ou menor sucesso, para produzir os resultados em que estamos interessados. Não acontece o mesmo com a distribuição da riqueza. Esta é exclusivamente uma questão de instituições humanas. Com as coisas que existem, a humanidade, individual ou coletivamente, pode fazer o que quiser. Pode colocá-las à disposição de quem quiser e sob as condições que quiser. Além disso, no estado social, em qualquer estrutura social, a não ser que se trate da solidão total, qualquer maneira de dispor das coisas só pode ocorrer mediante o consentimento da sociedade, ou melhor, daqueles que possuem o poder ativo da sociedade. Mesmo aquilo que a pessoa produziu com seu próprio suor, sem ajuda de ninguém, não pode retê-lo como seu, a não ser com a permissão da sociedade. Não somente a sociedade lhe pode tirar o que ele produziu, senão que indivíduos poderiam tirar-lhe, e lhe tirariam, se a sociedade permanecesse passiva, se esta não interferisse em massa ou não contratasse e pagasse pessoas para impedir que a sua posse seja lesada. Eis por que a distribuição da riqueza depende das leis e dos costumes da sociedade. As normas que regem essa distribuição são aquelas que as opiniões e os sentimentos dos governantes da comunidade criarem, variando elas muito conforme a diversidade de épocas e países; poderiam ser ainda mais diferentes, se a humanidade assim o quisesse. Não há dúvida de que as opiniões e os sentimentos da humanidade não dependem do acaso. São consequências das leis fundamentais da natureza humana, combinadas com o estado atual do conhecimento e da experiência, bem como à condição atual das instituições sociais e da cultura intelectual e moral. Contudo, as leis que regem a gênese das opiniões humanas extravasam o tema que agora nos ocupa. Fazem parte da teoria geral do progresso humano, assunto de pesquisa muito mais vasto e mais complexo do que a Economia Política. O que nos cabe aqui examinar não são as causas, mas as consequências das normas segundo as quais a riqueza pode ser distribuída. Estas, pelo menos, estão tão longe de ser arbitrárias quanto as leis da produção e têm o mesmo caráter de leis físicas que estas. Os seres humanos têm condições de controlar seus próprios atos, mas não as consequências de seus atos, para si mesmos ou para outros. A sociedade pode fazer com que a distribuição da riqueza esteja sujeita a quaisquer normas que melhor achar, mas é à observação e ao raciocínio que cabe descobrir quais resultados práticos advirão da operação dessas normas. Analisaremos, pois, os diversos modos de distribuir a produção da terra e do trabalho, que têm sido adotados na prática ou que podem ser concebidos em teoria. Entre eles, reclama nossa atenção, em primeiro lugar, essa instituição primordial e fundamental sobre a qual se têm baseado, sempre prescindindo de alguns casos excepcionais e muito restritos, os dispositivos ou estruturas econômicas da sociedade, ainda que em suas características secundárias ela tenha variado e seja passível de variar. Refiro-me, naturalmente, à instituição da propriedade individual. § 2. A propriedade privada, como instituição, não deveu sua origem a nenhuma daquelas considerações de utilidade que militam pela manutenção dela, uma vez estabelecida. Sabe-se bastante sobre épocas primitivas, tanto da história passada quanto de estados análogos da sociedade em nossos dias, para mostrar que os tribunais (que sempre precedem às leis) foram originalmente fundados, não para determinar direitos, mas para reprimir a violência e dirimir disputas. Tendo em vista sobretudo esse objetivo, com bastante naturalidade, outorgavam reconhecimento legal ao primeiro ocupante, tratando como agressora a pessoa que primeiro iniciasse a violência de privar ou tentar privar outra pessoa da propriedade. Conseguia-se, assim, a preservação da paz, que representava o escopo original do Governo civil; ao mesmo tempo, confirmando e reconhecendo aqueles que já possuíam a propriedade — mesmo em se tratando daquilo que não era fruto do trabalho pessoal —, o Governo civil dava incidentalmente uma garantia a eles e a outros de que seriam protegidos no que era assim objeto de propriedade. Ao considerarmos a instituição da propriedade como uma questão da Filosofia Social, devemos prescindir da sua origem efetiva em qualquer das nações europeias atualmente existentes. Podemos supor uma comunidade destituída de qualquer título de posse anterior; um conjunto de colonizadores ocupando pela primeira vez uma região desabitada, não trazendo consigo outra coisa senão o que lhes pertencia em comum, e com plena liberdade de adotarem as instituições e a política que considerassem mais convenientes, exigindo-se desse conjunto de colonizadores, portanto, que escolhessem se haveriam de conduzir sua produção com base no princípio da propriedade individual ou com base em algum sistema de propriedade comum e coletiva. Caso fosse adotado o sistema da propriedade privada, temos que presumir que ele não estaria acompanhado de nenhuma das desigualdades e injustiças iniciais que obstaculizam a operação benéfica do princípio em sociedades antigas. Temos que supor que todo homem ou mulher plenamente adulto teria assegurado o direito de usar e dispor desimpedidamente de suas faculdades corporais e mentais; os instrumentos de produção, a terra e as ferramentas, seriam com justiça divididos entre eles, de sorte que todos pudessem começar em condições iguais, no tocante a recursos externos. É também possível conceber que, nessa repartição original, se desse uma compensação pelas desvantagens devidas à Natureza e se recompusesse a igualdade, concedendo aos membros menos fortes da comunidade, na repartição dos recursos, vantagens suficientes para colocá-los em pé de igualdade com os demais membros da comunidade. Entretanto, não se interferiria mais na divisão, uma vez feita; os indivíduos seriam abandonados à sua própria atividade e às oportunidades correntes, para fazerem uso vantajoso do que lhes foi dado. Se, ao contrário, se excluísse a propriedade individual, o plano que se deveria adotar seria manter a terra e todos os instrumentos de produção como propriedade conjunta da comunidade e realizar em comum também as operações do trabalho. A direção do trabalho da comunidade caberia a um ou a vários magistrados, que podemos supor eleitos pelos sufrágios da comunidade, e aos quais, temos que supor, a comunidade obedeceria voluntariamente. Também a repartição da produção seria um ato público. O princípio dessa divisão poderia ser o da igualdade completa, ou o do rateio proporcional às necessidades ou aos méritos dos indivíduos, de uma forma que pudesse compaginar-se com os conceitos de justiça ou de política predominantes na comunidade. Temos exemplos de tais associações, em pequena escala, nas Ordens religiosas monásticas, nos Morávios, nos seguidores de Rapp e em outros; com base na esperança de ficarem imunes das misérias e iniquidades de um estado de grande desigualdade de riqueza, têm reaparecido e adquirido popularidade esquemas de uma aplicação mais vasta da mesma ideia, em todos os períodos em que houve pesquisa ativa sobre os princípios primários da sociedade. Em uma época como a nossa [1848], em que se percebe como inevitável uma reconsideração geral de todos os princípios primários, e em que, mais do que em qualquer período anterior da história, os segmentos sofredores da comunidade têm voz na discussão, era impossível que ideias dessa natureza não alcançassem uma grande divulgação. As recentes revoluções ocorridas na Europa produziram uma grande soma de pesquisas desse gênero, e consequentemente se tem dispensado uma atenção inusitada às várias formas que essas ideias têm assumido — atenção esta que provavelmente não diminuirá, senão que, ao contrário, crescerá cada dia mais. Os opositores do princípio da propriedade individual podem ser divididos em duas categorias: aquelas cujo esquema implica igualdade absoluta na distribuição dos recursos físicos de subsistência e de prazer, e aqueles que admitem uma desigualdade, sendo esta, porém, fundada em algum princípio ou presumido princípio de justiça ou equidade geral, e não apenas no acaso, como ocorre com tantas desigualdades sociais existentes. À testa da primeira categoria, e como o mais antigo dos que pertencem à geração atual, temos que colocar o Sr. Owen e seus seguidores. Mais recentemente, os Srs. Louis Blanc e Cabet têm-se distinguido como apóstolos de doutrinas semelhantes (embora o primeiro defenda a igualdade de distribuição somente como uma transição para um padrão de justiça ainda mais elevado, isto é, que todos devem trabalhar conforme sua capacidade e receber segundo suas necessidades). A designação característica para esse sistema econômico é Comunismo, termo que se originou na Europa continental e só recentemente foi introduzido em nosso país. A palavra socialismo, que se originou entre os comunistas ingleses e foi assumida por eles para designar suas próprias doutrinas, é hoje [1849] empregada, no Continente europeu, em acepção mais ampla — não implicando necessariamente o comunismo, isto é, a abolição total da propriedade privada, mas aplicando-se a qualquer sistema que exija que a terra e os instrumentos de produção não sejam propriedade de indivíduos, mas de comunidades ou associações, ou do Governo. Entre tais sistemas, os dois de maior envergadura intelectual são aqueles que, tirando sua denominação dos nomes de seus autores reais ou presumidos, se tem chamado de St.-Simonismo e Fourierismo; o primeiro deles não mais existe como sistema, porém durante os poucos anos de sua promulgação pública lançou as sementes de quase todas as tendências socialistas que desde então se difundiram amplamente na França; o segundo ainda [1865] floresce, em virtude do número, do talento e do zelo de seus adeptos. § 3. Quaisquer que sejam os méritos ou falhas desses vários sistemas, não se pode na verdade afirmar que sejam impraticáveis. Nenhuma pessoa de bom senso pode duvidar de que uma comunidade de aldeia, composta de uns poucos milhares de habitantes, cultivando em regime de propriedade conjunta a mesma área de terra que hoje alimenta aquele contingente de pessoas, e produzindo, através do trabalho associado e dos processos mais aperfeiçoados, os artigos manufaturados de que os membros necessitassem, teria condições de colher uma quantidade de produtos suficientes para mantê-los confortavelmente; ninguém de bom senso duvidaria de que tal comunidade encontraria a maneira de obter e, se necessário fosse, de exigir a soma de trabalho necessário para esse fim, de cada membro da associação, que tivesse capacidade de trabalhar. A objeção corrente feita a um sistema de propriedade comunitária e de distribuição igual da produção — a saber, que cada um estaria constantemente preocupado em fugir da sua quota de responsabilidade no trabalho — aponta, sem dúvida, uma dificuldade real. Contudo, os que urgem essa objeção esquecem que em grande parte essa mesma dificuldade existe no sistema que hoje rege 9/10 dos negócios da sociedade. A objeção supõe que só se pode obter trabalho leal e eficiente daqueles que pessoalmente colherão o benefício de seu próprio trabalho. Ora, quão pequena é a percentagem de trabalho, executado na Inglaterra — desde o trabalho mais precariamente remunerado até ao mais bem remunerado — que é feito por pessoas que trabalham para seu próprio benefício! Desde o ceifeiro ou o servente de pedreiro irlandês até o presidente de um Tribunal ou o ministro de Estado, quase todo o trabalho da sociedade é remunerado com salários por dia ou salários fixos. Um operário de fábrica tem menos interesse pessoal em seu trabalho do que um membro de uma associação comunista, já que, ao contrário deste último, não está trabalhando para uma sociedade da qual é membro. Com certeza, acenar-se-á com o fato de que, embora os próprios trabalhadores não tenham, na maioria dos casos, um interesse pessoal no trabalho, sejam observados e supervisionados, seu trabalho seja dirigido, e a parte mental do trabalho seja executada por pessoas que têm tal interesse pessoal no negócio. Acontece que mesmo isso está longe de ser um fato universal. Em todas as empresas públicas, e em muitos dos empreendimentos privados de maior porte e mais bem-sucedidos, confiam-se a empregados assalariados não somente os trabalhos de detalhe, mas também o controle e a supervisão. E embora o “olho do patrão”, quando o patrão é vigilante e inteligente, tenha um valor proverbial, é preciso lembrar que, em uma propriedade rural ou em uma manufatura em regime socialista, cada trabalhador estaria sendo supervisionado não por um único patrão, mas pela comunidade inteira. No caso extremo de perseverança obstinada em não cumprir a quota de trabalho devida, a comunidade teria os mesmos recursos de que atualmente dispõe a sociedade para exigir que o respectivo trabalhador observe as condições da associação. A demissão, que é atualmente a única solução, não representa solução quando não houver nenhum outro trabalhador que possa ser colocado em lugar do demitido e trabalhe melhor do que este último; o poder de demitir apenas possibilita a um empregador conseguir de seus operários o montante habitual de trabalho, mas esse montante habitual de trabalho pode apresentar qualquer grau de ineficiência. Mesmo o trabalhador do campo que perde seu emprego por motivo de ociosidade ou negligência, não sofre outra consequência senão — na pior das hipóteses — o ter que submeter-se à disciplina de uma oficina e, se o desejo de isso evitar for um motivo suficiente em um sistema, seria suficiente também em outro. Não estou subvalorizando a força do estímulo que se dá ao trabalho, quando ao trabalhador pertence o fruto — em sua totalidade ou ao menos em grande parte — de sua iniciativa extra. Acontece que na grande maioria dos casos tal estímulo não existe, no sistema de trabalho hoje vigente. Ainda que o trabalho em regime comunista possa ser menos vigoroso do que o de um camponês proprietário ou o de um operário que trabalha por sua própria conta, provavelmente ele seria executado com mais eficiência do que o de um trabalhador assalariado, que não tem absolutamente nenhum interesse pessoal na empresa. No atual estado da sociedade é simplesmente impressionante o descaso com as obrigações assumidas, da parte das classes de trabalhadores sem instrução e assalariados. Ora, admite-se que uma das condições do esquema comunista é a de que todos sejam instruídos, e nessa suposição, os deveres dos membros da associação seriam sem dúvida tão cuidadosamente cumpridos quanto os da generalidade dos empregados assalariados das classes média e mais alta, os quais — como se supõe — não necessariamente são infiéis às suas tarefas, pelo simples fato de, enquanto não forem demitidos, seu pagamento ser o mesmo, qualquer que seja o empenho que coloquem no cumprimento de seus deveres. Sem contestação, como norma geral, a remuneração na forma de salário fixo não produz, em classe de funcionários, o máximo de zelo — e isso é quanto se pode razoavelmente alegar contra o trabalho no regime comunista. Aliás, de forma alguma é tão certo que a citada desvantagem seja inevitável, ao contrário do que supõem aqueles que estão pouco familiarizados a estender sua análise para além do estado de coisas ao qual estão habituados. O homem é capaz de muito mais espírito público do que a nossa época está habituada a supor possível. A história dá testemunho do sucesso que se pode conseguir quando se treinam grandes grupos de seres humanos para sentirem como seu interesse pessoal o interesse da comunidade. E nenhum solo poderia ser mais favorável para desenvolver esse sentimento do que uma associação comunista, já que toda a ambição, bem como a atividade corporal e mental que atualmente são desenvolvidas na busca de interesses separados e pessoais, exigiriam um outro campo de emprego, e com naturalidade o encontrariam na busca do bem geral da comunidade. A mesma causa, tantas vezes assinalada para explicar a dedicação do padre ou do monge católico ao interesse da sua instituição — isto é, que ele não tem outro interesse afora este — haveria de afeiçoar o cidadão à comunidade, no regime comunista. Aliás, independentemente da motivação pelo bem público, cada membro da associação poderia abraçar a mais universal das motivações pessoais, e uma das mais fortes, a da opinião pública. Provavelmente ninguém negará a força dessa motivação para impedir qualquer ato de omissão positivamente reprovado pela comunidade; mas também a força da emulação, que leva o indivíduo ao empenho máximo em função da aprovação e da admiração alheia, é atestada pela experiência, em toda situação na qual os seres humanos competem publicamente entre si, mesmo se for para coisas frívolas, ou seja, de coisas das quais o público não tira benefício algum. Uma disputa para ver quem é capaz de fazer mais pelo bem comum não é um tipo de competição que os socialistas rejeitam. Temos, pois, que considerar, no momento, como questão ainda aberta a seguinte: até que ponto a energia de trabalho diminuiria sob o sistema comunista, ou se a longo prazo essa energia sequer diminuiria. Uma outra das objeções feitas ao comunismo é similar àquela que tantas vezes se faz às leis dos pobres, a saber: se cada membro da comunidade tivesse a garantia de receber a subsistência para si mesmo e para qualquer número de filhos, sob a única condição de estar disposto a trabalhar, acabaria a limitação prudencial da multiplicação da espécie humana, e a população cresceria a uma taxa que acabaria reduzindo a comunidade, através de estágios sucessivos de privações crescentes, a passar fome e a morrer efetivamente de fome. Certamente haveria bastante motivo para temer isso se o comunismo não apresentasse motivação alguma para o controle populacional, equivalente às motivações que suprimisse. Acontece que o comunismo é exatamente aquele estado de coisas no qual se poderia esperar que a opinião pública se declararia com o vigor máximo contrário a esse tipo de intemperança egoísta. Todo aumento populacional que diminuísse o conforto da comunidade ou aumentasse o trabalho da massa acarretaria em regime comunista (o que não acontece hoje) um incêndio imediato e inconfundível para cada indivíduo da associação — incômodo que, nesse caso, não poderia ser imputado à avareza dos empregadores ou aos injustos privilégios dos ricos. Em tais circunstâncias alteradas a opinião pública não poderia deixar de reprovar e, se a reprovação não fosse suficiente, reprimir com determinadas penalidades esta ou qualquer outra autossatisfação à custa do bem da comunidade. O esquema comunista, em vez de ser particularmente vulnerável à objeção tirada do perigo da superpopulação, recomenda-se pela sua tendência especial a combater contra esse mal. Uma dificuldade mais real é a da atribuição justa do trabalho da comunidade aos seus membros. Há muitos tipos de trabalho; qual seria então o critério que permitiria medir uns em relação aos outros? Quem julgaria quanto trabalho de fiação de algodão ou de distribuição de mercadorias dos depósitos, ou de serviço de pedreiro ou de limpar chaminés é equivalente a tanto trabalho de aração de terra? A dificuldade de fazer o ajuste entre tipos diferentes de trabalho é tão fortemente sentida por autores comunistas que geralmente chegaram a considerar necessário fazer com que todos trabalhem sucessivamente em cada ocupação útil — esquema que, por acabar com a divisão das ocupações, sacrificaria tanto as vantagens da produção em sistema de cooperação, que ficaria grandemente reduzida a produtividade do trabalho. Além disso, até dentro do mesmo tipo de trabalho, a igualdade seria apenas nominal; na realidade, teríamos uma desigualdade real tão grande que o sentimento de justiça se revoltaria contra a implantação desse critério. Nem todas as pessoas são igualmente aptas para todos os trabalhos, e a mesma quantidade de trabalho representa um peso desigual para o fraco e o forte, para o rude e o delicado, para o rápido e o lento, para o obtuso e para o inteligente. Essas dificuldades, porém, embora reais, não são necessariamente insuperáveis. A distribuição de trabalho de acordo com a força e as capacidades dos indivíduos, a mitigação de uma norma geral para casos em que isso fosse excessivamente duro, não são problemas para os quais a inteligência humana, guiada por um senso de justiça, seria incapaz de encontrar solução. E mesmo a pior e mais injusta solução que se poderia dar a esses problemas, em um sistema que busca a igualdade, estariam tão longe da falta de equidade e de justiça, que atualmente caracterizam a atribuição do trabalho (para não falar da remuneração), que dificilmente valeria a pena contá-la na comparação. Precisamos também recordar que o comunismo, como um sistema da sociedade, só existe como uma ideia — que, por conseguinte, no momento se compreendem muito melhor as dificuldades que ele encerra do que as chances que ele oferece; e que a inteligência humana está apenas começando a descobrir os meios de organizá-lo nos detalhes, de maneira a superar as dificuldades a ele inerentes e auferir a máxima vantagem dos seus aspectos positivos. Se, portanto, se devesse escolher entre o comunismo, com todas as suas chances, e o atual [1852] estado da sociedade, com todos os seus sofrimentos e injustiças; se a instituição da propriedade privada necessariamente tivesse como consequência que a produção do trabalho tem que ser distribuída segundo o esquema atual, quase em proporção inversa ao trabalho — cabendo as porções maiores dela àqueles que nunca sequer trabalharam, vindo logo depois aqueles cujo trabalho é quase apenas nominal, e assim por diante, em uma escala descendente, diminuindo a remuneração cada vez mais, à medida que o trabalho se torna mais duro e mais desagradável, até chegarmos ao trabalho corporal mais fatigante e mais esgotante, que não pode sequer contar com a certeza de ganhar o necessário para a subsistência; se a alternativa fosse entre essa situação e o comunismo, todas as dificuldades inerentes ao comunismo, grandes ou pequenas, não passariam de pó na balança. Acontece que, para que a comparação seja aplicável, temos que comparar o comunismo, na sua forma melhor, com o regime da propriedade individual, não como ele é hoje, mas como poderia vir a ser. O princípio da propriedade privada nunca foi tentado com honestidade em país algum, e neste país, talvez menos do que em alguns outros. As estruturas sociais da Europa moderna provieram de uma distribuição da propriedade que foi o resultado não de repartição justa ou de conquista pelo trabalho, mas da conquista bruta e da violência; e a despeito daquilo que o empenho humano tem feito durante muitos séculos para modificar esse produto da força, o sistema ainda conserva muitas e grandes características de sua origem. Até hoje, nunca as leis que regem a propriedade obedeceram aos princípios sobre os quais repousa a justificação da propriedade privada. Elas decretaram que são propriedade coisas que nunca deveriam ser propriedade, e estabeleceram propriedade absoluta lá onde só deveria existir uma propriedade sob condições. Essas leis não mantiveram um justo equilíbrio entre os seres humanos, senão que acumularam impedimentos sobre algumas pessoas, para dar vantagem a outras; propositadamente fomentaram desigualdade e impediram a todos de começarem a luta da existência em igualdade de condições. Sem dúvida, seria inconciliável com qualquer lei de propriedade privada que todos começassem em condições totalmente iguais. Contudo, se o empenho que se teve em agravar a desigualdade de oportunidades, decorrente dos efeitos naturais das leis da propriedade privada, tivesse existido, na mesma escala, para mitigar essa desigualdade com todos os meios que não destruam o princípio como tal, se a tendência da legislação tivesse sido no sentido de favorecer a difusão da riqueza em vez de favorecer a sua concentração — estimular a subdivisão dos grandes acervos, em vez de procurar mantê-los concentrados em poucas mãos — ter-se-ia constatado que o princípio da propriedade individual não tem nenhum nexo necessário com os males físicos e sociais que quase todos os autores socialistas presumem ser inseparáveis dele. Em toda apologia que se faz da propriedade privada supõe-se que ela significa assegurar aos indivíduos os frutos de seu próprio trabalho e de sua própria abstenção. A garantia que têm as pessoas em relação aos frutos do trabalho e da abstenção de outros, transmitidos a eles sem qualquer mérito ou trabalho delas mesmas, não faz parte da essência dessa instituição, mas é apenas uma simples consequência eventual que, quando atinge um certo ponto, não promove os objetivos que dão legitimidade à propriedade privada, senão que conflitam com eles. Para podermos emitir um juízo definitivo sobre a instituição da propriedade, temos que supor corrigido tudo aquilo que faz com que ela opere de uma forma oposta a esse princípio justo — da proporção entre a remuneração e o trabalho — sobre o qual se deve basear supostamente toda defesa convincente da propriedade privada. Precisamos também supor realizadas duas condições, sem as quais tanto o comunismo como quaisquer outras leis ou instituições só poderiam tornar a condição da massa da humanidade pior e miserável. Uma delas é a educação universal, e a outra é uma devida limitação da população da comunidade. Se cumpridas essas duas condições, não poderia haver pobreza, mesmo no regime das atuais instituições sociais; cumpridas as duas condições, a questão do socialismo não é, como geralmente afirmam os socialistas, uma questão de buscar o único refúgio que resta contra os males que afligem a humanidade, mas uma pura questão de vantagens comparativas, questão esta que caberá ao futuro decidir. Conhecemos muito pouco, tanto sobre aquilo que pode realizar a iniciativa individual em sua melhor forma, como aquilo que o socialismo em sua melhor forma pode realizar, para podermos decidir qual das duas modalidades será a forma final da sociedade humana. Se pudermos arriscar uma conjectura, a decisão provavelmente dependerá sobretudo de uma consideração, isto é, qual dos dois sistemas se compagina com o máximo de liberdade e de espontaneidade humana. Depois de assegurados os meios de subsistência, a necessidade pessoal mais forte dos seres humanos é a liberdade; e (ao contrário das necessidades físicas, as quais, à medida que a civilização progride, se tornam mais moderadas e mais fáceis de controlar) a necessidade de liberdade aumenta de intensidade, em vez de diminuir, à medida que a inteligência e as faculdades morais se desenvolvem mais. A perfeição, tanto das estruturas sociais como da moral prática, consistiria em assegurar a todas as pessoas independência e liberdade completas de ação, não sujeitas a nenhuma outra restrição senão a de não causar dano a outros; a educação que ensinou ou as instituições sociais que exigiram que as pessoas trocassem o comando de suas próprias ações por qualquer soma de conforto ou influência, ou abdicassem à liberdade em função da igualdade, privaram as pessoas de uma das características mais elevadas da natureza humana. Resta averiguar até que ponto a preservação dessa característica se comprovaria compatível com uma organização da sociedade em estilo comunista. Sem dúvida, exagera-se muito essa objeção, como aliás todas as demais que se fazem contra os esquemas socialistas. Não é necessário exigir dos membros da associação que vivam mais junto do que atualmente o fazem, nem tampouco é necessário controlá-los na forma de disporem de sua quota individual na produção e da provavelmente grande soma de lazer que teriam, se limitassem sua produção a coisas que vale realmente a pena produzir. Não há necessidade de amarrar os indivíduos a uma ocupação ou a um local específico. As restrições impostas pelo comunismo seriam liberdade, em comparação com a condição atual da maioria dos seres humanos. A maior parte dos trabalhadores, tanto neste como na maioria dos demais países, têm tão pouca chance de optar por uma ocupação ou de liberdade de locomoção, são praticamente tão dependentes de normas fixas e da vontade de outros, quanto o poderiam ser em qualquer sistema que não fosse a escravatura no sentido estrito — para não dizer nada da sujeição doméstica total de uma metade da humanidade, à qual é mérito insigne do Owenismo e da maioria das demais formas de socialismo ter reconhecido direitos iguais sob todos os aspectos, àqueles que cabe ao até hoje predominante sexo masculino. Entretanto, não é fazendo a comparação com o seu estado atual da sociedade que se pode avaliar o comunismo; tampouco é suficiente o comunismo prometer liberdade pessoal e mental maior que a atualmente desfrutada por aqueles que não têm o suficiente, nem de uma nem de outra, para merecer esse nome. A questão é saber se restaria algum abrigo para a individualidade de caráter, se a opinião pública não seria um jugo tirânico, se a dependência absoluta de cada um em relação a todos e o controle de cada um por parte de todos não acabariam reduzindo todos a uma submissa uniformidade de pensamentos, sentimentos e ações. Isso já é um dos flagrantes males do estado atual da sociedade, apesar de uma diversidade muito maior de educação e interesses e uma dependência muito menos absoluta do indivíduo em relação à massa do que existiria no regime comunista. Não pode estar em condição saudável nenhuma sociedade na qual a originalidade é alvo de censura. Ainda não ficou claro se o esquema comunista se conciliaria com aquele desenvolvimento multiforme da natureza humana, aquela multiplicidade de diferenças, aquela diversidade de gostos e talentos e aquela variedade de pontos de vista intelectuais que não somente constituem uma grande parte do interesse da vida humana, mas também, pelo fato de levarem as inteligências ao confronto estimulante, e pelo fato de apresentarem a cada um inúmeros conceitos que o indivíduo não teria concebido por si mesmo, constituem a mola mestra do progresso mental e moral. § 4. Até aqui restringi minhas observações à doutrina comunista, que representa o limite extremo do Socialismo — doutrina segundo a qual não somente os instrumentos de produção (a terra e o capital) são propriedade conjunta da comunidade, senão que a produção é dividida e o trabalho é atribuído de maneira igual, na medida do possível. As objeções — fundadas ou infundadas — às quais se presta o socialismo, aplicam-se ao comunismo — que é uma forma do socialismo — em sua força máxima. As demais variantes do socialismo diferem do comunismo sobretudo por não confiarem exclusivamente naquilo que o Sr. Louis Blanc chama o ponto de honra do trabalho, mas conservam, em grau maior ou menor, os incentivos ao trabalho provenientes do interesse pecuniário privado. Assim sendo, temos já uma modificação da teoria estrita do comunismo quando se professa o princípio de proporcionar a remuneração ao trabalho. As tentativas que se têm feito na França para implantar o socialismo na prática, por associações de operários que manufaturam por conta própria, na maioria dos casos começaram por distribuir remuneração igual, sem atender à quantidade de trabalho realizado pelo indivíduo; em quase todos os casos, porém, esse projeto foi abandonado depois de pouco tempo, recorrendo-se ao método de trabalhar por peça. O princípio original apela para um padrão mais elevado de justiça, e ele é adaptado a uma condição moral muito mais elevada da natureza humana. A remuneração proporcional ao trabalho feito é realmente justa, somente na medida em que o trabalhar mais ou o trabalhar menos é objeto de opção do trabalhador; quando isso depende da diferença natural de força ou de capacidade, esse princípio de remuneração é em si mesmo uma injustiça: equivale a dar mais àqueles que já são mais favorecidos pela Natureza. Se, porém, considerarmos esse princípio um compromisso com o tipo egoísta de caráter, formado pelo atual padrão de moralidade e fomentado pelas instituições sociais vigentes, ele é altamente conveniente; e até que não se reformule totalmente tal sistema de educação, esse princípio tem muito mais probabilidade de ter sucesso imediatamente do que uma tentativa a nível superior mais elevado. As duas formas esmeradas de socialismo não comunista, conhecidas sob o nome de St.-Simonismo e Fourierismo, estão totalmente isentas das objeções que se costuma fazer contra o comunismo; e embora prestem o flanco a outras objeções que lhes são próprias, não obstante isso, em razão da grande força intelectual que sob muitos aspectos as distingue, e pelo fato de abordarem amplamente e em termos filosóficos alguns dos problemas fundamentais da sociedade e da moral, com razão podemos contá-las entre as produções mais notáveis do passado e do presente. O esquema St.-Simoniano não contempla uma divisão igual da produção, mas uma divisão desigual; não propõe que todos tenham a mesma ocupação, mas ocupações diferentes, conforme sua vocação ou capacidade; a função de cada um é atribuída — como graduações em um regimento — pela escolha da autoridade que dirige, e a remuneração é em forma de salário, proporcional à importância, a critério da citada autoridade, da própria função, bem como aos méritos da pessoa que exerce a função. Quanto à estrutura do grupo ou organismo que comanda, poder-se-ia adotar vários planos, em consonância com os princípios essenciais do sistema. Os governantes poderiam ser eleitos por sufrágio popular. No conceito dos autores originais, supunha-se que os governantes fossem dotados de caráter e virtude, que obteriam uma adesão voluntária dos demais em virtude da força de sua superioridade mental. Não é improvável que esse esquema pudesse, em alguns estados especiais da sociedade, funcionar com vantagem. Com efeito, tem-se conhecimento de uma experiência bem-sucedida, de um tipo algo similar, à qual já aludi: a dos jesuítas no Paraguai. Conseguiu-se fazer com que uma tribo de silvícolas, pertencente a uma porção da humanidade mais avessa ao trabalho consecutivo em função de um objetivo distante do que qualquer outra a nós conhecida de fontes autênticas, se submetesse ao comando mental de homens civilizados e instruídos, unidos entre si por um sistema de comunidade de bens. Submeteram-se com reverência à autoridade desses homens, e foram por eles levados a aprender as artes da vida civilizada, e a executar trabalhos em prol da comunidade, trabalhos estes que nenhum estímulo que se pudesse oferecer poderia ter conseguido fazê-los executar por si mesmos. Esse sistema social teve duração curta, por ter sido prematuramente destruído por arranjos diplomáticos e pelo poder estrangeiro. A possibilidade de implantação desse sistema deveu-se provavelmente à imensa defasagem, em termos de conhecimento e de inteligência, que reinava entre os poucos governantes e todo o grupo dos governados, sem que houvesse quaisquer órgãos intermediários, sociais ou intelectuais. Em quaisquer outras circunstâncias, provavelmente o sistema teria fracassado inteiramente. Ele supõe um despotismo absoluto no topo da associação — condição esta que provavelmente não melhoraria muito se os depositários do despotismo (contrariando a visão dos autores do sistema) fossem de tempo em tempo mudados de acordo com o resultado de um plebiscito popular. Entretanto, supor que um ou alguns seres humanos, por mais seletos que fossem, poderiam ser qualificados, por qualquer mecanismo intermediário subordinado que fosse, para adaptar a ocupação de cada pessoa à capacidade individual e adequar proporcionalmente a remuneração de cada pessoa a seus méritos — o que equivaleria, na realidade, a serem os despenseiros da justiça distributiva para cada membro de uma comunidade, ou, então, que qualquer uso que fizessem desse poder contentaria a todos, ou que seriam aceitos com submissão sem o uso da força —, eis uma suposição quase excessivamente quimérica para ser refutada. Uma norma fixa, como a da igualdade, poderia ser aceita, o mesmo valendo para o acaso ou para uma necessidade externa; mas que um grupo de seres humanos pese a todos na balança e dê mais a um e menos a outro, unicamente com base na vontade e no julgamento deles — isso ninguém suportaria, a não ser que se acreditasse serem eles mais do que simples homens e fossem respaldados por terrores sobrenaturais. De todas as formas de socialismo, a mais habilmente elaborada, e a que mais se antecipou às objeções, é comumente conhecida sob o nome de Fourierismo. Esse sistema não contempla a abolição da propriedade privada e nem mesmo a da herança; pelo contrário, leva em conta, declaradamente, como um elemento na distribuição da produção, tanto o capital como o trabalho. Ele propõe que as operações do trabalho sejam executadas por associações de aproximadamente 2 mil membros, associando seu trabalho em um distrito de aproximadamente uma légua quadrada de extensão, sob o comando de chefes por eles escolhidos. Na distribuição, um determinado mínimo é primeiro dado para a subsistência de cada membro da comunidade, capaz de trabalhar ou não. O resto da produção é repartido em porções a serem determinadas de antemão, entre os três elementos: trabalho, capital e talento. O capital da comunidade pode ser possuído em partes desiguais por membros diferentes, os quais nesse caso receberiam dividendos proporcionais, como em qualquer outra sociedade por ações. O direito de cada membro à parte da produção atribuída ao talento é avaliado com base no posto ou posição que o indivíduo ocupa nos vários grupos de trabalhadores aos quais ele ou ela pertencem — sendo que esses postos em todos os casos são conferidos por escolha dos companheiros dele ou dela. A remuneração, depois de recebida, não seria necessariamente gasta ou desfrutada em comum; haveria ménages separadas para todos os que preferissem, não se contemplando nenhuma outra vida em comum senão o fato de todos os membros da associação residirem no mesmo bloco de construções — isso, para economizar mão-de-obra e despesas, não somente em construções, mas também em todos os setores da economia doméstica, e também para que, sendo todas as operações de compra e venda da comunidade executadas por um único agente, se pudesse reduzir ao mínimo possível a enorme porção do produto do trabalho atualmente consumida pelos lucros de simples distribuidores. Esse sistema, contrariamente ao comunismo, não elimina — ao menos em teoria — nenhuma das motivações para o trabalho existentes no atual estado da sociedade. Pelo contrário, se as coisas funcionassem segundo as intenções dos inventores do sistema, até reforçaria tais estímulos, já que cada um teria muito mais certeza de colher individualmente os frutos de sua maior habilidade ou energia, física ou mental, do que podem sentir, na atual estrutura social, outros que não sejam aqueles que ocupam as posições mais vantajosas, ou os quais são mais favorecidos pelas vicissitudes da sorte. No entanto, os fourieristas têm ainda outro recurso. Acreditam haver resolvido o grande e fundamental problema de tornar o trabalho atrativo. Que isso não é impraticável, afirmam-no com argumentos fortíssimos, particularmente com um que tem em comum com os seguidores de Owen, ou seja, que dificilmente algum trabalho, por mais duro que seja, executado por seres humanos para ganhar a subsistência, sobrepuja em intensidade aquele que outros seres humanos, cuja subsistência já está assegurada, comprovadamente aceitam por prazer, com prontidão e até com sofreguidão. Essa certeza é um fato altamente significativo, um fato do qual o estudioso de filosofia social pode haurir ensinamentos importantes. Ocorre que o argumento baseado nesse fato facilmente pode ser levado ao exagero. Se há certas ocupações altamente incômodas e fatigantes que são livremente exercidas por muitas pessoas como divertimento, quem não vê que são divertimentos exatamente porque são abraçadas livremente, podendo ser interrompidas à vontade? Muitas vezes o que distingue uma coisa penosa de uma coisa que dá prazer é unicamente a liberdade que não se tem ou que se tem de fazê-la. Muitas pessoas permanecem na mesma cidade ou rua, ou casa, de janeiro até dezembro, sem desejarem ou pensarem em sair dali e, no entanto, se forem confinadas a esse mesmo lugar a mando de uma autoridade, achariam absolutamente insuportável essa prisão. Segundo os fourieristas dificilmente existe algum tipo de trabalho útil que seja natural e necessariamente desagradável, a menos que seja considerado desonroso ou desmesurado em grau, ou seja, destituído do estímulo da correspondência e da emulação. Afirmam não haver necessidade de ninguém abraçar trabalho excessivo, em uma sociedade em que não houvesse nenhuma classe ociosa e nenhum desperdício de trabalho, como na sociedade atual, em que se desperdiça tanto trabalho em coisas inúteis, e em uma sociedade em que se tirasse pleno proveito da força da cooperação, tanto para aumentar a eficiência da produção quanto para economizar o consumo. No pensar deles, os outros requisitos para tornar o trabalho atrativo se encontrariam na execução de todo o trabalho por grupos sociais, em qualquer número ao qual o mesmo indivíduo pertencesse simultaneamente, à livre escolha dele ou dela, sendo seu posto em cada grupo determinado pelo grau de serviço para o qual o sufrágio de seus camaradas o (a) considerasse capaz. Da diversidade de gostos e talentos conclui-se que cada membro da comunidade estaria ligado a vários grupos, que atuariam em vários tipos de ocupações, algumas corporais e outras mentais, e seriam capazes de ocupar uma posição elevada em algum grupo ou em vários; assim sendo, teríamos como resultado prático uma igualdade real, ou algo que se aproximaria disso mais do que à primeira vista se poderia supor; esse resultado não se obteria reprimindo os vários dotes naturais existentes em cada indivíduo, mas, pelo contrário, desenvolvendo-os o máximo possível. Mesmo um resumo tão breve deve ter evidenciado que esse sistema não faz violência a nenhuma das leis gerais que influenciam a ação humana, mesmo no atual estado imperfeito de cultura moral e intelectual; seria, portanto, extremamente precipitado afirmar que esse sistema não possa alcançar sucesso, ou que seja incapaz de atender a uma grande parte das esperanças nele depositadas pelos seus partidários. Com respeito a esse sistema, bem como a todas as outras variantes do socialismo, o que se deve desejar — e a isso têm justo direito — é que tenham oportunidade de tentar. Todos eles podem ser tentados na prática, em escala moderada, e as tentativas não acarretam nenhum risco pessoal ou pecuniário, a não ser para aqueles que fizerem a tentativa. Caberá à experiência determinar até onde e quando algum ou vários dos sistemas de propriedade comunitária terão aptidão para substituir a “organização do trabalho” baseada na propriedade privada da terra e do capital. Podemos, nesse meio tempo, sem tentar limitar as capacidades últimas da natureza humana, afirmar que o economista político, ainda durante muito tempo, se preocupará sobretudo com as condições de existência e progresso de uma sociedade futura sobre a propriedade privada e a concorrência individual, e que o objetivo principal a ser colimado, no atual estágio dos aperfeiçoamentos humanos, não é a subversão do sistema de propriedade individual, mas o aperfeiçoamento dele, bem como a participação plena de cada membro da comunidade nos benefícios decorrentes dessa instituição. CAPÍTULO II Continuação do Mesmo Assunto § 1. Cabe-nos agora considerar o que está incluído no conceito de propriedade privada, e que considerações devem delimitar a aplicação desse princípio. A instituição da propriedade, se limitada a seus elementos essenciais, consiste no reconhecimento, em cada pessoa, de um direito a dispor com exclusividade daquilo que ele ou ela produziu com seu próprio trabalho, ou então recebeu mediante doação ou acordo honesto, sem emprego de força ou fraude, daqueles que o produziram. O fundamento de tudo é o direito dos produtores àquilo que eles mesmos produziram. Pode-se, portanto, objetar à instituição, como hoje existe, que ela reconhece em indivíduos direitos de propriedades sobre coisas que não produziram. Por exemplo (alegar-se-á), os operários de uma manufatura criam, com seu trabalho e sua habilidade, o produto total; no entanto, em vez de esse produto pertencer a eles, a lei lhes dá apenas seu salário estipulado, e transfere o produto propriamente dito a alguém que apenas forneceu os fundos, sem talvez contribuir em nada para o trabalho propriamente dito, nem mesmo na forma de supervisão. A resposta a isso é que o trabalho de manufaturar é apenas uma das condições que têm que associar-se para produzir a mercadoria. O trabalho não pode ser executado sem matérias-primas e sem máquinas, nem sem um estoque de gêneros de primeira necessidade, fornecido adiantadamente para manter os trabalhadores durante a produção. Ora, todas essas coisas são os frutos de trabalho feito anteriormente. Se os proprietários desses frutos fossem os trabalhadores, não teriam que dividir o produto do seu trabalho com ninguém, ao passo que, não sendo eles proprietários dos referidos frutos, se deve dar um equivalente àqueles que são os donos desses frutos — compensando, portanto, a estes, tanto pelo trabalho anterior quanto pela abstenção deles, abstenção em virtude da qual o produto do trabalho anterior, em vez de ser por eles gasto em autossatisfação, foi reservado para o uso da produção. É possível que o capital não tenha sido criado — e na maioria dos casos não o foi — pelo trabalho e a abstinência do proprietário atual, mas tenha sido criado pelo trabalho e abstenção de alguma pessoa anterior, que, na realidade, sem dúvida, pode ter perdido injustamente a posse dele, mas que, na presente época do mundo, com muito maior probabilidade transferiu seus direitos ao capitalista atual, por doação ou mediante contrato voluntário; a abstenção, no mínimo, deve ter sido prolongada por cada proprietário sucessivo até chegarmos aos dias de hoje. Se alguém alegar — como se pode efetivamente afirmar com verdade — que aqueles que herdaram as poupanças de outros desfrutam de uma vantagem que possivelmente de maneira alguma mereceram, em relação às pessoas trabalhadoras cujos predecessores não lhes deixaram nada, direi o seguinte: não somente admito, mas até defendo vigorosamente, que essa vantagem imerecida deve ser limitada, na medida em que se conciliar com a justiça, àqueles que acharam conveniente dispor de suas poupanças dando-as a seus descendentes. Todavia, se é verdade que os trabalhadores estão em posição de desvantagem, se comparados àqueles cujos predecessores pouparam, também é verdade que os trabalhadores estão em situação muito melhor do que se aqueles predecessores não tivessem poupado. Participam da vantagem, embora não em medida igual à dos herdeiros. As condições de cooperação entre o trabalho presente e os frutos do trabalho e da poupança do passado são matéria de acerto entre as duas partes. Um é necessário ao outro. Os capitalistas nada podem fazer sem trabalhadores, nem os trabalhadores sem capital. Se os trabalhadores competem por emprego, os capitalistas, por sua parte, competem por mão-de-obra, até a extensão plena do capital circulante do país. Muitas vezes fala-se da concorrência como se ela fosse necessariamente a causa da miséria e da degradação da classe obreira, como se os salários altos não fossem um produto da concorrência, tanto quanto os salários baixos. A remuneração da mão-de-obra é o resultado da lei da concorrência nos Estados Unidos, tanto quanto o é na Irlanda, e muito mais do que na Inglaterra. O direito de propriedade inclui, portanto, a liberdade de adquirir por contrato. O direito de cada um àquilo que produziu implica um direito àquilo que foi produzido por outros se isso for obtido por consentimento livre destes; com efeito, os produtores devem tê-lo cedido gratuitamente ou então devem tê-lo trocado por algo que consideraram equivalente; impedi-los de fazê-lo seria infringir seu direito de propriedade sobre o produto de seu próprio trabalho. § 2. Antes de passarmos a analisar o que o princípio da propriedade individual não inclui, precisamos especificar mais uma coisa que ele inclui; isto é, que, decorrido um determinado período, a prescrição deve gerar um direito de propriedade. Sem dúvida, segundo o conceito fundamental de propriedade, não se deve tratar como propriedade nada que tenha sido adquirido mediante força ou fraude, ou de que alguém se tenha apropriado ignorando a existência de um direito anterior, pertencente a alguma outra pessoa; entretanto, é necessário, para a segurança dos proprietários legítimos, que não sejam molestados com acusações de aquisição ilegítima quando, pelo decurso do tempo, as testemunhas devem ter falecido ou então ter sido perdidas de vista, e não for mais possível esclarecer a natureza real da transação. A posse que não foi legalmente contestada dentro de um razoável número de anos deve ser — como o é pelas leis de todas as nações — um título de propriedade plena. Mesmo nos casos em que a aquisição tenha sido ilegítima, a desapropriação, depois de passar uma geração, dos que são provavelmente donos de boa-fé, ressuscitando assim um direito que por muito tempo não foi reclamado, geralmente constituiria uma injustiça maior — e quase sempre um dano privado e público maior — do que deixar de reparar a injustiça original. Pode parecer crueldade admitir que um direito, justo em sua origem, deva ser invalidado pelo simples lapso de tempo, mas existe um momento a partir do qual (mesmo considerando o caso individual e sem atender ao efeito geral para a segurança dos proprietários) a balança da crueldade pende para o outro lado. Em se tratando das injustiças dos homens, bem como no caso das convulsões e dos acidentes da Natureza, quanto mais se tardar em repará-las, tanto maiores se tornam os obstáculos para repará-las, decorrentes dos novos obstáculos que terão que ser vencidos. Em nenhuma transação humana, nem mesmo nas mais simples e nas mais claras, segue que é conveniente fazer uma coisa agora porque era conveniente fazê-la há sessenta anos. Parece supérfluo observar que essas razões para não interferir em atos de injustiça de velha data não podem aplicar-se a sistemas ou instituições injustas, pois uma lei ou um costume mau não é um ato mau, localizado no passado remoto, mas na repetição perpétua de atos maus, enquanto durar a lei ou costume em questão. Sendo, portanto, esses os elementos essenciais da propriedade privada, cabe agora considerar até que ponto as formas que a instituição revestiu — ou continua a revestir — em diferentes estados de sociedade são consequências necessárias de seu princípio, ou seja, até que ponto são recomendadas pelas razões sobre as quais se estriba o princípio como tal. § 3. A propriedade não implica outra coisa além do seguinte: o direito de cada um a suas próprias faculdades, àquilo que com elas podem produzir, bem como a tudo aquilo que puder obter através delas em um comércio honesto; além disso, seu direito de dar isso a qualquer outra pessoa, se o quiser, e o direito dessa outra pessoa de recebê-lo e desfrutar dele. Disso segue, portanto, que, embora o direito de doação testamentária, ou seja, da doação após a morte, faça parte do conceito de propriedade privada, o direito à herança, como distinto da doação testamentária, não faz parte do conceito de propriedade. Que a propriedade de pessoas que não efetuaram transmissão dela durante sua vida passe, primeiro a seus filhos, e na falta deles, aos parentes mais próximos, pode ou não ser um dispositivo adequado, mas de qualquer forma não é uma consequência do próprio princípio da propriedade privada. Embora para dirimir tais questões se deva levar em conta muitas considerações além daquelas de Economia Política, não foge ao plano desta obra sugerir e submeter ao julgamento dos pensadores o ponto de vista que, no tocante a essas questões, considero mais aceitável. Nessa matéria, não se deve pressupor nenhuma presunção em favor de conceitos vigentes, simplesmente pelo fato de esses conceitos serem antigos. Na Antiguidade, a propriedade de uma pessoa falecida passava a seus filhos e aos parentes mais próximos por um dispositivo tão natural e tão óbvio que nem sequer se poderia pensar na possibilidade de outro que pudesse concorrer com ele. Em primeiro lugar, os herdeiros costumavam estar presentes no lugar: estavam na posse da coisa, e mesmo que não tivessem nenhum outro título, tinham o da primeira ocupação, tão importante em um estado primitivo de sociedade. Em segundo lugar, já eram, de uma forma, condôminos da propriedade do falecido enquanto este vivia. Se a propriedade consistia em uma área de terra, esta geralmente havia sido conferida pelo Estado a uma família mais do que a um indivíduo; se a propriedade consistisse em gado ou em bens móveis, provavelmente a propriedade havia sido adquirida — e certamente era protegida e defendida — pelos esforços conjuntos de todos os membros da família que tivessem idade para trabalhar ou lutar. Dificilmente cabia nas ideias da época o conceito de propriedade individual exclusiva na acepção moderna; e quando falecia o primeiro magistrado da associação, realmente não deixava nada sem destinação a não ser sua própria parte na divisão, parte esta que cabia ao membro da família que lhe sucedia como autoridade. Dispor da propriedade de outra forma teria significado destruir uma pequena comunidade, cujos membros estavam unidos entre si por ideias, interesses e hábitos, e abandoná-la ao deus-dará. Essas considerações, que eram mais objeto de sentimento do que de raciocínio, exerceram uma influência tão grande na mente da humanidade que criaram a ideia de um direito inerente dos filhos às posses de seu ascendente — direito que nem o próprio ascendente teria poder de anular. O legado testamentário, em um estado primitivo da sociedade, raramente era reconhecido — demonstração clara, se outra não houvesse, de que a propriedade era concebida de uma forma totalmente diferente da concepção que dela temos hoje. (Ver, para ilustrar admiravelmente este e muitos pontos afins, a obra profunda do Sr. MAINE. Ancient Law and its Relations to Modern Ideas). Entretanto, faz muito tempo que pereceu a família feudal, última forma histórica da vida patriarcal; atualmente a unidade básica da sociedade não é a família ou o clã, composto de todos os presumidos descendentes de um ascendente comum, mas sim o indivíduo ou, no máximo, um casal de indivíduos, com seus filhos não emancipados. Atualmente a propriedade é inerente a indivíduos, e não a famílias: os filhos, quando adultos, não sucedem às posses ou às fortunas do pai ou da mãe; se participam dos recursos pecuniários dos pais, é por vontade do pai ou da mãe; não por terem voz na propriedade e no governo dos bens, mas geralmente por exclusiva vontade de uma parte; e, ao menos em nosso país (a não ser que a isso obstem o morgadio ou a dotação), os pais têm o poder de deserdar até seus filhos e de deixar sua fortuna a estranhos. Os parentes mais distantes do falecido geralmente são quase tão alheios à família e aos seus interesses como se não tivessem nenhuma ligação com ela. O único direito que se supõe terem em relação a seus parentes mais ricos é o de uma preferência, em igualdade de circunstâncias, aos bons ofícios e a alguma ajuda em caso de necessidade efetiva. Uma mudança tão grande na estrutura da sociedade deve acarretar uma diferença considerável nos fundamentos sobre os quais deve basear-se a transmissão da propriedade por herança. As razões comumente aduzidas por autores modernos para a passagem da propriedade de uma pessoa, que morreu sem fazer testamento, a seus filhos ou aos parentes mais próximos são: primeiro, a suposição de que essa forma de a lei dispor assim da propriedade é, em confronto com qualquer outra maneira de fazê-lo, a que tem mais probabilidade de fazer aquilo que também o proprietário teria feito se algo tivesse feito; e segundo, a provação que representaria, para aqueles que viveram com seus pais e partilharam de sua opulência, o serem excluídos de desfrutar da riqueza e serem entregues à pobreza e às privações. Esses dois argumentos têm alguma força. Sem dúvida, a lei deve fazer pelos filhos ou dependentes de alguém, que faleceu sem deixar testamento, tudo aquilo que os pais ou o tutor tinham o dever de ter feito, na medida em que isso pode ser conhecido por alguma outra pessoa afora os próprios pais ou o tutor. Todavia, uma vez que a lei não pode decidir com base nas reivindicações individuais, mas deve proceder com base em normas gerais, temos que considerar quais devem ser essas normas. Em primeiro lugar, podemos notar que, em relação a parentes em linha colateral, ninguém tem o dever de deixar-lhes provisões pecuniárias, a não ser com base em motivos pessoais ao indivíduo específico. Hoje ninguém o espera, a não ser em caso de não haver nenhum herdeiro direto; e mesmo então não se esperaria, se a expectativa não fosse criada pelos dispositivos da lei em caso de falta de testamento válido. Não vejo, portanto, razão alguma por que deva existir herança em linha colateral. Há muito tempo o Sr. Bentham propôs — e outras grandes autoridades concordaram com essa opinião — que, se não houver herdeiros, nem na linha descendente nem na ascendente, a propriedade, em caso de falta de testamento válido, deve caber ao Estado. Com respeito aos graus mais longínquos de parentesco colateral, não parece haver muito a questionar. Poucos sustentarão haver alguma razão válida para as poupanças de algum avarento sem filhos (como acontece a cada momento) irem enriquecer um parente distante que nunca o viu, que talvez só chegou a saber desse parentesco no momento em que isso acaba proporcionando-lhe algum ganho, e que não tinha em relação ao falecido qualquer espécie de direito que ultrapassasse o de uma pessoa totalmente estranha ao falecido. Entretanto, a razão do caso aplica-se da mesma forma a todos os colaterais, mesmo no grau mais próximo. Os parentes em linha colateral não têm nenhum direito real, além daqueles que podem ser igualmente válidos no caso de não parentes; e tanto em um caso como no outro, o modo adequado de atender a esse direito é o legado testamentário. Os direitos dos filhos são de natureza diferente: são reais e inalienáveis. Mas mesmo quanto a estes, atrevo-me a pensar que a medida comumente tomada é errônea: o que é devido aos filhos é, sob alguns aspectos, subestimado, e em outros, ao que me parece, exagerado. Uma das obrigações mais vinculantes, a de não colocar filhos no mundo a menos que se possa mantê-los confortavelmente durante a infância e educá-los de forma que tenham probabilidade de se sustentarem quando adultos, é desrespeitada na prática e pouco levada em conta na teoria, de forma perniciosa para a comunidade humana. Por outro lado, quando o pai ou a mãe possui propriedade, os direitos dos filhos sobre ela me parecem ser objeto de um erro oposto. Não posso admitir que um pai ou mãe devam a seus filhos, simplesmente por serem seus filhos, e para o enriquece-los sem a necessidade de trabalharem, tudo aquilo que possam ter herdado, ou, pior ainda, tudo aquilo que possam ter adquirido em vida. Não poderia admiti-lo nem mesmo se tal herança com certeza revertesse em bem dos próprios filhos. Ora, isso é extremamente incerto. Depende do caráter individual. Sem supor casos extremos, pode-se afirmar que na maioria dos casos se atenderia melhor não somente ao bem da sociedade, mas também ao dos respectivos indivíduos, deixando em testamento aos filhos uma provisão razoável, em vez de abundante. Essa tese, que é um lugar-comum dos moralistas, tanto antigos quanto modernos, é considerada verdadeira por muitos pais inteligentes, e de acordo com isso agiriam com muito maior frequência se fizessem o que é realmente vantajoso para os filhos, e não tanto o que outros consideram como tal. Os deveres dos pais em relação a seus filhos são aqueles que estão indissoluvelmente ligados ao fato de terem dado existência a um ser humano. O pai e a mãe têm, em face da sociedade, a obrigação de procurar fazer do filho um membro bom e valioso dela, e em face dos filhos têm a obrigação de prover, na medida em que depender deles, educação, meios e recursos que os capacitem a começar a vida com chance honesta de conseguir com esforço próprio uma vida bem-sucedida. A isso todo filho tem direito; não posso admitir que, como filho, tenha direito a mais. Existe um caso em que essas obrigações aparecem em sua verdadeira luz, sem circunstâncias extrínsecas que as desfigurem ou as confundam: é o caso de um filho ilegítimo. Costuma-se pensar que a tal filho o pai e a mãe devem aquele montante de provisões para seu bem-estar que o capacite a fazer de sua vida, no global, uma vida desejável. Sustento que a nenhum filho, simplesmente por ser filho, um pai, ou mãe, deva algo mais do que se admite ser devido a um filho ilegítimo; e que, se um pai ou mãe o fez, nenhum filho tem nenhuma reclamação a fazer — a não ser com base em expectativas anteriormente nele despertadas — se o resto da fortuna do pai ou da mãe for doada para fins de utilidade pública ou para beneficiar indivíduos aos quais seja mais conveniente a critério do pai ou da mãe fazer a doação. Para se dar aos filhos aquelas chances honestas de uma existência desejável à qual têm direito, geralmente é necessário que não sejam educados desde a infância em hábitos de luxo que estes não terão possibilidade de conceder-se mais tarde. Também este é um dever muitas vezes abertamente negligenciado por pessoas que possuem rendas limitadas e que têm pouca propriedade para deixar aos filhos. Quando os filhos de pais ricos viveram — como é natural que o façam — em hábitos correspondentes ao padrão de gastos que os pais se concedem, geralmente os pais têm o dever de deixar-lhes uma provisão maior do que aquela que bastaria para filhos criados de outra forma. Digo geralmente, pois mesmo aqui há um outro lado a se levar em conta. Pode-se se considerar perfeitamente aceitável a afirmação de que, para uma natureza forte, que precisa vencer na vida enfrentando situações de aperto, o ter conhecido cedo alguns dos sentimentos e experiências da riqueza representa uma vantagem, tanto na formação do caráter como na felicidade da vida. Entretanto, admitir que têm justo motivo de queixa os filhos que foram criados de modo a precisar de luxos que mais tarde provavelmente não conseguirão, e que, portanto, o direito deles exige que os pais lhes deixem uma provisão de certo modo proporcional ao padrão de vida em que foram criados, também este é um direito particularmente passível de ser levado até um ponto que a razão não mais justifica. É exatamente esse o caso dos filhos mais jovens da nobreza e da pequena nobreza dos proprietários de terras, cuja fortuna passa inteiramente para o filho mais velho. Os demais filhos, que geralmente são muitos, são criados nos mesmos hábitos de luxo que o futuro herdeiro, e geralmente recebem, como porção que cabe a um irmão mais jovem, o que dita a razão no caso, isto é, o suficiente para o auto sustento, dentro do padrão de vida no qual foram criados, mas não o suficiente para manterem uma esposa ou filhos. Ninguém pode realmente sentir-se injustiçado, se, quanto aos recursos para casar e sustentar uma família, tem que depender de seu próprio trabalho. Consequentemente, entendo que a única coisa que os pais devem a seus filhos, e, portanto, tudo o que o Estado deve aos filhos daqueles que morrem sem ter feito testamento válido, é uma provisão para os filhos mais jovens, tal como o que se admite ser razoável no caso de filhos ilegítimos, sempre que, em suma, as únicas coisas consideradas são a justiça do caso e os interesses reais dos indivíduos e da sociedade. O que sobrar — se houver sobra —, entendo que possa ser doado com justiça em prol das finalidades gerais da comunidade. Todavia, não quero que se pense que estou recomendando aos pais nunca fazerem por seus filhos mais do que aquilo a que têm direito moral, simplesmente como filhos. Em alguns casos é imperativo fazer mais do que isso, em muitos casos é louvável fazê-lo e em todos é permissível. Para isso, porém, o testamento oferece suficiente liberdade. É devido aos pais — e não aos filhos — o direito de demonstrar sinais de afeição, de exigir serviços e sacrifícios, e de repartir sua riqueza segundo as próprias preferências, a seu próprio critério de conveniência. § 4. Outra questão de grande importância é se deve haver limitações ao direito de fazer doações testamentárias. Ao contrário da herança ab intestato, o direito de doar em forma de testamento é um dos atributos da propriedade: a propriedade de uma coisa não pode ser considerada plena sem o direito de cedê-la, na morte ou em vida, à vontade do proprietário; e todas as razões que recomendam a existência da propriedade, recomendam também, na mesma proporção, a extensão da mesma. Ocorre, porém, que a propriedade é apenas um meio em função de um fim, não sendo, portanto, um fim em si mesma. Analogamente a todos os outros direitos de propriedade, e até mesmo em grau superior à maioria deles, o poder de fazer legados testamentários pode ser exercido em conflito com os interesses permanentes da humanidade. Isso acontece quando, não contente com legar uma propriedade a A, o testador prescreve que, falecendo A, a propriedade parasse para o filho mais velho de A, e deste para o filho daquele, e assim por diante, para sempre. Sem dúvida, ocasionalmente a pessoa se empenhou com mais afinco em adquirir uma fortuna, levada pela esperança de fundar uma família para sempre; contudo, os danos advindos à sociedade, em decorrência de tais fundos perpétuos, sobrepuja o valor desse incentivo para a iniciativa pessoal; por outro lado, mesmo sem isso são suficientemente fortes os incentivos no caso daqueles que têm uma oportunidade de acumular grandes fortunas. Comete-se um abuso análogo do poder de fazer testamento, quando uma pessoa que faz o ato meritório de deixar propriedade para finalidades públicas, tenta prescrever os detalhes de sua aplicação para sempre — quando (por exemplo), ao deixar um fundo para uma instituição de ensino, dita para sempre que doutrinas deverão ser nela ensinadas. Sendo impossível alguém saber que doutrinas será conveniente ensinar vários séculos depois de sua morte, a lei não deve dar cobertura a tais disposições testamentárias, a menos que permaneçam sujeitas a uma revisão constante (depois de passado algum tempo) por parte de uma autoridade competente. Há limitações óbvias. Mas até o exercício mais simples do direito de fazer testamento — o de determinar a pessoa à qual passará a propriedade imediatamente depois da morte do testador — sempre tem sido contado entre os privilégios que poderiam ser limitados ou alterados, conforme critérios de conveniência. Até agora as limitações têm ocorrido quase que exclusivamente em favor dos filhos. Na Inglaterra, o direito é, por princípio, ilimitado — praticamente o único impedimento é o que advém de uma fundação por parte de um proprietário anterior, caso em que o detentor não pode, nesse meio tempo, doar em testamento suas posses, mas simplesmente por não haver nada a doar em testamento, já que o detentor tem simplesmente um interesse enquanto viver. Pelo Direito romano, que constitui a base principal da legislação civil do continente da Europa, simplesmente não era permitido, originalmente, doar em testamento, e mesmo depois da introdução dessa praxe, era obrigatório reservar uma legitima portio para cada filho, sendo também essa a lei em algumas nações do Continente europeu. Pela lei francesa vigente a partir da Revolução, o pai, ou mãe, só pode doar em testamento uma porção igual ao quinhão de cada filho, sendo que a cada filho cabe porção igual. Essa vinculação — como se pode denominar — do grosso da propriedade de cada um em favor dos filhos coletivamente, parece-me tão pouco defensável, em princípio, como uma vinculação a favor de um único filho, ainda que não se choque tão diretamente contra o conceito de justiça. Não posso admitir que os pais sejam obrigados a deixar a seus filhos nem mesmo aquela provisão à qual, como filhos, sustentei terem direito moral. Os filhos podem perder esse direito por indignidade geral ou por não merecerem, isto é, por má conduta especial em relação aos pais; ou podem ter outros recursos ou perspectivas; ou então o que os pais fizerem por eles, em termos de educação e adiantamentos durante a vida, pode satisfazer plenamente ao direito moral deles; finalmente, pode haver outros que tenham direitos superiores aos dos filhos. A restrição extrema do poder de doar em testamento, estabelecida pelo Direito francês, foi adotada como expediente democrático, para acabar com o costume da primogenitura e neutralizar a tendência à concentração, em grande acervo, de propriedades herdadas. Concordo em pensar que tais objetivos são eminentemente desejáveis, mas creio que os meios empregados para os atingis não são os mais adequados. Se eu devesse apresentar um projeto de código de leis segundo aquilo que me parece melhor, sem levar em conta as opiniões e os sentimentos vigentes, preferiria restringir não aquilo que cada um pode doar em testamento, mas aquilo que cada um deveria poder adquirir por testamento ou por herança. Cada pessoa deve ter o poder de dispor de toda a sua propriedade, mas não de esbanjá-la para enriquecer algum indivíduo específico, além de um determinado máximo, fixado em montante suficientemente grande a fim de garantir os meios para uma independência confortável. Sem dúvida as desigualdades de propriedades que provêm da desigualdade de trabalho, da frugalidade com que se vive, da perseverança, dos talentos e, até certo ponto, mesmo das oportunidades são inseparáveis do princípio de propriedade privada, e, se aceitarmos esse princípio, temos que aceitar suas consequências; todavia, não vejo nenhuma objeção em fixar um limite àquilo que cada um pode adquirir por mera doação de outros, sem em nada exercer suas faculdades, e em exigir que, se desejar aumentar sua fortuna, tenha que trabalhar para isso. (No caso de capital empregado pelo próprio dono, para efetuar qualquer uma das operações de trabalho, há fortes razões para dar ao dono o direito de legar em testamento a uma única pessoa todos os fundos efetivamente investidos numa só empresa. É bom que ele possa deixar a empresa sob o controle de qualquer um dos seus herdeiros que considerar mais indicado para conduzi-la com probidade e eficiência; com isto se evitaria a necessidade (muito frequente e acarretando muitos inconvenientes, sob a lei francesa) de fechamento de estabelecimento industrial ou comercial com a morte de seu chefe. Analogamente, deve-se permitir a um proprietário que deixa a um de seus sucessores o ônus moral de manter uma mansão ancestral, um parque ou área de lazer, doar, juntamente com esses imóveis, tanto de outros tipos de propriedade quanto for necessário para a digna manutenção dos mesmos). Não acredito que o grau de limitação que isso imporia ao direito de doar em testamento seria sentido como uma restrição onerosa por qualquer testador que avaliasse uma grande fortuna pelo seu valor verdadeiro, isto é, o dos prazeres e vantagens que com ela se pode comprar; ora, mesmo fazendo-se a avaliação mais extravagante desse valor, deve ser manifesto a cada um que a diferença, para a felicidade do possuidor, entre uma independência razoável e uma fortuna cinco vezes maior, é insignificante, se comparada com o desfrute que se poderia obter e com os benefícios permanentes que se poderiam espalhar, dispondo dos 4/5 de outra forma. Sem dúvida, enquanto prevalecer na prática a opinião de que a melhor coisa que se possa fazer por quem é alvo de afeição é acumular sobre eles, até a saciedade, aquelas coisas intrinsecamente destituídas de valor com as quais geralmente se gastam grandes fortunas, pouca utilidade poderia haver em sancionar tal lei, mesmo que fosse possível sancioná-la, pois, embora houvesse a propensão, geralmente haveria também o poder de burlar a lei. A lei não teria valor se o sentimento popular não se alinhasse firmemente com ela — o que, aliás (a julgar pela adesão pertinaz da opinião pública francesa à lei da divisão compulsória), muito provavelmente aconteceria em algumas sociedades e Governos, por mais que se deva dizer o contrário da Inglaterra e na época atual. Caso se conseguisse implantar efetivamente essa lei na prática, grande seria o benefício. A riqueza, que não mais poderia ser aplicada para superenriquecer uns poucos, seria destinada a objetivos úteis para o público ou, se doada a indivíduos, seria distribuída entre um número maior de pessoas. Ao mesmo tempo que essas fortunas enormes, de que ninguém precisa para nenhuma finalidade pessoal a não ser que seja para ostentação ou fins de poder impróprios, se tornariam muito menos numerosas, haveria uma grande multiplicação de pessoas em situação confortável, com as vantagens de lazer, bem como todos os prazeres reais que a riqueza pode proporcionar, excetuados os da vaidade — uma categoria de pessoas que prestariam, de uma forma muito mais benéfica do que atualmente, os serviços que uma nação que possui classes abastadas tem o direito de esperar delas, seja pelas iniciativas diretas, seja pelo tom que dão aos sentimentos e gostos do público. Além disso, uma grande parte da acumulação do trabalho bem-sucedido seria provavelmente destinada aos usos públicos, seja pela doação testamentária diretamente ao Estado, seja pelas dotações para instituições — como já se faz em escala muito grande nos Estados Unidos, onde os conceitos e a prática em questão de herança parecem ser extraordinariamente plenos de bom senso e benéficos. ("Testamentos e doações generosas para finalidades públicas, de tipo caritativo ou educacional, constituem uma característica saliente na história moderna dos Estados Unidos, sobretudo na Nova Inglaterra. Não somente é comum capitalistas ricos deixarem em testamento uma parte de sua fortuna para a dotação de instituições, sendo que também indivíduos, enquanto vivem, fazem doações magníficas em dinheiro para os mesmos fins. Não existe aqui lei compulsória para a repartição da propriedade entre os filhos, como na França, e por outro lado não existe costume de morgadio ou primogenitura, como na Inglaterra, de sorte que os ricos se sentem à vontade para repartir sua riqueza com seus parentes e com o público, sendo impossível estabelecer uma família — e tendo os pais, com frequência, a felicidade de ver que todos os seus filhos estão bem providos e se tornam independentes muito antes de sua morte. Vi uma lista de testamentos e doações feitas durante os últimos trinta anos em benefício de instituições religiosas, caritativas e literárias, somente no Estado de Massachusetts, importando num total de nada menos de 6 milhões de dólares, ou seja, mais de 1 milhão de libras esterlinas." LYELL. Travels in America. v. I, p. 263. Na Inglaterra [1852], todo aquele que deixar alguma coisa — que não sejam legados insignificantes — para objetivos de utilidade pública ou de beneficência, quando ainda viver com algum parente próximo, incorre no risco de ser declarado demente por um júri após a sua morte, ou, no mínimo, de ver sua propriedade desperdiçada em um processo do Tribunal do Lorde Chanceler, para anular o testamento). § 5. O próximo ponto a considerar é se as razões em que se estriba a instituição da propriedade são aplicáveis a todas as coisas nas quais se reconhece atualmente um direito à propriedade exclusiva, e, se não, em que outras bases esse reconhecimento é defensável. Sendo o princípio essencial da propriedade assegurar a todas as pessoas o que produziram com seu trabalho e acumularam por se absterem de consumir, esse princípio não pode aplicar-se àquilo que não é produto do trabalho, os materiais brutos da terra. Se a terra tirasse sua força produtiva inteiramente da Natureza, e de maneira alguma do trabalho, ou se houvesse meio de separar o que provém da Natureza e o que provém do trabalho, não somente seria supérfluo, senão que seria o cúmulo de a injustiça permitir que o dom da Natureza fosse encampado por indivíduos. Sem dúvida, o uso da terra na agricultura, por ora, tem que ser necessariamente exclusivo; deve-se permitir à mesma pessoa que arou e semeou, que colha os frutos; entretanto, a terra poderia ser ocupada somente durante uma estação, como entre os antigos germanos, ou poderia ser redividida periodicamente à medida que aumentasse a população; ou, então, o Estado poderia ser o dono universal, e os cultivadores poderiam ser rendeiros sob a administração dele — rendeiros com título permanente ou a título precário. Conquanto, porém, a terra não seja produto do trabalho, a maior parte de suas qualidades de valor o são. O trabalho é necessário somente para utilizar o instrumento, mas, quase de maneira igual, também para prepará-la ou adaptá-la. Muitas vezes requer-se trabalho considerável no início a fim de limpar a terra para o cultivo. Em muitos casos, mesmo quando a terra já está limpa, sua produtividade é inteiramente efeito do trabalho e da técnica. O Bedford Level produzia pouco ou nada até ser artificialmente drenado. Os pântanos da Irlanda pouco podem produzir, afora combustível, enquanto não se fizer o mesmo. Um dos solos mais estéreis do mundo, composto mesmo do material dos baixios de Goodwin Sanda, o Pays de Waes, em Flandres, foi a tal ponto fertilizado pelo trabalho que se tornou um dos mais produtivos da Europa. O cultivo requer também construções e cercas, que são totalmente produtos do trabalho. Os frutos dessa atividade não têm condições de ser colhidos em prazo curto. O trabalho aplicado e o investimento são imediatos, ao passo que o benefício que deles advirá engloba muitos anos, talvez todo o tempo futuro. O detentor da terra não assumirá esse trabalho e essa despesa se os frutos forem colhidos por estranhos, e não por ele. Se ele empreende tais melhorias, deve ter diante de si um período suficiente durante o qual possa tirar proveito delas; ora, ele nunca está tão seguro de ter sempre um período suficiente, como quando seu título de permanência na terra for de natureza perpétua. ("O que dotou o homem de talento e perseverança no trabalho, o que o fez dirigir todos os seus esforços para um fim útil à sua raça foi o sentimento de perpetuidade. As terras que os rios depositaram ao longo de seu curso são sempre as mais férteis, mas são também as que as águas ameaçam com inundações ou estragam com pântanos. Sob a garantia da perpetuidade, os homens empreenderam trabalhos diuturnos e pesados para encontrar uma solução para os brejos, para levantar diques contra as inundações, para distribuir através de canais de irrigação águas fertilizantes pelas mesmas terras que as mesmas águas haviam condenado à esterilidade. Sob igual garantia, o homem, já se contentando com os produtos anuais da terra, identificou entre os vegetais selvagens as plantas, arbustos e árvores perenes que lhe seriam úteis, aperfeiçoando-as com a cultura, mudou — poderíamos quase dizer — a própria natureza delas e multiplicou a sua quantidade. Há frutas que precisaram de séculos de cultivo para chegarem à sua perfeição atual, e outras que foram trazidas das regiões mais longínquas. O homem abriu a terra até uma boa profundidade a fim de renovar o solo e fertilizá-lo misturando seus elementos e pondo-os em contato com o ar; fixou nas encostas das colinas o solo que de outra forma teria deslizado, e cobriu a superfície do país com uma vegetação em toda parte abundante e em toda parte útil para a espécie humana. Entre seus trabalhos há alguns cujos frutos só podem ser colhidos ao cabo de dez ou vinte anos; outros há que se beneficiarão até sua posteridade, passados vários séculos. Todos concorreram para aumentar a força produtiva da Natureza, para propiciar à humanidade uma renda infinitamente mais abundante, uma renda da qual uma parte considerável é consumida por aqueles que não participam da propriedade da terra, mas que não teriam encontrado seu sustento, não houvesse ocorrido aquela apropriação do solo, pela qual pareceria, à primeira vista, terem sido deserdados." SISMONDI. Étude sur l’Economie Politique. Ensaio III. “De la Richesse Territoriale”). § 6. Essas são as razões que justificam, de um ponto de vista econômico, a propriedade da terra. Vê-se que elas só conservam validade na medida em que o proprietário da terra for também quem melhora a terra. Sempre que, em qualquer país, o proprietário, falando de modo geral, deixa de melhorar a terra, a Economia Política nada tem a dizer em defesa da propriedade fundiária, na forma em que é praticada. Nenhuma teoria sólida de propriedade privada jamais aceitou a tese de que o proprietário de terra seja simplesmente um sinecurista estabelecido nela. Na Grã-Bretanha, não é infrequente observar-se que o proprietário de terra aprimora o solo. Mas não se pode afirmar que geralmente assim seja. Na maioria dos casos, dá a outro a liberdade de cultivar [1848], mas em condições tais que impedem a implantação de melhorias por parte de qualquer outra pessoa. Nas regiões meridionais, pelo fato de habitualmente não haver locação de terras, dificilmente se pode implantar melhorias a não ser com o capital do dono da terra; por isso, em comparação com o norte da Inglaterra e com a Baixa Escócia, o sul da Inglaterra está ainda extremamente atrasado em termos de aperfeiçoamentos agrícolas. A verdade é que qualquer melhoria muito geral da terra por parte dos seus donos dificilmente é compatível com uma lei ou costume de primogenitura. Quando a terra vai inteiramente para o herdeiro, costuma chegar às suas mãos sem os recursos pecuniários que lhe possibilitam melhorá-la, pois a propriedade pessoal é absorvida pela parte destinada a filhos menores, e a própria terra também é muitas vezes duramente onerada para o mesmo fim. Por esse motivo, é muito reduzida a percentagem de donos de terra que têm os meios para implantar melhorias dispendiosas, a menos que o façam com dinheiro emprestado, acrescentando novos ônus às hipotecas que na maioria dos casos já pesavam sobre a terra quando as receberam. Acontece que é tão precária a situação do dono de uma propriedade sobre a qual pesam tantas hipotecas; a economia é tão indesejável para alguém cuja fortuna aparente supera em muito seus recursos, e as vicissitudes da renda e do preço — que não fazem outra coisa senão contar a margem de sua receita — são tão temíveis para alguém que pode chamar de seu pouco além dessa margem, que não há como admirar-se de que poucos sejam os donos de terra que se encontrem em condições de fazer sacrifícios imediatos em função de um lucro futuro. E se um dia chegassem a ter essa propensão, só o poderiam fazer os que estudaram seriamente os princípios da agricultura científica, quando os grandes senhores de terra em raros casos chegaram a estudar alguma coisa com seriedade. Poderiam ao menos criar estímulos para os arrendatários fazerem o que eles mesmos não querem ou não podem fazer; ocorre que, mesmo quando concordam em arrendar a terra, existe na Inglaterra a queixa generalizada de que amarram as mãos dos arrendatários com contratos baseados em práticas de uma agricultura obsoleta e superada, enquanto a maioria deles, por recusarem simplesmente o arrendamento, e por não darem ao arrendatário nenhuma garantia de posse além de uma única colheita, conservam a terra em um estado não muito mais favorável para a melhoria do solo do que na época de nossos antepassados, — immetata quibus jugera liberas Fruges et Cererem ferunt, Nec cultura placet longior annua. Assim, pois, a propriedade fundiária na Inglaterra está muito longe de atender inteiramente às condições que justificam economicamente sua existência. Por outro lado, se nem na Inglaterra essas condições estão cumpridas a contento, na Irlanda o desatendimento a essas condições é total. Com exceções individuais (algumas delas, muito honrosas), os donos de propriedades irlandesas nada fazem pela terra senão levar embora a sua produção. O que tem sido dito epigramaticamente na discussão sobre os “ônus peculiares” é literalmente verdadeiro quando aplicado a eles, isto é, que o maior “ônus que pesa sobre a terra” são os donos dela. Nada devolvendo ao solo, consomem toda a sua produção, menos as batatas estritamente necessárias para que os habitantes não morram de fome; e, quando têm algum propósito de melhoria, o passo preparatório normalmente consiste em nem sequer deixar aos habitantes essa mesada insignificante, obrigando-os a mendigar, quando não a morrer de fome. (Devo pedir ao leitor que leve em conta o fato de esse parágrafo ter sido escrito há quinze anos. Tão maravilhosas são as mudanças, tanto morais como econômicas, que ocorrem em nossa época, que é impossível acompanhar o ritmo delas sem reescrever continuamente uma obra como esta). Quando a propriedade fundiária chegou a esse pé, deixa de ser defensável, e chegou o momento de implantar algumas novas medidas. Quando se fala do “direito de propriedade”, importa sempre lembrar que não é qualquer caráter sagrado que cabe no mesmo grau à propriedade fundiária. A terra não foi criada por nenhum homem. Ela é herança original de toda a espécie humana. A apropriação da terra é inteiramente uma questão de conveniência geral. Quando a propriedade fundiária não é conveniente, é injusta. Não é privação para ninguém ser excluído daquilo que foi produzido por outros: esses outros não eram obrigados a produzir para o uso dele, e este nada perde por não partilhar daquilo que, de outra forma, nem teria existido. Mas é dureza nascer para o mundo e constatar que todos os dons da Natureza já foram encampados, não havendo mais lugar para o recém-chegado. Para fazer as pessoas aceitarem isso, uma vez que admitiram em suas mentes a ideia de que a elas, como seres humanos, pertencem os direitos morais, sempre será necessário convencê-las de que a apropriação exclusiva é boa para a humanidade em sua totalidade, inclusive elas. Ora, eis uma coisa da qual não se conseguirá persuadir nenhum ser humano mentalmente são, se a relação entre o proprietário de terra e o cultivador fosse em toda parte a mesma que na Irlanda. Mesmo os mais pertinazes defensores dos direitos atinentes à propriedade privada pensam que a propriedade fundiária difere de outros tipos de propriedade; e onde a massa da comunidade foi deserdada de sua participação nela, e ela se tornou atributo exclusivo de uma pequena minoria, as pessoas têm geralmente tentado conciliá-la, aos menos na teoria, com seu senso de justiça, procurando impor-lhe deveres, erigindo-a em uma espécie de magistratura moral ou legal. Mas se o Estado tem o poder de tratar os donos de terra como funcionários públicos, basta avançar um único passo além para dizer que ele pode despedi-los. O direito dos proprietários à terra está totalmente subordinado à política geral do Estado. O princípio da propriedade não lhes confere direito algum sobre a terra, mas apenas um direito à compensação por qualquer porção própria de interesse que tenham na terra, e da qual a política do Estado possa vir a privá-los. A isso têm um direito inalienável. É direito dos proprietários de terra e dos donos de qualquer propriedade, reconhecidos como tais pelo Estado, não serem privados da propriedade sem receberem o valor pecuniário da mesma, ou então uma renda anual igual àquilo que tiravam dela. Isso é devido com base nos princípios gerais nos quais se estriba a propriedade. Se a terra foi comprada juntamente com a produção do trabalho e o fruto da abstenção dos donos atuais ou dos seus ascendentes, deve-se-lhes compensação por esse motivo; e, mesmo se for de outra forma, a compensação lhes é devida por motivo de prescrição. Jamais pode ser necessário, para atingir um objetivo que represente um ganho para toda a comunidade, que se sacrifique uma porção específica da comunidade. Quando se trata de um tipo de propriedade que está ligada à pessoa por afeições especiais, a compensação deve superar uma simples equivalência pecuniária. Entretanto, com essa ressalva, o Estado tem o poder de tratar a propriedade fundiária conforme possam exigir os interesses da comunidade até o ponto — se tal acontecer — de fazer em relação à área total aquilo que se faz em relação à porção dela quando se aprova uma lei para a construção de uma ferrovia ou de uma nova rua. O interesse da comunidade está por demais envolvido no cultivo adequado da terra e nas condições de ocupação da mesma, para deixar tais coisas ao critério de uma classe de pessoas denominadas senhores de terra, quando demonstraram não merecer tal confiança. Os legisladores que, se quisessem, poderiam converter toda a classe dos donos de terra em detentores de fundos ou pensionistas, poderiam, a fortiori, comutar a receita média dos proprietários de terra da Irlanda em uma renda fixa, transformar os arrendatários em proprietários, desde que sempre se oferecesse aos donos atuais o pleno preço de mercado da terra, no caso de preferirem isso a aceitar as condições propostas. Em outro lugar teremos ocasião de discutir os vários modos de propriedade e de ocupação fundiária, bem como as vantagens e os inconvenientes de cada um; neste capítulo enfocamos o direito como tal, as razões que o justificam, e (como corolário) as condições que devem limitar tal direito. Para mim, parece quase um axioma que a propriedade fundiária deve ser interpretada estritamente, e que em todos os casos de dúvida a balança deve pesar contra o proprietário. Ocorre o inverso com a propriedade de bens móveis, e com tudo aquilo que é produto do trabalho; em relação a esses bens, o direito do proprietário, tanto de uso como de exclusão, deve ser absoluto, a não ser que dele advenham males reais a terceiros; no caso da terra, porém, não se deve permitir nenhum direito exclusivo a nenhum indivíduo, a não ser que se possa demonstrar que isso produz um bem real. Já é um privilégio o poder de desfrutar de algum direito exclusivo absoluto, sobre uma porção de herança comum, enquanto há outros que não têm porção alguma. Nenhuma quantidade de bens móveis que uma pessoa possa vir a adquirir com seu trabalho impede a outros de adquirirem a mesma com os mesmos meios; contudo, pela própria natureza do caso, todo aquele que possui terra impede outros de desfrutarem dela. O privilégio, ou monopólio, só é defensável como um mal necessário; ele se torna uma injustiça quando levado ao ponto em que dele não segue o bem que compense esse mal. Por exemplo, o direito exclusivo à terra para fins de cultivo não implica um direito exclusivo de passagem; não se deve reconhecer o direito de ninguém a isso, a não ser na extensão necessária para proteger a produção contra danos, bem como a privacidade do proprietário contra invasões. A pretensão de dois duques de fechar uma parte da Alta Escócia, excluindo o resto da humanidade de muitas milhas quadradas de terreno montanhoso para impedir perturbações a animais selvagens é um abuso — ultrapassa os limites legítimos do direito de propriedade fundiária. Se não se tenciona lavrar a terra, via de regra não se pode alegar nenhuma razão válida para que ela seja objeto de propriedade privada; e se alguém se permite chamá-la de sua, deve saber que a ocupa em detrimento da comunidade, e sob uma condição implícita de que, se possivelmente não puder fazer nada de bom para a comunidade, pelo menos não a prive de algum bem, que esta poderia ter obtido da terra se dela não se tivesse apropriado. Mesmo no caso de terra cultivada, uma pessoa à qual, embora se trate de apenas uma entre milhões, a lei permite apropriar-se de milhares de acres como sua porção individual, não tem o direito de pensar que tudo isso lhe é dado para usar e abusar, e fazer com ela como se isso só a ele dissesse respeito. Só a ele pertencem as rendas ou lucros que dela conseguir obter; mas no tocante à terra, em tudo aquilo que faz com ela e em tudo aquilo que deixa de fazer com ela, está moralmente obrigado — devendo a isso ser legalmente compelido toda vez que for o caso — a fazer com que seu interesse e prazer se conciliem com o bem comum. A espécie humana continua a conservar, de seu direito original ao solo do planeta que habita, tanto quanto for compatível com as finalidades em função das quais se desfez do resto. § 7. Além da propriedade sobre o produto do trabalho e da propriedade fundiária, há outras coisas que são ou já foram objeto de propriedade e nas quais não deveria nunca existir tal direito. Mas, uma vez que o mundo civilizado já formou sua opinião sobre a maior parte delas, não há necessidade de nelas deter-nos nesse contexto. À testa delas está a propriedade sobre seres humanos. É quase supérfluo observar que essa instituição não pode ter lugar em nenhuma sociedade que tenha sequer a pretensão de fundar-se na justiça ou na fraternidade característica das criaturas humanas. Todavia, a despeito de ser iníqua, quando o Estado a legalizou expressamente, e durante gerações inteiras seres humanos foram objetos de compra, venda e herança sob a égide da lei, cometer-se-ia outro erro se, ao abolir tal propriedade, não se desse aos interessados a devida compensação. Essa injustiça foi evitada pela grande medida de justiça adotada em 1833, um dos atos mais virtuosos e, além disso, praticamente o mais benéfico ato já praticado coletivamente por uma nação. Outros exemplos de propriedade que nunca deveriam ter sido criados são propriedades em fé pública, tais como cargos judiciários sob o antigo regime francês, e as jurisdições transmissíveis por herança, que, em países que ainda não abandonaram totalmente o feudalismo, são transmitidas juntamente com a terra. Nosso próprio país oferece, como casos desse tipo, o de patentes do exército [1848] e o direito de padroado, isto é, o direito de nomeação para um benefício eclesiástico. Por vezes também se cria um direito de tributar o público — por exemplo, na forma de um monopólio, ou de algum outro privilégio exclusivo. Tais abusos prevalecem sobretudo em países semibárbaros, mas não estão totalmente ausentes nos países mais civilizados. Na França existem [1848] várias ocupações e profissões importantes, incluindo tabeliões, procuradores, corretores, avaliadores, impressores e (até recentemente) padeiros e açougueiros, cujo número é limitado por lei. Em consequência, o brevê ou privilégio de um único do número permitido vale um alto preço no mercado. Quando isso ocorre, provavelmente não se poderia, sem faltar à justiça, recusar compensação, ao se abolir o privilégio. Há outros casos em que isso seria mais duvidoso. A questão giraria em torno do que, nas circunstâncias específicas, foi suficiente para gerar prescrição, e se o reconhecimento legal obtido pelo abuso foi suficiente para fazer dele uma instituição, ou representou apenas uma licença ocasional. Seria absurdo reclamar uma compensação por perdas causadas por alterações em uma tarifa, coisa que reconhecidamente varia de ano para ano, ou então, por monopólios como aqueles concedidos a indivíduos pelos Tudors, favores de uma autoridade despótica, que a qualquer momento podiam ser revogados pelo poder que os outorgou. Eis o que tínhamos a dizer sobre a instituição da propriedade, matéria que foi indispensável abordar, para os fins da Economia Política, mas assunto no qual, querendo ser útil, não pudemos restringir-nos a considerações de ordem econômica. Cabe-nos agora investigar com base em que princípios e com quais resultados se faz a distribuição da produção da terra e do trabalho, nas relações que a instituição da propriedade cria entre os diversos membros da comunidade. CAPÍTULO III As Classes Entre as Quais é Distribuída a Produção § 1. Admitindo a propriedade privada como um fato, temos agora que enumerar as diversas classes de pessoas às quais ela dá origem, classes estas cujo concurso ou, ao menos, cuja permissão é necessária para a produção, e que, portanto, podem exigir uma parte da produção. Temos que investigar quais são as leis segundo as quais a produção se distribui entre essas classes, pela ação espontânea dos interesses dos envolvidos; depois examinaremos outra questão: que efeitos são ou poderiam ser produzidos por leis, instituições e medidas governamentais na substituição ou na modificação dessa distribuição espontânea? Os três requisitos da produção, como repetimos tantas vezes, são a mão-de-obra, o capital e a terra — entendendo por capital os recursos e meios que são os resultados acumulados do trabalho anterior; e por terra, os materiais e instrumentos fornecidos pela Natureza, quer estejam contidos nas entranhas da terra, quer constituam a própria superfície dela. Já que cada um desses elementos de produção pode tornar-se objeto de propriedade separadamente, podemos considerar que a comunidade que trabalha está dividida em proprietários de terra, capitalistas e trabalhadores produtivos. Cada uma dessas classes, como tal, obtém uma parte da produção, sendo que nenhuma outra pessoa ou classe obtém nada senão por concessão delas. Efetivamente, o resto da comunidade é sustentado à custa das três classes mencionadas, dando em troca, se alguma equivalência houver, uma produção consistente em serviços improdutivos. Da óptica da Economia Política, portanto, essas três classes compõem toda a comunidade. § 2. Contudo, embora essas três por vezes existam como classes separadas, dividindo entre si a produção, não necessariamente, ou sempre, existem dessa forma. O caso contrário é tão frequente que há somente uma ou duas comunidades em que a separação completa das três classes constitui a regra geral. A Inglaterra e a Escócia, e algumas partes da Bélgica e da Holanda, são praticamente as únicas regiões do mundo em que a terra, o capital, e a mão-de-obra empregada na agricultura, via de regra, são propriedade de donos diferentes. O caso normal é a mesma pessoa possuir dois desses requisitos ou então os três. O caso em que a mesma pessoa possui os três requisitos abrange os dois extremos da sociedade atualmente existente, com respeito à independência e à dignidade da classe trabalhadora. O primeiro é o caso de o próprio trabalhador ser o proprietário. Esse é o caso mais comum nos Estados nórdicos da Federação norte-americana; é também um dos casos mais comuns na França e na Suíça, nos três reinos escandinavos e em algumas regiões da Alemanha; (A resposta norueguesa ao pedido oficial de informações" (afirmam os membros da Comissão de Inquérito sobre a Lei dos Pobres que receberam os dados, relativos a quase todos os países da Europa e da América, através dos embaixadores e cônsules lá estabelecidos) “afirma que no último censo, de 1825, de uma população de 1 051 318 habitantes, havia 59 464 donos de propriedades livres e alodiais. Já que por 59 464 donos de propriedades livres e alodiais se deve entender 59 464 chefes de família, ou seja, aproximadamente 300 mil indivíduos, esses proprietários devem representar mais de 1/4 da população total. O Sr. Macgregor afirma que na Dinamarca (entendendo-se provavelmente por isso a Zelândia e as ilhas adjacentes), de uma população de 926 110 habitantes, o número de proprietários fundiários e arrendatários é de 415 110, ou seja, aproximadamente a metade. No Estado de Sleswick-Holstein, de uma população de 604 085, esse contingente é de 196 017, isto é, em torno de 1/3. Não há dados para a percentagem de proprietários de terra e arrendatários na Suécia, mas a resposta de Estocolmo estima a quantidade média de terra anexa à moradia de um trabalhador, entre 1 e 5 acres; e embora a resposta de Gottenburg dê uma estimativa mais baixa, acrescenta que os camponeses possuem grande parte da terra. Quanto a Wurtemburg, fomos informados de que mais de 2/3 da população trabalhadora são proprietários de sua própria casa e que quase todos possuem ao menos um trecho de terra cultivada de 3/4 de acre até 1 1/2 acre”. Em algumas dessas afirmações, não se discriminam proprietários e arrendatários: todavia, “todas as respostas concordam em afirmar que é muito reduzido o número de trabalhadores diaristas”. (Preface to Foreign Communications. p. XXXVIII). Como status geral da população trabalhadora, a condição de um operário assalariado é mais ou menos peculiar à Grã-Bretanha). é também um caso comum em certas regiões da Itália e da Bélgica. Em todos esses países existem, sem dúvida, grandes propriedades fundiárias e um número ainda maior que, sem serem grandes, exigem a ajuda ocasional ou constante de trabalhadores contratados. Todavia, grande parte da terra é possuída em áreas efetivamente pequenas para demandarem qualquer outra mão-de-obra além da do camponês e sua família, ou mesmo para ocupar plenamente essa área. O capital empregado nem sempre é o do camponês proprietário, pois muitas dessas pequenas propriedades estão sob hipoteca para obtenção dos recursos necessários para o cultivo; entretanto, o capital é investido sob risco do camponês, e embora este pague juros por ele, não dá a ninguém o direito de interferir; salvo, talvez, eventualmente, para tomar posse da terra se o camponês deixar de pagar os juros. O outro caso em que a terra, o trabalho e o capital pertencem à mesma pessoa é o dos países onde há escravatura, onde os próprios trabalhadores são propriedade do dono da terra. Nossas colônias nas Índias Ocidentais, antes da emancipação política, e as colônias açucareiras das nações que ainda não efetuaram esse ato de justiça, constituem exemplos de grandes estabelecimentos para mão-de-obra agrícola e manufatureira (a produção de açúcar e aguardentes é uma combinação das duas atividades) em que a terra, as fábricas (se assim pudermos chamá-las), as máquinas e os trabalhadores degradados, tudo é propriedade de um capitalista. Nesse caso, bem como no extremo oposto do mesmo — o caso do camponês proprietário — não há divisão da produção. § 3. Quando os três requisitos não são todos propriedade da mesma pessoa, muitas vezes acontece que dois deles o são. Às vezes a mesma pessoa possui o capital e a terra, mas não a mão-de-obra. O dono da terra faz seu contrato diretamente com o trabalhador, e fornece o capital — na totalidade ou em parte — necessário para o cultivo da terra. Esse sistema é usual nas regiões da Europa continental em que os trabalhadores não são servos nem proprietários. Isso era muito comum na França antes da Revolução, sendo ainda muito frequente em algumas regiões desse país, quando a terra não é propriedade do lavrador. O sistema costuma prevalecer nos distritos planos da Itália, excetuados os que são sobretudo pastoris, tais como a Maremma na Toscana e a “campagna” de Roma. Nesse sistema, a divisão da produção é feita entre duas classes: o proprietário da terra e o trabalhador. Em outros casos, o trabalhador não possui a terra, mas é dono do pequeno capital que nela emprega, por não ser costume o dono da terra fornecer capital. Esse sistema geralmente prevalece [1848] na Irlanda. Ele é quase geral na Índia, e na maioria dos países do Oriente — nessas regiões, de duas uma: ou o Governo conserva — como geralmente ocorre — a propriedade do solo, ou então permite que indivíduos se apropriem de determinadas áreas, de forma absoluta ou sob certas condições. Na Índia, porém, a situação é melhor do que na Irlanda, no sentido de que o dono da terra costuma fazer adiantamentos aos lavradores, caso estes não tenham condições de cultivar sem eles. Por tais adiantamentos o proprietário nativo da terra costuma cobrar juros altos, ao passo que o proprietário principal de terras, o Governo, dá tais adiantamentos gratuitamente, recuperando o capital adiantado depois da colheita, juntamente com o aluguel da terra. A produção é aqui dividida como no caso acima, entre as mesmas duas categorias: o proprietário da terra e o trabalhador. Estas são as variações principais na classificação daqueles entre os quais é distribuída a produção da mão-de-obra agrícola. No caso da atividade manufatureira, nunca há mais do que duas categorias, os trabalhadores e os capitalistas. Os artífices originais de todos os países, ou eram escravos, ou então as mulheres da família. Nos estabelecimentos manufatureiros da Antiguidade — tanto os de grande como os de pequena escala — os trabalhadores normalmente eram propriedade do capitalista. Em geral, se algum trabalho manual era considerado compatível com a dignidade de uma pessoa livre, era somente o trabalho agrícola. O sistema inverso, no qual o capital pertencia ao trabalhador, era contemporâneo à mão-de-obra livre, e foi nesse sistema que se fizeram os primeiros grandes progressos da atividade manufatureira. O artífice possuía o tear ou as poucas ferramentas que utilizava, e trabalhava por conta própria, ou, no mínimo, isso acabava acontecendo, embora normalmente trabalhasse para outra pessoa, primeiro como aprendiz e depois como oficial ou artífice assalariado, durante um certo número de anos, antes de poder ser admitido como mestre. Mas o status de um oficial permanente — que durante toda a vida permanecia como trabalhador contratado e não passava disso — não tinha lugar nas corporações e guildes da Idade Média. Em aldeias do campo, onde um carpinteiro ou um ferreiro não consegue, com os retornos de seu negócio, viver e sustentar trabalhadores contratados, mesmo hoje ele continua sendo seu próprio operário; e os donos de lojas, em circunstâncias similares, são seus próprios caixeiros ou caixeiras. Entretanto, em toda parte onde a extensão do mercado o comporta, está hoje plenamente consolidada a distinção entre a classe dos capitalistas, ou seja, empregadores de mão-de-obra, e a classe dos trabalhadores, sendo que os capitalistas, em geral, não fazem outro trabalho que dirigir e supervisionar a empresa. CAPÍTULO IV A Concorrência e o Costume § 1. No regime de propriedade individual, a divisão da produção é o resultado de dois fatores determinantes: a concorrência e o costume. É importante determinar o grau de influência exercido por cada uma dessas causas, e de que maneira os efeitos de uma são modificados pela outra. Os economistas políticos em geral, e acima de tudo os ingleses, costumam salientar quase exclusivamente o primeiro desses fatores, a exagerar o efeito da concorrência e a levar pouco em conta o outro princípio, oposto ao primeiro. Tendem a expressar-se como se pensassem que a concorrência faz efetivamente, em todos os casos, tudo aquilo que se pode demonstrar que tende a fazer. Em parte, isso é compreensível, se considerarmos que é somente através do princípio da concorrência que a Economia Política tem qualquer chance de ter foros de ciência. Na medida em que as rendas da terra, os lucros, os salários e os preços são determinados pela concorrência, pode-se indicar leis para isso. Supondo-se que a concorrência seja o único fator que regule esses elementos, pode-se estabelecer princípios de grande generalidade e precisão científica, pelos quais serão regulados. Com razão o economista político considera isso seu afazer específico; e como ciência abstrata ou hipotética, não se pode exigir que a Economia Política faça e possa fazer algo mais. Contudo, teria uma compreensão equívoca do curso real dos negócios humanos quem supusesse que a concorrência exerce, na realidade, essa preponderância ilimitada. Não estou falando de monopólios, naturais ou artificiais, ou de quaisquer interferências da autoridade na liberdade de produção ou de intercâmbio. Os economistas políticos sempre contemplaram tais causas perturbadoras. Falo de casos em que não há nada que limite a concorrência, nenhum obstáculo a ela, nem na natureza do caso nem na forma de obstáculos artificiais, e no entanto, o resultado não é determinado pela concorrência, senão pelo costume ou uso, sendo que a concorrência ou simplesmente não vem ao caso, ou então produz seu efeito de uma forma bem diferente daquela que normalmente se supõe ser-lhe natural. § 2. Na realidade, foi somente em um período relativamente moderno que a concorrência se tornou o princípio regulador dos contratos, em grau considerável. Quanto mais remontarmos na história, tanto mais veremos todas as transações e compromissos sob a influência de costumes consolidados. A razão é evidente. O costume é o mais poderoso protetor dos fracos contra os fortes — o único protetor deles onde não há leis ou Governo adequados para esse fim. O costume é uma barreira que, mesmo na condição humana de maior opressão, a tirania é obrigada a respeitar até certo ponto. Para a população trabalhadora, em uma comunidade militar turbulenta a liberdade de concorrência é uma palavra vazia; as pessoas jamais conseguem impor condições na base da concorrência; há sempre um amo que coloca sua espada no prato da balança, e as condições passam a ser aquelas que ele impõe. Mas, embora a lei seja a do mais forte, este não tem interesse, nem geralmente adota a prática de forçar essa lei até ao máximo, e cada mitigação dela tem uma tendência a tornar-se um costume, e todo costume a transformar-se em direito. São os direitos assim originados, e não a concorrência em qualquer forma, que determinam, em uma sociedade em estágio primitivo, a parte da produção desfrutada por aqueles que a produzem. Mais especialmente, as relações entre o proprietário de terra e o lavrador, e os pagamentos feitos por este último ao primeiro são, em todos os estágios de sociedade, excetuados os modernos, determinados pelo uso do país. Nunca, até os tempos mais recentes, as condições de ocupação da terra (como regra geral) foram questão de concorrência. Era muito comum considerar que o ocupante tinha o direito de conservar sua terra enquanto cumprisse as exigências costumeiras, e de certo modo se tornava um coproprietário do solo. Mesmo onde o ocupante não adquira esse tipo de título permanente, as condições de ocupação muitas vezes se tornavam fixas e invariáveis. Na Índia, por exemplo, e em outras comunidades asiáticas de estrutura similar, os camponeses-arrendatários não são considerados locatários a título precário, e nem mesmo arrendatários em virtude da existência de contrato de locação. Na maior parte das aldeias há sem dúvida camponeses nessa base precária, consistindo naqueles — ou seus descendentes — que se estabeleceram no lugar em um período conhecido e relativamente recente; mas quanto a todos os que são considerados descendentes ou representantes dos habitantes originais, e mesmo a muitos dos simples arrendatários de velha data, se considera que têm direito a conservar sua terra enquanto pagarem as rendas de costume. Sem dúvida, tornou-se difícil, na maioria dos casos, saber quais são essas rendas de costume ou quais deveriam ser, pois a usurpação, a tirania e a conquista estrangeira em grande parte apagaram os testemunhos deles. Mas quando um principado antigo e puramente hindu cai sob o domínio do Governo britânico ou sob o Governo dos oficiais deste, e quando se chegam a investigar os detalhes do sistema da receita, constata-se geralmente que, embora as exigências por parte do grande proprietário de terras, o Estado, tenham aumentado, pela capacidade fiscal, até se perder praticamente de vista qualquer limite, mesmo então se considerava necessário criar um termo diferente e achar um outro pretexto para cada aumento fiscal, de sorte que às vezes as cobranças do Estado chegaram a constar de trinta ou quarenta itens diferentes, além da renda nominal. Certamente não se teria recorrido a esse tortuoso modo de aumentar as cobranças dos ocupantes da terra, se o senhor da terra tivesse um direito reconhecido de aumentar a renda. A adoção desses métodos é uma prova de que uma vez houve uma limitação, um aluguel costumeiro real, e que em alguma época foi mais do que nominal (Os antigos livros legais hindus mencionam como aluguel apropriado, em alguns casos, 1/6, em outros, 1/4 da produção; mas não há prova alguma de que as normas estabelecidas nesses livros tenham sido realmente postas em prática, em algum período da história) o direito presumido do camponês à terra, enquanto pagasse o aluguel segundo o costume. O Governo britânico da Índia sempre simplifica o sistema, consolidando as várias cobranças em uma só, fazendo assim com que o aluguel se transforme em uma coisa arbitrária, tanto nominal como realmente, ou pelo menos em uma questão de acordo específico; no entanto, ele respeita escrupulosamente o direito do camponês à terra, ainda que, até as reformas da geração atual (reforma estas que, mesmo hoje, só foram implantadas em parte), raramente lhe tenha dado muito mais do que o simplesmente necessário para sua subsistência. Na Europa moderna, os lavradores saíram gradualmente de um estado de escravidão pessoal. Os conquistadores bárbaros do império ocidental acharam que o modo mais fácil de administrar suas conquistas seria deixar a ocupação da terra nas mesmas mãos em que a encontraram, poupando-se dessarte um trabalho tão repugnante como a supervisão de contingentes de escravos, deixando que estes conservassem até certo ponto o controle de suas próprias ações, com a obrigação de fornecerem ao patrão gêneros e trabalho. Um meio comumente empregado consistia em destinar ao servo, para seu uso exclusivo, tanta terra quanta se considerava suficiente para seu sustento, e fazê-lo trabalhar nas outras terras de seu patrão toda vez que fosse necessário. Gradualmente essas obrigações indefinidas foram transformadas em uma obrigação definida, a de fornecer uma quantidade fixa de gêneros ou uma quantidade fixa de trabalho; e quando os senhores, com o passar do tempo, preferiram empregar sua renda na compra de artigos de luxo a empregá-la no sustento de dependentes, os pagamentos em espécie foram substituídos por pagamentos em dinheiro. Cada concessão, de início voluntária e revogável a bel-prazer, gradualmente adquiria a força do costume, e ao final era reconhecida e garantida pelos tribunais. Dessa maneira, os servos da gleba progressivamente se transformaram em arrendatários livres que ocupavam sua terra a título perpétuo e com base em condições fixas. As condições por vezes eram muito onerosas, e as pessoas estavam em situação altamente precária. Mas as suas obrigações eram determinadas pelo uso ou pela lei do país, e não pela concorrência. Lá onde os lavradores nunca foram, a rigor, servos ou escravos de uma pessoa, ou depois que deixaram de sê-lo, as exigências de uma sociedade pobre e pouco avançada deram origem a uma outra estrutura, que em algumas partes da Europa, mesmo muito avançadas, foi considerada suficientemente vantajosa para ser prolongada até hoje. Falo do sistema dos meeiros. Neste, a terra é dividida em pequenas propriedades entre famílias individuais, sendo que o senhor da terra costuma fornecer aquele capital que se considera necessário para o sistema agrícola do país, exige, e recebe, em lugar de aluguel e lucro, uma percentagem fixa da produção. Essa percentagem, que geralmente é paga em espécie, normalmente (como denotam os termos métayer, mezzaiuolo e medietarius) representa a metade. Há, porém, lugares, tais como o rico solo vulcânico da província de Nápoles, onde o senhor da terra leva 2/3 e mesmo assim o lavrador, cultivando a terra de maneira exímia, encontra meios de sobreviver. Seja, porém, a percentagem 2/3 ou a metade da produção, é uma percentagem fixa, que não varia de uma propriedade a outra, ou de um locatário a outro. O costume do país é a norma universal; ninguém pensa em aumentar ou diminuir os aluguéis, ou arrendar terras em outras condições que não sejam as costumeiras. A concorrência, como fator regulador do aluguel, não existe. § 3. Os preços, em toda parte onde não havia monopólio, caíram mais cedo que os aluguéis sob a influência da concorrência, e são muito mais universalmente sujeitos a ela do que os aluguéis; no entanto, tal influência de forma alguma é, mesmo na atual vivacidade da concorrência comercial, tão absoluta quanto por vezes se supõe. Não existe proposição mais comumente encontrada no campo da Economia Política do que esta: não pode haver dois preços no mesmo mercado. Tal é, sem sombra de dúvida, o efeito natural da concorrência quando não há impedimento; no entanto, todos sabem que quase sempre existem dois preços no mesmo mercado. Não somente existem, em toda cidade grande e em praticamente todo tipo de comércio, lojas baratas e lojas caras, senão que também a mesma loja muitas vezes vende o mesmo artigo a preços diferentes a clientes diferentes; e, como norma geral, cada varejista adapta sua tabela de preços à classe de clientes que espera. O comércio atacadista, nos grandes artigos de comércio, está realmente sob o domínio da concorrência. Nesse tipo de comércio, os compradores e os vendedores são comerciantes ou manufatores, e suas compras não são influenciadas pela negligência ou pelos truques vulgares, nem dependem das motivações inferiores de conveniência pessoal, senão que são transações de negócio. Por isso, nos mercados atacadistas é verdade, como proposição geral, que não há dois preços, ao mesmo tempo e para o mesmo artigo: existe em cada momento e lugar um preço de mercado, que pode ser cotado em um preço corrente. Mas o preço no varejo, o preço pago pelo consumidor efetivo, parece sentir muito lenta e imperfeitamente o efeito da concorrência; e quando a concorrência existe, muitas vezes, em vez de fazer baixar os preços, simplesmente divide os ganhos do preço alto entre um número maior de comerciantes. Daqui vem o fato de, do preço pago pelo consumidor, uma parte tão grande ser absorvida pelos ganhos dos varejistas, de maneira que todo aquele que investigar o montante que chega às mãos daqueles que fabricaram as coisas que compra, muitas vezes se assustará com o pouco que isso representa. Com efeito, quando o mercado — como o de uma cidade grande — oferece um estímulo suficiente para os grandes capitalistas entrarem nas operações de varejo, geralmente se constata que é uma especulação melhor atrair um grande negócio vendendo mais barato que outros, do que simplesmente dividir o campo com eles. Essa influência da concorrência se está fazendo sentir cada vez mais nos setores principais do comércio varejista das grandes cidades; por outro lado, a rapidez e o baixo preço do transporte, por tornarem os consumidores menos dependentes dos comerciantes localizados nas proximidades, estão tendendo a assemelhar cada vez mais o país inteiro a uma grande cidade; até agora [1848], porém, é somente nos grandes centros de negócios que as transações varejistas têm sido determinadas sobretudo, ou mesmo muito, pela concorrência. Afora isso, a concorrência age — se é que age — como uma influência perturbadora ocasional; o regulador habitual é o costume, modificado de tempos em tempos por determinadas noções de equidade ou justiça existentes nas cabeças de compradores e vendedores. Em muitas ocupações, as condições de comércio são matéria de acordo efetivo entre os que as exercem, os quais, aliás, usam os meios de que sempre dispõem para tornar inconveniente ou desagradável a situação de qualquer membro do grupo que violar seus costumes estabelecidos. Sabe-se muito bem que até recentemente o comércio de venda de livros era um daqueles em que — não obstante o espírito ativo de rivalidade desses profissionais — a concorrência não produziu seu efeito natural de derrubar as normas da profissão. Toda remuneração profissional é regulada pelo costume. Os honorários de médicos, cirurgiões e advogados, e os cobrados pelos procuradores, são quase invariáveis. Não certamente por falta de concorrência abundante nessas profissões, mas porque a concorrência opera diminuindo a chance de cada concorrente de receber honorários, e não por fazer baixar os próprios honorários. Já que o costume prevalece sobre a concorrência a tal ponto, mesmo lá onde, devido à multidão de concorrentes e à corrida geral em busca de ganho, é mais forte o espírito de concorrência, podemos estar seguros de que isso ocorre muito mais onde as pessoas se contentam com ganhos menores e dão a seu interesse pecuniário importância menor, em confronto com sua tranquilidade ou prazer pessoal. Creio que com frequência se constatará, na Europa continental, que os preços e encargos, de alguns tipos ou de todos, são muito mais altos em alguns lugares do que em outros não muito distantes, sem que seja possível atribuí-lo a outra causa senão ao fato de que sempre foi assim: os clientes estão acostumados a isso e concordam com isso. Um concorrente dotado de iniciativa e de capital suficiente poderia fazer baixar os honorários ou encargos e fazer sua fortuna durante o processo; acontece que não há concorrentes com iniciativa; e os que possuem capital preferem deixá-lo aplicado onde já está, ou então auferir lucro menor com ele, de um modo mais tranquilo. Essas observações devem ser acolhidas como uma correção geral a ser aplicada, onde for importante, às conclusões contidas nas partes subsequentes deste tratado — quer isso se mencione expressamente ou não. Em geral, nossos raciocínios devem proceder como se os efeitos conhecidos e naturais da concorrência fossem efetivamente produzidos por ela, em todos os casos em que não é impedida por algum obstáculo real. Lá onde a concorrência, embora tenha liberdade de existir, não existe, ou onde existe, mas suas consequências naturais são sobrepujadas por qualquer outro fator, as conclusões deixarão de ser aplicáveis, em grau maior ou menor. Para escapar ao erro, devemos, ao aplicar as conclusões da Economia Política aos eventos reais da vida, considerar não somente o que acontecerá supondo-se o máximo de concorrência, mas também até que ponto o resultado será afetado se a concorrência não atingir o ponto máximo. Os estados de relação econômica que primeiro serão discutidos e apreciados são aqueles em que a concorrência não entra para nada, sendo as respectivas transações determinadas ou pela força bruta ou pelo costume consolidado. Estes constituirão o tema dos próximos quatro capítulos. CAPÍTULO V A Escravatura § 1. Entre as formas que a sociedade assume sob a influência da instituição da propriedade, há, como já observei, duas, de resto de natureza muito diferente, mas que se assemelham pelo fato de a propriedade da terra, da mão-de-obra e do capital estar nas mesmas mãos. Um desses casos é o da escravatura, o outro é o dos camponeses proprietários. No primeiro, o senhor da terra é dono da mão-de-obra, no segundo, o trabalhador é o proprietário da terra. Começaremos com o primeiro. No sistema de escravatura, toda a produção pertence ao senhor da terra. O alimento e outros gêneros de primeira necessidade dos trabalhadores fazem parte da despesa dele. Os trabalhadores não possuem nada além daquilo que o senhorio considera conveniente dar-lhes, e isso, até que considere conveniente tirar; e os trabalhadores trabalham tanto quanto ele quiser ou até onde conseguir forçá-los. A miséria dos trabalhadores só tem um limite: o senso de humanidade do senhor ou o interesse pecuniário dele. Com o primeiro elemento nada temos a ver, neste contexto. O que pode ditar o segundo, em uma estrutura social tão detestável, depende das facilidades de importação de novos escravos. Se houver a possibilidade de conseguir, em número suficiente, escravos adultos e robustos e de importá-los com despesa razoável, o interesse do senhor recomendará fazer os escravos trabalharem até a morte, e então substituí-los por importação, preferencialmente ao processo lento e caro de criá-los. Aliás, os proprietários de escravos geralmente não demoraram para aprender essa lição. É notório que tal era a prática em nossas colônias de escravos, enquanto o comércio de escravos era legal; e assim se afirma ser ainda hoje em Cuba. Quando — como ocorria entre os antigos — o comércio de escravos só podia ser suprido por cativos, isto é, pessoas apresadas em guerra, ou sequestradas de tribos espalhadas nos remotos confins do mundo conhecido, geralmente era mais lucrativo manter a população escrava criando-a, o que impõe um tratamento muito melhor deles; por essa razão, associada a várias outras, a condição dos escravos, não obstante certas monstruosidades ocasionais, provavelmente era muito menos ruim no mundo antigo do que nas colônias das nações modernas. Os hilotas costumam ser citados como o tipo da mais revoltante forma de escravatura pessoal, mas isso é pouco verdadeiro, como aparece do fato de andarem regularmente armados (embora não com a panóplia dos hoplitas) e constituírem parte integrante do poderio militar do Estado. Sem dúvida pertenciam a uma casta inferior e rebaixada, mas sua escravidão parece ter sido uma das formas menos pesadas de servidão. A escravatura apresenta traços muito mais terríveis entre os romanos, durante o período em que a aristocracia romana se estava empanturrando com as presas do saque de um mundo recém-conquistado. Os romanos eram um povo cruel, e os frívolos nobres sustentados à custa das vidas de suas miríades de escravos, com a mesma prodigalidade despreocupada com a qual dilapidavam qualquer outra porção de suas posses adquiridas iniquamente. Entretanto, a escravatura está imune de uma de suas características piores quando é compatível com a esperança: a alforria era fácil e comum; os escravos libertados obtinham de imediato os plenos direitos de cidadãos, sendo frequentes os casos de adquirirem não somente riqueza, mas até honrarias, no período mais tardio. Com o progresso de uma legislação mais suave sob os imperadores, grande parte da proteção legal atingiu o escravo; ele tornou-se capaz de possuir propriedade, e o mal, em seu conjunto, passou a assumir um aspecto bem mais suave. Todavia — até a escravidão atingir a força mitigada do “villenage” (Condição em que o senhor feudal concedia a posse ao assim chamado “vilão”), na qual não somente os escravos têm propriedade e direitos legais, senão que suas obrigações são mais ou menos delimitadas pelo uso, e em parte trabalham para seu próprio benefício — a condição deles raramente é de molde a produzir um rápido aumento da população ou da produção. § 2. Enquanto os países de escravos permanecem subpovoados em proporção à sua terra cultivável, o trabalho dos escravos, se a administração for razoável, produz muito mais do que o suficiente para o sustento deles, especialmente quando a grande intensidade de supervisão requerida pelo seu trabalho, por impedir a dispersão da população, assegura algumas das vantagens da cooperação no trabalho. Eis por que, em solo e clima favoráveis e se o senhor tiver razoável preocupação com seus próprios interesses, o proprietário de muitos escravos tem meios de enriquecer. No entanto, “compreende-se perfeitamente a influência de tal estado social sobre a produção. É um truísmo afirmar a ineficiência e a improdutividade do trabalho extorquido pelo medo do castigo. É verdade que, em certas circunstâncias, os seres humanos podem ser conduzidos pelo chicote a tentar — e até mesmo a realizar — coisas que não teriam empreendido em troca de nenhum pagamento que tivesse sido compensador para um empregador oferecer-lhes. E é provável que as operações produtivas que exigem muita cooperação no trabalho, por exemplo, a produção de açúcar, não teriam ocorrido tão cedo nas colônias americanas, se não tivesse havido a escravidão para manter juntos um número tão grande de escravos. Há também tribos selvagens tão avessas ao trabalho regular que dificilmente se conseguirá introduzir entre elas a indústria, enquanto não forem conquistadas e escravizadas por outros, ou, então, enquanto elas não conquistarem e escravizarem a outros. Contudo, mesmo reconhecendo o pleno valor de tais considerações, permanece certo que a escravidão é incompatível com qualquer estado elevado da técnica e com qualquer eficiência notável do trabalho. Para todos os produtos que exigem muita habilidade, os países de escravos costumam depender de estrangeiros. A escravidão sem esperança efetivamente embrutece a inteligência; por outro lado, a promoção mental dos escravos, embora muitas vezes encorajada no mundo antigo e no Oriente, em um estágio social mais avançado é uma fonte de tanto perigo e um objeto de tanto horror para os senhores, que em alguns dos Estados da América era infração altamente sujeita a penalidades ensinar um escravo a ler. Todos os processos executados por mão-de-obra escrava são conduzidos da maneira mais primitiva e menos desenvolvida. E mesmo a força animal do escravo não é, em média, exercida nem pela metade. A improdutividade e a antieconomicidade do sistema industrial nos Estados onde há escravos é demonstrada de forma visível nos valiosos escritos do Sr. Olmsted. A mais suave forma de escravatura é certamente a condição do servo, que está ligado ao solo, se auto sustenta com sua porção de terra e trabalha um certo número de dias na semana para seu senhor. Não obstante, é unânime a opinião sobre a extrema ineficiência da mão-de-obra de servos. A passagem que segue é tirada do Prof. Jones, cujo Essay on the Distribution of Wealth (ou melhor, sobre a renda) é um abundante repertório de fatos valiosos sobre as formas de ocupação de terras nos diversos países. “Os russos, ou melhor, os autores alemães que observaram as maneiras e hábitos da Rússia, observam alguns fatos contundentes a esse respeito. Dois ceifeiros de Middlesex — afirmam eles — cortarão em um dia tanto feno quanto seis servos russos, e a despeito do alto preço dos gêneros alimentícios na Inglaterra e o seu baixo preço na Rússia, o corte de uma quantidade de feno, que a um arrendatário inglês custaria 1/2 copeque, custará a um proprietário russo 3 ou 4 copeques. Acha-se que o Conselheiro de Estado prussiano, Jacob, demonstrou que na Rússia, onde tudo é barato, o trabalho de um servo custa o dobro do de um trabalhador na Inglaterra. O Sr. Schmalz oferece um dado surpreendente sobre a improdutividade do trabalho na Prússia, baseando-se em seu próprio conhecimento e observação. Na Áustria, afirma-se claramente que o trabalho de um servo é igual a apenas 1/3 do trabalho de um trabalhador livre contratado. Esse cálculo, feito em uma obra competente sobre a agricultura (obra da qual tive o prazer de utilizar alguns extratos), é aplicado para o fim prático de decidir sobre o número de trabalhadores necessários para cultivar uma propriedade de determinada extensão. Tão palpáveis são, de fato, os maus efeitos das labour rents sobre o trabalho da população agrícola que na própria Áustria, onde não é fácil passarem propostas de mudança de qualquer tipo, os projetos e planos para substituir as labour rents são tão populares como nas províncias mais ativas do norte”. (O governo revolucionário da Hungria, durante sua curta existência, deu àquele país um dos maiores benefícios que poderia receber, e que a tirania que lhe sucedeu não ousou eliminar; livrou a classe camponesa do que restava das amarras da servidão, os labour rents, decretando compensação aos senhores de terra a expensas do Estado, e não à custa dos camponeses libertados) O que falta na qualidade da própria mão-de-obra não é compensado nem pela mais exímia direção ou supervisão. Como observa o mesmo autor, os proprietários de terra “são necessariamente, em sua qualidade de lavradores de suas próprias terras, os únicos dirigentes do trabalho da população agrícola”, pois não pode haver nenhuma classe intermediária de arrendatários capitalizados, lá onde os trabalhadores são propriedade do senhorio. Grandes proprietários fundiários são em toda parte uma classe ociosa, ou, se chegam a trabalhar, só se dedicam aos tipos de atividade mais estimulantes — àquela parte do leão que os superiores sempre reservam para si mesmos. “Seria inútil e irracional — observa o Sr. Jones — esperar que uma estirpe de proprietários nobres, rodeados de privilégios e dignidade, e atraídos a atividades militares e políticas pelas vantagens e hábitos de sua posição, um dia se tornem lavradores cuidadosos, como um todo”. Mesmo na Inglaterra, se o cultivo de cada propriedade dependesse de seu proprietário, cada um pode avaliar qual seria o resultado. Haveria alguns casos de grande ciência e dinamismo, e numerosos exemplos individuais de sucesso razoável, mas a situação geral da agricultura seria baixa. § 3. Se os próprios donos de terra perderiam com a emancipação de seus escravos é uma questão diferente da que diz respeito à eficiência comparativa da mão-de-obra livre e escrava para a comunidade. Tem havido muito debate abstrato em torno dessa questão, como se ela pudesse comportar alguma solução universal. Se a escravatura ou a mão-de-obra livre é mais rentável para o empregador, depende dos salários pagos ao trabalhador livre. Estes, por sua vez, dependem do número da população trabalhadora, comparado com o capital e com a terra. Geralmente a mão-de-obra contratada é a tal ponto mais eficiente que a mão-de-obra escrava que o empregador tem condições de pagar em salários um valor muito superior ao que lhe custava antes a manutenção de seus escravos, e apesar disso pode sair ganhando com a mudança; mas ele não pode fazê-lo ilimitadamente. O declínio da servidão na Europa e sua abolição nas nações ocidentais foram sem dúvida apressados pelas mudanças que o aumento da população deve ter acarretado para os interesses pecuniários do senhor. À medida que a população exerceu maior pressão sobre a terra sem que ocorresse nenhum melhoramento agrícola, a manutenção dos servos necessariamente se tornou mais dispendiosa, e seu trabalho passou a ser menos valioso. Com os índices salariais vigentes na Irlanda ou na Inglaterra (onde, em proporção à sua eficiência, a mão-de-obra é praticamente tão barata como na Irlanda), ninguém poderia sequer imaginar que a escravatura poderia ser rentável. Se os camponeses irlandeses fossem escravos, seus senhores estariam tão dispostos quanto os atuais donos de terra a pagar grandes somas simplesmente para ver-se livres deles. No rico e subpovoado solo das ilhas das Índias Ocidentais, é igualmente certo que a balança dos lucros, entre mão-de-obra livre e escrava, pendia fortemente para o lado da escravatura, e que a compensação dada aos proprietários de escravos pela sua abolição não superou, e talvez foi até inferior, ao equivalente decorrente da perda dos escravos. Não precisamos acrescentar aqui nada mais sobre uma questão já tão plenamente julgada e decidida como a da escravatura. Seus deméritos já não constituem mais uma questão que careça de discussão, embora a atitude de espírito manifestada pela maior parte das classes influentes da Grã-Bretanha, com respeito à luta pela emancipação dos escravos na América, revele que os sentimentos da geração inglesa atual [1865] a esse respeito decaíram muito em confronto com os atos positivos da geração que a precedeu. O fato de os filhos dos libertadores dos negros das Índias Ocidentais esperarem com complacência e encorajarem com sua adesão a fundação de um commonwealth militar grande e poderoso, comprometido por seus princípios e impulsionado pelos seus mais fortes interesses a ser o propagador armado da escravatura em toda região da terra na qual seu poder conseguisse penetrar, revela, na parcela dirigente das nossas classes mais altas e médias, um estado de espírito triste de ver, e que constituirá uma mancha permanente na história da Inglaterra. Felizmente, não chegaram a ajudar efetivamente, a não ser com palavras, o empreendimento iníquo ao qual se envergonharam de desejar sucesso; e à custa do melhor sangue dos Estados livres, mas para sua elevação incomensurável em valor mental e moral, a praga da escravatura foi eliminada da grande república americana, para encontrar seu último refúgio temporário no Brasil e em Cuba. Nenhum país europeu, excetuada a Espanha, partilha dessa monstruosidade. Mesmo a servidão deixou hoje de ter existência legal na Europa. A Dinamarca tem a honra de ser a primeira nação continental que imitou o exemplo da Inglaterra na libertação dos escravos de suas colônias; a abolição da escravatura foi um dos primeiros atos do heroico e caluniado Governo Provisório da França. O Governo holandês não ficou atrás por muito tempo, sendo que as suas colônias e fundações estão hoje livres — acredito que sem exceção — da escravatura efetiva, embora o trabalho forçado a serviço das autoridades públicas ainda [1865] seja uma instituição reconhecida em Java — instituição que, como esperamos, deve ser substituída pela liberdade pessoal completa. CAPÍTULO VI Os Proprietários Camponeses § 1. No regime de propriedades possuídas por camponeses, como no da escravatura, toda a produção pertence a um único dono, não existindo a distinção entre renda (da terra), lucro e salários. Sob todos os outros aspectos, esses dois sistemas sociais constituem o extremo oposto um do outro. Um é o estado da opressão e degradação máxima para a classe trabalhadora. O outro é aquele em que ela é o árbitro menos controlado de sua própria sorte. Ocorre que a vantagem de propriedades fundiárias pequenas é um dos temas mais controvertidos no âmbito da Economia Política. Nos países da Europa continental, conquanto haja alguns que discordem da opinião dominante, o benefício de se ter uma população numerosa de proprietários está na cabeça da maior parte das pessoas, e na forma de um axioma. Mas as autoridades inglesas desconhecem o julgamento dos agrônomos do Continente ou se contentam com colocá-lo de lado, alegando que aqueles países não possuem nenhuma experiência de propriedades grandes em circunstâncias favoráveis, pois a vantagem de grandes propriedades só é sentida onde existe também agricultura em grande escala — e já que isto, em regiões aráveis, implica uma acumulação maior de capital do que costuma existir no Continente, as grandes propriedades do Continente, excetuando-se o caso de propriedades destinadas à pastagem, na maioria dos casos são arrendadas para o cultivo em áreas pequenas. Há alguma verdade nisso, mas pode haver contra argumentação; com efeito, se o Continente pouco sabe, por experiência, sobre a agricultura em grande escala e com capital elevado, em geral os autores ingleses não estão mais bem familiarizados, na prática, com o sistema dos camponeses proprietários, tendo quase sempre as ideias mais erradas sobre a condição social e o modo de vida desses camponeses. Não obstante, as antigas tradições, mesmo da Inglaterra, estão do lado da opinião generalizada reinante na Europa continental. A classe dos pequenos proprietários rurais que era enaltecida como a glória da Inglaterra enquanto existia, e cujo desaparecimento tanto se tem lamentado, eram ou pequenos proprietários ou pequenos arrendatários; e se na maioria eram arrendatários, a característica mais notável que apresentavam era a de serem decididamente independentes. Existe uma região da Inglaterra, infelizmente muito pequena, onde os camponeses proprietários ainda [1848] são comuns — pois tais são os “homens públicos” de Cumberland e de Westmoreland, que os camponeses, penso eu, ainda pagam (todos ou quase todos) certos tributos, os quais, por serem fixos, não afetam mais seu caráter de proprietários do que o faz o imposto territorial. Entre os que conhecem a região, é unânime o acordo sobre os efeitos admiráveis desse tipo de ocupação da terra nessas partes do país. Nenhuma outra população agrícola na Inglaterra poderia ter fornecido os padrões dos camponeses descritos por Wordsworth. (Na pequena obra em que o Sr. Wordsworth descreve o cenário dos Lagos, afirma que a parte superior dos vales foi durante séculos “uma perfeita república de pastores e de agricultores, proprietários, na maior parte, das terras que ocupavam e cultivavam. O cultivo de cada um limitava-se ao sustento de sua própria família ou a servir ocasionalmente a seu vizinho. Duas ou três vacas supriam cada família com leite e queijo. A capela era o único edifício que presidia essas moradias, a chefia suprema dessa comunidade pura, sendo que os membros dela viviam em meio a um império poderoso, como uma sociedade ideal ou uma comunidade organizada, cuja estrutura foi imposta e regulada pelas montanhas que a protegiam. Não existia aqui nenhum nobre de nascença, cavaleiro ou escudeiro, mas muitos desses filhos humildes das colinas tinham uma consciência de que a terra que pisavam e cultivavam por mais de quinhentos anos fora possuída por homens de seu nome e de seu sangue. (...) Em cada propriedade cultivava-se, nesses vales, trigo em quantidade suficiente para dar pão para cada família, e não mais. As tempestades e a umidade do clima induziram o morador a espalhar em sua propriedade montanhosa casinhas de pedra nativa como locais de abrigo para suas ovelhas, onde se lhes distribuía alimento quando o tempo era de tempestade. Cada família fiava de suas próprias ovelhas a lã com que se vestia; aqui e acolá se encontrava um tecelão entre eles, e o resto de suas necessidades eram atendidas pela produção do fio, que cardavam e fiavam em suas próprias casas, e levavam ao mercado, carregando a mercadoria debaixo dos braços ou, mais frequentemente, no lombo de cavalos de carga, formando uma pequena tropa que descia o vale uma vez por semana, ou através das montanhas, chegando à cidade que fosse mais cômoda”. A Description of the Scenery of the Lakes in the North of England) Todavia, pelo fato de o sistema geral da lavoura inglesa não proporcionar nenhuma experiência para familiarizar-se com a natureza da operação das propriedades possuídas por camponeses, e pelo fato de os ingleses geralmente ignorarem profundamente a economia agrícola de outros países, a própria ideia de camponeses proprietários é estranha ao inglês, e não é fácil que ela entre em sua cabeça. Até as expressões da linguagem o impedem, pois o termo habitual para designar as proprietários de terra é landlord (senhor da terra), palavra em relação à qual o termo tenant (ocupante, arrendatário) sempre é entendido como correlativo. Quando, ao tempo da fome, a sugestão proposta de propriedades possuídas por camponeses, como meio para melhorar a Irlanda, chegou a entrar nas discussões do Parlamento e dos jornais, houve autores que alegavam que a palavra proprietor (proprietário) estava tão longe de significar uma noção clara, que confundiam as pequenas propriedades ocupadas pelo cottier (aldeão) irlandês com as propriedades possuídas por camponeses. Pelo fato de esse assunto ser tão pouco compreendido, parece-me importante, antes de entrar na teoria sobre o tema, tentar alguma coisa para mostrar como são as coisas na realidade, oferecendo, numa extensão superior à que de outra forma seria admissível, alguns dos testemunhos existentes com respeito ao estado de cultivo e ao conforto e felicidade dos lavradores, naqueles países e regiões em que a maior parte da terra não tem outro dono nem é explorada senão pelo próprio lavrador que cultiva o solo. § 2. Não saliento a condição da América do Norte, onde, como bem se sabe, a terra, com exceção dos antigos Estados de escravos, quase em toda parte é propriedade da mesma pessoa que maneja o arado. Um país que associa a fertilidade natural da América ao conhecimento e às técnicas da Europa moderna, está em circunstâncias tão favoráveis que dificilmente alguma coisa — a não ser a insegurança da propriedade ou um governo tirânico — poderia impedir substancialmente a prosperidade das classes trabalhadoras. Poderia, como Sismondi, insistir mais fortemente no caso da antiga Itália, especialmente o Lácio, aquela campgna que na época era habitadíssima, nas próprias regiões que, na evidência de um regime contrário, vieram a tornar-se inabitáveis devido à malária. Mas prefiro recorrer ao depoimento que o mesmo autor deu sobre coisas que chegou a conhecer por observação pessoal. “É especialmente a Suíça — afirma o Sr. de Sismondi — que se deve atravessar e estudar para avaliar a felicidade dos camponeses proprietários. É da Suíça que aprendemos que a lavoura praticada pelas próprias pessoas que gozam de seus frutos é suficiente para proporcionar grande conforto a uma população bem numerosa, uma grande independência de caráter, decorrente do fato de se ter uma situação financeira independente; um grande comércio de consumo, resultante da situação tranquila de todos os habitantes, mesmo em um país de clima rude, de solo apenas razoavelmente fértil, e onde as geadas tardias e a inconstância das estações muitas vezes frustram as expectativas do lavrador. É impossível ver sem admiração aquelas casas de madeira do camponês mais pobre, tão grandes, tão bem cercadas, tão cobertas de gravuras. No interior da casa, corredores espaçosos separam os diversos cômodos da família numerosa; cada cômodo tem apenas uma casa, abundantemente provida de cortinas, roupa de cama e o linho mais branco, tudo cercado de mobílias cuidadosamente conservadas; os guarda-roupas estão cheios de linho; a leitaria é ampla, bem arejada, apresentando uma limpeza refinada; sob o mesmo teto há uma grande provisão de trigo, carne salgada, queijo e lenha; na cocheira encontra-se o gado mais fino e mais bem cuidado da Europa; no jardim plantam-se flores; tanto os homens como as mulheres vestem roupa limpa e quente; as mulheres conservam com orgulho seu costume antigo; todos trazem estampados na face os sinais de saúde e vigor. Deixemos que outros países se gloriem de sua opulência: a Suíça sempre pode apontar com orgulho para seus camponeses”. (106 Études sur l’Économie Politique. Ensaio III) O mesmo eminente autor expressa assim sua opinião sobre as propriedades possuídas por camponeses, de forma geral: “Onde quer que encontremos camponeses proprietários, deparamos com o conforto, a segurança, a confiança no futuro e com a autonomia, que assegura de imediato a felicidade e a virtude. O lavrador que com seus filhos faz todo o trabalho de sua pequena herança, que não paga renda a ninguém acima dele, nem salários a ninguém abaixo dele, que regula sua produção pelo seu consumo, que se nutre com seu próprio trigo, toma seu próprio vinho, se veste com seu próprio cânhamo e sua própria lã, pouco se preocupa com os preços do mercado, pois pouco tem para vender e pouco para comprar, e nunca é arruinado por crises comerciais. Em vez de temer pelo futuro, ele o vê com as cores da esperança, pois emprega cada momento não exigido pelas fainas do ano em algo de útil para seus filhos e para as gerações futuras. Basta-lhe o trabalho de alguns minutos para plantar a semente que dentro de cem anos será uma grande árvore, para cavar o canal que conduzirá até ele uma fonte de água fresca, para aperfeiçoar, com desvelos muitas vezes repetidos, mas roubados de momentos de ócio, todas as espécies de animais e vegetais que o cercam. Seu pequeno patrimônio é um verdadeiro banco de poupança, sempre pronto para receber seus pequenos ganhos e utilizar todos os seus momentos de lazer. A sempre atuante força da Natureza lhe dá um retorno centuplicado. O camponês tem uma percepção aguda da felicidade que provém da condição de ser um proprietário. Por isso, está sempre ansioso por comprar terra a qualquer preço. Ele paga mais do que ela vale, talvez mais do que ela lhe trará em retorno; no entanto, porventura não tem ele razão em valorizar muito a vantagem de ter sempre um investimento rentável para seu trabalho, sem oferecer menos no mercado salarial — de sempre poder encontrar pão, sem necessidade de comprá-lo a um preço característico das épocas de escassez? ”O camponês proprietário é, de todos os lavradores, aquele que mais aufere do solo, pois ele é o que mais pensa no futuro e o que mais aprendeu da experiência. É ele também o que utiliza capacidades humanas com o máximo de vantagem, porque, ao dividir suas ocupações entre os membros de sua família, reserva alguma coisa para cada dia do ano, de sorte que ninguém jamais fica desempregado. Dentre todos os lavradores, ele é o mais feliz; ao mesmo tempo, em parte alguma a terra ocupa e alimenta abundantemente, sem nunca se exaurir, tantos habitantes como lá onde eles são proprietários. Finalmente, dentre todos os lavradores, o camponês proprietário é aquele que mais estimula o comércio e as manufaturas por ser ele o mais rico". (E em outra obra (Nouveaux Principes d’Économie Politique. Livro Terceiro. Cap. 3) ele afirma: “Quando atravessamos quase toda a Suíça e várias províncias da França, Itália e Alemanha, nunca precisamos perguntar, ao olharmos para qualquer pedaço de terra, se ele pertence a um camponês proprietário ou a um arrendatário. O cuidado inteligente, as vantagens de que o trabalhador goza, o trato que a região recebeu de suas mãos, tudo isso são indicações claras de que os agricultores são proprietários. É verdade que um Governo opressivo pode destruir o conforto e embrutecer a inteligência que deveria resultar da propriedade; os impostos podem diminuir a produção maior dos campos, a insolência dos funcionários do Governo pode perturbar a segurança de um camponês, a impossibilidade de obter justiça contra um vizinho poderoso pode semear desânimo em sua mente, e no lindo país que foi restituído à administração do Rei da Sardenha, o proprietário, tanto quanto o trabalhador diarista, leva o distintivo da indigência”. O autor estava aqui falando da Savóia, onde os camponeses costumavam ser proprietários e, no entanto, viviam na miséria extrema, de acordo com relatos autênticos. Mas, como prossegue o Sr. de Sismondi, “é inútil cumprir apenas uma das regras da Economia Política; ela sozinha não é capaz de produzir o bem; mas ao menos ela diminui o mal”). Essa descrição de assiduidade incansável e do que se pode chamar interesse afetuoso pela terra, é fornecida também por observadores ingleses, em relação aos cantões mais preparados da Suíça. “Ao andar por qualquer lugar nas proximidades de Zurique — diz o Sr. Inglis —, ao olharmos para a direita ou para a esquerda, fica-se impressionado com a atividade extraordinária dos habitantes; e se constatamos que aqui o proprietário tem um retorno de 10%, estamos propensos a dizer: ”ele o merece". Falo aqui do trabalho no campo, mas creio que em qualquer outro tipo de ocupação a população de Zurique se notabiliza pela sua assiduidade; no entanto, na iniciativa que revela no cultivo da terra, posso dizer com segurança que não encontra rival. Quando eu costumava abrir minha janela, entre as quatro e as cinco horas da manhã, para apreciar o lago e os Alpes distante via os trabalhadores nos campos; e quando regressava de um passeio de fim de tarde, bem depois do pôr-do-sol, talvez até as oito e meia via o trabalhador cortando seu capim ou amarrando suas parreiras... É impossível olhar para um campo, um jardim ou horta, uma cerca viva e até mesmo uma árvore, uma flor, uma hortaliça, sem perceber demonstrações do cuidado e do trabalho extremos que são dispensados ao cultivo do solo. Se, por exemplo, há um atalho que conduz através de um campo de cereais ou passa ao lado dele, não se permite, como na Inglaterra, que as plantas invadam o atalho, expostas a serem arrastadas ou pisadas pelos que passam; os campos são em toda parte delimitados por uma cerca, plantam-se estacas a intervalos de aproximadamente uma jarda, e, a cerca de dois ou três pés do chão, passam-se galhos de árvores longitudinalmente. Se olharmos para um campo pela tarde, onde há grandes canteiros de couve-flor ou couve, constataremos que cada planta foi regada individualmente. Nas hortas, que ao redor de Zurique são extremamente grandes, cada produto que cresce revela ter sido alvo do cuidado mais minucioso. As hortaliças são plantadas com exatidão aparentemente matemática; não se vê uma única erva daninha, uma única pedra. As plantas não são enterradas como entre nós, mas plantadas em uma pequena cova, sendo que em cada uma delas se coloca um pouco de adubo, e cada planta é regada diariamente. Em semeadura, a terra diretamente em cima das sementes é pulverizada ao máximo; cada arbusto, cada flor é amarrada a uma estaca, e onde há frutas que crescem em paredes, levanta-se uma tela de arame contra a parede, à qual são fixados os ramos, não havendo absolutamente nada que não tenha seu lugar de apoio apropriado”. O mesmo autor expressa-se assim com respeito a um dos vales mais afastados dos Altos Alpes: “Em todo o Engadine, a terra pertence aos camponeses, os quais, como os habitantes de todos os lugares em que existe esse estado de coisas, variam muito na extensão de suas posses... De modo geral, um camponês do Engadine vive inteiramente da produção de sua terra, excetuados os poucos artigos de origem estrangeira necessários à família, como café, açúcar e vinho. O linho é cultivado, preparado, fiado e tecido, sem nunca sair de casa. O camponês tem também sua própria lã, que é transformada em um casaco azul, sem passar pelas mãos do tintureiro ou do alfaiate. É impossível cultivar o campo melhor do que tem sido cultivado. Fez-se por ele tudo o que a iniciativa e um amor extremo ao ganho puderem imaginar. Não existe um pé de terra inculta no Engadine, cuja parte mais baixa não é muito mais baixa do que o cume do Snowdon. Onde quer que possa crescer grama, lá a vemos; onde quer que uma rocha possa produzir a gramínea, vê-se vegetação nela; onde quer que possa amadurecer uma espiga de centeio, ali a encontraremos. A cevada e a aveia também têm os seus locais apropriados; e em todo lugar onde for possível amadurecer um pouco de trigo, tenta-se cultivá-lo. Em região alguma da Europa se depara com tão poucos pobres como no Engadine. Na aldeia de Suss, que conta em torno de seiscentos habitantes, não há um único indivíduo que não tenha com que viver confortavelmente, não há um único indivíduo que deva a outros um único bocado daquilo que consome”. Apesar da prosperidade geral da classe camponesa suíça, não é característica do país inteiro essa ausência total de pauperismo e (podemos também dizer) de pobreza; o cantão maior e mais rico, o de Berna, é um exemplo do contrário, já que, embora naquelas partes do cantão que são ocupadas por camponeses proprietários, sua iniciativa seja tão notável e seu conforto seja tão grande como alhures, o cantão carrega o peso de uma numerosa população indigente, por efeito do pior sistema de administração das leis referentes aos pobres conhecida na Europa, se excetuarmos a da Inglaterra antes da nova lei dos pobres. (Têm havido mudanças notáveis na administração da lei dos pobres do cantão de Berna, desde que foi escrita a frase constante do texto. Mas não conheço suficientemente a natureza e os efeitos dessas mudanças para falar mais especificamente delas aqui). Tampouco a Suíça é, sob alguns outros aspectos, um exemplo favorável de tudo o que o sistema de propriedades possuídas por camponeses poderia causar. Existe uma série de relatos estatísticos dos cantões suíços, na maioria dos casos elaborados com grande cuidado e talento, que contêm dados detalhados, de data razoavelmente recente, com respeito à condição da terra e da população. Esses dados evidenciam que a subdivisão da terra muitas vezes é tão grande que é difícil não supor que seja excessiva; e o endividamento dos proprietários no florescente cantão de Zurique “confina com o inacreditável” (Há aldeias em Zurique — conta ele — em que não há uma única propriedade que não esteja hipotecada. Não quer dizer, porém, que cada proprietário individual esteja afundado em dívidas, pelo fato de ser grande o conjunto dos ônus. No cantão de Schaffhausen, por exemplo, afirma-se que as propriedades fundiárias estão quase todas sob hipoteca, mas raramente por mais da metade de seu valor registrado e muitas vezes as hipotecas se destinam ao aprimoramento e à expansão da propriedade.), como se expressa o autor, de sorte que “somente o trabalho, a frugalidade e a temperança em grau máximo, bem como a completa liberdade de comércio lhes dão condições de aguentar”. No entanto, a conclusão geral que se pode deduzir desses livros é que, desde o início deste século, e contemporaneamente com a subdivisão de muitas propriedades grandes que pertenciam a nobres ou a governos cantonais, tem havido uma melhoria impressionante e rápida em quase todos os setores da agricultura, bem como também nas casas, nos hábitos e na alimentação da população. O autor do relato de Thuergau chega ao ponto de dizer que desde a subdivisão das propriedades feudais em propriedades de camponeses, não é incomum constatar que 1/3 ou 1/4 de uma propriedade produz tanto de cereais e sustenta tantas cabeças de gado quanto o que conseguia fazê-lo anteriormente a propriedade inteira. § 3. A Noruega é um dos países em que os camponeses proprietários são de data mais antiga e são mais numerosos em proporção à população do país. O Sr. Laing forneceu um relato interessante sobre a condição social e econômica desse país. É bem decidido o seu testemunho a favor das pequenas propriedades rurais, tanto naquele país como alhures. Citarei algumas passagens. “Se pequenos proprietários não forem bons lavradores, não é pela mesma razão existente na Escócia, ou seja, a indolência e a falta de trabalho ou iniciativa. A extensão em que é feita a irrigação nesses vales demonstra um espírito de iniciativa e de cooperação” (chamo atenção especial para esse ponto) “em comparação com o qual não existe na Escócia nada de similar. Sendo o feno o alimento principal do gado no inverno, e sendo tanto o feno quanto os cereais e as batatas sujeitos a queimarem e murcharem devido à pouca profundidade do solo e ao forte reflexo do brilho solar por causa das rochas, trabalha-se com o máximo afinco para trazer água do topo de cada vale estreito, ao longo de um nível tal que cada lavrador possa ter o controle da água na cabeceira de seus campos. Isso é feito conduzindo a água em calhas de madeira (a metade de uma árvore grosseiramente escavada), partindo da torrente perene mais alta, localizada entre as colinas, e atravessando florestas, gargantas, ao longo das encostas rochosas e muitas vezes perpendiculares dos vales estreitos, e partindo dessa calha principal, instala-se uma calha lateral para cada lavrador, ao passar pela cabeceira de sua propriedade. O agricultor distribui a água aos campos com calhas móveis, e nessa estação rega sucessivamente cada canteiro com caçambas semelhantes àquelas usadas pelos branqueadores para aguar o tecido, colocando sua calha entre cada dois canteiros. Quem não visse não acreditaria quão grande é a extensão de terra atravessada facilmente por estes chuveiros artificiais. O comprimento das calhas principais é muito grande. Em um só vale andei dez milhas, e o encontrei provido de calhas dos dois lados, sendo que em um dos lados a corrente é prolongada para baixo, até o vale principal, no decurso de quarenta milhas. (Reichensperger (Die Agrarfrage), citado pelo Sr. Kay (Social Condition and Education of the People in England and Europe) observa ”que as regiões da Europa onde se têm executado com maior perfeição os projetos maiores e mais dispendiosos de irrigação de campinas e terras, são aquelas em que as terras estão muito subdivididas e estão nas mãos de pequenos proprietários. Ele dá como exemplos uma planície ao redor de Valência, vários dos departamentos do sul da França, particularmente os de Vaucluse e Bouches du Rhône, Lombardia, Toscana, os distritos de Sena, Luca e Bérgamo, Piemonte, muitas regiões da Alemanha etc., sendo que em todas essas regiões europeias a terra está muito subdividida entre pequenos proprietários. Em todas essas regiões têm-se realizado sistemas e projetos dispendiosos de irrigação geral, sendo atualmente mantidos pelos próprios pequenos proprietários; isso revela como são capazes de realizar trabalho, mediante a cooperação, trabalho que exige o gasto de grandes somas de capital"). Os lavradores que fazem isso podem ser lavradores de má qualidade, mas não são indolentes, não desconhecem o princípio do trabalho conjunto e a vantagem de manter instalações destinadas ao benefício comum. Sob esse aspecto, sem dúvida, estão muito na frente de qualquer comunidade de aldeões dos vales estreitos do nosso planalto. Sentem-se como proprietários que se beneficiam das vantagens de seu próprio trabalho. O excelente estado das estradas e das pontes é uma outra prova de que o país é habitado por pessoas que têm um interesse comum em mantê-las sempre em bom estado. Não há taxas de pedágio”. Quanto aos efeitos das propriedades possuídas por camponeses para o continente em geral, o mesmo autor assim se expressa: “A ouvirmos o explorador de grandes propriedades, o agrônomo científico, o economista político” (inglês), “a boa agricultura deve morrer se não mais houver grandes propriedades; consideram absurda a própria ideia de que possa haver uma agricultura de qualidade, se não for em propriedades grandes, com capital elevado. A drenagem, a adubação, uma estrutura econômica, o limpar a terra, as rotações regulares, capital e implementos de valor, tudo isso só se encontra em propriedades grandes, cultivadas com capital elevado e por mão-de-obra assalariada. Isso soa muito bem; mas se tirarmos os olhos dos livros deles e os dirigirmos para os campos deles mesmos, e se compararmos friamente o que vemos nos melhores distritos cultivados em grandes propriedades com o que vemos nos melhores distritos cultivados em propriedades pequenas, observamos — e não há como ignorar o fato — colheitas melhores nas terras de Flandres, da Frísia oriental, no Holstein, em suma, em toda a extensão de terra arável de qualidade igual do Continente, desde o Sound até Calais, do que na extensão da costa britânica oposta a essa linha, e nas mesmas latitudes desde o Frith of Forth até Dover. É evidente que o trabalho minucioso em áreas pequenas de solo arável proporciona, em solos e climas iguais, uma produtividade maior, lá onde essas pequenas áreas pertencem ao lavrador, como em Flandres, na Holanda, na Frísia e em Ditmarsch no Holstein. Os nossos autores agrícolas não pretendem que os nossos agricultores de grande porte, mesmo em Berwickshire, Roxburghshire ou Lothians, cheguem perto do tipo de cultivo esmerado — semelhante ao que se dispensa a uma horta — e daquela adubação cuidadosa, daquele cuidado que se tem com a drenagem e a boa limpeza da terra, ou daquela produtividade que se pode obter de uma área pequena originalmente não rica, características que distinguem os pequenos agricultores de Flandres, ou seu sistema. Na região mais bem cultivada da Escócia ou da Inglaterra, desperdiça-se mais terra nos cantos e nas beiradas dos campos de propriedades grandes, nas estradas que as atravessam — desnecessariamente largas por serem de má qualidade, e de má qualidade por serem largas —, em terras públicas descuidadas, em locais baldios, em faixas e capões inúteis de míseras árvores, e em outras dessas áreas improdutivas, de quanto seria suficiente para sustentar os pobres da paróquia, se todas essas áreas fossem juntadas e cultivadas. Acontece que os grandes capitais aplicados à agricultura naturalmente são aplicados somente nos melhores solos de um país. Tais capitais não podem atingir áreas improdutivas pequenas, que demandam mais tempo e mais trabalho para fertilizá-la do que se pode compatibilizar com um retorno rápido do capital investido. Contudo, se não há condições de aplicar rentavelmente, neste tipo de cultura, tempo e trabalho de mão-de-obra assalariada, há, sim, condições de aplicar, no caso, o tempo e o trabalho do proprietário da terra. De início este só trabalha na propriedade para tirar dela o seu sustento. Mas no decurso das gerações o trabalho dele torna a terra fértil e a faz adquirir valor, atingindo ele um melhor padrão de vida e conseguindo até introduzir processos agrícolas bem aperfeiçoados. A drenagem da terra, a alimentação do gado em cocheiras durante todo o verão, adubos líquidos são praxes generalizadas na agricultura das pequenas propriedades rurais do Flandres, da Lombardia, da Suíça. Os nossos distritos mais avançados em regime de agricultura em grande escala estão começando a adotar tais práticas. Até a agricultura leiteira e a manufatura dos maiores queijos pela cooperação de muitos pequenos proprietários agricultores (Merece destaque a maneira como os camponeses suíços cooperam entre si para fazer queijo com seu capital conjunto. Cada paróquia na Suíça contrata um homem, geralmente do distrito de Gruyère no cantão de Friburgo, para cuidar do rebanho vacum e fazer o queijo. Para cada quarenta vacas considera-se necessário ter um queijeiro, um prensador ou ajudante e um vaqueiro. A cada dono de vacas credita-se diariamente, em um caderno, a quantidade de leite tirado de cada vaca. O queijeiro e seus ajudantes tiram leite das vacas, juntam todo o leite e fazem queijo com ele, e no fim da estação cada proprietário recebe o peso de queijo proporcional à quantidade de leite que suas vacas deram. Por esse sistema cooperativo, em vez de o agricultor ter somente os queijos pequenos e não comercializáveis, que cada um poderia produzir com o leite de suas três ou quatro vacas, tem o mesmo peso em queijo grande e comercializável, de qualidade superior, porque foi feito por pessoas que só fazem isso por profissão. O queijeiro e seus ajudantes recebem tanto por cabeça de vacas, em dinheiro ou em queijo, ou às vezes alugam as vacas e pagam os proprietários em dinheiro ou em queijo". Notes of a Traveller. Um sistema similar existe no Jura francês. Ver, para todos os detalhes, LAVERGNE. Économie Rurale de la France. Um dos pontos mais notáveis nesse interessante caso de cooperação no trabalho é a confiança que ele supõe na integridade moral das pessoas envolvidas — confiança esta que a experiência deve justificar), o seguro mútuo da propriedade contra o fogo e contra o granizo, pela cooperação de pequenos lavradores — a mais científica e dispendiosa de todas as operações agrícolas nos tempos modernos, a manufatura de açúcar de beterraba —, o fornecimento aos mercados europeus de linho e cânhamo, pela agricultura de pequenos lavradores — a abundância de legumes, frutas, galináceos, na dieta habitual mesmo das classes mais baixas no exterior, e a falta total de tal variedade nas mesas até das nossas classes médias, e sendo essa variedade e abundância essencialmente ligadas ao fato de a agricultura ser praticada em pequena escala — tudo isso são características do sistema de ocupação de um país por pequenos camponeses proprietários, que obrigam o pesquisador a parar antes de admitir o dogma propalado pelos nossos doutores de agricultura, segundo os quais somente a agricultura em grande escala, operada por mão-de-obra assalariada e capital elevado, consegue a produtividade máxima do solo e fornece a quantidade máxima de gêneros de primeira necessidade e de conveniência para os habitantes de um país". § 4. Entre as muitas regiões florescentes da Alemanha em que dominam as propriedades de camponeses, escolho o Palatinato, pela vantagem de poder avaliar, com base em uma fonte inglesa, os resultados de observação pessoal recente de sua agricultura e de sua população. O Sr. Howitt, autor que tem o hábito de ver com bons olhos todas as coisas inglesas e os gregarismos ingleses, e que, ao tratar dos camponeses da Renânia, certamente não subestima a natureza primitiva de seus implementos e a qualidade inferior de seu sistema agrícola, não obstante mostra que, sob a vigorosa influência do sentimento de serem proprietários, esses camponeses compensam as imperfeições de seus implementos pela intensidade de sua aplicação. “O camponês gradeia e limpa sua terra até ela estar na mais perfeita ordem, e é admirável ver as colheitas que consegue”. “Os camponeses são os objetivos grandes e sempre presentes da vida no campo agrícola. Constituem a grande população rural do país, pelo fato de serem eles mesmos os proprietários. Realmente, este país, na maior parte, está nas mãos da população. Ele está repartido entre a multidão (...) Os camponeses não estão, na sua maior parte — como entre nós —, totalmente privados da propriedade do solo que cultivam, não são totalmente dependentes do trabalho executado por outros, eles mesmos são os proprietários. É talvez por isso que provavelmente são os camponeses mais operosos do mundo. Trabalham afanosamente, cedo e tarde, porque sentem que estão trabalhando para si mesmos. (...) Os camponeses alemães trabalham duro, mas não passam nenhuma necessidade real. Cada um tem sua casa, seu pomar, suas árvores à beira da estrada, e normalmente tão carregadas de frutas que são obrigados a podá-las e sustentá-las de todos os modos, para que não caiam em pedaços. O camponês alemão tem seu campo para trigo, seu campo para beterraba de forragem, para cânhamo, e assim por diante. Ele é seu próprio patrão, e tanto ele como cada membro de sua família têm a motivação máxima para trabalhar. Vê-se o efeito disso nessa diligência incessante que ultrapassa a de todo mundo, e na sua economia, que é ainda maior. Sem dúvida, os alemães não são tão ativos e rápidos como os ingleses. Nunca se vê os alemães em afobação, ou como se pretendessem realizar um grande serviço em pouco tempo. (...) Pelo contrário, são lentos, mas para poderem trabalhar sempre. (...) Eles mourejam dia por dia, ano por ano — o alemão é o mais paciente, incansável e perseverante dos animais. O camponês inglês está tão desligado da ideia de propriedade que habitualmente a considera uma coisa da qual está excluído pelas leis dos grandes proprietários, tornando-se, em consciência, uma pessoa desanimada, sem objetivos. Ao contrário, o Bauer (camponês) alemão considera o país feito para ele e para seus concidadãos. Ele se sente homem: ele tem um interesse pessoal no país, tão grande quanto o interesse de todos os seus vizinhos; ninguém pode ameaçá-lo de expulsão ou de mandá-lo para o asilo de pobres, enquanto ele for ativo e econômico. Por isso ele caminha com um passo intrépido; olha para o outro como um homem livre, mas um homem que respeita os outros”. Quanto à iniciativa dos camponeses alemães, o nosso autor escreve o seguinte: “Não há uma hora no ano em que não encontrem ocupação incessante. No inverno mais duro, quando o tempo de forma alguma lhes permite sair de casa, sempre encontram alguma coisa para fazer. Carregam seu adubo para suas terras enquanto cai a geada sobre os campos. Se não há geada, ocupam-se em limpar fossos e em derrubar árvores frutíferas velhas ou as que já não produzem bem. Aqueles que são muito pobres para terem um estoque suficiente de lenha têm bastante trabalho para subir as florestas montanhosas e trazer para casa seu combustível. O inglês comum se surpreenderia ao ver o trabalho intenso que os alemães têm para ganhar a lenha para seu fogão. Em meio à geada e à neve mais intensas, vamos para qualquer uma de suas colinas e florestas, e lá os encontraremos cortando tocos, cortando galhos de árvores e juntando — com todos os meios não proibidos pelos guardas florestais — galhos, estacas e pedaços de lenha, que levam para casa com o afã e a paciência mais incríveis”. Depois de uma descrição de sua cultura cuidadosa e laboriosa dos vinhedos, o autor prossegue: “Na Inglaterra, que se caracteriza pela sua grande quantidade de terras de pastagem e pelas suas grandes propriedades, tão logo os cereais estão colhidos e os campos são fechados para cultivar forragem, o campo parece ficar em um estado de relativo descanso e quietude. Ao contrário, aqui, em toda parte e sempre os camponeses estão capinando e roçando, plantando e cortando, arrancando ervas daninhas e colhendo alguma coisa. Têm uma sucessão de colheitas como um horticultor. Têm suas cenouras, papoulas, cânhamo, linho, sanfeno, luzerna, engaço, couve, repolho, rotabaga, nabos pretos, nabos suecos e nabos brancos, cardos penteadores, alcachofras, beterraba de forragem, pastinagas, cenouras brancas, feijão comum, bem como ervilhas, ervilhaca, milho, trigo-sarraceno, garança para o manufator, batatas, suas grandes plantações de fumo, painço — tudo isso, ou ao menos a maior parte, sob a administração da família, em suas próprias terras familiares. Em todas essas coisas, primeiro tiveram que semear, muitas delas tiveram que transplantar, capinar, arrancar ervas daninhas, matar insetos, podar; muitas delas tiveram que ceifar e colher em safras sucessivas. Têm seus campos ribeirinhos — pois quase todos os seus prados são desse tipo — para irrigar, para roçar e irrigar novamente; têm que reabrir cursos d’água e abrir novos; têm que colher suas frutas temporãs, para levá-las ao mercado, juntamente com suas colheitas de verduras e hortaliças; têm que cuidar do gado, das ovelhas, bezerros e potrancos — a maior parte deles presos — e das suas aves domésticas; têm suas videiras, quando sobem vigorosamente no calor do verão, para podar e afinar as folhas quando são muito grossas. Ora, qualquer um pode imaginar o que representa tudo isso, em termos de faina incessante”. Esse esboço interessante, cuja veracidade geral pode ser atestada por qualquer viajante observador naquela região altamente cultivada e povoada, concorda com a descrição mais detalhada feita por um de seus ilustres habitantes, o Prof. Rau, em seu pequeno tratado Sobre a Agricultura no Palatinato. O Dr. Rau dá testemunho não somente da iniciativa, mas também da perícia e do talento dos camponeses, de seu emprego criterioso dos adubos e da excelente rotação de colheitas, do aprimoramento progressivo de sua agricultura durante gerações passadas, e do espírito de ulterior aperfeiçoamento ainda em curso. “O caráter incansável da população dos camponeses, que podem ser vistos em atividade o dia e o ano inteiro, e nunca estão inativos, por fazerem uma boa distribuição de suas tarefas, e encontram para cada intervalo de tempo uma ocupação conveniente, é uma característica tão bem conhecida como é apreciável seu zelo em tirar proveito de toda circunstância que se apresentar, em fazer uso de toda novidade útil que se ofereça, e mesmo em buscar métodos novos e rentáveis. Percebe-se facilmente que o camponês desse distrito refletiu muito sobre sua ocupação: ele tem condições de indicar os motivos pelos quais procede desta ou daquela forma, mesmo que essas razões nem sempre sejam defensáveis: ele é um observador tão exato das proporções quanto seja possível sê-lo de memória, sem a ajuda dos números; ele perscruta aqueles sinais gerais do tempo que o levam a prever benefício ou prejuízo”. Semelhante é a experiência de todas as demais regiões da Alemanha. “Na Saxônia” — diz o Sr. Kay — “é um fato notório que durante os últimos trinta anos e desde que os camponeses se tornaram os proprietários da terra tem havido uma melhoria rápida e contínua na condição das casas, na maneira de viver, no vestir dos camponeses e particularmente no cultivo da terra. Por duas vezes andei por aquela parte da Saxônia que se denomina Suíça saxônia, em companhia de um guia alemão, propositadamente para ver o estado das aldeias e da lavoura, e com segurança desafio a contradizer-me se afirmo que em toda a Europa não existe lavoura superior ao laborioso e cuidadoso cultivo dos vales daquela parte da Saxônia. Lá, como nos cantões de Berna, Vaud e Zurique e nas províncias do Reno, as propriedades rurais são singularmente florescentes. São conservadas em boas condições e estão sempre limpas e bem administradas. O solo é limpo como se fosse um jardim. Não há cercas ou gravetos para atrapalhar. Dificilmente se vê um junco ou cardo, ou um pouco de capim viçoso. Os campos são bem regados toda primavera, com adubo líquido, economizado dos esgotos da propriedade. Há tão poucas ervas daninhas em meio à relva que os campos da saxônia me lembram mais os gramados ingleses do que qualquer outra coisa que já vi anteriormente. Os camponeses porfiam em suplantar um ao outro na quantidade e na qualidade do produto, no preparo do solo e no cultivo geral de suas respectivas áreas. Todos os pequenos proprietários são ávidos por saber como cultivar de modo a maximizar os resultados: procuram diligentemente aperfeiçoamentos, enviam seus filhos às escolas agrícolas para colocá-los em condição de ajudarem a seus pais, e cada proprietário adota logo uma nova melhoria introduzida por algum de seus vizinhos”. Se isso não for exagerado, denota um talento muito diferente, não somente daquele dos trabalhadores dos campos ingleses, mas também daquele dos arrendatários e proprietários ingleses. O livro do Sr. Kay, publicado em 1850, contém uma grande quantidade de depoimentos coligidos de observação e pesquisas feitas em muitas regiões diferentes da Europa, juntamente com muitas declarações de muitos autores salientes, em favor dos efeitos benéficos das propriedades mantidas por camponeses. Entre os testemunhos que ele cita com respeito ao seu efeito sobre a agricultura, escolho o que segue. “Reichensperger, ele mesmo habitante daquela parte da Prússia em que a terra está mais subdividida, publicou um trabalho longo e muito bem elaborado para mostrar as consequências admiráveis de um sistema de propriedades fundiárias livres e alodiais. Ele expressa uma opinião muito decidida de que não somente a produção bruta de qualquer determinado número de acres possuído e cultivado por proprietários pequenos ou camponeses é maior do que a produção bruta de um número igual de acres possuído por alguns proprietários grandes e cultivado por arrendatários, mas que também a produção líquida das primeiras, após deduzir todas as despesas de cultivo, também é maior que a produção líquida das segundas. (...) Ele menciona um fato que parece provar que deve aumentar rapidamente a fertilidade da terra em países em que as propriedades são pequenas. Ele afirma que o preço da terra dividida em propriedades pequenas, nas províncias prussianas do Reno, é muito mais alto, e tem aumentado com muito mais rapidez do que o preço da terra nas propriedades grandes. Tanto ele como o Prof. Rau afirmam que esse aumento do preço das pequenas propriedades teria arruinado os compradores mais recentes se a produtividade das propriedades pequenas não tivesse aumentado no mínimo em proporção igual; e como os pequenos proprietários se têm gradualmente tornado cada vez mais prósperos, a despeito dos preços maiores que pagaram por sua terra, ele argumenta — de forma obviamente correta — que isso parece provar que têm aumentado gradualmente não só os lucros brutos das propriedades pequenas, mas também o mesmo aconteceu com os lucros líquidos, e que os lucros líquidos por acre de terra, quando cultivada por pequenos proprietários, são maiores do que os lucros líquidos por acre de terra cultivada por um grande proprietário. Ele afirma, com aparente verdade, que o aumento do preço da terra nas propriedades pequenas não pode ser apenas o efeito da concorrência, do contrário teriam diminuído os lucros e a prosperidade dos pequenos proprietários, resultado este que não se verificou com esse aumento do preço da terra. ”Albrecht Thaer, outro famoso autor alemão que escreveu sobre os diversos sistemas de agricultura, em uma de suas obras mais recentes (Grundsaetzeder rationellen Landwirthschaft) exprime sua convicção firme de que a produção líquida da terra é maior quando cultivada por pequenos proprietários do que quando o é por grandes proprietários ou seus rendeiros. (...) Essa opinião de Thaer é tanto mais notável porque, durante a primeira parte de sua vida, seu parecer era extremamente favorável ao sistema inglês de grandes propriedades e da agricultura em grande escala". Baseado em sua própria observação, o Sr. Kay acrescenta: “A lavoura dos camponeses da Prússia, da Saxônia, da Holanda e da Suíça é a mais perfeita e a mais econômica que jamais vi em qualquer país”. § 5. Entretanto, o exemplo mais decisivo contra o preconceito inglês que ataca o cultivo da terra por pequenos proprietários camponeses é o caso da Bélgica. Por natureza, o solo é um dos piores da Europa. “As províncias de Flandres ocidental e oriental e do Hainault — diz o Sr. McCulloch — constituem uma vasta planície, cuja vegetação luxuriante denota o cuidado e o trabalho incansáveis dispensados ao seu cultivo, pois o solo natural consta quase exclusivamente de areia estéril, sendo a sua grande fertilidade inteiramente resultado de uma administração muito habilidosa e de uma aplicação criteriosa de vários adubos." Existe um tratado cuidadosamente preparado e abrangente sobre a “Agricultura Flamenga”, na Farmer’s Series da Sociedade para a Difusão de Conhecimento Útil. O autor observa que os agricultores flamengos “parecem não desejar outra coisa senão um espaço para trabalhar nele: qualquer que seja a qualidade ou natureza do solo, com o tempo farão com que ele produza alguma coisa. As areias na Campine só podem ser comparadas à areia existente na costa marítima, e provavelmente em sua origem eram isso mesmo. É altamente interessante seguir passo por passo o avanço do aprimoramento. Aqui se vê uma casa de aldeão e um rude abrigo de vacas, erigidos em um lugar que apresenta um aspecto muito pouco promissor. A areia solta e branca acumulada pelo vento em montículos só se mantém coesa pelas raízes das urzes; somente uma pequena área nivelada e cercada por uma vala; parte dela está coberta com giesta nova, em outra parte se plantam batatas, e talvez uma pequena porção apresente trevo miúdo; mas vai-se juntando adubo, tanto sólido como líquido, e esse é o núcleo do qual, em alguns anos, se espalha uma pequena cultura ao redor. (...) Se não houver adubo à mão, a única coisa que se pode semear de início na areia pura é a giesta, a qual cresce nos solos mais estéreis; em três anos ela está pronta para ser cortada, produzindo algum retorno em forma de feixes para os padeiros e fabricantes de tijolos. As folhas que caíram enriqueceram um pouco o solo, e as fibras das raízes tornaram o solo um pouco mais compacto. O solo pode agora ser arado, podendo-se semear nele trigo-sarraceno, ou até centeio, sem adubo. Quando este for colhido, é possível que se tenha juntado algum adubo, podendo-se então começar um curso regular de colheita. Tão logo o trevo e as batatas permitirem ao agricultor sustentar vacas e fazer adubo, o progresso continua rapidamente; em alguns anos o solo passa por uma mudança completa: ele se torna macio e retém a umidade, e se enriquece com a matéria vegetal fornecida pela decomposição das raízes de trevo e de outras plantas.(...) Depois de a terra ter atingido boas condições e após ser cultivada de maneira regular, vê-se muito menos diferença entre os solos que eram bons por natureza e aqueles que adquiriram essa qualidade pelo trabalho e pela iniciativa. No mínimo, a produção colhida dos dois tipos de solo se assemelha mais na hora da colheita do que ocorre em solos de qualidades diferentes em outros países. Isso é uma grande prova da excelência do sistema flamengo, pois demonstra que a terra está em constante estado de aprimoramento, e que a deficiência do solo é compensada pela maior atenção dada à cultura e à adubação, sobretudo esta última”. As pessoas que trabalham com essa intensidade em suas pequenas propriedades ou terras arrendadas, praticaram durante séculos aqueles princípios de rotação das safras e de economia de adubo que na Inglaterra de hoje são considerados descobertas modernas; e mesmo hoje, juízes competentes admitem a superioridade da cultura deles, no todo, em relação à da Inglaterra. “O cultivo de um solo leve e pobre, ou de um solo razoável” — diz o autor que acabamos de citar — “é geralmente superior, em Flandres, ao das propriedades mais aperfeiçoadas do mesmo tipo na Grã-Bretanha. Superamos de muito o agricultor flamengo em capital, na variedade de implementos agrícolas, na seleção e criação de gado e de ovelhas” (embora, segundo a mesma autoridade, eles estejam muito mais ‘avançados do que nós na alimentação das suas vacas’) “e geralmente o agricultor britânico tem mais instrução que o camponês flamengo. Mas quanto à atenção minuciosa às qualidades do solo, à administração e à aplicação de adubos de tipos diversos, à criteriosa sucessão de colheitas e, sobretudo, à economia de terra, de sorte que cada porção dela esteja produzindo constantemente, ainda temos algo a aprender com os flamengos” — não de algum flamengo instruído e empreendedor que se possa encontrar aqui e acolá, mas da prática geral dos flamengos. Grande parte da região do país melhor cultivada consta de propriedades possuídas por camponeses, cultivadas pelos proprietários, e sempre com o trabalho de pá, totalmente ou ao menos em parte. “Quando a terra é cultivada inteiramente com a pá, e não há cavalo, mantém-se uma vaca para cada três acres de terra, alimentando-a inteiramente com capim e raízes cultivadas. Esse tipo de cultura é adotado principalmente no distrito de Waes, onde as propriedades são muito pequenas. Todo o trabalho é executado pelos diversos membros da família”, sendo que os filhos começam cedo “a ajudar em várias operações de pequeno porte, conforme sua idade e força física, tais como arrancar ervas daninhas, capinar, alimentar as vacas; se conseguirem cultivar centeio e trigo em quantidade suficiente para fazer seu pão e batatas, nabos, cenouras e trevo para as vacas, estão bem; e a receita resultante da venda de suas sementes de colza, de seu linho, seu cânhamo e sua manteiga, após deduzir o gasto com adubos comprados — que sempre é considerável — lhes assegura um lucro excelente. Suponhamos que a área total da terra seja 6 acres, que não é uma ocupação incomum, e que um único homem pode dar conta; nesse caso” (após descrever o cultivo), “se considerarmos que um homem com sua mulher e três filhos pequenos equivale a três homens adultos e meio, a família precisará de 39 bushels de cereais, 49 bushels de batatas, um porco gordo e a manteiga e o leite de uma vaca; 1 1/2 acre de terra produzirá os cereais e as batatas, deixando algum cereal para acabar de engordar o porco, que ainda come o soro de manteiga que sobra; um outro acre de trevo, cenouras e batatas, juntamente com os restolhos de nabos, será mais que suficiente para alimentar a vaca; consequentemente, 2 1/2 acres de terra são suficientes para alimentar essa família, e a produção dos outros 3 1/2 acres pode ser vendida para pagar o aluguel ou os juros do dinheiro de compra, o desgaste dos implementos, o adubo extra, e as roupas para a família. Ora, esses acres são os mais rentáveis da propriedade, pois neles estão incluídos o cânhamo, o linho e a colza; e tendo-se um outro acre para plantar trevo e raízes, pode-se manter uma segunda vaca, podendo vender-se a produção desta. Temos, pois, uma solução para o problema de como uma família pode viver e prosperar com 6 acres de terra de solo não acima do razoável.” Depois de mostrar, com cálculos, que tal extensão de terra pode ser cultivada da maneira mais perfeita pela família, sem qualquer ajuda de mão-de-obra paga, o autor prossegue: “Em uma propriedade de 10 acres cultivada inteiramente com pá, o acréscimo de um homem e uma mulher aos membros da família facilitará todas as operações; e se houver cavalo e carroça para transportar o adubo e trazer para casa a produção, e ocasionalmente puxar as grades, pode-se cultivar muito bem 15 acres. (...) Assim sendo, ver-se-á” (este é o resultado de algumas páginas de detalhes e cálculos)130 “que com agricultura na base da pá, um homem aplicado dotado de um pequeno capital, ocupando apenas 15 acres de terra leve e boa, pode não somente viver e criar uma família, pagando uma boa renda, senão que também pode acumular uma quantia considerável no decurso de sua vida”. Mas será que o trabalho incansável com o qual ele realiza isso, e do qual uma percentagem tão grande é gasta, não no cultivo, mas no aprimoramento do próprio solo, com vistas a um retorno a longo prazo — será que todo esse trabalho não se deve ao fato de o agricultor não pagar renda? Poderia todo esse trabalho existir, sem pressupor ou uma locação virtualmente permanente ou então uma certa perspectiva de, com o trabalho e a economia feita em terra arrendada, um dia se tornar um proprietário de terra? Quanto ao seu padrão de vida, “os agricultores e trabalhadores flamengos vivem de uma maneira muito mais econômica do que a mesma categoria na Inglaterra: raramente comem carne, exceto nos domingos e na época da colheita; seu alimento diário é soro de manteiga e batatas com pão preto”. É com base nesse depoimento que os viajantes ingleses, quando passam apressadamente pela Europa, falam dos camponeses de cada país do Continente como de uma classe pobre e miserável, qualificam seu sistema agrícola e social como um fracasso, e o sistema inglês como o único regime no qual os trabalhadores do campo estão bem. Sem dúvida, é certo que o regime inglês é o único no qual os trabalhadores, seja a sua situação boa ou má, nunca tentam uma situação melhor. Os trabalhadores ingleses estão a tal ponto pouco acostumados a considerar a possibilidade de um trabalhador não gastar tudo o que ganha que habitualmente confundem os sinais da economia com os da pobreza. Observe-se a interpretação verdadeira dos fenômenos. “Consequentemente, gradualmente vão adquirindo capital, e sua grande ambição é ter terra própria. Avidamente aproveitam cada oportunidade de comprar uma pequena propriedade, e o preço sobe tanto em razão da concorrência, que a terra paga um pouco mais de 2% de juros pelo dinheiro da compra. As grandes propriedades desaparecem gradualmente, sendo divididas em porções pequenas, que se vendem a um preço alto. Mas a riqueza e a iniciativa da população cresceram continuamente, sendo mais difundidas nas massas do que acumuladas em indivíduos”. Com fatos como estes, conhecidos e acessíveis, não deixa de surpreender bastante ver o caso de Flandres citado, não para recomendar as propriedades de camponeses, mas como uma advertência contra elas — e isso, apenas devido a um presumido excesso de população, inferido da miséria que existia entre os camponeses do Brabant e do Flandres oriental no desastroso ano de 1846/47. O testemunho que citei de um autor que conhece o assunto e não tem nenhuma teoria econômica a defender, mostra que a miséria, qualquer que tenha sido sua intensidade, não se deveu a alguma insuficiência, nessas pequenas propriedades, para suprir com abundância, em qualquer circunstância normal, as necessidades de todos aqueles que elas têm que sustentar. Ela se deveu à condição básica à qual estão sujeitos todos os que empregam sua terra para produzir seu próprio alimento, isto é, o fato de serem eles mesmos que têm de arcar com as vicissitudes das estações, não podendo repassar esse ônus para o consumidor, como ocorre no caso dos agricultores que operam em grande escala. Quando recordamos o período de 1846 — um fracasso parcial de todos os tipos de cereais e um fracasso quase total da batata — não há que estranhar que, em uma calamidade tão incomum, a produção de 6 acres — sendo a metade deles plantados com linho, cânhamo ou sementes de árvores olíferas — não fosse suficiente para suprir uma família durante um ano. Mas não devemos comparar o desafortunado camponês flamengo com um capitalista inglês que cultiva várias centenas de acres de terra. Se o camponês fosse um inglês, ele não seria esse capitalista, mas um trabalhador diarista, empregado de um capitalista. E porventura não existe miséria, em épocas de carestia; entre trabalhadores diaristas? Não houve porventura miséria, naquele ano, em países em que não existem pequenos proprietários e pequenos arrendatários? Não conheço razão alguma para crer que a miséria foi maior na Bélgica do que corresponde à intensidade proporcional do fracasso das colheitas, comparado com outros países. (Na medida em que a miséria ultimamente lamentada na Bélgica é de caráter permanente, é manifesto que ela se restringe mais ou menos à parcela da população que trabalha nas manufaturas, ou exclusivamente ou junto com a agricultura, sendo gerada por uma diminuição da demanda de manufaturados belgas. Aos testemunhos anteriores concernentes à Alemanha, à Suíça e à Bélgica, pode-se acrescentar o seguinte de Niebuhr com respeito à campgna romana. Diz ele, em uma carta de Tivoli: “Onde quer que se depare com agricultores hereditários ou pequenos proprietários, ali se encontra também iniciativa e honestidade. Creio que uma pessoa que empregasse uma grande fortuna em fundar pequenas propriedades poderia acabar com as depredações nos distritos montanhosos”. Life and Letters of Niebuhr). § 6. A evidência dos efeitos benéficos das propriedades possuídas por camponeses nas ilhas do Canal é tão decisiva que não posso furtar-me a acrescentar às numerosas citações já feitas parte de uma descrição da condição econômica daquelas ilhas, feita por um autor que associa a observação pessoal a um estudo atento da informação fornecida por outros. O Sr. William Thornton, em seu Plea for Peasant Proprietors — livro que, tanto pela qualidade de seu material quanto pela sua elaboração, merece ser considerado a obra-padrão sobre esse aspecto da questão — refere-se à ilha de Guernsey nos seguintes termos: “Nem mesmo na Inglaterra, uma área tão pequena de terra coloca no mercado uma quantidade nem de longe tão grande de produção. Isso, por si só, poderia provar que os agricultores estão longe de serem pobres, pois, sendo donos absolutos de tudo o que produzem, naturalmente só vendem aquilo de que não precisam para si. Mas a condição satisfatória deles é evidente para qualquer observador. ‘A comunidade mais feliz que já tive a sorte de encontrar — diz Sr. Hill — vive nesta pequena ilha de Guernsey’. ‘Para qualquer lugar que o viajante vá, em toda parte domina o conforto’ — diz Sir George Head. O que mais surpreende o visitante inglês em seu passeio a pé ou em condução para além dos confins de St. Peter’s Port é o aspecto das casas que a paisagem nos oferece em abundância. Muitas delas são do tipo daquelas que, na Inglaterra, pertenceriam a pessoas de classe média; mas o visitante está cheio de curiosidade para saber que tipo de gente vive nas outras casas, as quais, embora geralmente não sejam suficientemente grandes para agricultores, são quase invariavelmente boas demais, sob todos os aspectos, para trabalhadores diaristas. (...) Literalmente, na ilha inteira, com exceção de alguns casebres de pescadores, não existe nenhuma coisa tão pequena que se possa assemelhar à casa normal de um trabalhador rural inglês. (...) Diz um recente intendente de Guernsey, o Sr. De L’Isle Brock: ‘Olhe as barracas dos ingleses, e compare-as com as casas dos nossos camponeses’. (...) Mendigos simplesmente não existem aqui. (...) A indigência, ao menos de pessoas com forças para trabalhar, é quase tão rara quanto a mendicância. As contas das Caixas Econômicas também dão testemunho da abundância geral de que desfrutam as classes trabalhadoras de Guernsey. No ano de 1841, havia na Inglaterra, de uma população de quase 15 milhões de habitantes, menos de 700 mil depositantes, isto é, um em cada vinte pessoas, e o montante médio dos depósitos era de 30 libras. Em Guernsey, no mesmo ano, de uma população de 26 mil, o número de depositantes era de 1920, e o montante médio dos depósitos era de 40 libras”. O depoimento referente a Jersey e Alderney é semelhante. Quanto à eficiência e à produtividade da agricultura nas pequenas propriedades das ilhas do Canal, o Sr. Thornton traz amplo depoimento, cujo resultado resume no seguinte: “Evidencia-se, portanto, que nas duas principais ilhas do Canal, a população agrícola é, em uma, duas vezes, e na outra, três vezes mais densa do que na Grã-Bretanha, havendo neste último país somente um cultivador para 22 acres de terra cultivada, quando em Jersey há um para 11 acres, e em Guernsey um para 7. No entanto, a agricultura dessas ilhas sustenta, além de agricultores, populações não agrícolas, que são, respectivamente, quatro ou cinco vezes mais densas do que a população da Grã-Bretanha. Essa diferença não provém de alguma propriedade de solo ou de clima das ilhas do Canal, pois o solo, por natureza, é antes pobre, e o clima não é melhor do que nos condados do sul da Inglaterra. Ela se deve totalmente ao cuidado assíduo dos agricultores e ao uso abundante de adubo. No ano de 1837 — diz ele em outro lugar — a produção média de trigo nas grandes propriedades da Inglaterra era de apenas 21 bushels, e a média mais alta para qualquer condado não passava de 26. A média mais alta já afirmada para toda a Inglaterra é de 30 bushels. Em Jersey, onde o tamanho médio das propriedades é de apenas 16 acres, a produção média de trigo por acre, segundo Inglis em 1834, era de 35 bushels; mas as tabelas oficiais provam que essa média foi de 40 bushels nos cinco anos que terminaram em 1833. Em Guernsey, onde, segundo Inglis, se considera que as propriedades são ainda menores, estima-se que 4 bushels por acre representam uma boa colheita, mas ainda uma colheita muito comum. Trinta xelins por acre seriam considerados, na Inglaterra, renda muito boa para terra de qualidade média, ao passo que nas ilhas do Canal somente uma terra de qualidade bem inferior não se arrendaria por no mínimo 4 libras”. § 7. É da França que geralmente se tiram impressões desfavoráveis às propriedades possuídas por camponeses; segundo se afirma, com tanta frequência, é na França que esse sistema teve como resultado a agricultura mais ordinária possível, e está reduzindo rapidamente — se já não reduziu — a classe camponesa quase à inanição, devido à subdivisão das terras. É difícil haver um caso em que a prevalência geral de impressões tanto prove o contrário da verdade. A agricultura da França estava arruinada e a classe camponesa em condição de grande indigência antes da Revolução. Naquela época os camponeses franceses não eram proprietários de terra, tanto como hoje. No entanto, havia distritos notáveis da França em que a terra, mesmo então, era em grande parte propriedade dos camponeses, e entre estas havia muitas das exceções mais notáveis à agricultura geralmente má e à pobreza generalizada. Nesse ponto temos uma autoridade incontestável em Ar-thur Young, o inveterado inimigo das propriedades pequenas, o corifeu da moderna escola inglesa de agrônomos; não obstante, viajando por quase toda a França em 1787, 1788 e 1789, quando ele depara com uma excelência notável da agricultura, nunca hesita em atribuí-la ao fato de os camponeses serem proprietários da terra. “Partindo de Sauve” — diz ele — “muito me impressionou uma grande área de terra, que aparentemente não passava de grandes rochas, e no entanto a maior parte dela estava cercada e plantada com o maior cuidado. Cada um tem uma oliveira, uma amoreira, uma amendoeira ou um pessegueiro, e videiras espalhadas entre elas, de sorte que todo o solo está coberto com a mais estranha mistura, que se possa conceber, dessas plantas e de rochas salientes. Os habitantes dessa aldeia merecem encorajamento por sua iniciativa, e se eu fosse um ministro da França, tê-lo-iam. Logo transformariam em hortas e pomares todos os desertos que os rodeiam. Um grupo desses agricultores ativos, que transformam suas rochas em terras férteis pelo fato de a eles pertencerem — como suponho —, fariam o mesmo com os desertos, se estivessem animados pelo mesmo princípio onipotente.” E alhures: “Vamos a Rossendal (perto de Dunquerque) onde o Sr. le Brun tem uma benfeitoria nas dunas, que com muita gentileza me mostrou. Entre a cidade e esse lugar há um grande número de casas pequenas e lindas, cada uma construída com sua horta e um ou dois campos cercados, de areia de duna da pior espécie, naturalmente branca como a neve, mas aprimorada pelo trabalho humano. A mágica da propriedade transforma areia em ouro”. E em outro lugar: “Saindo de Gange, surpreendeu-me encontrar o que é de longe o maior trabalho de irrigação que já havia visto até ali na França; e então passei por algumas montanhas íngremes, altamente cultivadas em terraços. Muita irrigação em St.-Laurent. A paisagem é muito interessante para um agricultor. De Gange para a montanha de solo rude que atravessei, a viagem foi a mais interessante que fiz na França, os esforços do trabalho são os mais vigorosos, a animação é a mais viva. Foi o trabalho humano que aqui varreu todas as dificuldades existentes e vestiu de vegetação as próprias rochas. Seria uma ofensa ao bom senso perguntar pela causa; ela deve estar no fato de as pessoas terem uma propriedade. Dê-se a uma pessoa a posse segura de uma rocha desolada, e ela a transformará em um jardim; arrende-se-lhe um jardim por nove anos e ela o transformará em um deserto”. Na descrição que o autor faz da região localizada aos pés dos Pireneus ocidentais, já não fala com base em conjecturas, mas com conhecimento. “Rumemos para Moneng, e vejam uma coisa que para mim era tão nova na França que dificilmente conseguia acreditar no que meus olhos viam. Uma sucessão de casas de aldeões agricultores, apertadas e confortáveis, construídas de pedra e cobertas de telhas; cada uma delas provida de seu pequeno pomar, cercada com sebes de espinheiro, com bastantes pessegueiros e outras árvores frutíferas, alguns excelentes carvalhos espalhados à beira da estrada e árvores jovens cuidadas com tanto carinho que coisa parecida só poderia ser feita pela atenção do proprietário. A cada casa pertence uma propriedade cultivada, perfeitamente bem cercada, com as beiradas de capim bem cortadas e bem mantidas em torno dos campos de cereais, com porteiras para passar de uma área para outra. Há algumas regiões da Inglaterra (onde ainda permanecem proprietários rurais) que se assemelham a essa região de Béarn, mas temos muito pouco que se iguale ao que vi nessa viagem de 12 milhas, de Pau até Moneng. Ela está toda nas mãos de pequenos proprietários, sem que a propriedade seja tão pequena que gere uma população viciada e miserável. Em tudo domina um aspecto de limpeza e bom gosto, de calor humano e conforto. Isso é visível em suas casas e estábulos recém-construídos, em pequenos jardins, em suas cercas vivas, nos pátios diante das portas, e até mesmo em galinheiros e pocilgas. Um camponês não pensa em tratar bem de seu porco se sua própria felicidade depender de uma locação de nove anos. Estamos agora em Béarn, a poucas milhas do berço de Henrique IV. Será que essa população herdou as bênçãos daquele bom príncipe? O caráter benigno daquele bom monarca parece continuar a reinar sobre a região; cada camponês tem sempre garantido o frango na panela”. Com frequência o autor aponta a excelência da agricultura do Flandres francês, onde as propriedades “são todas pequenas, e grande parte delas está nas mãos de pequenos proprietários”. No Pays de Caux, também uma região de propriedades pequenas, a agricultura estava em situação lamentável — a explicação dada por ele é que “é uma região manufatureira, e a agricultura é apenas um interesse secundário em relação à manufatura algodoeira, que se espalha por toda a região”. No mesmo distrito continua a haver manufaturas, e uma região de pequenos proprietários, sendo agora uma das regiões mais bem cultivadas da França, quer julguemos pelas colheitas, quer avaliemos com base nos dados oficiais. Em “Flandres, na Alsácia e em parte do Artois, bem como às margens do Garonne, a França possui uma agricultura igual à nossa”. Essas regiões e uma parte considerável do Quercy “são cultivadas mais como hortas do que como campos. Talvez se pareçam excessivamente a hortas pelo fato de serem propriedades pequenas”. Naquelas regiões já se generalizara a rotação admirável de colheitas, há tanto tempo praticada na Itália, mas que na época era geralmente negligenciada na França. “Dificilmente se pode aperfeiçoar mais a rápida sucessão de colheitas, sendo que uma colheita não é outra coisa senão o sinal para semear imediatamente para uma segunda” (o mesmo fato que impressiona todos os observadores no vale do Reno); “e este é, talvez, de todos os outros pontos, o mais essencial para uma boa agricultura: o fato de tais plantações serem distribuídas com tanta exatidão como geralmente observamos nessas províncias; a limpeza e o aperfeiçoamento servem de preparação para adubar a terra e dela extrair os frutos.” Contudo, não se deve supor que o testemunho de Arthur Young sobre propriedades de camponeses seja sempre tão favorável. Na Lorena, Champagne e alhures, acha que a agricultura está em mau estado e que os pequenos proprietários estão em situação bem precária, em consequência — diz — da subdivisão extrema das terras. Resume, assim, seu ponto de vista: “Antes de viajar, pensava que as áreas pequenas, quando nas mãos de seus donos, eram muito suscetíveis de bom cultivo, e que o ocupante delas, por não ter que pagar renda, pudesse ter tranquilidade suficiente para implantar melhorias e praticar uma boa agricultura; mas o que vi na França diminui muito a minha opinião favorável a elas. Em Flandres, vi excelente agricultura em propriedades de 30 a 100 acres, mas raramente encontramos lá propriedades pequenas como são comuns em outras províncias. Também na Alsácia e às margens do Garona, isto é, em solos de fertilidade tão exuberante que não precisam de grande empenho, há algumas propriedades pequenas bem cultivadas. Em Béarn passei por uma região de pequenos proprietários cujo aspecto, limpeza, tranquilidade e felicidade me encantaram; somente o fato de os cultivadores serem proprietários que operam em pequena escala poderia explicar isso; mas de forma alguma essas propriedades eram tão pequenas: tinham de 40 a 80 acres, como avaliei pela distância entre uma casa e outra. Excetuados esses casos, e alguns outros exemplos — muito reduzidos — não vi nada de notável em propriedades pequenas, a não ser um empenho e uma iniciativa simplesmente ininterrupta. Sem dúvida, é necessário gravar na cabeça do leitor que, embora a agricultura que encontrei, consistindo em grande número de casos e propriedades pequenas, fosse de qualidade tão má quanto se poderia conceber, não obstante, a iniciativa dos proprietários era tão grande e tão meritória que seria impossível encarecê-la demais. Foi suficiente para provar que a propriedade da terra é, dentre todos os sistemas, o fator mais decisivo que leva ao trabalho duro e incessante. E essa verdade é de tal força e extensão que não conheço nenhum meio tão seguro para cultivar o topo de uma montanha quanto permitindo que os aldeões vizinhos a adquiram em propriedade; de fato, vemos que nas montanhas do Languedoc etc. os aldeões transportavam terra em cestas, nas costas, para formar solo onde a Natureza lhe negou”. Por conseguinte, pode-se dizer que a experiência desse renomado agrônomo e apóstolo da agricultura em grande escala é a seguinte: é admirável o efeito das pequenas propriedades, cultivadas por camponeses proprietários, quando elas não forem excessivamente pequenas, isto é, tão pequenas que não são suficientes para ocupar plenamente o tempo e o cuidado da família; com efeito, muitas vezes ele se queixa, evidentemente com muita razão, da quantidade de tempo ocioso de que os camponeses dispunham quando a área de terra era muito pequena, não obstante o afinco que dedicavam para aprimorar seu pequeno patrimônio de todos os modos que seu conhecimento e seu engenho eram capazes de sugerir-lhes. Eis por que recomenda que a lei fixe um limite para o desmembramento da terra — o que de forma alguma é uma proposta indefensável em países, se ainda houver, em que ainda continua a progredir o desmembramento que já foi além daquilo que é recomendado pela condição de capital e pela natureza dos artigos básicos de cultivo. Ter cada camponês um pedaço de terra, mesmo sendo esta sua propriedade plena, se ela não for suficiente para sustentá-lo tranquilamente, é um sistema com todas as desvantagens, e dificilmente com algum benefício, de propriedades pequenas, pois, se assim for, ele terá que viver precariamente da produção de sua terra, ou então dependerá, como sói acontecer se não tiver terra própria, dos salários de mão-de-obra contratada — emprego que, aliás, terá pouca probabilidade de encontrar, se todas as propriedades que o cercam forem de dimensões semelhantes. Os benefícios das propriedades possuídas por camponeses estão condicionados ao fato de não estarem excessivamente subdivididas, isto é, ao fato de não se exigir delas que sustentem pessoas em demasia, em proporção com a produção que tais pessoas podem obter delas. Essa questão, como a maior parte das que dizem respeito à condição das classes trabalhadoras, acaba desdobrando-se em uma questão de população. Serão as propriedades pequenas um estímulo para uma multiplicação indevida da população, ou antes um obstáculo para ela? CAPÍTULO VII Continuação do Mesmo Assunto § 1. Antes de examinarmos a influência das propriedades possuídas por camponeses sobre os interesses econômicos finais da classe trabalhadora, na medida em que estes são determinados pelo aumento da população, anotemos aqueles pontos relativos à influência moral e social desse tipo de estrutura territorial, que podem ser considerados pacíficos, ou pela razão do caso ou pelos fatos e autoridades citados no capítulo anterior. O leitor leigo no assunto deve ter notado a poderosa impressão, causada em todas as autoridades a que me referi, por aquilo que um autor suíço de estatística denomina a “iniciativa quase super-humana” dos proprietários camponeses. Ao menos quanto a esse ponto as autoridades são unânimes. Aqueles que só viram um país de proprietários camponeses sempre pensam que os habitantes daquele país são os mais operosos do mundo. Pouca é também a dúvida, entre os observadores, quanto a um ponto: saber a que característica da condição camponesa se prende essa operosidade ou iniciativa. É a “mágica da propriedade” que, nas palavras de Arthur Young, “transforma areia em ouro”. Todavia, o conceito de propriedade não necessariamente implica que não haja renda, não implica que não deva haver impostos. Implica somente que a renda deve ser um encargo fixo, não suscetível de ser aumentada, contra o possessor, pelas melhorias ou aperfeiçoamentos executados na terra por ele mesmo ou pela vontade de um senhor de terra. Um ocupante quite com a renda é, para todos os intentos e fins, um proprietário; um foreiro não é menos proprietário do que o ocupante de uma propriedade livre e alodial. O que é preciso haver é a posse permanente da terra em condições fixas. “Dê-se a um homem a posse segura de uma rocha nua, e ele a transformará em um jardim; arrende-se-lhe um jardim por nove anos, e ele o transformará em um deserto”. Os detalhes que foram citados, somados àqueles, ainda mais minuciosos, que se encontram nas mesmas autoridades, no tocante ao sistema de cultivo habitualmente primoroso, e no tocante aos mil empenhos do camponês proprietário no sentido de empregar cada hora supérflua que sobre e cada momento ocioso a serviço do aumento da produção futura e do valor da terra, explicarão o que foi dito em capítulo anterior sobre a produção bruta muito maior que, em paridade de conhecimento agrícola, se obtém da mesma qualidade de solo em propriedades pequenas, ao menos quando são propriedade do lavrador. O tratado sobre a Agricultura Flamenga é particularmente instrutivo quanto aos meios pelos quais o trabalho incansável mais do que compensa a menor disponibilidade de recursos, a imperfeição dos implementos e o conhecimento de teorias científicas. Afirma ele que o cultivo feito por camponeses, no Flandres e na Itália, produz colheitas mais abundantes, em condições iguais do solo, do que os distritos mais bem cultivados da Escócia e da Inglaterra. Sem dúvida, ele as produz com um montante de trabalho que, se fosse pago por um empregador, faria com que o custo, para ele, ultrapassasse o benefício; para o camponês, porém, esse trabalho não é um custo, é a dedicação de tempo que ele pode reservar para um objetivo favorito — se é que não devemos antes falar de uma paixão dominante. (Leia-se a descrição gráfica feita pelo historiador Michelet, dos sentimentos que um camponês proprietário nutre em relação à sua terra: "Se quisermos conhecer o pensamento íntimo, a paixão do camponês francês, é muito fácil. Vamos passear no campo, em dia de domingo, seguindo o camponês. Olhe lá, ele está andando na nossa frente. São duas da tarde, sua mulher vai à igreja; ele veste roupa de domingo; percebo que ele está indo fazer uma visita à sua amante. Que amante? A sua terra. Não estou dizendo que ele vai direto para ela. Não, hoje ele é livre, podendo ir ou não ir. Porventura não vai diariamente, durante a semana? Por isso, ele se volta e passa de lado, vai para outro lugar, tem negócios a resolver alhures. E, no entanto, acaba indo. É bem verdade que estava passando ao lado da terra, era uma boa oportunidade para visitar a amante. Olha, mas é óbvio que não entrará; para quê? E, no entanto, entra. Ao menos, é provável que não trabalhará; está de roupa dominical, está vestindo uma camisa e uma blusa limpa. Mesmo assim, não há nada de mal em arrancar esta erva daninha e jogar fora aquela pedra. Também há um toco impedindo o caminho; mas não tem consigo as ferramentas, então vai fazer isso amanhã. Aí ele cruza os braços e fica contemplando, sério e cauteloso. Dá uma olhada demorada, muito demorada, e parece estar perdido no pensamento. Finalmente, se achar que está sendo observado, se vir um passante, vai embora devagarinho. Trinta passos mais adiante, para, volta-se e lança um último olhar para sua terra, olhar sombrio e profundo; mas para quem o vê, o olhar dele está cheio de paixão, de coração, de dedicação). Vimos também que não é somente em virtude de uma maior iniciativa e trabalho que os agricultores flamengos conseguem esses resultados brilhantes. A mesma motivação que imprime tal intensidade a seu trabalho, levou-os mais cedo a apossar-se de um montante de conhecimento agrícola tal que só muito mais tarde foi atingido em países em que a agricultura era praticada somente com mão-de-obra contratada. O Sr. de Lavergne (Essai sur l’Économie Rurale de l’Angleterre, de l’Escosse, et de l’Irlande) dá um testemunho igualmente elevado da perícia agrícola dos pequenos proprietários naquelas regiões da França para as quais a agricultura em pequena escala é realmente conveniente. “Nas ricas planícies do Flandres, nas margens do Reno, do Garona, do Charente, do Ródano, todas as práticas que fertilizam a terra e aumentam a produtividade do trabalho são conhecidas até pelos menores agricultores, sendo seguidas por eles, por maiores que sejam os avanços que elas exijam. Nas mãos desses proprietários, adubos abundantes conseguidos com grande custo reconstituem e aumentam incessantemente a fertilidade do solo, apesar da atividade do cultivo. As raças de gado são melhores, as colheitas são magníficas. Em alguns lugares, o fumo, o linho, a colza, a garança, a beterraba, em outros, a videira, a oliveira, a ameixeira, as amoreiras somente oferecem seus tesouros abundantes a uma população de trabalhadores operosos. Não é acaso à agricultura em escala reduzida que devemos a maior parte dos produtos hortifrutigranjeiros obtidos à força de grandes gastos investidos nas vizinhanças de Paris? ” § 2. Um outro aspecto das propriedades de camponeses — é essencial que isso seja levado em conta — é o de serem um instrumento de educação popular. Os livros e a escola são absolutamente necessários para a educação, mas só eles não bastam. As faculdades mentais atingirão seu desenvolvimento máximo lá onde forem mais exercitadas; porventura há algo que ofereça mais chance para isso do que o ter-se uma multidão de interesses, nenhum dos quais pode ser negligenciado, e que só podem ser atendidos mediante esforços variados da vontade e da inteligência? Alguns dos depreciadores das propriedades pequenas acentuam muito os cuidados e preocupações que dominam o camponês proprietário da Renânia ou do Flandres. São precisamente esses cuidados e preocupações que tendem a fazer dele um ser superior em relação a um diarista inglês. Indubitavelmente, é abusar dos privilégios da argumentação honesta descrever a condição de um diarista como uma condição que não inspira preocupações. Não consigo imaginar situação alguma em que ele esteja livre da ansiedade onde houver uma possibilidade de ficar desempregado — a menos que tenha acesso a uma porção abundante garantida pela paróquia, e não tenha vergonha ou relutância em pedir tal ajuda. O trabalhador diarista, na atual condição da sociedade e da população, tem muitas das preocupações que não têm um efeito revigorante para seu espírito, e nenhuma daquelas que têm tal efeito. A situação do camponês proprietário da Europa continental é a inversa. Poucos estão mais isentos do que ele da ansiedade que gela e paralisa: a incerteza quanto ao ter o que comer; é necessário um raro concurso de circunstâncias como fracasso das batatas, associado a uma má colheita de todos os outros produtos, para colocá-lo ao alcance desse perigo. Suas preocupações são as vicissitudes normais do mais e do menos; seus cuidados consistem no fato de ele participar adequadamente dos negócios e afazeres da vida, na preocupação de permanecer um ser humano livre, e não perpetuamente uma criança — esta parece ser a condição comum das classes trabalhadoras, conforme a filantropia dominante. Ele já não é um ser de tipo diferente da classe média; tem ambições e objetivos iguais aos que preocupam os indivíduos dessa classe, dando à sua inteligência parte preponderante do tipo de cultura que recebe. Se há um princípio fundamental na educação intelectual, é este: a disciplina que faz bem ao espírito é aquela na qual o espírito é ativo, não aquela em que ele permanece passivo. O segredo para desenvolver as faculdades consiste em dar-lhes muito que fazer e muito estímulo para fazê-lo. Isso nada tira da importância, e até da necessidade, de outros tipos de cultura intelectual. A posse de propriedade não impedirá o camponês de ser grosseiro, egoísta e de visão curta. Essas coisas dependem de outras influências e de outros tipos de instrução. Mas esse grande estímulo a esse tipo de atividade mental de modo algum impede quaisquer outros meios de desenvolvimento intelectual. Pelo contrário, por cultivar o hábito de aplicar à prática toda parcela de conhecimento adquirido, ajuda a tornar fecundo aquele ensino escolar e a leitura que, se não houver alguma influência complementar desse gênero, na maioria dos casos são como sementes depositadas em uma rocha. § 3. Não é apenas sobre a inteligência que a situação de um camponês proprietário exerce influência para melhor. Ela não é menos propícia para as virtudes morais da prudência, da temperança e do autocontrole. Os trabalhadores diaristas, onde a classe trabalhadora consta sobretudo deles, via de regra são imprevidentes; gastam despreocupadamente tudo o que têm, deixando que o futuro cuide de si mesmo. Isso é um fato tão notório que muitas pessoas seriamente interessadas no bem-estar das classes trabalhadoras sustentam como opinião firme que um aumento salarial pouco bem lhes faria se não for acompanhado, no mínimo, de um aprimoramento correspondente de seus gostos e hábitos. A tendência dos camponeses proprietários e daqueles que esperam tornar-se tais um dia vai no sentido exatamente oposto, que é preocupar-se demais com o amanhã. Com mais frequência são acusados de mesquinhez do que de prodigalidade. Negam a si mesmos prazeres razoáveis e vivem miseravelmente para economizar. Na Suíça, poupam quase todos aqueles que têm algo para poupar; quanto aos camponeses flamengos, este detalhe já foi notado; entre os franceses, embora sejam um povo amante do prazer e considerados um povo que se concede autossatisfações, o espírito de frugalidade está difundido na população rural de uma forma altamente gratificante em geral, mas em casos individuais erra mais pelo excesso do que pela deficiência. Entre aqueles que, devido às choupanas em que vivem, e às ervas e raízes com que se alimentam, são erroneamente citados por viajantes como provas e exemplos de indigência generalizada, há muitos que entesouram em sacolas de couro, acúmulos estes consistentes em quantias de moedas de 5 francos, que conservam consigo talvez por uma geração inteira, a não ser que os gastem no tipo de gratificação a eles mais querida — a compra de terra. Se há um inconveniente moral ligado a uma estrutura social na qual os camponeses possuem terra é o perigo de eles se preocuparem demais com seus interesses financeiros, o de essa estrutura os tornar astutos e “calculadores” no sentido menos recomendável do termo. O camponês francês não é mais cidadão ingênuo, um paysan du Danube franco; tanto na realidade como na ficção, ele é hoje le rusé paysan (o camponês espertalhão). É o estágio que ele atingiu com o desenvolvimento progressivo que o curso das coisas impõe à inteligência do homem e à emancipação humana. Entretanto, algum excesso nessa direção é um mal pequeno e passageiro se comparado com a despreocupação e imprevidência vigentes nas classes trabalhadoras, e um preço barato que se paga pelo valor inestimável da virtude da autonomia pessoal como característica geral de um povo, virtude que constitui uma das primeiras condições de excelência no caráter humano, tronco no qual raramente têm que estar enxertadas as demais virtudes, sob o risco de raramente lançarem raízes firmes; uma qualidade indispensável no caso de uma classe trabalhadora, mesmo em um grau razoável de conforto físico; ora, essa qualidade distingue os camponeses da França, e os da maior parte dos países europeus, mais do que qualquer outra população trabalhadora. § 4. Será que um estado de relações econômicas tão convidativo à parcimônia e à prudência em todos os outros aspectos é prejudicial à parcimônia no ponto central do aumento da população? Que assim é, eis a opinião expressa pela maioria dos economistas políticos ingleses que escreveram alguma coisa sobre o assunto. É bem conhecida a opinião do Sr. McCulloch. O Sr. Jones afirma que uma “população camponesa que obtém seus salários do solo e os consome em espécie, em toda parte é muito pouco sensível a restrições internas ou a motivações que a levem a controlar-se. A consequência é que, se alguma causa externa, totalmente independente de sua vontade, não forçar tais camponeses a diminuírem sua taxa de crescimento, muito rapidamente, em um território limitado, se aproximarão de um estado de necessidade e penúria, e ao final só serão retidos pela impossibilidade física de prover subsistência”. Em outro lugar, ele fala de tais camponeses como estando “exatamente na condição em que a disposição animal para aumentar seu número restringida pelo menor número possível daqueles motivos e desejos equilibradores que regulam o aumento das classes superiores ou dos povos mais civilizados”. O Sr. Jones prometeu apontar as “causas dessa peculiaridade” em uma obra subsequente, que nunca veio a público. Não consigo absolutamente adivinhar de que teoria da natureza humana e de que motivos que influenciam a conduta humana ele teria tirado essas causas. Arthur Young supõe a mesma “peculiaridade” como um fato; mas, embora não se distinga pelo hábito de nuançar suas opiniões, não leva sua doutrina a um extremo tão grande como o Sr. Jones, já que ele mesmo, como vimos, atestou vários exemplos em que as populações camponesas, como aquelas de que fala o Sr. Jones, não tendiam a “um estado de necessidade e penúria” e não estavam em perigo algum de entrar em contato com a “impossibilidade física de prover à subsistência”. É fácil entender que haja discrepância de experiência nessa matéria. Viva a população trabalhadora de salários ou da terra, até hoje ela sempre se multiplicou até o limite colocado pelo seu padrão habitual de conforto. Quando esse padrão era baixo, não ultrapassando uma subsistência precária, o tamanho das propriedades, bem como a taxa de salários, era mantido ao nível estritamente suficiente para manter a subsistência. Ideias extremamente baixas sobre o que é necessário para a subsistência são perfeitamente compatíveis com propriedades possuídas por agricultores; e se um povo sempre esteve acostumado à pobreza, e o hábito os reconciliou com ela, haverá superpopulação, uma subdivisão excessiva da terra. Mas isso não vem ao caso. A verdadeira questão é esta: supondo-se que um conjunto de camponeses possua terra, não insuficiente mas suficiente para manter-se tranquilamente, teriam eles probabilidade maior ou menor de cair desse estado de conforto devido à multiplicação imprevidente, do que se estivessem vivendo de maneira igualmente confortável como trabalhadores assalariados? Todas as considerações a priori favorecem a tese de que têm menor probabilidade. A dependência dos salários em relação à população é um assunto passível de pesquisa e discussão. Que os salários cairiam se a população crescesse muito é não poucas vezes uma tese de que se pode realmente duvidar, e, em todo caso, é uma coisa que, para ser reconhecida inteligentemente, demanda um bom grau de exercício da faculdade de raciocinar. Todavia, cada camponês pode dispor de muitos elementos para avaliar pessoal e plenamente se seu pedaço de terra tem condições de sustentar várias famílias com o mesmo grau de conforto com que mantém uma. Poucas são as pessoas que gostam de deixar a seus filhos uma sorte pior na vida do que a sua própria. O pai ou mãe que tem terra para viver é perfeitamente capaz de julgar se os filhos terão condições de viver dela ou não, ao passo que as pessoas que se sustentam com salário não veem razão alguma por que seus filhos seriam incapazes de se sustentar da mesma forma, e, portanto, confiam no acaso. “Mesmo nos ofícios e manufaturas mais úteis e necessários” — diz o Sr. Laing — “a demanda de trabalhadores não é uma demanda vista, conhecida, constante e avaliável, ao passo que na agricultura isso acontece”, no regime de pequenas propriedades. “O trabalho a ser feito, os gêneros que o trabalho produzirá de sua porção de terra são elementos vistos e conhecidos no cálculo que um homem faz de seus meios de subsistência. Tem a sua área de terra ou não condições para sustentar uma família? Pode ele casar ou não? — eis aqui perguntas às quais cada um pode responder sem demora, dúvida ou pesquisa. É a dependência do acaso — situação em que, para julgar, não se tem nada de claro diante de si — que gera os casamentos despreocupados e imprevidentes nas classes mais baixas e também nas mais elevadas, e produz entre nós os males da superpopulação; e o acaso necessariamente entra nos cálculos de todos quando não há certeza alguma — como acontece onde, devido ao nosso sistema de distribuição da propriedade, a certeza da subsistência é a sorte de apenas uma pequena porcentagem da população, em vez de ser a de aproximadamente dois terços.” Nunca houve um autor mais sensível aos males que o excesso de população pode acarretar para as classes trabalhadoras do que Sismondi, e este é um dos motivos pelos quais ele defende com extremo vigor as propriedades pequenas. Teve ele ampla oportunidade, em mais de um país, para julgar o efeito delas sobre a população. Vejamos seu testemunho: “Nos países em que ainda existe a lavoura por pequenos proprietários, a população aumenta regular e rapidamente até atingir seus limites naturais; isto é, as heranças continuam a ser divididas entre vários filhos até o ponto em que, aumentando o trabalho, cada família consegue extrair uma renda igual de uma porção menor de terra. Um pai que possuía uma grande extensão de pastagem natural divide-a entre seus filhos homens, e eles a transformam em campos de cultivo e prados; os filhos destes, por sua vez, a dividem entre seus filhos, que abolem as terras de pousio; cada aperfeiçoamento do conhecimento agrícola comporta um novo passo na subdivisão da propriedade. Mas não há perigo de que o proprietário crie seus filhos para fazer deles mendigos. Ele sabe exatamente que herança tem para deixar-lhes; ele sabe que a lei a dividirá com igualdade entre eles; ele vê o limite para além do qual essa divisão os faria descer da posição que ele mesmo ocupou, e um justo orgulho familiar, comum ao camponês e ao nobre, o faz abster-se de colocar no mundo filhos dos quais não possa cuidar adequadamente. Se nascem mais, no mínimo não casam, ou então concordam entre qual dentre vários irmãos deverá perpetuar a família. Não se observa que nos cantões suíços os patrimônios dos camponeses se dividem tanto, ao ponto de não lhes deixar uma renda honrosa — ainda que o hábito de encontrar serviço no exterior, abrindo aos filhos uma carreira indefinida e incalculável, às vezes provoque um aumento excessivo da população”. Existe um testemunho similar com respeito à Noruega. Embora não haja lá nenhuma lei ou costume de primogenitura, e não haja manufaturas para absorver uma população excedente, a subdivisão das propriedades não é levada até um ponto que seja prejudicial. “Durante os mil anos em que está em vigência, é evidente que a divisão da terra entre os filhos não teve o efeito de reduzir as propriedades fundiárias ao tamanho mínimo que seria apenas suficiente para sustentar a existência humana” — diz o Sr. Laing. “Contei de 25 a 40 vacas nas propriedades, e isso em um país em que o agricultor, durante no mínimo sete meses do ano, tem que ter forragem seca e abrigo de inverno para todo o gado. É evidente que uma causa ou outra, operando em conjunto sobre a concentração da propriedade fundiária, neutraliza os efeitos divisores da repartição entre os filhos. Essa causa não pode ser outra senão aquela que há muito tempo conjecturei haveria de operar em tal estrutura social, isto é, que, em um país em que a terra é ocupada, não apenas no sistema de arrendamento, como na Irlanda, mas no de completa propriedade, sua concentração pelas mortes de co-herdeiros e pelos casamentos das herdeiras mulheres entre o conjunto dos proprietários neutralizará sua subdivisão pela sucessão igual dos filhos. Ver-se-á — como entendo — que a massa total de propriedade, em tal estrutura social, constará de tantas propriedades da classe da categoria de 1 000 libras, tantas da categoria de 100 libras, tantas de 10 libras por ano, num período como em outro”. Para que isso aconteça, supõe-se difundido na sociedade um controle prudencial muito eficiente da população; e é razoável atribuir parte dessa limitação prudencial ao fato de o sistema de propriedade de camponeses ser particularmente apto para fomentar tal controle populacional. “Em algumas partes da Suíça” — diz o Sr. Kay — “como no cantão de Artovie, um camponês nunca se casa antes de chegar aos 25 anos, e geralmente muito mais tarde; e naquele cantão as mulheres muito raramente se casam antes de atingirem trinta anos. (...) Por outro lado, a divisão da terra e o pouco que se paga para transferi-la de uma pessoa a outra não fomentam somente a previdência dos trabalhadores dos distritos rurais. Esses fatores agem da mesma forma, embora talvez com intensidade menor, sobre os trabalhadores das cidades menores. Nas cidades provincianas menores é costume um trabalhador ser proprietário de um pequeno pedaço de terra fora da cidade. Ele a cultiva à tarde, como horta. Nela cultiva verduras, legumes e frutas para o uso de sua família durante o inverno. Terminado o seu trabalho diário, ele e sua família vão para a horta por um tempo breve, que empregam plantando, semeando, arrancando ervas daninhas, ou preparando para semear ou para colher, conforme a estação. O desejo de vir a possuir uma dessas hortas contribui muito para reforçar hábitos prudenciais e para limitar casamentos imprevidentes. Alguns dos manufatores no cantão de Argovie disseram-me que um habitante da cidade raramente estava satisfeito enquanto não tivesse comprado uma horta, ou uma horta e casa, e que os trabalhadores da cidade geralmente adiavam seu casamento por alguns anos, a fim de pouparem bastante para comprar um desses artigos de luxo ou os dois.” O mesmo autor mostra com dados estatísticos que, na Prússia, a idade média para o casamento não somente é muito mais avançada do que na Inglaterra, mas que “gradualmente ela se vai tornando mais avançada do que antes”, e ao mesmo tempo “na Prússia nascem menos crianças ilegítimas do que em qualquer outro país europeu. Em toda parte por onde viajei” — diz o Sr. Kay 156 — “no norte da Alemanha e na Suíça, todos me asseguraram que o desejo de comprar terra, que era sentido por todos os camponeses, agia como o controle mais forte possível sobre o aumento indevido da população”. (O Ministro prussiano de Estatística, em uma obra (Der Volkswohlstand im Preussischen Staat) que sou obrigado a citar de segunda mão do Sr. Kay, depois de provar com cifras o aumento grande e progressivo do consumo de alimentos e de roupa por parte da população, per capita, fato do qual com razão deduz um aumento correspondente da produtividade da agricultura, prossegue: “Em todo o país a divisão de propriedades tem aumentado cada vez mais, desde 1831. Há agora muito mais proprietários pequenos independentes do que antes. No entanto, embora se ouçam muitas queixas de indigência entre os trabalhadores dependentes, nunca ouvimos queixas de que a indigência esteja aumentando entre os camponeses proprietários). Em Flandres, segundo o Sr. Fauche, cônsul britânico em Ostende, “os filhos de arrendatários e aqueles que têm possibilidade de se tornarem arrendatários adiarão seu casamento até tomarem posse de uma área”. Uma vez que se conseguiu ser arrendatário, a meta seguinte é tornar-se proprietário. “A primeira coisa que um dinamarquês faz com sua poupança” — diz o Sr. Browhe, cônsul em Copenhague — é comprar um relógio, depois um cavalo e uma vaca, que ele aluga obtendo boa renda. Depois, a sua ambição é tornar-se um pequeno proprietário, e essa categoria de pessoas está em melhor situação do que qualquer outra na Dinamarca. Efetivamente, não conheço em país algum pessoas que têm mais segurança de ter tudo aquilo que seja realmente necessário para a vida, do que essa categoria, que é muito numerosa em comparação com a dos trabalhadores." No entanto, a experiência que mais decididamente contraria a afirmada tendência de a propriedade de camponeses produzir excesso de população é o caso da França. Nesse país, a experiência não é tentada nas circunstâncias mais favoráveis, pois uma grande percentagem das propriedades são excessivamente pequenas. Não se sabe com exatidão o número de proprietários fundiários na França, mas em nenhuma estimativa ele fica muito abaixo dos 5 milhões — o que, no cálculo mais baixo do número de pessoas de uma família (e para a França deve ser um cálculo baixo), mostra que muito mais da metade da população possui ou então tem direito a herdar propriedade fundiária. Uma maioria das propriedades são tão pequenas que não garantem a subsistência dos proprietários, dos quais 3 milhões — segundo alguns cálculos — são obrigados a complementar seus meios de sustento trabalhando por salário ou assumindo mais terra, geralmente como meeiros. Quando a propriedade possuída não é suficiente para aliviar o dono da dependência de salários, a condição de um proprietário perde muito de sua eficácia característica como obstáculo à superpopulação; e se a previsão feita tantas vezes na Inglaterra se tivesse realizado, e a França se tivesse transformado em uma “coelheira de indigentes”, a experiência não teria provado nada contra as tendências do mesmo sistema de economia agrícola em circunstâncias diferentes. Mas qual é a realidade? Que a taxa de aumento da população francesa é a mais lenta da Europa. Durante a geração que a Revolução levantou do extremo da miséria sem esperança para a abundância repentina, registrou-se um grande aumento da população. Contudo, cresceu uma geração que, tendo nascido em situação melhor, não aprendeu a viver na miséria; e nessa geração o espírito de economia opera da maneira mais notável, mantendo o crescimento populacional dentro dos limites do aumento da riqueza nacional. Em uma tabela, elaborada pelo Prof. Rau, da taxa de aumento anual da população de vários países, a da França, de 1817 a 1827, é de 63/100%, a da Inglaterra, durante um período decenal similar, é de 16/10% ao ano, e a dos Estados Unidos é de quase 3%. Segundo os dados oficiais analisados pelo Sr. Legoyt, o aumento da população, que de 1801 a 1806 era à taxa de 1,28% ao ano, foi, na média, apenas de 0,47%, de 1806 a 1831; de 1831 a 1836 foi em média de 0,60%; de 1836 a 1841, de 0,41% e, de 1841 a 1846, de 0,68%. No censo de 1851 a taxa de aumento anual revelada foi apenas de 1,08% nos cinco anos, portanto 0,21% ao ano; e no censo de 1856 foi somente de 0,71% em cinco anos, isto é, 0,14% ao ano; assim sendo, nas palavras do Sr. de Lavergne, “a população quase não aumenta mais na França”. Mesmo esse aumento lento é inteiramente o efeito de uma diminuição de óbitos; com efeito, o número de nascimentos de forma alguma aumenta, enquanto a proporção dos nascimentos com a população está diminuindo constantemente. Esse crescimento lento da população, enquanto o capital cresceu muito mais rapidamente, gerou uma melhoria notável na condição da classe trabalhadora. Não é fácil indicar com precisão a condição da categoria dos proprietários de terra, pelo fato de ela variar ao extremo; mas os simples trabalhadores, que não auferiram nenhum benefício direto das mudanças havidas na propriedade fundiária que vieram com a revolução, indubitavelmente viram melhorar muito sua condição desde aquela época. (As classes da nossa população que só têm salário e, portanto, são as mais expostas à indigência, têm agora (1846) maior abundância de gêneros de subsistência — alimento, moradia e roupa — do que no início do século. Isso pode ser provado pelo testemunho de todas as pessoas que têm condições de lembrar-se do primeiro dos dois períodos comparados. Se houvesse alguma dúvida sobre o assunto, esta poderia ser facilmente dissipada consultando velhos agricultores e trabalhadores, como eu mesmo fiz em várias localidades, sem deparar com um único testemunho em contrário; podemos também recorrer aos fatos coligidos por um observador atento, o Sr. Villermé" (Tableau de l’État Physique et Moral des Ouvriers. Livro Segundo, cap. I). De uma obra abalisada publicada em 1846 por CLÉMENT, A. Recherches sur les Causes de l’Indigence. O mesmo autor fala do “aumento considerável que desde 1789 houve nos salários dos trabalhadores diaristas na agricultura”, e acrescenta o seguinte depoimento sobre um padrão mais elevado de exigências habituais, mesmo naquela parcela da população urbana cujo estado costuma ser apresentado como altamente deplorável. “Nos últimos quinze ou vinte anos, verificou-se uma mudança considerável nos hábitos dos operários em nossas cidades manufatureiras: agora gastam mais do que antes com roupas e ornamentos. (...) Certas categorias de trabalhadores, tais como os canuts de Lyon” (segundo todas as indicações, a categoria de artesãos de mais baixa remuneração, como seus equivalentes ingleses, os tecelões de tear manual), “não mais aparecem, como anteriormente, cobertos de trapos imundos”. As afirmações supra constavam em edições anteriores da presente obra, sendo as melhores às quais na época eu tinha acesso; hoje, porém, há provas mais recentes e de natureza mais detalhada e precisa, na importante obra do Sr. Léonce de Lavergne, Économie Rurale de la France Depuis 1789. Segundo esse diligente pesquisador, bem informado e altamente imparcial, o salário diário médio de um trabalhador francês subiu, desde o começo da Revolução, à razão de 19 para 30, ao passo que, devido ao emprego mais constante, os ganhos totais aumentaram em uma razão ainda maior, não menos que o dobro. As palavras do Sr. de Lavergne são as seguintes (2ª ed., p. 57): “Arthur Young estima em 19 soldos [9 1/2 d.] o salário diário médio, que agora deve girar em torno de 1 franco e 50 cêntimos [1 s 3 d.], e esse aumento representa apenas uma parte da melhora havida. Embora a população rural tenha permanecido mais ou menos a mesma em número, já que o acréscimo populacional desde 1789 se centrou nas cidades, o número de dias de trabalho efetivos aumentou; primeiro, porque, tendo aumentado a duração da vida, é maior o número de homens com forças para trabalhar, e, segundo, porque o trabalho está mais bem organizado, em parte pela supressão de vários feriados festivos, em parte pelo simples efeito de uma demanda maior. Se levarmos em conta o maior número de seus dias de trabalho, a receita anual dos trabalhadores rurais deve ter aumentado. Esse aumento de salários responde a no mínimo um igual aumento de conforto, já que os preços dos principais gêneros de primeira necessidade mudaram pouco, e os dos artigos manufaturados, por exemplo, de tecidos, diminuíram substancialmente. Também a moradia dos trabalhadores melhorou, se não em todas as nossas províncias, ao menos na maioria delas”. A estimativa do montante médio do salário diário do Sr. de Lavergne baseia-se em uma comparação cuidadosa entre as diversas províncias da França, feita sob esse ponto de vista e sob todos os outros pontos de vista econômicos). O Dr. Rau atesta um fato similar no caso de uma região em que a subdivisão da terra é provavelmente excessiva, o Palatinato. (Em sua pequena obra sobre a agricultura do Palatinato, já citada. Afirma ele que os salários de mão-de-obra diarista, que durante os últimos anos da guerra eram descomunalmente altos, e continuaram assim até 1817, depois baixaram para uma taxa monetária mais baixa, mas pelo fato de os preços de muitas mercadorias terem baixado em uma proporção ainda maior, a condição do povo melhorou indiscutivelmente. Também a alimentação dada pelos empregadores melhorou muito em quantidade e qualidade. “Hoje ela é notavelmente melhor do que há aproximadamente quarenta anos, quando a classe mais pobre conseguia menos carne e morcilha e nada de queijo, manteiga e similares”. Tal aumento salarial — acrescenta o Professor —, que deve ser avaliado não em dinheiro, mas na quantidade de gêneros de primeira necessidade e de conveniência que o trabalhador tem condições de comprar, é, como todos admitem, uma prova de que a massa de capital deve ter aumentado". Não somente prova isso, mas também que a população trabalhadora não aumentou em grau igual; e que, nesse caso como no da França, a divisão da terra, mesmo quando excessiva, foi compatível com um fortalecimento da limitação prudencial da população). Desconheço um único exemplo autêntico que abone a afirmação de que o sistema de proprietários camponeses favorece a rápida multiplicação populacional. Sem dúvida há exemplos de que ela não é impedida por esse sistema, e um desses casos é a Bélgica, cujas perspectivas, no tocante à população, atualmente constituem matéria de grande incerteza. A Bélgica tem o mais rápido aumento de população do Continente europeu; e se as circunstâncias do país exigirem — como deve acontecer em breve — que essa rapidez seja impedida, ter-se-á que romper com hábitos muito fortes atualmente existentes no país. Uma das circunstâncias desfavoráveis é o grande poder sobre a população que têm os sacerdotes católicos que em toda parte influem fortemente contra a limitação da população. Até agora, porém, deve-se recordar que o trabalho incansável e a grande habilidade agrícola da população tornaram praticamente inócua a rapidez atual do crescimento populacional; o número elevado de propriedades grandes ainda não divididas garante, pelo seu desmembramento gradual, recurso para o necessário aumento da produção bruta; além disso, existem no país muitas grandes cidades manufatureiras, bem como distritos de mineração e de carvão, que atraem e empregam uma percentagem anual considerável do aumento da população. § 5. Contudo, mesmo onde as propriedades de camponeses vêm acompanhadas de um excesso de população, esse mal não acarreta necessariamente a desvantagem econômica adicional de um desmembramento excessivo da terra. Do fato de a propriedade fundiária ser muito subdividida não segue que isso ocorra também com as propriedades cultivadas. Assim como grandes propriedades fundiárias são perfeitamente compatíveis com propriedades cultivadas em pequena escala, da mesma forma as pequenas propriedades são compatíveis com uma cultura de porte adequado; uma subdivisão da ocupação da terra não é nem sequer uma consequência inevitável de uma multiplicação indevida entre camponeses proprietários. Como se poderia esperar de sua inteligência admirável em coisas referentes à sua ocupação, os camponeses flamengos há muito tempo aprenderam essa lição. “O hábito de não dividir propriedades” — diz o Dr. Rau — “e a opinião de que essa prática é vantajosa têm sido tão plenamente preservados em Flandres, que mesmo agora, quando um camponês falece deixando vários filhos, não pensam em desmembrar seu patrimônio, mesmo que este não esteja vinculado pelo morgadio; preferem vender a terra inteira, repartindo o dinheiro, considerando o patrimônio uma joia, que perde seu valor quando é dividida”. Que o mesmo sentimento deve prevalecer amplamente até na França revela-o a grande frequência de vendas de terra, que em dez anos ascendem a 1/4 de todo o solo do país; e o Sr. Passy, em sua brochura Sobre as Mudanças na Condição Agrícola do Departamento do Eure desde o Ano de 1800 (Uma das muitas contribuições importantes que apareceram no Journal des Économistes, órgão dos principais economistas Políticos da França, e que faz grande e crescente honra ao conhecimento e à qualificação dos mesmos. O escrito do Sr. Passy foi reimpresso em separado, em forma de opúsculo) aduz outros fatos que levam à mesma conclusão. “O exemplo desse Departamento — diz ele — atesta que, ao contrário do que têm imaginado alguns autores, não existe, entre a distribuição da propriedade e a distribuição da lavoura, um nexo que tenda inelutavelmente a assemelhar uma à outra. Em parte alguma desse Departamento mudanças de proprietário tiveram uma influência perceptível no tamanho das propriedades ocupadas. Se em distritos de agricultura em pequena escala, terras pertencentes ao mesmo proprietário são normalmente distribuídas entre muitos arrendatários, também não é incomum, em lugares onde prevalece a agricultura em grande escala, o mesmo arrendatário arrendar as terras de vários proprietários. Nas planícies de Vexin, em particular, muitos agricultores ativos e ricos não se contentam com explorar uma única gleba; outros acrescentam às terras principais que ocupam todas aquelas da vizinhança que são capazes de tomar arrendadas, e dessa forma perfazem uma extensão total que em alguns casos atinge ou supera 200 hectares” (500 acres ingleses). “Quanto mais as propriedades são desmembradas, tanto mais frequentes se tornam tais usos; e já que atendem ao interesse de todos os interessados, é provável que o tempo os consolide”. "Em alguns lugares — diz o Sr. de Lavergne (Économie Rurale de la France) — por exemplo, nas redondezas de Paris, onde se tornam evidentes as vantagens da agricultura em grande escala, o tamanho das glebas exploradas tende a aumentar, várias delas são conglobadas em uma só, e os arrendatários aumentam suas glebas exploradas arrendando porções de vários proprietários diferentes. Em outras partes glebas exploradas, bem como propriedades de extensão excessivamente grande, tendem a ser divididas. A lavoura espontaneamente descobre o tipo de organização que melhor lhe convém." É um fato notável, afirmado pelo mesmo eminente autor, que os Departamentos que têm o maior número de pequenas côtes foncières (propriedades pequenas) são o Norte, o Somme, o Passo de Calais, a Seine Inférieure, o Aisne e o Oise — todos eles figurando entre os mais ricos e mais bem cultivados, sendo que o primeiro dessa lista é exatamente o mais rico e o mais bem cultivado de toda a França. O desmembramento indevido e o tamanho excessivamente reduzido das glebas ocupadas constituem sem dúvida um mal prevalente em algumas regiões de camponeses proprietários, e particularmente em certas partes da Alemanha e da França. Os Governos da Baviera e de Nassau acharam necessário impor um limite legal às terras, e o Governo prussiano propõe, sem êxito, a mesma medida para propriedades de suas províncias na Renânia. Mas não penso que em parte alguma se constatará que a agricultura em pequena escala seja o sistema dos camponeses, e a agricultura em grande escala seja o dos grandes senhores de terra; pelo contrário, em toda parte onde as pequenas propriedades são divididas entre um número excessivo de proprietários, creio ser verdade que também as grandes propriedades são desmembradas entre um número excessivo de arrendatários, e que nos dois casos a causa é a mesma: precariedade de capital, de perícia e de espírito empresarial agrícola. Há razão para crer que a subdivisão na França não é mais excessiva do que o justificado por essa causa; que ela está diminuindo, e não aumentando; e que o medo manifestado por alguns, com o avanço do desmembramento das terras, é um dos que menos deve levar ao pânico, real ou presumido. (O Sr. Laing, em sua publicação mais recente, Observations on the Social and Political State of the European People in 1848 and 1849 — livro dedicado à glorificação da Inglaterra e à negação de tudo o mais que outros, ou até ele mesmo em obras anteriores, haviam considerado digno de encômio —, argumenta que “embora a própria terra não seja dividida e subdividida” ao morrer o proprietário, “o valor da terra é dividido, e com efeitos quase igualmente prejudiciais para o progresso social. O valor de cada parcela torna-se uma dívida ou peso gravado sobre a terra”. Consequentemente, a condição da população agrícola é atrasada; “cada geração passa pior que a precedente, ainda que a terra não seja nem menos nem mais dividida nem menos bem cultivada. É isso que, segundo ele, explica o grande endividamento dos pequenos proprietários fundiários na França. Se essas afirmações fossem corretas, invalidariam tudo aquilo que afirmou tão decididamente em outros escritos e repete nessa obra, com respeito à eficácia peculiar da propriedade de terra para impedir a superpopulação. Mas ele está inteiramente equivocado. No único país em que residiu e do qual fala, a Noruega, ele não garante que a condição de vida dos camponeses proprietários esteja deteriorando. Os fatos já citados provam que, com respeito à Bélgica, à Alemanha, à Suíça, sua afirmação é igualmente errônea; e o que ficou demonstrado em relação ao lento aumento da população na França demonstra que, se a condição dos camponeses franceses estava piorando, não podia ser pela razão suposta pelo Sr. Laing. A verdade, segundo acredito, é que em todo país, sem exceção, em que prevalecem as propriedades de camponeses, a condição da população está melhorando, a produção da terra e até a sua fertilidade está aumentando, e devido ao excedente maior que resta após alimentar as classes agrícolas, as cidades estão aumentando, seja em população, seja quanto ao bem-estar de seus habitantes). Se as propriedades de camponeses têm algum efeito em fomentar a subdivisão além do grau que corresponde às práticas agrícolas do país e que é costumeiro em suas propriedades grandes, a causa disso deve estar em uma das influências salutares do sistema, isto é, o grau eminente em que ele fomenta o senso de previdência da parte daqueles que, não sendo ainda camponeses proprietários, esperam um dia tornar-se tais. Na Inglaterra, onde o trabalhador agrícola não tem outro investimento para suas poupanças senão os bancos de poupança e nenhuma posição à qual possa ascender fazendo economia — excetuada talvez a possibilidade de se tornar um pequeno lojista, com as suas chances de falência — não há absolutamente nada que se assemelhe ao intenso espírito de economia que se apossa de alguém que, sendo um trabalhador diarista, pode chegar, com a economia, a tornar-se um proprietário de terra. Segundo quase todas as autoridades, a causa real do desmembramento das propriedades é o preço mais alto que se consegue pela terra, vendendo-a a camponeses, como um investimento para as pequenas acumulações deles, sendo esse preço mais alto do que vendendo a propriedade inteira a algum comprador rico que não tem outro objetivo senão o de sua renda, sem melhorar a terra. A esperança de conseguir tal investimento é o mais poderoso dos estímulos para aqueles que não têm terra praticarem a iniciativa, a parcimônia e o autocontrole do qual depende seu êxito em atingir essa meta de sua ambição. Como resultado desta pesquisa sobre os efeitos diretos e as influências indiretas das propriedades de camponeses, entendo estar demonstrado que não existe nenhum nexo necessário entre essa modalidade de propriedade fundiária e um estágio imperfeito das técnicas de produção; que o sistema é favorável, exatamente sob tantos aspectos sob os quais é desfavorável, ao aproveitamento mais eficiente das forças do solo; que nenhum outro tipo hoje existente de economia agrícola tem um efeito tão benéfico sobre a iniciativa e a operosidade, o talento, a parcimônia e a prudência da população, nem tende tanto, no global, a desestimular um aumento imprevidente da população; e que, por conseguinte, nenhum tipo hoje existente de economia agrícola é, no global, tão favorável ao bem-estar moral e físico da população. Comparado com o sistema inglês do cultivo por mão-de-obra assalariada, ele deve ser considerado eminentemente benéfico para a classe trabalhadora. (A história francesa confirma flagrantemente essas conclusões. Por três vezes, no decurso de algumas épocas, os camponeses foram compradores de terra, e essas três vezes precederam imediatamente as três principais eras de prosperidade agrícola na França. “Nas épocas piores”, diz o historiador Michelet (Le Peuple. Parte Primeira. Cap. 1), “as épocas de pobreza geral, quando até os ricos são pobres e obrigados a vender, os pobres têm condições de comprar: não se apresentando nenhum outro comprador, o camponês, vestindo trapos, chega com seu ouro e adquire um pouco de terra. Esses momentos infelizes em que o camponês teve condições de comprar terra a preço baixo, sempre foram seguidos de um surto repentino de prosperidade com a qual o povo não contava. Por volta de 1500, por exemplo, quando a França, esgotada por Luís XI, parecia estar completando sua ruína na Itália, quando os nobres que foram às guerras foram obrigados a vender, a terra, passando para novas mãos, de repente começou a florescer, as pessoas começaram a trabalhar e a construir. Esse momento feliz, na linguagem dos historiadores da corte, foi denominado o bom Luís XII. Infelizmente esse momento não durou muito. Nem bem a terra se havia recuperado quando sobre ela caiu o coletor de impostos; seguiram as guerras religiosas e pareceram arrasar tudo; misérias horríveis, fomes horrorosas, nas quais mães devoravam seus filhos. Quem acreditaria que o país se recuperaria? Mal terminou a guerra, e dos campos devastados e das casas de aldeões ainda em chamas surge a poupança do camponês. Ele compra e, em dez anos, a França apresenta um novo aspecto; em vinte ou trinta anos, todas as propriedades dobraram e triplicaram seu valor. Esse momento, novamente batizado com um nome de rei. É denominado o bom Henrique IV e o grande Richelieu”. Da terceira era é supérfluo falar novamente: foi a da Revolução. Todo aquele que estudar o reverso do quadro pode comparar esses períodos históricos, caracterizados pelo desmembramento de grandes propriedades e pela construção de propriedades pequenas com o sofrimento nacional generalizado que acompanhou, e com o deterioramento permanente da condição das classes trabalhadoras que se seguiu à supressão dos pequenos proprietários rurais, para dar lugar a grandes propriedades de pastagens, que representaram o grande evento econômico da história inglesa durante o século XVI). Nesse contextos não nos cabe compará-lo com o sistema de propriedade conjunta da terra por associações de trabalhadores. CAPÍTULO VIII Os Meeiros § 1. Do caso em que a produção da terra e do trabalho pertence indivisamente ao trabalhador, passamos aos casos em que ela é dividida, mas somente entre duas classes, os trabalhadores e os proprietários de terra, sendo que o capitalista se confunde com uma ou com a outra das duas, conforme o caso. É possível conceber que haja somente duas classes de pessoas que partilham da produção e que a classe dos capitalistas seja uma delas, fundindo-se a qualidade de trabalhador e a de proprietário da terra, para formar a outra categoria. Isso poderia ocorrer de duas maneiras. Os trabalhadores, embora proprietários da terra poderiam entregá-la a um rendeiro e trabalhar sob as ordens dele como empregados assalariados. Mas essa situação, mesmo nos raríssimos casos que poderiam dar-lhe origem, não demandaria discussão específica, pois não diferiria, sob qualquer aspecto substancial, do sistema triplo de trabalhadores, capitalistas e donos de terra. O outro caso é aquele, não incomum, em que um camponês proprietário é dono da terra e a cultiva, mas levanta o pequeno capital requerido, hipotecando a terra. Tampouco esse caso apresenta alguma peculiaridade importante. Só há aqui uma pessoa, o próprio camponês, que tem algum direito ou poder de interferir na administração. Paga uma anuidade fixa a um capitalista a título de juros, como paga outra soma fixa em forma de impostos ao Governo. Sem nos determos nesses casos, passamos para aqueles que apresentam características marcantes de peculiaridade. Quando as duas partes que partilham da produção consistem no trabalhador ou trabalhadores e no dono da terra, não é uma circunstância muito importante, no caso, qual dos dois fornece o capital, ou se, como por vezes acontece, o fornecem em uma determinada proporção entre eles. A diferença essencial não reside nisso, mas em uma outra circunstância, a saber, se a divisão da produção entre os dois é regulada pelo costume ou pela concorrência. Começaremos com o primeiro caso, do qual o cultivo por meeiros é o exemplo principal, e quase o único na Europa. O princípio do sistema de meeiros consiste em que o trabalhador, ou camponês, faz seu compromisso diretamente com o proprietário da terra, e paga não uma renda fixa — em dinheiro ou em espécie — mas uma certa percentagem da produção, ou melhor, uma determinada percentagem do que resta da produção, após deduzir o que é considerado necessário para manter o capital. A percentagem geralmente é uma metade, como diz a palavra meeiro, ainda que em certos distritos da Itália seja dois terços. Quanto ao fornecimento do capital, o costume varia de um lugar para outro; em alguns lugares o dono de terra fornece o capital inteiro, em outros, a metade, em outros, uma parcela específica, como, por exemplo, o gado e as sementes, cabendo ao trabalhador entrar com os implementos. (Segundo Arthur Young, sob esse aspecto reinava na França, antes da Revolução, uma grande diversidade local. Em Champagne “o dono da terra costuma entrar com a metade do gado e a metade das sementes, e o meeiro entra com trabalho, implementos e impostos: mas em alguns distritos o dono da terra participa destes últimos. Em Roussillon, o dono da terra paga a metade dos impostos, e em Guienne, desde Auch até Fleuran, muitos proprietários pagam a totalidade dos impostos. Perto de Augillon, no Garona, os meeiros fornecem a metade do gado. Em Nangis, na Isle de France, vi um contrato no qual o dono da terra entrava com o gado, os implementos, os arreios e os impostos: o meeiro entrava com o trabalho e seu próprio imposto per capita; o dono reparava a casa e as cancelas, o meeiro reparava as janelas: o dono dava sementes no primeiro ano, e o meeiro no último, sendo que nos anos intermediários cada um fornecia a metade das sementes. No Bourbonnois o dono da terra entra com todos os tipos de gado, porém o meeiro vende, troca e compra à vontade, sendo que o administrador mantém uma conta dessas operações, pois o dono da terra tem a metade da receita das vendas e paga a metade das compras”. No Piemonte — diz ele — “o proprietário da terra costuma pagar os impostos e reparar as construções, e o meeiro entra com o gado, os implementos e as sementes”). “Esse trato — diz Sismondi, falando sobretudo da Toscana (Études sur l’Économie Politique. Ensaio 6. ”De la Condition des Cultivateurs en Toscana) — muitas vezes é objeto de contrato, para definir certos serviços e certos pagamentos ocasionais aos quais o meeiro se obriga; todavia, não são consideráveis as diferenças quanto às obrigações de um desses contratos para outro; é o uso que rege todos esses compromissos e fornece as estipulações que não foram expressas; e o dono da terra que tentasse desviar-se do uso, que cobrasse mais do que seu vizinho, que tomasse por base do compromisso outra coisa que a divisão igual das colheitas, se tornaria tão odioso, teria tanta certeza de não conseguir um meeiro que fosse pessoa honesta, que o contrato de todos os meeiros pode ser considerado idêntico, ao menos dentro de uma mesma província, e nunca dá origem a alguma concorrência entre camponeses em busca de emprego ou a alguma oferta para cultivar o solo em condições mais baratas do que algum outro." Dentro da mesma linha se expressa Châteauvieux, (Letters from Italy) falando dos meeiros do Piemonte. “Eles a consideram” (a propriedade a cultivar) “um patrimônio, e nunca pensam em renovar o contrato, mas continuam de uma geração para a outra, nas mesmas condições, sem escritos ou registros.” (Entretanto, essa fixidez virtual da ocupação não é geral, nem mesmo na Itália; é à sua ausência que Sismondi atribui a condição inferior dos meeiros em algumas províncias de Nápoles, em Lucca, e na Riviera de Gênova, onde os donos de terra ficam com uma porção maior (embora ainda fixa) da produção. Nessas regiões a lavoura é esplêndida, mas as pessoas são pobres coitados. “O mesmo infortúnio teria provavelmente atingido a população da Toscana, se a opinião pública não protegesse o lavrador: mas um proprietário não se atreveria a impor condições contrárias aos usos do país e, mesmo substituindo um meeiro por outro, ele nada muda nas condições do compromisso.” Nouveaux Principes. Livro Terceiro. Cap. 5). § 2. Quando a repartição da produção é questão de costume fixo, e não de convenção que varia, a Economia Política não tem leis de distribuição a investigar. Cabe-lhe apenas considerar, como no caso de camponeses proprietários, os efeitos do sistema, primeiro sobre a condição da classe dos camponeses, sob o ponto de vista moral e físico, e segundo, sobre a eficiência do trabalho. Sob esses dois prismas, o sistema de meeiros apresenta as vantagens características das propriedades possuídas por camponeses, mas em grau inferior. O meeiro tem menos motivação para o trabalho do que o camponês proprietário, pois só lhe pertence a metade dos frutos de seu trabalho, e não a totalidade deles. Ele tem, contudo, uma motivação muito mais forte do que um trabalhador diarista, que não tem outro interesse no resultado, a não ser o desejo de não ser demitido. Se o meeiro não pode ser despedido a não ser por alguma violação de seu contrato, tem uma motivação maior para o trabalho do que qualquer arrendatário a título precário. O meeiro é no mínimo o parceiro ou o sócio do dono da terra em que trabalha, e alguém que tem direito a partilhar da metade dos ganhos comuns aos dois. Além disso, onde a permanência de sua ocupação é assegurada pelo costume, ele adquire afeição local e muito dos sentimentos de um proprietário. Estou supondo que essa metade da produção é suficiente para dar-lhe um sustento confortável. Se é isso que ocorre de fato, depende (em qualquer condição específica de agricultura) do grau de subdivisão da terra, o que, por sua vez, depende da operação do princípio da população. Uma multiplicação da população, além do número que pode ser adequadamente sustentado pela terra ou absorvido pelas manufaturas, incide até sobre um camponês proprietário, e, naturalmente, não menos, senão até mais, sobre uma população de meeiros. Todavia, a tendência que, segundo já anotamos, o sistema de proprietários tem de fomentar a prudência sob esse prisma é comum, em grau não menor, ao sistema de meeiros. Também aqui, é questão de cálculo fácil e exato, se é ou não possível sustentar uma família. Se é fácil ver se o proprietário da produção total pode aumentar a produção a ponto de manter igualmente bem um número maior de pessoas, mais difícil é saber se o proprietário da metade da produção pode fazer isso. (O Sr. Bastiat afirma que mesmo na França, incontestavelmente o exemplo menos favorável do sistema de meeiros, é notável o efeito do sistema no sentido de limitar a população. “É um fato bem constatado que a tendência à multiplicação excessiva se manifesta sobretudo na classe assalariada. Sobre essa categoria a previdência planejada que retarda os casamentos tem pouco efeito, porque os males oriundos da concorrência excessiva só lhes aparecem de maneira muito confusa, parecendo-lhes também um perigo apenas remoto. Por isso, a condição mais favorável para um país é ter uma organização tal que não haja uma classe regular de trabalhadores assalariados. Nos países onde domina o sistema de meeiros, os casamentos são determinados sobretudo pelas exigências da lavoura: aumentam quando, por qualquer motivo, as terras estão em estado de ociosidade prejudicial à produção, e diminuem quando todas as vagas estão preenchidas. Um fato facilmente constatado: a proporção entre o tamanho da propriedade cultivada e o número de trabalhadores funciona como previdência, e com grande efeito. Vemos, consequentemente, que, quando nada ocorre que abra vagas para uma população maior, a população permanece estacionária, como se observa nos nossos departamentos do sul”. “Considérations sur le Métayage”. In: Journal des Économistes. Fevereiro de 1846). Há um obstáculo que esse sistema parece oferecer, além daqueles apresentados até pelo sistema de proprietário: há um dono da terra, que pode exercer um poder de controle, recusando seu consentimento a uma subdivisão da terra. Entretanto, não atribuo grande importância a esse obstáculo, pois a propriedade pode ser sobrecarregada com mão-de-obra supérflua, sem ser desmembrada, e porque, enquanto o aumento de mão-de-obra gerar um aumento da produção bruta — o que quase sempre acontece —, quem ganha diretamente é o dono da terra, que recebe a metade da produção, sendo que a desvantagem recai somente sobre os trabalhadores. Sem dúvida, o senhor da terra está sujeito, no final, a sofrer devido à pobreza destes, por ser forçado a lhes fazer adiantamentos, especialmente em estações desfavoráveis — e a previsão deste último inconveniente pode operar beneficamente sobre donos de terra que preferem a segurança futura ao lucro presente. A desvantagem característica do sistema de meeiros é colocada muito corretamente por Adam Smith. Após assinalar que os meeiros “têm um interesse manifesto em que a produção total seja tão grande quanto possível, para que tal seja também a parte que a eles cabe” — prossegue dizendo: — “no entanto, jamais poderia esse tipo de cultivadores ter interesse pessoal em investir, no ulterior aprimoramento da terra, qualquer parcela do pequeno capital que poderiam economizar de sua própria parcela da produção, já que o dono da terra, que não investiu nada, receberia a metade de tudo o que seria produzido. Constata-se que a dízima, que é apenas 1/10 da produção, representa um obstáculo muito grande ao aprimoramento da terra. Por isso, uma taxa que ascendesse a uma metade teria constituído um empecilho efetivo para esse aprimoramento. Poderia um meeiro ter interesse pessoal em fazer a terra produzir tanto quanto dela se pudesse tirar com o capital fornecido pelo proprietário, mas nunca poderia ter interesse em juntar alguma parte do capital próprio com o do proprietário. Na França, onde, segundo se afirma, 5/6 do Reino continuam a ser ocupados por esse tipo de agricultores, os proprietários se queixam de que os seus meeiros aproveitam toda oportunidade para utilizar o gado do dono mais no transporte do que no cultivo da terra, pois no primeiro caso são eles que levam todo lucro, e no segundo têm que partilhá-lo com o dono da terra”. Sem dúvida, está implícito na própria natureza da ocupação que todas as melhorias que requerem gasto de capital têm que ser executadas com o capital do dono. Contudo, isso é essencialmente o caso, mesmo na Inglaterra, sempre que os arrendatários o são ao arbítrio do dono, ou (se Arthur Young tiver razão) mesmo na base de “uma locação de nove anos”. Se o dono da terra estiver disposto a fornecer capital para as melhorias, o meeiro tem o interesse máximo em promovê-las, já que a metade do benefício decorrente delas caberá a ele. Uma vez que, porém, A a perpetuidade da ocupação — da qual, no caso em pauta, ele desfruta por força do costume — faz com que seu consentimento seja uma condição necessária, o espírito de rotina e a falta de amor a inovações, características de uma população agrícola não corrigida pela educação, constituem indubitavelmente um sério obstáculo ao aprimoramento da terra, como parecem admitir os defensores desse sistema. § 3. O sistema de meeiros não tem encontrado nenhum favor por parte das autoridades inglesas. Segundo Arthur Young, “não se pode dizer uma única palavra a favor dessa prática” e de “mil argumentos que poderiam ser utilizados contra ela. A única coisa que pode ser invocada a seu favor é a dura força da necessidade: com efeito, a pobreza dos arrendatários é tão grande que o dono da terra tem que colocar o capital, ou então simplesmente não há possibilidade de capitalizar a propriedade; ora, isso é um peso duríssimo para um proprietário, que é assim obrigado a correr grande parte do risco de cultivar em uma das formas mais perigosas, a de entregar sua propriedade absolutamente a pessoas geralmente ignorantes, sendo muitos deles descuidados, e alguns indiscutivelmente perversos (...) Nessa forma de alugar terra, a mais miserável de todas, o proprietário defraudado recebe uma renda insignificante, o agricultor está no pior estado de pobreza, a terra é miseravelmente cultivada, e a nação sofre tanto quanto as próprias partes envolvidas (...) Onde quer que esse sistema prevaleça, pode-se ter por certo que se encontra uma população inútil e miserável. (...) Em toda parte onde a terra (que eu vi) é pobre e seca no ducado de Milão, ela está nas mãos de meeiros; quase sempre estes devem ao dono sementes e alimentos, e ”a condição deles é pior do que a de um trabalhador diarista. (...) Há apenas alguns distritos" (na Itália) “em que as terras são alugadas ao rendeiro por uma renda em dinheiro; ora, onde quer que isso aconteça, suas colheitas são mais abundantes, prova insofismável da insensatez do sistema de meeiros”. “Onde quer que ele” (o sistema de meeiros) “tenha sido adotado”, afirma o Sr. McCulloch (Principles of Political Economy), “pôs fim a qualquer aprimoramento da terra e reduziu os agricultores à maior pobreza.” O Sr. Jones (Essay on the Distribution of Wealth) segue a opinião comum, citando Turgot e Destutt-Tracy a favor dela. Todavia, a impressão de todos os autores (a despeito das referências ocasionais de Arthur Young à Itália) parece derivar sobretudo da França, e da França antes da Revolução. (O Sr. de Tracy constitui em parte uma exceção, pois sua experiência atinge um período posterior à Revolução; ele admite, porém (como o próprio Sr. Jones afirmou alhures), que só conhece um distrito limitado, onde a terra está muito subdividida e o solo não é fértil. O Sr. Passy é de opinião que a classe camponesa da França deve passar necessidade, no sistema de meeiros, e a agricultura do país deve ser precária, porque a percentagem de produção reclamada pelo dono da terra é por demais elevada: segundo ele, somente em climas mais favoráveis uma terra, que não seja de altíssima fertilidade, pode pagar a metade de sua produção bruta como renda e deixar o suficiente para permitir aos agricultores cultivarem com sucesso os produtos agrícolas mais caros e valiosos. (Systèmes de Culture) Esta é uma objeção que atinge somente uma determinada proporção numérica — que é realmente a comum — mas ela não é essencial ao sistema como tal). Ora, a situação dos meeiros franceses no regime antigo de maneira alguma representa a forma típica do contrato de meeiros. A essa forma é essencial que o proprietário pague todos os impostos. Ora, na França, a isenção direta de impostos, concedida à nobreza, havia levado o Governo a jogar todo o peso de suas cobranças fiscais crescentes sobre os ocupantes, sendo a essas cobranças que Turgot atribuiu a miséria extrema dos meeiros — miséria que, em alguns casos, era tão excessiva que em Limousin Angoumois (as províncias que ele administrou) raramente eles tinham, segundo ele — e após deduzir todos os encargos — mais de 25 a 30 libras francesas (20 a 24 xelins) por cabeça para todo o seu consumo anual: “não digo em dinheiro, mas contando tudo o que consomem em espécie, daquilo que colheram”. (Ver o “Memóire sur la Surcharge des Impositions qu’Éprouvait la Généralité de Limoges, Adressé au Conseil d’État en 1766", volume IV das Obras de Turgot, segundo Turgot, os compromissos ocasionais de donos de terra pagarem uma parte dos impostos (como menciona Arthur Young) eram de origem recente, sob impulso da necessidade efetiva. ”O proprietário só consente nisso quando não puder encontrar meeiros que aceitem outras condições; consequentemente, mesmo nesse caso, o meeiro é sempre obrigado a contentar-se com o que é apenas suficiente para impedi-lo de morrer de fome"). Se acrescentarmos que não tinham a fixidez de ocupação virtual dos meeiros da Itália ("em Limousin", afirma Arthur Young, “considera-se que os meeiros estão bem pouco acima dos criados domésticos, removíveis a bel-prazer e obrigados a obedecer em tudo à vontade dos donos da terra”) é evidente que o caso deles não constitui argumento algum contra o sistema de meeiros na sua forma melhor. Uma população que não tinha nada de próprio, que, como os cottiers irlandeses, não poderia em circunstância alguma estar em situação pior, nada tinha que a impedisse de se multiplicar e de desmembrar a terra, até o ponto em que a inanição efetiva os impedisse de continuar a fazê-lo. As autoridades mais precisas nos dão uma imagem muito diferente da agricultura dos meeiros na Itália. Primeiramente, quanto à subdivisão da terra. Na Lombardia, segundo Châteauvieux, há poucas propriedades cultivadas que excedem 50 acres, e poucas que têm menos de 10. Essas são todas ocupadas por meeiros que ficam com a metade do lucro. Invariavelmente apresentam “uma área e uma riqueza de construções que raramente se conhecem em qualquer outro país da Europa”. O projeto dessas construções “combina proporcionalmente o espaço máximo com a área mínima de construção, é o mais bem adaptado para colocar e assegurar a colheita, e ao mesmo tempo é o mais econômico e o menos exposto a acidentes de incêndio”. O pátio “apresenta um aspecto geral tão regular e funcional, e um sistema de tanto cuidado e boa ordem, que as nossas propriedades rurais, sujas e mal arrumadas, não podem dar delas uma ideia adequada”. A mesma descrição aplica-se ao Piemonte. A rotação das colheitas é excelente. “Penso que nenhum país tem condições de comercializar uma percentagem tão grande de seus produtos quanto o Piemonte.” Apesar de o solo não ser por natureza muito fértil, “o número de cidades é prodigiosamente grande”. A agricultura deve, pois, ser eminentemente favorável tanto à produção líquida como à produção bruta da terra. “Cada arado ara 32 acres na estação. (...) Nada pode ser mais perfeito ou melhor do que carpir e revolver o milharal, quando plenamente crescido, com um único arado, com uma junta de bois, e isso sem danificar uma única planta, e destruindo efetivamente todas as ervas daninhas”. Isso quanto à perícia agrícola. “Nada pode ser tão excelente quanto a colheita que a precede e a segue”. O trigo “é debulhado por um cilindro, puxado por um cavalo, e guiado por um rapaz, enquanto os trabalhadores revolvem a palha com forcados. Esse processo dura quase duas semanas; ele é rápido e econômico, e extrai todos os grãos. (...) Em nenhuma parte do mundo a economia e a administração da terra são mais bem compreendidos do que no Piemonte, o que explica o fenômeno de sua grande população e sua enorme exportação de gêneros alimentícios”. Tudo isso acontece no regime de cultivo por meeiros. Quanto ao vale do Arno, em toda a sua extensão, tanto acima como abaixo de Florença, o mesmo escritor assim se expressa: “Florestas de olivais cobriam as partes mais baixas das montanhas e com suas folhas escondiam um número infinito de pequenas propriedades, que povoavam essas partes das montanhas; castanheiros levantavam suas folhagens nas encostas mais altas, sendo que seu verdor saudável contrastava com o tom pálido das oliveiras e espalhava um brilho sobre esse anfiteatro. A estrada apresentava, dos dois lados, casas de aldeia, a distância não superior a cem passos uma da outra. (...) Estão localizadas a pequena distância da estrada e separadas dela por um muro e um terrado de alguns pés de comprimento. No muro costumam-se colocar muitos vasos de formas antigas, nos quais crescem flores aloés e laranjeiras novas. A própria casa está totalmente coberta de parreiras. (...) Diante dessas casas vimos grupos de camponesas vestidas de linho branco, espartilhos de seda e chapéus de palha, e enfeitadas de flores. (...) Pelo fato de essas casas estarem tão próximas umas das outras, é evidente que a terra anexa a elas deve ser pequena, e que a propriedade, nesses vales, deve ser muito subdividida; a extensão dessas glebas é de 3 a 10 acres. A terra está localizada ao redor das casas, sendo dividida em campos por pequenos canais, ou filas de árvores, algumas das quais são amoreiras; porém a maior parte são choupos, cuja folhagem constitui alimento para o gado. Cada árvore sustenta uma videira. (...) Essas áreas dispostas em retângulos são suficientemente grandes para serem cultivadas por um arado sem rodas e uma junta de bois. Há uma junta de bois para cada dez ou doze agricultores; utilizam-na sucessivamente no cultivo de todas as propriedades. (...) Quase cada propriedade mantém um cavalo vistoso, que puxa uma pequena carroça de duas rodas, bem-feita e pintada de vermelho; servem para todos os fins de transporte para a propriedade, e também para levar as filhas do agricultor à missa e aos bailes. Assim é que nos dias santos se observam centenas dessas pequenas carroças voando em todas as direções, levando as mulheres jovens, enfeitadas de flores e fitas”. Isso não é um quadro de pobreza; no que concerne à agricultura, ele redime efetivamente o cultivo de meeiros, tal como existe nessas regiões, das censuras dos autores ingleses; entretanto, no que tange à condição dos agricultores, o testemunho de Châteauvieux não é, em alguns pontos, tão favorável. “Não é nem a fertilidade natural do solo nem a abundância que salta aos olhos do viajante, que constituem o bem-estar de seus habitantes. É o número de indivíduos entre os quais é dividida a produção total que fixa a porção de que cada um pode desfrutar. Aqui essa porção é muito pequena. Até aqui, sem dúvida, apresentei uma região deliciosa, bem aguada, fértil e coberta de uma vegetação perpétua; mostrei-a dividida em inúmeras glebas cercadas, as quais, como tantos canteiros em um jardim, exibem mil produtos variados; mostrei que a todas essas glebas estão ligadas casas bem construídas, vestidas de parreiras e decoradas de flores; mas, ao entrar nessas casas, deparamos com uma falta total de todas as coisas de conveniência para se viver, uma mesa mais do que frugal e uma aparência geral de privação.” Não estará Châteauvieux aqui contrastando inconscientemente a condição dos meeiros com a dos arrendatários de outros países, quando o padrão adequado com o qual se deve compará-los é a condição dos diaristas que trabalham na agricultura? Afirma Arthur Young: “Foi-me assegurado que esses meeiros (especialmente perto de Florença) vivem em boa tranquilidade; que nos dias santos se vestem particularmente bem, não faltando objetos de luxo como prata, ouro e seda, e vivem bem, com muito pão, vinho e legumes. É possível que em alguns casos isso seja verdade, mas em geral ocorre o contrário. É absurdo pensar que meeiros, em uma propriedade cultivada por uma junta de bois, possam viver com tranquilidade, e uma prova manifesta de pobreza é esta: o dono da terra, que fornece a metade do gado, muitas vezes é obrigado a emprestar ao agricultor dinheiro para ele colocar a metade que lhe toca. (...) Os meeiros não próximos à cidade são tão pobres que os proprietários das terras chegam a emprestar-lhes trigo para comer; seu alimento consta de pão preto, feito de uma mistura com ervilhacas; e sua bebida é muito pouco vinho misturado com água e chamado aquarolle; carne, somente aos domingos; suas roupas são bem comuns”. O Sr. Jones admite o maior conforto dos meeiros perto de Florença e o atribui em parte à atividade de entrançar palha, com a qual as mulheres dos camponeses conseguem ganhar, segundo Châteauvieux, de 15 a 20 pence por dia. Mas mesmo esse fato depõe a favor do sistema de meeiros, pois naquelas regiões da Inglaterra em que essa atividade ou a de fazer cordões é executada por mulheres e crianças da classe trabalhadora, como em Bedfordshire e Buckinghamshire, a condição dessa classe não é melhor, mas antes pior do que alhures, sendo os salários da mão-de-obra agrícola baixados e reduzidos. A despeito da afirmação de Châteauvieux em relação à pobreza dos meeiros, sua opinião, ao menos com respeito à Itália, é a favor do sistema. “Ele ocupa e interessa constantemente os proprietários, o que nunca acontece com grandes proprietários que arrendam suas terras a rendas fixas. Ele cria uma comunidade de interesses e relações de gentileza entre os proprietários e os meeiros, gentileza que muitas vezes presenciei, e da qual resultam grandes vantagens para a condição moral da sociedade. Nesse sistema, o proprietário está sempre interessado no sucesso da colheita, nunca recusa fazer uma melhoria com recursos adiantados, adiantamento este que a terra promete remunerar com juros. É por essas melhorias e pela esperança assim inspirada que os ricos proprietários de terra aperfeiçoaram gradualmente toda a economia rural da Itália. É a elas que o país deve os numerosos sistemas de irrigação que banham seu solo, bem como o cultivo de terraços nas colinas — aperfeiçoamentos graduais mas permanentes, que camponeses comuns, por falta de recursos, nunca poderiam ter efetuado, e que nunca poderiam ter sido efetuados pelos arrendatários nem pelos grandes proprietários que arrendam suas propriedades a rendas fixas, por não terem suficiente interesse neles. Assim, o sistema de interesses constitui por si mesmo aquela aliança entre o proprietário rico e o meeiro, cujo cuidado e trabalho se voltam, com interesse comum, para introduzir o máximo dessas melhorias”. Entretanto, o testemunho mais favorável a esse sistema é o de Sismondi, que tem a vantagem de ser específico, bem como a do conhecimento preciso, pois sua informação não é a de um viajante, mas a de um proprietário residente, intimamente familiarizado com a vida rural. Suas afirmações aplicam-se à Toscana em geral e mais especialmente ao Valdi Nievola, onde estava localizada sua propriedade, que não está dentro do presumido círculo privilegiado, localizado imediatamente ao redor de Florença. É um dos distritos nos quais o tamanho das propriedades parece ser o menor. Eis como ele descreve as moradias e o modo de viver dos meeiros daquele distrito. (De seu ensaio sexto, anteriormente referido) “A casa, construída com boas paredes de cal e argamassa, tem sempre no mínimo um andar acima do térreo, às vezes dois. No andar térreo costumam estar localizados a cozinha, uma estrebaria para duas cabeças de gado vacum, e o paiol, que toma seu nome, tinaia, das grandes tinas (tini) nas quais se coloca o vinho para fermentar, sem pisar ou prensar; é também ali que o meeiro guarda trancados seus barris, seu óleo e seus cereais. Quase sempre há também um alpendre ou galpão, apoiado contra a casa, onde pode trabalhar coberto para consertar suas ferramentas, ou para picar forragem para seu gado. No primeiro e no segundo andares há dois, três, e muitas vezes quatro quartos de dormir. O maior e mais arejado destes, o meeiro costuma destiná-lo, nos meses de maio e junho, à criação do bicho-da-seda. A principal mobília dos quartos consiste em grandes arcas para guardar roupas e linho e algumas cadeiras de madeira; mas uma mulher recém-casada sempre traz consigo um guarda-roupa de nogueira. As camas não têm cortinas, mas em cada uma delas, além de um bom colchão, de palha elástica de milho, há um ou dois colchões de lã, ou, entre os mais pobres, de estopa, um bom cobertor, lençóis de tecido forte de cânhamo, e sobre a melhor cama da família, uma colcha com estofamento de seda, que é colocado em dias festivos. A única lareira está na cozinha; há também a grande mesa de madeira onde família janta e os bancos, o grande armário que serve ao mesmo tempo para guardar o pão, e outros alimentos e, para amassar pão um conjunto razoavelmente completa, embora barato, de panelas, travessas e pratos de barro, uma ou duas lâmpadas de metal, uma balança romana, e no mínimo dois cântaros de cobre para água. Todos os tecidos de linho e de trabalho da família foram fiados pelas mulheres da casa. As roupas, tanto dos homens como das mulheres, são de material chamado mezza lana quando grosso, e mola quando fino, e feitos de um tecido grosseiro de cânhamo ou estopa, cheios de algodão ou lã; o material é secado pelas mesmas mulheres que o fiam. Dificilmente se acreditaria que quantidades de tecido e de mezza lana as camponesas são capazes de acumular com seu trabalho assíduo, quantos lençóis há no depósito, quão grande é o número de camisas, coletes, calças, saias e vestidos que cada membro da família possui. A título de exemplo, acrescento em nota a lista de objetos e pertences da família camponesa que melhor conheço: não é uma das mais ricas nem uma das mais pobres, e vive feliz de seu trabalho, com a metade da produção de menos de dez jeiras de terra. (Lista de objetos e pertences do enxoval de Jane, filha de Valente Papini, em seu casamento com Giovacchino Landi, a 29 de abril de 1835, em Porta Vecchia, perto de Pescia: “28 camisas femininas, 7 vestidos dos melhores (de tecidos específicos de seda), 7 vestidos de algodão estampado, 2 vestidos de trabalho para inverno (mezza lana), 3 vestidos e saias de trabalho para o verão (mola), 3 saias brancas, 5 aventais de linho estampado, 1 de seda preta, 1 de merino preto, 9 aventais coloridos para trabalho (mola), 4 lenços brancos, 8 coloridos e 3 de seda, 2 véus bordados e 1 de filó, 3 toalhas, 14 pares de meias, 2 chapéus (um de feltro, o outro de palha fina); 2 camafeus engastados em ouro, 2 brincos de ouro, 1 diadema com duas coroas de prata romana, 1 colar de coral com sua cruz de ouro. (...) Além disso, todas as mulheres casadas mais ricas da classe têm o vestido de seda, a grande roupa para dias festivos, que usam apenas quatro ou cinco vezes na vida"). A jovem possuía enxoval de 50 coroas, sendo 20 pagas e o restante a pagar em prestações de duas cada ano. A coroa toscana vale 6 francos [4 s 10 d]. O enxoval mais comum de uma moça camponesa nas outras partes da Toscana, onde as propriedades cultivadas por meeiros são maiores, é de 100 coroas, 600 francos." Será isso pobreza, ou será isso compatível com pobreza? Quando um quinhão normal — o Sr. de Sismondi diz até o normal — para o casamento de uma filha de meeiro é de 24 libras em dinheiro inglês, equivalentes a no mínimo 50 libras na Itália, e nesse padrão de vida, quando alguém cujo dote é apenas a metade dessa soma, tem o guarda-roupa descrito — que Sismondi apresenta como sendo uma boa média — essa classe deve ser plenamente comparável, em sua condição geral, a uma grande percentagem até mesmo de arrendatários capitalistas de outros países, e estar incomparavelmente acima dos trabalhadores diaristas de qualquer país, se excetuarmos os de uma colônia nova, ou dos Estados Unidos. Contra tal evidência muito pouco é o que se pode deduzir da impressão de um viajante, sobre a qualidade pobre da alimentação desses meeiros. Os poucos gastos com alimentação podem ser antes o efeito de economia do que de necessidade. A alimentação cara não é o luxo favorito de uma população meridional; sua dieta, em todas as classes, consta sobretudo de verduras e legumes, sendo que nenhuma classe camponesa da Europa continental tem a superstição do trabalhador inglês a respeito do pão branco. A alimentação do camponês toscano, segundo Sismondi, “é saudável e variada: à base está um excelente pão de trigo, preto mas isento de farelo e de qualquer mistura. No inverno só tomam duas refeições por dia: às dez da manhã comem a sua pollenta, e ao anoitecer, sua sopa, e depois dela, pão com algum acompanhamento (companatico). No verão têm três refeições: às oito, à uma da tarde e à noitinha, mas o fogo é acendido apenas uma vez por dia, para o jantar, que consiste em sopa e um prato de carne salgada ou peixe seco, ou feijão ou legumes verdes, que comem com pão. A carne salgada entra em quantidade muito reduzida nessa dieta, pois se conta com que 40 libras-peso de carne de porco salgada por cabeça bastam amplamente para a provisão de um ano; duas vezes por semana coloca-se um pequeno pedaço dela na sopa. Aos domingos sempre têm à mesa uma travessa de carne fresca, porém um pedaço que pesa apenas 1 libra-peso ou 1 1/2 é suficiente para a família inteira, por mais numerosa que seja. Não se deve esquecer que os camponeses toscanos geralmente produzem azeite de oliva para seu próprio consumo: usam-no não somente para as lâmpadas, mas também como tempero para todas as verduras e legumes preparados para a mesa, pois ele os torna mais saborosos e nutritivos. Ao café da manhã seu alimento é pão, e às vezes queijo e frutas; ao jantar, pão e salada. Sua bebida é o vinho inferior do país, o vinella ou piquette, que é feito fermentando em água as cascas das uvas socadas. Todavia, sempre reservam um pouco de seu melhor vinho para o dia em que debulham seus cereais, e para algumas festas familiares. Considera-se que a provisão necessária para um homem adulto é de aproximadamente 50 garrafas de vinella por ano e 5 sacos de trigo (em torno de 1000 libras-peso de pão)”. Não menos atenção merecem as observações de Sismondi sobre as influências morais desse tipo de estrutura social. Pelo fato de as obrigações e os direitos do meeiro serem fixas pelo uso, e todos os impostos e taxas serem pagos pelo proprietário, “o meeiro tem a vantagem da propriedade fundiária sem o ônus de defendê-la. É ao dono da terra que cabem, juntamente com a terra, todas as disputas; o ocupante vive em paz com todos os seus vizinhos; entre ele e seus vizinhos não há motivos para rivalidade ou desconfiança, ele conserva um bom entendimento com eles, bem como com seu proprietário, com o coletor de impostos, e com a Igreja; ele vende pouco e compra pouco; toca pouco dinheiro, mas raramente tem dinheiro a pagar. O caráter gentil e delicado dos toscanos é comentado muitas vezes, mas sem observar suficientemente a causa que mais tem contribuído para manter essa gentileza, a saber, o tipo de ocupação da terra, que faz com que toda a categoria dos agricultores, mais de 3/4 da população, permaneça isenta de quase toda ocasião de briga”. A fixidez de ocupação da terra, que o meeiro possui por costume, ainda que não por lei, enquanto cumprir suas próprias obrigações, lhe garante o aperfeiçoamento local, e quase o senso forte de interesse pessoal, característico de um proprietário. “O meeiro vive da terra que cultiva como de sua herança, amando-a com afeto, trabalhando incessantemente para melhorá-la, confiando no futuro, e garantindo que a terra seja cultivada depois dele pelos seus filhos e pelos filhos de seus filhos. Com efeito, a maioria dos meeiros vive de uma geração para outra na mesma propriedade: conhece-a em seus detalhes, com uma minuciosidade que somente o sentimento de propriedade pode dar. As áreas terraplenadas, uma acima da outra, muitas vezes não têm largura superior a 4 pés mas não há um único deles cujas qualidades o meeiro não tenha pesquisado. Este é seco, o outro é frio e úmido; aqui o solo é profundo, lá ele não passa de uma camada que dificilmente cobre a rocha; em um é o trigo que melhor prospera, em outro é o centeio; aqui seria trabalho perdido semear milho, em outra parte o solo é inadequado para feijão e tremoço, mais adiante cresce admiravelmente o linho, e a margem deste arroio será boa para cânhamo. Dessa maneira se aprende, com surpresa, do meeiro, que em um espaço de 10 jeiras o solo, o aspecto e a inclinação do terreno apresentam variedade maior que aquela que um arrendatário rico geralmente é capaz de distinguir em uma propriedade de 500 acres. Efetivamente, este último sabe que é apenas um ocupante temporário, e além disso, que deve conduzir suas operações na base de normas gerais, negligenciando detalhes. Ao contrário, o meeiro experiente teve sua inteligência tão despertada pelo interesse e pela afeição, que é o melhor dos observadores; com todo o futuro pela frente, ele pensa não só em si mesmo, mas também em seus filhos e netos. Por isso, ao plantar uma oliveira, árvore que dura séculos, escava no fundo do buraco no qual a planta um canal para deixar sair a água que a prejudicaria, estuda todas as camadas da terra que deve cavar”. (O Sr. de Sismondi usa as expressões mais lisonjeiras para descrever a inteligência dessa população interessante. Poucos deles sabem ler, mas muitas vezes um dos membros da família está destinado ao sacerdócio, e este lhes faz leitura nas tardes de inverno. A linguagem dessa gente difere pouco do italiano mais puro. É generalizado o gosto para improvisar versos. “Os camponeses do Vale de Nievole frequentam o teatro no verão, em dias festivos, das nove às onze da noite; a entrada lhes custa pouco mais de 5 soldos franceses Seu autor favorito é Alfieri; toda a história dos Atridas é familiar a essa população que não sabe ler e que procura nesse poeta austero um descanso em seu duro trabalho”. Contrariamente à maioria do pessoal do campo, encontram prazer na beleza de sua região. “Nas colinas do Vale di Nievole existe, na frente de cada casa, um espaço para debulhar cereais, que raramente ocupa mais de 25 ou 30 braças quadradas; muitas vezes é o único trecho plano em toda a propriedade; ao mesmo tempo, ele é uma espécie de terraço sobre as planícies e o vale dando vista para uma região deliciosa. Dificilmente fiquei um dia sossegado admirando essa paisagem, sem que o meeiro viesse desfrutar da minha admiração e apontar, com o dedo, as belezas que pensava terem-me escapado). § 4. Não pretendo, com essas citações, evidenciar a excelência intrínseca do sistema de meeiros; mas com certeza elas são suficientes para provar que nem a “terra miseravelmente cultivada” nem um povo na “mais vil pobreza” têm algum nexo necessário com esse sistema, e que a censura desmedida feita a esse sistema pelos autores ingleses se funda em uma visão extremamente estreita da matéria. Para mim, a economia rural da Itália é simplesmente uma nova demonstração a favor da ocupação de pequenas áreas com título permanente. Ela é um exemplo daquilo que podem fazer esses dois fatores conjugados, mesmo com a desvantagem da natureza especial do contrato de meeiro, em que a motivação para o trabalho, por parte do ocupante, é de apenas 50% em relação ao que seria se ele explorasse a terra na mesma base de perpetuidade pagando renda em dinheiro, seja este valor fixo, seja variável de acordo com alguma norma que deixaria para o ocupante todo o benefício de seu próprio trabalho. O sistema de meeiros não é um esquema que devamos ter a preocupação de introduzir onde as exigências da sociedade não lhe deram origem naturalmente; contudo, tampouco devemos querer a toda força aboli-lo, baseados simplesmente em uma visão apriorística de seus inconvenientes. Se o sistema na Toscana funciona tão bem, na prática, quanto o descreve, com todos os sinais de conhecimento detalhado, uma autoridade tão competente como Sismondi; se o padrão de vida da população, e o tamanho das propriedades, durante gerações, se mantiveram (Escreve Sismondi: “Nunca observamos que uma família de meeiros proponha ao senhorio uma divisão da terra por ele cultivada, a menos que o trabalho ultrapasse realmente as suas possibilidades, e a menos que tenha certeza de desfrutar das mesmas vantagens em uma área menor. Nunca vemos vários filhos casarem juntos e formarem novas famílias; casa somente um, encarregando-se das despesas da casa; nenhum dos outros casa, a menos que o primeiro não tenha filhos, ou a menos que a algum deles seja oferecida nova área de terra para ocupá-la como meeiro”. New Principles of Political Economy. Livro Terceiro. Cap. V) e continuam a manter-se como ele o diz, seria lamentável que uma condição de bem-estar rural tão superior àquilo que se tem feito na maioria dos países europeus fosse posto em risco por uma tentativa de introduzir, sob pretexto de aperfeiçoamento agrícola, um sistema de renda em dinheiro e arrendatários capitalistas. Mesmo onde os meeiros são pobres e a subdivisão da terra é grande, não se deve supor como óbvio que a mudança seria para melhor. A ampliação das propriedades cultivadas e a introdução do que se denomina melhorias agrícolas normalmente fazem diminuir o número de trabalhadores empregados na lavoura, a não ser que o aumento de capital no comércio e nas manufaturas consiga recolocar a população deslocada; e se não houver áreas incultas arroteáveis nas quais essa população possa ser colocada, a concorrência reduzirá os salários a tal ponto que tal população provavelmente estará em condições piores como trabalhadores diaristas, do que quando eram meeiros. Com muita justeza o Sr. Jones objeta aos economistas franceses do século passado que, visando seu objetivo favorito de introduzir rendas em dinheiro, se empenharam exclusivamente em colocar arrendatários em lugar de meeiros, em vez de transformar os meeiros existentes em arrendatários — o que, como ele bem observa, dificilmente pode ser feito, a menos que, para possibilitar aos meeiros economizarem e se tornarem proprietários de capital, os donos das terras se submetam por bastante tempo a aceitar uma diminuição de sua renda, em vez de esperar um aumento dela, objetivo que tem sido a motivação imediata ao fazerem essa tentativa. Se essa transformação fosse feita, e não se fizesse nenhuma outra alteração na condição do meeiro, se, preservando todos os demais direitos que o uso lhe assegura, ele apenas se livrasse da obrigação de dar ao dono da terra a metade da produção, pagando em lugar disso uma renda fixa razoável, sob um aspecto ele ficaria em uma situação melhor que atualmente: a ele passaria a pertencer a totalidade dos frutos de qualquer melhoria que introduzisse na terra, e não apenas a metade deles; mesmo assim, porém, o benefício não deixaria de ter desvantagens; pois um meeiro, embora não seja pessoalmente um capitalista, tem um capitalista como sócio, podendo utilizar, ao menos na Itália, um capital considerável, como demonstra a excelência das construções existentes nas propriedades que cultivam; por outro lado, não é provável que os donos de terras continuariam a comprometer com risco sua propriedade móvel nos empreendimentos agrícolas se, mesmo não o fazendo, tivessem assegurada uma renda fixa em dinheiro. Assim ficaria o problema, mesmo se a mudança deixasse intocada a fixidez virtual da ocupação da terra pelo meeiro e o transformasse de fato em um camponês proprietário at a quitrent (Feudatário isento de obrigações mediante pagamento). Se, porém, a suposição for a de que ele seja transformado em um simples arrendatário, passível de ser despedido ao arbítrio do dono da terra, e sujeito a ver a renda aumentada, pela concorrência, para qualquer montante que um ser infeliz em busca de subsistência pode vir a oferecer ou prometer, nesse caso o meeiro acabaria perdendo todas as características que impedem o deterioramento de sua condição; o meeiro perderia nesse caso sua posição atual de uma espécie de meio-proprietário da terra, para cair na condição de um ocupante do tipo cottier. CAPÍTULO IX Os Cottiers § 1. Com o termo geral de cottier tenure — ocupação de terra no sistema de cottier — designarei todos os casos, sem exceção, em que o trabalhador faz seu contrato referente à terra sem a intervenção de um arrendatário capitalista, e em que as condições do contrato, especialmente o montante da renda, são determinadas por concorrência, e não pelo costume. O exemplo principal desse tipo de ocupação da terra é a Irlanda e foi desse país que veio o termo cottier. (Em sua acepção original, a palavra cottier designava uma classe de sublocatários, que arrendam uma casinha e um acre ou dois de terra dos pequenos arrendatários. Mas o uso dos autores há muito tempo ampliou o termo para incluir esses próprios pequenos arrendatários, e, de modo geral, todos os camponeses arrendatários cujas rendas são determinadas pela concorrência). Se o direito de locação vigente no Ulster não constituísse uma exceção, poder-se-ia dizer que a grandíssima maioria da população agrícola da Irlanda, até bem recentemente, era constituída de cottiers. Havia, com efeito, uma classe numerosa de trabalhadores que (presumivelmente porque os proprietários ou os arrendatários na posse da terra recusavam permitir qualquer subdivisão ulterior das glebas) não havia tido condições de obter sequer o mínimo pedaço de terra em regime de ocupação permanente. Todavia, devido à falta de capital, era tão generalizado o costume de pagar salários em forma de terra que mesmo aqueles que operavam como trabalhadores ocasionais, para os cottiers ou para os grandes arrendatários que se encontravam no campo, eram normalmente pagos não em dinheiro, mas com a permissão de cultivarem, para a estação, um pedaço de terra que geralmente lhes era entregue já adubado pelo arrendatário, e era conhecido sob o nome de conacre. Em troca disso concordavam em pagar uma renda em dinheiro, muitas vezes de várias libras por acre; na realidade, porém, não era paga em dinheiro, mas em serviço, avaliado em dinheiro. Sendo a produção, no sistema cottier, dividida em duas porções — a renda e a remuneração do trabalhador —, é evidente que uma é determinada pela outra. O trabalhador fica com tudo aquilo que não vai para o dono da terra; a condição do trabalhador depende do montante da renda. Ora, a renda, por ser regulada pela concorrência, depende da relação entre a procura de terra e a oferta disponível. A demanda de terra depende do número de concorrentes, e os concorrentes são constituídos por toda a população rural. Por isso, o efeito desse tipo de ocupação consiste em fazer o princípio da população agir diretamente sobre a terra, e não sobre o capital, como acontece na Inglaterra. Nesse estado de coisas, a renda depende da proporção reinante entre a população e a terra. Uma vez que a terra é uma quantidade fixa, enquanto a população tem uma capacidade de crescimento ilimitada, se não houver algo que impeça este aumento, a concorrência pela terra logo obriga a renda a subir ao ponto máximo compatível com a sobrevivência da população. Consequentemente, os efeitos do sistema de ocupação por cottiers dependem da medida em que se controla a capacidade de crescimento da população, seja pelo costume, seja pela prudência individual, seja pela inanição e pela doença. Seria exagero afirmar que o sistema de ocupação por cottier é absolutamente incompatível com uma condição próspera da classe trabalhadora. Se pudéssemos supor a existência desse sistema entre uma população habituada a um alto padrão de conforto — cujas exigências fossem tais que as pessoas não oferecessem pela terra uma renda superior àquela que lhes garantisse uma subsistência folgada, sendo que o aumento moderado dessa população não deixasse uma população desempregada para forçar a subida das rendas, por efeito da concorrência, a não ser quando o aumento da produção da terra, devido ao aumento da habilidade, possibilitasse pagar uma renda sem inconvenientes —, a categoria agrícola poderia ser tão bem remunerada, poderia ter uma participação tão grande nos gêneros de primeira necessidade e nos confortos da vida, nesse sistema de ocupação como em qualquer outro. Todavia, enquanto as rendas fossem arbitrárias, não gozariam de qualquer das vantagens peculiares que os meeiros no sistema toscano auferem de sua ligação com a terra. Não teriam o uso de um capital pertencente aos donos das terras, nem a falta desse capital seria compensada por aquelas motivações intensas a trabalharem corporal e mentalmente, que influem sobre o camponês que tem um título de ocupação permanente. Pelo contrário, qualquer aumento do valor da terra, em decorrência do trabalho do ocupante, não teria outro efeito senão aumentar a renda da terra a seu desfavor, ou no ano seguinte, ou, o mais tardar, quando seu contrato terminasse. Os donos de terras poderiam estar imbuídos de justiça ou bom senso suficientes para não se valerem da vantagem que lhes adviria da concorrência, e certos proprietários de fato assim agiriam, em grau maior ou menor. Contudo, nunca se pode esperar com segurança que uma classe ou conjunto de pessoas aja contra seus interesses pecuniários imediatos; e mesmo uma dúvida sobre o assunto seria quase tão fatal quanto uma certeza, pois quando uma pessoa está analisando se vai ou não submeter-se a um trabalho ou sacrifício presente em função de um futuro relativamente longínquo, basta, para alterar o equilíbrio da balança, uma probabilidade mínima de que os frutos do trabalho ou do sacrifício lhe serão arrebatados. A única salvaguarda contra tais incertezas seria o surgimento de um costume assegurando uma ocupação permanente ao mesmo ocupante, com a exclusão de qualquer outro aumento de renda que não fosse eventualmente o sancionado pelos sentimentos gerais da comunidade. O direito de ocupação de terra vigente no Ulster é um costume desse gênero. As próprias somas consideráveis que os ocupantes que saem conseguem de seus sucessores (Não é incomum um ocupante sem contrato de arrendamento vender o mero privilégio de ocupação ou posse de sua terra — sem que esta apresente qualquer sinal visível de aprimoramento por ele efetuado — pelo valor de dez a dezesseis, e até vinte e mesmo quarenta anos de renda da terra." (Digest of Evidence taken by Lord Devon’s Commission. Capítulo introdutório). O compilador acrescenta: “A relativa tranquilidade desse distrito (Ulster) talvez se possa atribuir sobretudo a esse fato”), pela cessão de suas terras, de saída limitam efetivamente a concorrência em relação à terra, a pessoas que têm condições de oferecer tais somas; por outro lado, esse mesmo fato prova também que o dono da terra não tira plena vantagem sequer dessa concorrência mais restrita, pois a renda devida ao dono da terra não equivale ao total que o ocupante entrante não somente oferece mas também paga efetivamente. Ele o faz na confiança plena de que a renda não será aumentada — e para isso tem a garantia de um costume, não reconhecido por lei, mas que tira sua força obrigatória de uma outra sanção, perfeitamente bem entendida na Irlanda. (Na grande maioria dos casos, não é reembolso de despesas incorridas ou por melhorias feitas na terra, mas sim um simples seguro de vida ou compra de imunidade de ofensa." (Digest. Conforme supra.) “O atual direito de ocupação vigente em Ulster — observa judiciosamente o autor — é uma enfiteuse em estado embrionário.” “Mesmo lá, se for desrespeitado o direito de ocupação, e um ocupante for despedido sem ter recebido o preço de venda de seu direito de ocupação, a consequência em geral são ofensas” (cap. VIII). “A desorganização existente em Tipperary, bem como a associação agrária existente na Irlanda, não passam de uma guerra metódica para conseguir o direito de ocupação existente no Ulster). Sem um ou outro desses sustentáculos, um costume que limita a renda da terra não tem probabilidade de desenvolver-se em nenhuma comunidade progressista. Se a riqueza e a população estivessem estacionárias, também a renda em geral estacionaria, e depois de permanecer por longo tempo inalterada, provavelmente acabaria sendo considerada inalterável. Mas todo aumento de riqueza e todo aumento populacional tendem a elevar as rendas. Em um regime de meeiros, existe um modo estabelecido pelo qual o proprietário de terra está seguro de participar do aumento de produção tirada de sua terra. Ao contrário, no sistema de ocupação por cottier o senhorio só pode conseguir essa segurança reajustando o contrato, e esse reajuste, em uma comunidade que progride, quase sempre beneficiaria a ele. Por isso, o interesse do dono de terra é decididamente contrário à consolidação de qualquer costume que transforme a renda em algo fixo. § 2. Lá onde o montante da renda não é limitado, nem por lei nem pelo costume, um sistema de ocupação por cottier apresenta as desvantagens que caracterizam o pior dos sistemas de meeiros, e dificilmente apresenta alguma das vantagens que compensam tais desvantagens, nas melhores modalidades do sistema de meeiros. É praticamente impossível o sistema de cottier gerar outra agricultura que uma de qualidade miserável. Nem por isso será inevitavelmente miserável a condição dos lavradores. Já que, restringindo suficientemente a população, se poderia manter baixa a concorrência em relação à terra, evitando-se assim a pobreza extrema, haveria boas chances de se manterem hábitos de prudência e um alto padrão de vida, uma vez estabelecidos — ainda que se deva admitir que, mesmo nessas circunstâncias favoráveis, as motivações para a prudência seriam consideravelmente mais fracas do que no caso de meeiros, protegidos, pelo costume (como os da Toscana), do perigo de serem privados de suas glebas — pois uma família de meeiros, assim protegida, não poderia empobrecer em virtude de qualquer aumento populacional fora de sua família, ao passo que uma família de cottier, por mais prudente e autocontrolada que seja, pode ver aumentar a renda em consequência da multiplicação de outras famílias. Toda e qualquer proteção para os cottiers, contra esse mal, só poderia advir de um sentimento salutar de dever ou de dignidade que imbuísse a classe. Dessa fonte poderiam auferir uma proteção notável. Se fosse alto o padrão habitual de exigência entre a classe, um jovem poderia não optar por oferecer uma renda que o deixasse em condição pior que o ocupante anterior; ou então, poderia ser costume geral, como é efetivamente em alguns países, não casar antes de vagar uma propriedade para cultivar. Entretanto, se somos levados a considerar os efeitos de um sistema de cottier, não é onde se enraizou nos hábitos da classe trabalhadora um alto padrão de conforto. Tal sistema só se encontra onde as exigências habituais dos trabalhadores rurais são as mais baixas possíveis, onde a população se multiplica enquanto não estiver realmente morrendo de fome, sendo limitada somente pelas doenças e pela baixa longevidade, decorrentes da insuficiência de recursos materiais meramente físicos. Este era o estado da parcela máxima dos camponeses irlandeses. Quando um povo desceu a essa condição, e mais ainda quando permaneceu em tal condição desde tempos imemoriais, o sistema de cottier constitui um obstáculo quase insuperável para tal população sair dela. Quando os hábitos da população são tais que seu aumento só é barrado pela impossibilidade de conseguir o mínimo para a subsistência, e quando tal sustento só pode provir da terra, são puramente nominais todas as estipulações e acordos com respeito ao montante da renda; a concorrência em relação à terra faz com que os ocupantes aceitem pagar mais do que podem, e depois de pagarem tudo o que têm condições de pagar, quase sempre ainda ficam devendo mais. “Já que, como se pode lealmente dizer dos camponeses irlandeses — afirmou o Sr. Revans, Secretário da Irish Poor Law Enquiry Commission (Evils of the State of Ireland, their Causes and their Remedy. A brochura contém, entre outras coisas, um excelente resumo e seleção de depoimentos da massa coligida pela Comissão presidida pelo Arcebispo Whately) —, toda família que não dispõe de terra suficiente para se alimentar dela, tem um ou mais de seus membros sustentados pela mendicância, entender-se-á facilmente que os lavradores se empenham ao máximo para conseguir pequenas áreas de terra, e que em suas ofertas não são influenciados pela fertilidade do solo ou por sua capacidade de pagar a renda, mas somente pela oferta que tem mais probabilidade de garantir-lhe a ocupação. As rendas que prometem, quase sempre são incapazes de pagá-las e, consequentemente, contraem dívidas com o dono da terra, tão logo tomam posse. Entregam, na forma de renda, toda a produção da terra, excetuada a parcela de batatas indispensável para sua subsistência; mas como isso em raros casos é igual à renda que prometem, constantemente ficam devendo cada vez mais. Em alguns casos, a quantidade máxima de produção que as terras por eles ocupadas já deram, ou que, com seu sistema de lavoura, se poderia fazê-las produzir nas estações mais favoráveis, não seria igual à renda oferecida; consequentemente, se o lavrador cumprisse seu compromisso com o patrão — que raramente tem condições de cumprir —, cultivaria a terra de graça e daria ao dono da terra um prêmio por este permitir que a cultive. Na costa marítima, os pescadores, e nos condados do norte, os que têm teares frequentemente pagam mais em renda do que o valor de mercado de toda a produção da terra que ocupam. Poder-se-ia supor que, em tais circunstâncias, estariam melhor sem terra. Contudo, a pesca pode falhar durante uma semana ou duas, o mesmo podendo acontecer com a demanda pela produção do tear, quando então, se não possuíssem a terra em que cultivam o que consomem, poderiam passar fome. No entanto, raramente se paga o montante total da renda oferecida. O camponês permanece constantemente em dívida com seu patrão; suas míseras posses — as precárias roupas dele e de sua família, os dois ou três bancos para sentar, e as poucas louças de barro que sua mísera cabana contém —, se vendidos, não seriam suficientes para saldar a dívida constante e geralmente acumulada. Na maior parte dos casos, os camponeses estão atrasados de um ano, e sua excusa por não pagarem mais significa a destituição. Se, em algum ano, a produção da terra superar a abundância usual, ou se, por algum acaso, o camponês vier a possuir alguma propriedade, seu conforto não pode aumentar, não pode ele conceder-se uma alimentação melhor nem uma quantidade maior de alimentos. Não tem condições de aumentar sua mobília, nem sua mulher ou filhos podem vestir-se melhor. A aquisição tem que ir para a pessoa cuja terra ocupa. O acréscimo acidental lhe possibilitará reduzir o débito de rendas atrasadas e dessa forma adiar a demissão. Mas suas expectativas não podem ir além deste limite”. Como um exemplo extremo da intensidade de concorrência em relação à terra e do montante monstruoso ao qual ela ocasionalmente obrigava a elevar a renda, podemos citar, do depoimento tomado pela Comissão do Lord Devon,204 um fato atestado pelo Sr. Hurly, funcionário da Coroa em Kerry: “Conheci uma oferta — feita por um arrendatário para ocupar uma propriedade que eu conhecia perfeitamente — de 50 libras por ano; pois bem, vi a concorrência subir a tal ponto que ele obteve a ocupação por 450 libras”. § 3. Em tal condição, que pode um ocupante ganhar com qualquer montante de trabalho ou prudência, e que pode perder com qualquer descuido? Se em qualquer momento o dono da terra exercesse seus plenos direitos legais, o cottier nem sequer teria condições de subsistir. Se, com uma iniciativa extra, dobrasse a produção de seu pedaço de terra, ou se prudentemente se abstivesse de multiplicar bocas para consumir a produção, a única coisa que sairia ganhando seria ter mais a pagar a seu patrão, ao passo que, se tivesse vinte filhos, ainda assim primeiro os alimentaria, e o dono da terra só poderia ficar com o que sobrasse. Entre toda a humanidade, o cottier é quase o único que está nessa condição: dificilmente sua situação pode melhorar ou piorar em força de qualquer coisa que ele próprio fizer. Se ele fosse aplicado ou prudente, o único que sairia ganhando seria seu patrão; se ele for preguiçoso ou intemperante, é à custa de seu patrão. A própria imaginação é incapaz de conceber uma situação mais desprovida de motivação para trabalhar ou para autodirigir-se. Tiram-se-lhe os estímulos dos seres humanos livres, e em lugar deles não se colocam sequer os de um escravo. Nada tem ele a esperar, nada a temer, a não ser o ser despedido, e contra isso ele se protege com o último recurso de uma guerra civil defensiva. O rockismo e o whiteboísmo foram a determinação de um povo que nada possuía de próprio afora uma refeição diária da pior qualidade para não se submeter a ser privado dela para servir às conveniências de outros. Se assim é, não será uma sátira amarga contra o modo em que se formam opiniões sobre os mais importantes problemas da natureza e da vida humana, mestres pretensiosos de escolas públicas imputarem o atraso da atividade irlandesa e a falta de energia do povo irlandês para melhorar sua condição a uma indolência e a um desmazelo característicos da raça céltica? De todas as maneiras vulgares de furtar-se à consideração do efeito de influências sociais e morais sobre o espírito humano a mais vulgar é atribuir as diversidades de conduta e de caráter a diferenças naturais intrínsecas. Que raça não seria indolente e desmazelada, quando a estrutura é tal que não se ganha nada preocupando-se ou trabalhando? Se estas são as estruturas no meio das quais vivem e trabalham, que há de estranhar se a apatia e a indiferença assim geradas não são sacudidas no primeiro momento em que se oferecer uma oportunidade em que o trabalho seria realmente de utilidade? É muito natural que um povo amante do prazer e tão bem organizado como o irlandês seja menos propenso ao trabalho constante e rotineiro que o inglês, pois para eles a vida tem mais atrativos, independentemente dele; no entanto, os irlandeses não têm menos aptidão para esse trabalho que seus irmãos célticos ou franceses nem menos do que os toscanos ou os antigos gregos. Uma organização excitável é precisamente aquela em que, com estímulos adequados, é mais fácil acender um espírito de trabalho sério. O fato de seres humanos já se esforçarem só se houver motivação, em nada depõe contra as capacidades de trabalho deles. Não há, na Inglaterra ou na América, quem trabalhe mais duro do que os irlandeses; mas não no sistema de cottier. § 4. As multidões que cultivam a terra na Índia estão em uma condição suficientemente análoga à do sistema cottier, e ao mesmo tempo suficientemente diferente dele, para que seja instrutiva a comparação entre os dois sistemas. Na maior parte da Índia existem — e talvez sempre tenha sido assim — somente duas partes contratantes, o dono da terra e o lavrador, sendo que geralmente o dono da terra é o soberano, salvo lá onde, por um instrumento especial, ele outorgou seus direitos a um indivíduo que se torna seu representante. Todavia, os pagamentos feitos pelos lavradores, ou ryots, como se denominam, em raros casos foram regulados — se é que alguma vez isso aconteceu — pela concorrência, como na Irlanda. Embora variassem ao infinito os costumes locais vigentes e embora na prática não se tenha podido manter nenhum costume contra a vontade do soberano, sempre houve alguma regra comumente aceita na vizinhança; o coletor de impostos não fazia seu negócio particular com o camponês, senão que taxava cada um segundo a regra adotada para os demais. Conservou-se assim a ideia de um direito de propriedade no ocupante da terra, ou, em qualquer hipótese, de um direito à posse permanente, e dessa forma surgiu a anomalia de uma fixidez de ocupação no camponês arrendatário, coexistindo com o poder arbitrário de aumentar a renda. Quando o Governo mongólico ocupou o lugar dos governantes hindus na maior parte da Índia, procedeu com base em um princípio diferente. Fez-se um minucioso levantamento da terra, e com base nesse levantamento se estabeleceu uma taxação, fixando o pagamento específico a ser feito ao Governo por cada gleba. Se essa taxa nunca tivesse sido ultrapassada, os ryots teriam estado na posição relativamente vantajosa de camponeses proprietários, sujeitos a um pagamento pesado, mas fixo. Contudo, a ausência de toda proteção real contra extorsões ilegais fez com que essa melhoria na condição deles fosse mais nominal do que real, e, a não ser no evento ocasional de um administrador local humano e vigoroso, as cobranças não tinham na prática limite algum a não ser a incapacidade do camponês de pagar mais. Foi nesse estado de coisas que entraram os governantes ingleses da Índia; esses, logo de início, deram-se conta da importância de pôr fim a esse tipo arbitrário de receita fundiária e de impor um limite fixo às cobranças por parte do Governo. O Governo inglês não tentou voltar ao sistema de avaliação do Governo mongólico. De maneira geral, o Governo inglês na Índia adotou a prática muito racional de dar pouca importância ao que se apregoava como a teoria das instituições nativas, preferindo pesquisar os direitos que existiam e eram respeitados na prática, e protegê-los e ampliá-los. Entretanto, durante muito tempo ele cometeu erros graves na realidade, e incorreu em equívocos grosseiros no tocante aos usos e direitos que encontrou em vigência. Seus erros provieram da incapacidade de espíritos comuns imaginarem um estado de relações sociais fundamentalmente diverso daqueles com os quais estão familiarizados na prática. Pelo fato de a Inglaterra estar habituada a grandes propriedades e grandes latifundiários, os governantes ingleses consideraram pacífico que a Índia devesse adotar o mesmo sistema; e ao procurarem algum tipo de pessoas que pudessem equivaler ao que procuravam, deram com uma espécie de coletores de impostos denominados zemindares. “O zemindar”, diz o historiador da Filosofia da Índia, “tinha alguns dos atributos que caracterizam um senhor de terra: recolhia rendas de um distrito específico, governava os lavradores daquele distrito, vivia em esplendor relativo, e seu filho lhe sucedia quando ele morria. Disso se concluiu sem demora que os zemindares eram os proprietários de terra, a nobreza fundiária da Índia. Não se considerava que os zemindares, embora recolhessem as rendas, não as retinham para si, senão que as pagavam todas ao Governo, com uma pequena dedução. Não se considerou tampouco o fato de que, se governavam os ryots, e sob muitos aspectos exerciam sobre eles um poder despótico, não os governavam na qualidade de ocupantes de suas terras, como se aos zemindares estivessem ligados por locação, arbitrária ou contratual. A posse do ryot era uma posse hereditária, da qual o zemindar não podia desalojá-lo legalmente; o zemindar tinha que dar contas de todo centavo que cobrasse do camponês, e somente por fraude poderia, de tudo o que recolhia, reter um ana a mais do que a pequena percentagem que lhe era permitido receber, como pagamento pelo recolhimento”. "Houve na Índia uma oportunidade" — continua o historiador — “em relação à qual a história do mundo não apresenta nenhum paralelo. Logo depois do soberano, os cultivadores imediatos tinham, de longe, a maior parcela de interesse no solo. Teria sido fácil encontrar a maneira de dar uma compensação plena aos zemindares pelos seus direitos (os que realmente lhes cabiam). Adotou-se a resolução generosa de sacrificar ao aprimoramento da terra os direitos de propriedade do soberano. As motivações que a propriedade dá para o aprimoramento agrícola, cujo poder era tão justamente apreciado, poderiam ter sido dadas àqueles sobre os quais elas teriam operado com uma força incomparavelmente maior do que aquela que poderiam ter sobre qualquer outra categoria de pessoas; elas poderiam ter sido dadas àqueles dos quais exclusivamente, em cada país, têm que vir os principais aperfeiçoamentos agrícolas, os lavradores diretos do solo. E uma medida digna de ser classificada entre as mais nobres que já foram tomadas para a melhoria de algum país, poderia ter ajudado a compensar o povo da Índia pelas misérias daquele mau Governo que haviam suportado durante tanto tempo. Acontece que os legisladores eram aristocratas ingleses e acabaram prevalecendo preconceitos aristocráticos”. A medida demonstrou-se um fracasso total, no tocante aos efeitos principais que seus promotores esperavam dela. Não habituados a avaliar o modo como os efeitos de qualquer instituição são modificados, mesmo pela variedade de circunstâncias que existe dentro de um único reino, iludiram-se de haver criado, através das províncias de Bengala, senhores de terra ingleses, ao passo que os fatos comprovaram terem criado apenas senhores de terra irlandeses. A nova aristocracia fundiária decepcionou todas as expectativas que nela se haviam colocado. Essa aristocracia nada fez para aprimorar suas propriedades, mas tudo para sua própria ruína. Por não se haver tido o mesmo empenho que se havia tido na Irlanda, no sentido de possibilitar aos donos de terra arcarem com as consequências de sua imprevidência, teve-se que sequestrar e vender quase toda a terra de Bengala, por dívidas ou atrasos de receita, e em uma única geração deixaram de existir a maior parte dos antigos zemindares. Atualmente ocupam seu lugar outras famílias, em geral descendentes de financistas de Calcutá ou de funcionários nativos que se haviam enriquecido sob o Governo britânico, que vivem como parasitas inúteis do solo que lhes foi entregue. O mínimo que se deve dizer é que foi desperdiçado tudo o que o Governo sacrificou de seus direitos pecuniários para a criação de tal classe. Nas regiões da Índia em que o Governo britânico foi introduzido mais recentemente, evitou-se o erro de locupletar com o dinheiro público uma categoria inútil de grandes senhores de terras. Na maior parte de Madras e em uma parte do Território de Bombaim, a renda é paga diretamente ao Governo pelo lavrador imediato. Nas províncias do noroeste, o Governo fez seu compromisso ou contrato com a comunidade da aldeia coletivamente, determinando a porção a ser paga por cada indivíduo, tornando-os solidariamente responsáveis, em caso de falha. Mas na maior parte da Índia, os lavradores imediatos não obtiveram uma perpetuidade de ocupação a uma renda fixa. O Governo administra a terra com base no princípio com o qual um bom senhor de terra irlandês administra sua propriedade: não entregando-a à concorrência, não perguntando aos lavradores o que prometerão pagar, mas determinando ele mesmo o que eles têm condições de pagar, e definindo a sua exigência com base nisso. Em muitos distritos, uma parte dos lavradores são considerados ocupantes do resto, sendo que o Governo só cobra daqueles (muitas vezes numerosos) que são considerados os sucessores dos fundadores ou conquistadores originais da aldeia. Às vezes a renda é fixada apenas para um ano, às vezes para três ou cinco anos; mas a tendência uniforme da política atual é no sentido de arrendamentos de longo prazo, que se estendem, nas províncias do norte da Índia, a trinta anos. Essa estrutura ainda não tem um tempo de existência suficiente para mostrar pela experiência até que ponto as motivações para o aprimoramento da terra que o arrendamento a longo prazo cria nos espíritos dos lavradores ficam aquém da influência de um título perpétuo. (Desde que escrevemos isso, o Governo indiano adotou a resolução de transformar os arrendamentos a longo prazo das províncias nórdicas em arrendamentos perpétuos a rendas fixas). Mas os dois planos, o dos contratos anuais e o dos arrendamentos para curto prazo, estão irrevogavelmente condenados. Só se pode dizer que tiveram sucesso em comparação com a opressão ilimitada existente anteriormente. Ninguém os aprova, e nunca foram considerados senão como estruturas temporárias a serem abandonadas no momento em que um conhecimento mais completo das capacidades do país fornecesse dados para criar algo de mais permanente. CAPÍTULO X Meios para Abolir o Sistema de Cottier § 1. Quando escrevemos e publicamos a primeira edição desta obra, a questão do que se deve fazer com uma população de cottiers era, para o Governo inglês, o mais urgente dos problemas práticos a resolver. A maioria de uma população de 8 milhões, depois de haver-se arrastado por muito tempo na indolência indefesa e na pobreza abjeta sob o sistema de cottier, reduzida por efeito desse sistema à simples subsistência, com alimentação da qualidade mais barata, e a uma incapacidade de não fazer nem querer nada para melhorar sua sorte, finalmente, devido à falta desse alimento da mais baixa qualidade, havia mergulhado em uma condição em que as únicas alternativas pareciam ser ou a morte ou o sustento perpétuo por outras pessoas, ou então uma mudança radical nas estruturas econômicas sob as quais até ali essa população havia tido a infelicidade de viver. Tal emergência obrigou os legisladores e a nação a voltarem sua atenção a esse assunto, mas dificilmente se poderia dizer que com grande resultado; efetivamente, se o mal se havia originado de um sistema de ocupação da terra que tirava da população qualquer outro estímulo para o trabalho ou a poupança, que não fosse a inanição, o remédio aplicado pelo Parlamento consistiu em tirar até mesmo essa motivação, dando ao povo um direito legal a viver de esmolas; ao contrário, para corrigir a causa do mal, nada foi feito, afora queixas inúteis, e ainda por cima ao preço de 10 milhões de libras esterlinas para o tesouro nacional, pela demora. “É supérfluo” — observava eu — “despender argumentos para provar que o verdadeiro fundamento dos males econômicos da Irlanda consiste no sistema de cottier; que, enquanto a prática do país consistir em os lavradores pagarem rendas determinadas pela concorrência, esperar trabalho, atividade útil, qualquer limitação da população a não ser que seja a morte, ou qualquer redução mínima da pobreza, é o mesmo que procurar figos em cardos e uvas em espinheiros. Se os nossos estadistas práticos não estiverem maduros para reconhecer esse fato, ou se, embora reconhecendo-o em teoria, não tiverem um sentimento suficiente de sua realidade para serem capazes de, com base nele, adotar alguma medida, há ainda uma outra consideração, de ordem puramente física, da qual não lhes será impossível fugir. Se a única colheita com a qual até agora a população se sustentou continuar precária, ou se deverá dar algum novo e grande impulso à habilidade e à iniciativa agrícola, ou então o solo da Irlanda não terá mais condições de alimentar uma população semelhante à atual. A produção total da metade ocidental da ilha, não deixando nada para a renda, agora não será capaz de, em caráter permanente, fornecer mantimentos para a subsistência de toda a sua população e, consequentemente, ela necessariamente permanecerá um ônus anual para a taxação do império, até que essa população seja reduzida, por emigração ou por inanição, a um contingente correspondente ao baixo nível de seu trabalho, ou a menos que se encontrem meios de tornar esse trabalho mais produtivo.” Desde que essas palavras foram escritas, eventos que ninguém previa salvaram os governantes ingleses da Irlanda dos embaraços que teriam sido o justo castigo de sua indiferença e de sua falta de previsão. A Irlanda, com a agricultura do sistema cottier, não teve mais condições de fornecer alimento para sua população; o Parlamento, por via de remédio, aplicou um estímulo à população, mas absolutamente nenhum à produção; entretanto, a ajuda que não foi dada ao povo da Irlanda pela sabedoria política veio de uma fonte inesperada. A emigração que se auto sustenta — o sistema Wakefield, levado a efeito com base no princípio voluntário e em uma escala gigantesca (sendo as despesas dos que partiam pagas com os ganhos dos que haviam emigrado antes) reduziu, de momento, a população irlandesa àquele contingente para o qual o sistema agrícola vigente consegue prover emprego e sustento. O censo de 1851, comparado ao de 1841, demonstrou em números redondos uma diminuição populacional de 1,5 milhão. O censo seguinte (de 1861) mostra uma nova diminuição de aproximadamente 0,5 milhão. Havendo assim os irlandeses encontrado o caminho para aquele continente florescente que durante gerações será capaz de sustentar, sem redução de conforto, o aumento da população do mundo inteiro, tendo os camponeses irlandeses aprendido a fixar os olhos em um paraíso terrestre para além do oceano, como um refúgio seguro da opressão dos saxões e da tirania da Natureza, pouca dúvida pode restar de que, por mais que agora diminua o emprego para mão-de-obra agrícola em decorrência da introdução generalizada da agricultura inglesa na Irlanda — ou mesmo que, como a região de Sutherland, toda a Irlanda fosse transformada em pastagem para gado — a população desalojada migraria para a América com a mesma rapidez, e com a mesma isenção de custos para a nação que o fez o milhão de irlandeses que para lá foram durante os três anos que precederam o de 1851. Os que pensam que o solo de um país existe em função de uns poucos milhares de proprietários de terra, e que, enquanto as rendas forem pagas, a sociedade e o Governo cumpriram sua missão, podem ver nesse desfecho um fim feliz das dificuldades irlandesas. Contudo, não estamos mais numa época em que se possa manter tais pretensões insolentes, já nem a inteligência humana tem condição de aceitar isso. A terra da Irlanda, a terra de cada país, pertence ao povo desse país! Os indivíduos denominados proprietários de terra não têm nenhum direito, dentro da moralidade e da justiça, a nada além da renda, ou então compensação pelo valor vendável da mesma. Com respeito à própria terra, a consideração básica a fazer é esta: qual é a modalidade de apropriação e de cultivo que permite fazer com que ela seja mais útil para a coletividade de seus habitantes? Para os proprietários da renda pode ser muito conveniente que o grosso dos habitantes, desesperando de justiça no país em que ele e seus antepassados viveram e sofreram, procure em outro país aquela propriedade fundiária que lhe é negada em sua própria terra. Mas os legisladores do império devem enxergar com outros olhos a expatriação forçada de milhões de pessoas. Quando os habitantes de um país abandonam sua terra em massa porque seu Governo não fará dele um país bom para nele habitarem, o Governo está julgado e condenado. Não há necessidade alguma de privar os donos de terra de um centavo sequer do valor pecuniário de seus direitos legais, mas a justiça exige que os lavradores efetivos tenham a possibilidade de tornar-se na Irlanda o que se tornarão na América — proprietários do solo que cultivam. Também a boa política o exige. Aqueles que, não conhecendo nem a Irlanda nem nenhum país estrangeiro, consideram como seu único padrão de excelência social e econômica a prática inglesa, propõem como único remédio para a miséria irlandesa a transformação dos cottiers em trabalhadores assalariados. Este, porém, é antes um projeto para melhorar a agricultura irlandesa do que um esquema para melhorar a condição do povo irlandês. O status de um trabalhador diarista não apresenta nenhum atrativo para infundir previdência e planejamento, parcimônia e autocontrole a um povo desprovido dessas qualidades. Se os camponeses irlandeses pudessem ser em toda parte transformados em recebedores de salários, permanecendo intatos os velhos hábitos e características mentais do povo, teríamos apenas 4 ou 5 milhões de pessoas vivendo como diaristas, da mesma forma miserável em que viviam anteriormente como cottiers: igualmente passivos na ausência de todo conforto, igualmente despreocupados quanto à sua multiplicação, e até mesmo, talvez, igualmente apáticos em seu trabalho, já que não poderiam ser despedidos coletivamente, e, se pudessem, a demissão equivaleria simplesmente a colocá-los na necessidade de viverem da caridade pública. Bem outros seriam os efeitos em caso de transformá-los em camponeses proprietários. Uma população que tem tudo a aprender no que tange ao trabalho e à previdência — que confessadamente figura entre as mais atrasadas da Europa no que concerne às virtudes profissionais — precisa, para sua regeneração, dos incitamentos mais poderosos pelos quais se possam estimular tais virtudes; ora, até hoje não existe outro estímulo comparável à propriedade da terra. Um interesse permanente no solo para aqueles que o cultivam constitui quase uma garantia para a laboriosidade mais incansável; contra superpopulação, embora não seja um remédio infalível, é o melhor preservativo até agora conhecido, e onde este falhasse, qualquer outro plano provavelmente falharia muito mais fragorosamente; o mal estaria nesse caso além do alcance dos remédios meramente econômicos. O caso da Irlanda é semelhante em suas exigências ao da Índia. Na Índia, conquanto se tenham, de tempos em tempos, cometido grandes erros, ninguém jamais propôs, sob o nome de aperfeiçoamento agrícola, expulsar os camponeses arrendatários de suas posses; a melhoria que se procurou tem sido na linha de fazer com que seu título de ocupação fosse mais seguro para eles, e a única diferença de opinião é entre aqueles que defendem a perpetuidade e aqueles que pensam bastar arrendamentos a longo prazo. O mesmo problema existe quanto à Irlanda; e seria inútil negar que arrendamentos a longo prazo, com proprietários do tipo que às vezes se encontram, realizam milagres, mesmo na Irlanda. Mas nesse caso devem ser arrendamentos com rendas baixas. De maneira alguma se pode confiar em arrendamentos longos como meio para se ver livre do sistema de cottier. Durante a vigência da ocupação por cottiers, os arrendamentos sempre foram a longo prazo: vinte e um anos mais três períodos correspondentes constituíam um prazo normal. Mas pelo fato de a renda ser determinada pela concorrência, a um montante maior do que se tinha condições de pagar, de sorte que o ocupante não tinha nem podia adquirir, com qualquer trabalho, um interesse benéfico pela terra, a vantagem de um arrendamento era quase puramente nominal. Na Índia, o Governo, onde não entregou imprudentemente seus direitos de propriedade aos zemindares, tem condições de evitar esse mal, porque, sendo ele mesmo o dono da terra, pode fixar a renda segundo seu próprio critério; ao contrário, em se tratando de donos de terra individuais, onde a renda é determinada pela concorrência, e os concorrentes são camponeses lutando pela subsistência, são inevitáveis as rendas puramente nominais, a menos que a população seja tão pequena que a própria concorrência também seja puramente nominal. A maioria dos donos de terra avança no dinheiro e no poder imediato; e enquanto encontrarem cottiers ávidos para oferecer-lhe qualquer renda é inútil confiar neles para mitigar a prática viciosa com uma auto renúncia ponderada. Um título de ocupação perpétua é um estímulo mais forte para aprimorar a terra do que um arrendamento a longo prazo; não somente porque até o arrendamento mais longo, antes de se expandir, passa por todas as variedades de arrendamentos curtos, até simplesmente nenhum arrendamento, mas por motivos mais fundamentais. É muito leviano, mesmo em Economia Pura, não levar em conta a influência da imaginação; o “para sempre” tem um poder que vai além do mais longo prazo de anos, mesmo que esse longo prazo seja suficientemente longo para incluir os filhos e todos aqueles com quem uma pessoa se preocupa individualmente; não obstante, enquanto a pessoa não tiver atingido aquele elevado grau de cultura em que o bem público (que também inclui a perpetuidade) adquire uma ascendência suprema sobre seus sentimentos e desejos, não se esforçará com o mesmo ardor por aumentar o valor de uma propriedade, uma vez que seu interesse por ela diminui a cada ano. Além disso, enquanto uma ocupação perpétua é a norma geral da propriedade fundiária, como ocorre em todos os países da Europa, um título de posse para período limitado, ainda que longo, certamente deve ser considerado algo de qualidade e dignidade inferior, e inspira menos ardor para obtê-lo, e menos afeição por ele, uma vez obtido. Contudo, onde um país está sob o regime de cottier, o problema do título perpétuo é bem secundário em comparação com o ponto mais importante, uma limitação da renda a pagar. A renda paga por um capitalista que explora a terra para obter lucro, e não para ganhar a subsistência, tranquilamente pode ser abandonada à concorrência; com a renda paga por trabalhadores, isso não pode acontecer, a menos que os trabalhadores estivessem em um estágio de civilização e aperfeiçoamento, que estes em parte alguma ainda não alcançaram e não têm condições de atingir facilmente em tal regime de ocupação da terra. A renda paga por camponeses nunca deve ser arbitrária, nunca pode ser deixada à discrição do dono da terra; por costume ou por lei, é imperativamente necessário que tais rendas sejam fixas; e onde não se tiver consolidado um costume que traz vantagem para as duas partes, como o sistema de meeiros na Toscana, a razão e a experiência recomendam que sejam fixadas por autoridade, transformando assim a renda em um foro, e o arrendatário em um camponês proprietário. Para levar a efeito essa mudança em escala suficientemente grande para conseguir a abolição completa do sistema de ocupação por cottiers, a maneira que mais obviamente se apresenta é a direta, a de efetuar a mudança simplesmente por uma lei do Parlamento: fazer com que toda a terra da Irlanda seja propriedade dos ocupantes, ficando esta sujeita às rendas atualmente pagas (não a renda nominal), como um encargo fixo de arrendamento. Esta, sob o nome de “fixidez de ocupação”, era uma das exigências da Associação para a Revogação (Repel Association) durante o período mais bem-sucedido de sua discussão, sendo melhor expressa pelo Sr. Conner (Autor de numerosos opúsculos, intitulados True Political Economy of Ireland, Letter to the Earl of Devon, Two Letters on the Rackrent Oppression of Ireland e outros. O Sr. Conner tem-se ocupado com esse assunto desde 1832), seu apóstolo mais antigo, mais entusiasta e mais infatigável, pelas palavras “uma avaliação e um título perpétuo”. Desse modo, não teria havido injustiça, desde que os donos de terra fossem indenizados pelo valor atual das chances de aumento que, para o futuro, teriam que abandonar. A ruptura das estruturas sociais vigentes dificilmente teria sido mais violenta do que a efetuada pelos ministros Stein e Hardenberg, quando por uma série de decretos, na primeira parte deste século, revolucionaram a condição da propriedade fundiária na monarquia prussiana, e legaram seus nomes à posteridade entre os maiores benfeitores de seu país. Para estrangeiros esclarecidos que escreveram sobre a Irlanda, Von Raumer e Gustave de Beaumont, uma solução deste gênero parecia ser tão precisa, e obviamente aquilo que a doença exigia, que tinham alguma dificuldade em entender por que motivo isso ainda não foi feito. Isso, porém, teria significado, em primeiro lugar, uma expropriação completa das classes mais altas da Irlanda — o que, se houver alguma verdade nos princípios que assentamos, seria perfeitamente justificável, mas somente se fosse o único meio de se conseguir um grande bem público. Em segundo lugar, nem de longe se deve desejar que só haja no país camponeses proprietários. Propriedades de grande porte, cultivadas por grandes capitais, e possuídas por pessoas do melhor grau de instrução que o país puder proporcionar — pessoas qualificadas pela instrução para avaliar descobertas científicas e capazes de arcar com a demora e o risco de experimentos custosos — constituem parte importante de um bom sistema agrícola. Existem muitos desses donos de terra, mesmo na Irlanda, e seria uma infelicidade pública expulsá-los de seus postos. Além disso, uma grande percentagem das atuais propriedades provavelmente ainda é excessivamente pequena para se tentar o sistema de proprietários com as maiores vantagens; por outro lado, também os ocupantes nem sempre são pessoas que se gostaria de escolher como primeiros ocupantes de propriedades possuídas por camponeses. Há entre eles muitos para os quais teria efeito mais benéfico dar a esperança de adquirirem uma propriedade fundiária pelo trabalho e pela parcimônia do que adquirirem a propriedade em posse imediata. Há, porém, medidas muito mais suaves, não expostas a objeções semelhantes, e que, se aplicadas no grau máximo que comporta sua aplicabilidade, atenderiam ao objetivo colimado em grau notável. Uma delas seria decretar que todo aquele que arrotear terra inculta se torne proprietário da mesma, pagando um foro fixo, igual a juros moderados sobre seu mero valor de terra baldia. Naturalmente, uma parte necessária dessa medida seria obrigar os donos de terra a entregarem terras incultas (que não sejam de natureza ornamental) toda vez que alguém as reclamasse para arroteá-las. Outro expediente, e no qual os indivíduos poderiam cooperar, consistiria em comprar o máximo possível de terra oferecida à venda, e revendê-la em porções pequenas como propriedades de camponeses. Uma sociedade para esse fim já chegou a ser projetada (embora não tenha tido sucesso a tentativa de criá-la), com base nos princípios — na medida em que são aplicáveis — das sociedades para terras alodiais (Freehold Land Societies), que foram criadas com tanto sucesso na Inglaterra, não primordialmente para fins agrícolas, mas para fins eleitorais. Esta é uma forma de empregar capital privado para renovar a economia social e agrícola da Irlanda, não somente sem sacrifício mas com lucro considerável para seus proprietários. O êxito notável da sociedade para o melhoramento de terras incultas (Waste Land Improvement Society), que trabalhou em uma perspectiva muito menos vantajosa para o ocupante, é um exemplo daquilo a que os camponeses irlandeses podem ser estimulados a fazer, com uma segurança suficiente de que aquilo que farão reverterá em vantagem para eles. Nem sequer é indispensável adotar como norma o título perpétuo; bastariam arrendamentos a longo prazo com rendas moderadas, como os da Waste Land Society, caso se abrisse aos arrendatários uma perspectiva de poderem vir a adquirir, assim como os ocupantes da sociedade as estavam adquirindo tão rapidamente, sob a influência de seu benéfico sistema. (Embora essa Sociedade, durante os anos que sucederam à fome, tenha sido forçada a suspender suas atividades, deve-se preservar a memória do que foi por ela realizado. Eis um extrato (in: Atas da Comissão de Lorde Devon — p. 84), do relatório feito à Sociedade em 1845, pelo seu inteligente Presidente, o Coronel Robinson: "245 ocupantes de terra — muitos dos quais há alguns anos estavam em uma condição que confinava com a indigência —, sendo ocupantes de pequenas propriedades de 10 a 20 acres de plantação cada uma, conseguiram, com seu próprio trabalho livre e com o auxílio da sociedade, melhorar suas propriedades no valor de 4 396 libras; a esse valor acresceram, no ano passado, 605 libras, à taxa de £ 17 18 s por ocupante para o período total de ocupação, e de £ 2 9 s para o ano passado; o benefício desses aprimoramentos será desfrutado por cada ocupante durante o prazo total de um arrendamento de trinta e um anos. "Esses 245 ocupantes e suas famílias arrotearam e cultivaram, com trabalho de pá, 1032 acres de terra plantada, que anteriormente eram terras montanhosas, baldias e improdutivas, e nelas colheram no ano passado produtos no valor — avaliado por práticos competentes — de 3 896 libras, na proporção de £ 15 18 s para cada ocupante; seu capital em animais — gado vacum, cavalos, ovelhas e porcos — atualmente existente nas propriedades é avaliado, pelos preços atuais dos mercados vizinhos, em 4 162 libras, das quais 1 304 libras foram acrescentadas desde fevereiro de 1844, à taxa de £ 16 19 s para o período total, e £ 5 6 s para o ano passado; durante esse período, seu capital cresceu assim em valor, em uma soma igual à atual renda anual das terras: e as tabelas e dados estatísticos referidos em relatórios anteriores provam que os ocupantes, em geral, aprimoram suas pequenas propriedades e aumentam seu cultivo e suas colheitas, em proporção quase direta com o número disponível de trabalhadores dos dois sexos de que constam suas famílias". Não pode haver um testemunho mais forte em favor do aumento da produção líquida, conseguido pela agricultura em pequena escala em qualquer sistema razoável de ocupação da terra; ao mesmo tempo, é digno de atenção o fato de que o trabalho e o zelo atingiram o máximo entre os proprietários menores, pois o Coronel Robinson aponta, como exceções ao notável e rápido progresso do aprimoramento, alguns ocupantes arrendatários que eram “ocupantes de propriedades superiores a 20 acres, uma classe que com excessiva frequência revelou incapacidade para suportar a faina indispensável para continuar com sucesso os aprimoramentos em terras montanhosas”). Quando as terras fossem vendidas, os fundos da associação seriam liberados, e esta poderia recomeçar as operações em algum outro lugar. § 2. Foi isso o que escrevi em 1856. Desde aquela época, a grande crise da atividade irlandesa registrou novos progressos, sendo necessário considerar de que maneira seu estado atual afeta as opiniões sobre perspectivas ou sobre medidas práticas, expressas na parte anterior deste capítulo. A mudança principal havida na situação consiste na grande diminuição da ocupação por cottiers, abrindo perspectivas para uma extinção completa do sistema. A enorme redução do número de propriedades pequenas, e o aumento das propriedades de médio porte, atestados pelos dados estatísticos, demonstram suficientemente o fato geral, e todos os testemunhos mostram que essa tendência ainda persiste. (Há, porém, uma corrente que em parte opera em sentido contrário, da qual aliás o público não tomou conhecimento, quanto eu saiba. “Uma categoria de pessoas, não muito numerosa, mas suficientemente grande para causar muito dano, conseguiu, mediante o Landed Estates Court, terra na Irlanda — classe esta que, dentre todas elas, é a que tem menos probabilidade de reconhecer os direitos de um dono de terra. Trata-se de pequenos comerciantes de cidades, que, à força de poupar e mais a prática de dar empréstimos de dinheiro a taxas usurárias, conseguiram, no decurso de uma vida longa, juntar dinheiro suficiente para comprar 50 ou 100 acres de terra. Tais pessoas nunca pensam em cultivar a terra, mas, orgulhosas de seu status de donos de terra, procuram tirar dela o máximo proveito. Recentemente cheguei a tomar conhecimento de um caso desse gênero. No momento em que a propriedade foi comprada — há mais ou menos doze anos — os ocupantes dela estavam em situação razoavelmente confortável. Desde aquele tempo, a renda foi aumentada três vezes, e atualmente, como me informou o sacerdote do distrito, a renda é quase o dobro do que era no início do reinado do atual proprietário. O resultado é que os trabalhadores, que antes desfrutavam de razoável conforto, estão agora reduzidos à pobreza: dois deles deixaram a propriedade e se alojaram perto de um banhado adjacente de turfa, onde sobrevivem, confiando em encontrar trabalho ocasional para se sustentarem. Se esse homem não for assassinado, ele se prejudicará com a deterioração de sua propriedade, mas nesse meio tempo tem conseguido 8 ou 10% do dinheiro de compra da propriedade. Não se trata em absoluto de um caso raro. O escândalo que tais ocorrências geram lança seu reflexo em transações de tipo inteiramente diverso e perfeitamente legítimo, onde a retirada dos ocupantes é simplesmente um ato de misericórdia para todas as partes envolvidas. “A ânsia dos donos de terra de se verem livres dos cottiers é também neutralizada, até certo ponto, pela ânsia que certos intermediários têm de consegui-los. Mais ou menos 1/4 de toda a terra da Irlanda é ocupada no sistema de arrendamentos a longo prazo, sendo que a renda recebida, quando o arrendamento é a longo prazo, geralmente está muito abaixo do valor real da terra. Raramente acontece que a terra assim ocupada seja cultivada pelo próprio arrendatário; em vez disso, ele a subloca por uma renda extorsiva a um pobre coitado, e vive da diferença entre a renda que recebe e a renda que paga. Alguns desses arrendamentos estão sempre expirando, e quando vão chegando ao fim, o intermediário não tem outro interesse na terra, a qualquer custo de deterioração permanente, senão tirar o máximo dela enquanto não expirar o prazo do contrato. Precisamente para esse fim servem os pequenos cottiers. Os intermediários nessa situação têm tanto interesse em conseguir cottiers como sublocatários, quanto têm interesse os donos da terra em se livrar deles; e o resultado é que esse gênero de ocupantes se transfere de uma propriedade para outra. O movimento apresenta dimensões limitadas, mas ele existe e, enquanto ele existir, neutraliza a tendência geral. Talvez se possa pensar que esse sistema se reproduza por si mesmo, que os mesmos motivos que levaram à existência de intermediários perpetuarão essa categoria; mas não há perigo de que tal aconteça. Os proprietários de terra estão agora perfeitamente a par das consequências danosas desse sistema, por mais conveniente que ele tenha sido por algum tempo; e atualmente está-se tornando uma prática corrente, em cada arrendamento, inserir uma cláusula que proíbe a sublocação." Comunicação particular do Prof. Caimes). É provável que a revogação das leis do trigo obrigando a efetuar uma mudança, nas exportações da Irlanda, dos produtos de lavoura para os de pastagem, por si mesma teria sido suficiente para gerar essa revolução na ocupação da terra. Uma propriedade para pecuária só pode ser tocada por um explorador dotado de capital ou pelo dono da terra. Ora, uma mudança que envolve um deslocamento tão grande da população foi imensamente facilitada e tornada mais rápida pela ampla e vasta emigração, bem como por aquele insigne benefício máximo já feito por algum Governo à Irlanda, o Encumbered Estates Act, cujos dispositivos melhores foram desde então incorporados permanentemente ao sistema social do país pela Landed Estates Court. Há razões para crer que atualmente a maior parte do solo da Irlanda seja cultivada pelos próprios donos ou por pequenos arrendatários dotados de capital. Que esses arrendatários estão melhorando de situação e acumulando capital, quanto a isso há boa evidência, comprovando-o, em especial, o grande aumento de depósitos nos bancos dos quais são os clientes principais. No que concerne a essa classe, a coisa principal que ainda falta é a segurança da ocupação, ou a certeza de receberem compensação pelas melhorias implantadas na terra. Os meios de atender a essas necessidades estão atualmente ocupando a atenção dos espíritos mais competentes; a alocução do Juiz Longfield, no outono de 1864, e a sensação por ela criada, marcam época nessa matéria, tendo-se hoje atingido um ponto em que podemos esperar com confiança que algo de muito eficaz será feito dentro de muitos poucos anos. Qual é, porém, nesse meio tempo, a condição dos cottiers deslocados, na medida em que não emigraram, e de toda a classe que subsiste do trabalho agrícola, sem ocuparem terra alguma? Até agora, sua condição é de grande pobreza, com poucas perspectivas de que isso melhore. Sem dúvida, os salários em dinheiro aumentaram muito acima do mísero nível de uma geração atrás, mas o custo dos gêneros de subsistência também subiu tanto acima do antigo padrão da batata que a melhoria real não é igual à nominal, e segundo as melhores informações às quais tenho acesso, há poucos sinais de um melhor padrão de vida entre essa classe. A população, por mais que se tenha reduzido, está ainda muito além do que é capaz de sustentar um país que não passa de um distrito de pastagem da Inglaterra. Pode talvez não ser estritamente verdade que, caso se mantiver no país a população atual, isso só pode ser feito com base no velho e viciado sistema de cottiers ou no sistema em que pequenos proprietários produzem seu próprio alimento. Sem dúvida, as terras que permaneceriam em cultivo caso houvesse segurança suficiente para investimento, admitiriam a contratação de mais trabalhadores por parte dos pequenos arrendatários capitalistas, e isso, na opinião de alguns juízes competentes, poderia possibilitar ao país sustentar o atual contingente de habitantes. Mas ninguém pretenderá que esse recurso seja suficiente para mantê-los numa condição de existência digna da classe camponesa. Por essa razão, e também devido ao problema adicional das estações más, tem-se intensificado em toda a sua força a emigração, que havia cessado durante algum tempo. Calcula-se que no ano de 1864 deixaram o solo irlandês nada menos de 100 mil emigrantes. No que concerne aos próprios emigrantes e à sua posteridade, ou aos interesses gerais da humanidade, seria insensato lamentar esse resultado. Os filhos dos imigrantes irlandeses recebem a educação dos americanos e participam, mais rápida e completamente do que teria sido possível no país de que vieram, dos benefícios de um estágio superior de civilização. Dentro de vinte ou trinta anos, não haverá possibilidade de distingui-los mentalmente de outros americanos. É a Inglaterra que arca com a perda e a ignomínia: compete sobretudo ao povo e ao Governo inglês perguntar-se até que ponto representa para eles honra e vantagem conservar o mero solo da Irlanda, mas perder seus habitantes. É provável que, com os atuais sentimentos do povo irlandês e a direção que sua esperança de melhorar sua condição está tomando permanentemente, à Inglaterra sobre apenas optar entre o despovoamento da Irlanda e a transformação de uma parte da população trabalhadora em camponeses proprietários. A ignorância verdadeiramente insular dos homens públicos ingleses com respeito a uma modalidade de economia agrícola que predomina em quase todos os outros países civilizados faz com que seja altamente provável que a Inglaterra acabe optando pela alternativa pior. No entanto, há germes de uma tendência à formação de camponeses proprietários em solo irlandês que requerem apenas a ajuda de um legislador amigo para fomentá-la, como revela o seguinte extrato de uma comunicação particular, feita por meu eminente e prezado amigo, o Prof. Cairnes: “Na venda, ocorrida há uns oito ou dez anos, das propriedades de Thomond, Portarlingotn e Kingston, na Encumbered Estates Court, observou-se que um número considerável de ocupantes comprou as propriedades que ocupava. Não consegui obter nenhuma informação sobre o que se seguiu a esse processo — se os compradores continuaram a cultivar suas pequenas propriedades, ou, sucumbindo à mania dos senhores de terra, tentaram abandonar seu sistema de vida anterior. Mas há outros fatos importantes para essa questão. Naquelas partes do país em que prevalece o direito do ocupante, os preços pagos pela cessão do direito de ocupar uma propriedade são enormes. As cifras que seguem, extraídas da documentação de uma propriedade localizada nas proximidades de Newry, e que atualmente tramita pela Landed Estates Court, darão uma ideia, ainda que muito inadequada, dos preços que costuma acarretar esse direito puramente consuetudinário. “Estes preços representam, no global, aproximadamente o valor de três anos de renda das propriedades; mas isso, como disse, dá apenas uma ideia inadequada daquilo que se paga com frequência, ou melhor, daquilo que normalmente se costuma pagar. Pelo fato de o direito de ocupação ser apenas consuetudinário, o valor dele varia conforme a confiança que em geral se deposita na boa-fé do dono da terra. No presente caso, no decurso dos procedimentos relacionados com a venda da propriedade, vieram à luz certas circunstâncias que levam a crer que a confiança, nesse caso, não era muito grande; em consequência, os valores acima indicados podem ser considerados estando bem abaixo daqueles que costumam prevalecer. Em outras partes do país vieram à luz casos, conforme fui informado pela mais alta autoridade, também na Landed Estates Court, nos quais o preço pago pelo direito de ocupação era igual ao valor total da terra. É um fato notável encontrar pessoas que pagam, digamos, o valor de 20 ou 25 anos de renda, por terra que ainda está sujeita a uma boa renda. Perguntar-se-á: por que não compram diretamente a terra, pelo mesmo preço, ou por uma quantia levemente superior? Creio, que a resposta a essa pergunta se encontra no estado de nossa legislação fundiária. É muito grande, em relação ao dinheiro da compra, o custo que se tem para transferir terra em porções pequenas, mesmo na Landed Estates Court, ao passo que o direito de ocupação pode ser transferido sem qualquer custo. A taxa mais baixa que essa Court poderia cobrar pela escritura de uma propriedade — sendo que nessa Court se urge a máxima economia que seja compaginável com o atual modo de remunerar os serviços legais — custaria, sem considerar as taxas de selo, 10 libras — um acréscimo bem significativo para a compra de uma pequena propriedade de camponês; uma escritura de uma propriedade de 1 000 acres poderia não custar mais, e provavelmente não custaria muito mais. Ora, na verdade, o custo da escritura representa apenas a mínima parte dos obstáculos que se encontram para comprar terra em porções pequenas. Um impedimento muito mais sério reside no estado complicado da propriedade da terra, que faz com que seja muitas vezes impraticável subdividir uma propriedade em porções tais que colocariam a terra ao alcance de pretendentes de pequeno poder aquisitivo. No entanto, a solução para esse estado de coisas está em medidas de tipo mais radical do que aquelas que, receio, provavelmente qualquer Câmara dos Comuns, que em breve teremos probabilidade de ver, sequer teria a paciência de levar em consideração. É possível que um registro de títulos possa conseguir reduzir essa complicada condição de propriedade à sua expressão mais simples; mas onde existe uma complexidade real, não é simplesmente simplificando a forma que se consegue superá-la; e o registro de títulos — enquanto permanecerem inalterados os poderes de dispor atualmente assegurados aos proprietários de terra, enquanto cada árbitro e testador tiverem um poder quase ilimitado de multiplicar juros sobre a terra, conforme lho sugerirem o orgulho, a paixão ditatorial ou o simples capricho — em minha opinião não conseguirá atingir a raiz do mal. O efeito dessas circunstâncias é dar um grande prêmio às grandes transações imobiliárias — na realidade, na maioria dos casos, praticamente com o intuito de impedir outras transações que não sejam de grande porte; e enquanto a lei for esta, é manifesto que não há possibilidade de tentar com seriedade a experiência de propriedades possuídas por camponeses. No entanto, acredito que os fatos que apontei mostrem contundentemente que não há obstáculo algum para a introdução desse sistema por parte da disposição do povo”. Concluí uma discussão que ocupou um espaço quase desproporcional em relação às dimensões desta obra; e aqui encerro o exame daquelas formas mais simples de economia social em que a produção da terra ou pertence indivisamente a uma classe, ou então é repartida apenas entre duas classes. Passamos agora para a hipótese de uma divisão tripla da produção — entre trabalhadores, donos de terra e proprietários de capital; e para fazer a ligação mais íntima possível entre as análises que virão e as que durante algum tempo nos têm ocupado, começarei pelo tema dos salários. CAPÍTULO XI Os Salários § 1. Sob o título de Salários vamos considerar, primeiramente, as causas que determinam ou alteram os salários da mão-de-obra em geral, e, em segundo lugar, as diferenças existentes entre os salários das diferentes ocupações. Convém ter em mente essas duas classes distintas de considerações e, ao discutir a lei salarial, proceder, em primeiro lugar, como se não houvesse outro tipo de mão-de-obra senão a mão-de-obra comum não qualificada para trabalho medianamente duro e desagradável. Os salários, assim como outros elementos, podem ser regulados tanto pela concorrência como pelo costume. Nesse país há poucos tipos de mão-de-obra cuja remuneração não seria mais baixa do que é se o empregador tirasse toda vantagem possível da concorrência. A concorrência, no entanto, deve ser considerada, no estágio atual da sociedade, como o principal regulador dos salários, e o costume ou caráter individual, apenas como uma circunstância modificadora, e isso em um grau relativamente baixo. Por conseguinte, os salários dependem sobretudo da procura e da oferta de mão-de-obra; ou então, como se diz com frequência, da proporção existente entre a população e o capital. Por população entende-se aqui somente o número de trabalhadores, ou melhor, daqueles que trabalham como assalariados; e por capital, somente o capital circulante, e nem sequer este em sua totalidade, senão apenas a parte gasta no pagamento direto de mão-de-obra. A isso, porém, devem-se acrescentar todos os fundos que, sem serem capital, são pagos em troca de trabalho tais como os vencimentos de soldados, criados domésticos e todos os outros trabalhadores improdutivos. Infelizmente, não há maneira de expressar com um único termo comum o conjunto daquilo que se tem denominado o fundo salarial de um país; e já que os salários da mão-de-obra produtiva constituem quase a totalidade desse fundo, costuma-se passar por cima da parte menor e menos importante, e dizer que os salários dependem da população e do capital. Será conveniente empregar essa expressão, mas lembrando-se de considerá-la como elíptica, e não uma afirmação literal da verdade integral. Ressalvadas essas limitações inerentes aos termos, os salários não somente dependem do montante relativo do capital e da população, senão que, sob o domínio da concorrência, não podem ser afetados por nenhuma outra coisa. Os salários (naturalmente, no sentido de taxa geral dos salários) não podem aumentar a não ser em razão de um aumento do conjunto de fundos empregados para contratar trabalhadores ou em razão de uma diminuição do número daqueles que competem por emprego; tampouco podem baixar, a não ser porque diminuem os fundos destinados a pagar mão-de-obra ou porque aumenta o número de trabalhadores a serem pagos. § 2. Há porém, alguns fatos que aparentemente contradizem essa doutrina, sendo necessário considerá-los e explicá-los. Por exemplo, é comum dizer-se que os salários são altos quando o negócio é bom. A procura de mão-de-obra em qualquer ocupação específica é maior e se pagam salários mais altos, quando há uma grande demanda da mercadoria produzida, ocorrendo o contrário quando há o que se chama estagnação, quando então as pessoas são demitidas, e os que permanecem empregados têm que aceitar uma redução salarial — ainda que, nesses casos, não haja nem mais nem menos capital do que antes. Isso é verdade, sendo uma das complicações ocorrentes nos fenômenos, complicações estas que obscurecem e encobrem a operação das causas gerais; e, no entanto, o fato apontado na realidade não contradiz os princípios estabelecidos. O capital que o dono não emprega em pagar mão-de-obra, mas conserva ocioso em suas mãos, para os trabalhadores é a mesma coisa como se não existisse enquanto essa situação durar. Devido às variações dos negócios, todo capital está ocasionalmente nessa situação. Um manufator, ao ver que é pequena a procura de sua mercadoria, abstém-se de empregar trabalhadores para aumentar um estoque que encontra dificuldade em vender; ou então, se continuar até ter todo o seu capital empatado em mercadorias não vendidas, ao menos então terá necessariamente que parar, até receber o pagamento de uma parte dessas mercadorias. Contudo, ninguém espera que alguma dessas duas situações seja permanente; se o esperasse, na primeira oportunidade desviaria seu capital para alguma outra aplicação, na qual continuaria a empregar mão-de-obra. O capital permanece sem aplicação por algum tempo, durante o qual o mercado de mão-de-obra está saturado, e os salários caem. Depois, a demanda revive, e talvez se torne descomunalmente violenta, possibilitando ao manufator vender sua mercadoria até em ritmo mais rápido que aquele em que a possa produzir; então todo o seu capital atinge sua eficiência completa, tendo até condições de tomar empréstimo de capital adicional, que de outra forma teria ido para outra aplicação. Em tais períodos, os salários sobem nessa ocupação específica. Se supusermos — o que a rigor não é de todo impossível — que um desses picos de aumento ou de estagnação da demanda afeta todas as ocupações simultaneamente, todos os salários poderiam acusar elevação ou baixa. Trata-se, porém, de flutuações temporárias: o capital que agora está ocioso, no ano seguinte será ativamente aplicado, e aquele que neste ano for incapaz de acompanhar a demanda, depois será empatado em estoques acumulados, e os salários, nesses vários setores, declinarão e evoluirão na mesma proporção; contudo, nada é capaz de alterar permanentemente os salários gerais, a não ser um aumento ou uma diminuição do próprio capital (entendido, sempre, como sendo todos os tipos de fundos destinados ao pagamento de mão-de-obra), em comparação com a quantidade de mão-de-obra que se oferece para ser contratada. Existe ainda outra ideia comum: que os preços altos geram salários altos, pois os produtores e os comerciantes, ficando em melhor situação, podem pagar mais a seus trabalhadores. Já disse que um incremento de demanda, que gera temporariamente preços altos, causa também uma alta temporária dos salários. Mas preços altos, em si mesmos, só podem elevar os salários se os comerciantes, pelo fato de receberem mais, forem levados a poupar mais e aumentar seu capital, ou ao menos suas contratações de mão-de-obra. Na verdade, isso tem boa probabilidade de ocorrer; e se os altos preços viessem diretamente do céu, ou mesmo do exterior, a classe trabalhadora poderia ser beneficiada, não pelos preços altos em si mesmos, mas pelo aumento de capital daí decorrente. No entanto, o mesmo efeito é muitas vezes atribuído a um preço alto que resulta de leis restritivas, ou que, de uma forma ou de outra, tem que ser pago pelos restantes membros da comunidade, sem que estes tenham maiores recursos do que antes para pagar esse alto preço. Se altos preços desse gênero beneficiarem uma classe de trabalhadores, só o podem fazer à custa de outros; com efeito, se os comerciantes, recebendo preços altos, têm condições de poupar mais ou de aumentar as contratações de mão-de-obra, todas as outras pessoas, tendo que pagar esses preços mais altos, veem reduzidos, em grau igual, seus recursos para poupar ou para pagar mão-de-obra, e dependerá das circunstâncias qual das duas alterações terá o maior efeito no mercado de trabalho. Provavelmente, os salários subirão temporariamente naquela ocupação em que os preços subiram, e descerão um pouco em outras ocupações; nesse caso, se a primeira metade do fenômeno desperta atenção, a outra metade costuma passar despercebida, ou, se for observada, não é atribuída à causa que a produziu realmente. Mas o aumento parcial dos salários não durará muito, pois, embora os comerciantes naquela ocupação ganhem mais, não segue que haja lugar para empregarem um montante maior de poupança em seu próprio negócio; seu capital acrescido provavelmente irá para outras aplicações, e ali contrabalançará a diminuição anteriormente havida na demanda de mão-de-obra em virtude da diminuição da poupança de outras categorias. Outra opinião comum é a de que os salários (evidentemente, no sentido de salários em dinheiro) variam com o preço dos alimentos, aumentando quando esse preço aumenta, e baixando quando ele diminui. Segundo entendo, essa opinião é verdadeira apenas em parte; e na medida em que é verdadeira, de modo algum afeta a dependência dos salários da proporção entre o capital e a mão-de-obra, já que o preço dos alimentos, quando afeta os salários, os afeta em consonância com essa lei. O alimento caro ou barato, se for devido à variedade das estações, não afeta os salários (a menos que estes sejam artificialmente ajustados a essa variedade, pela lei ou pela caridade); ou, melhor, tem alguma tendência a afetar os salários de forma contrária à suposta, pois em épocas de escassez as pessoas geralmente concorrem mais avidamente por emprego, fazendo baixar o mercado de mão-de-obra contra si mesmas. Pode, sim, o preço alto ou baixo dos alimentos afetar os salários, quando isso ocorre em caráter permanente e o fenômeno puder ser calculado de antemão. Em primeiro lugar, se os trabalhadores — como muitas vezes acontece — não tiverem mais do que o suficiente para se manterem em condição de trabalhar e portanto tiverem apenas o suficiente para sustentar o número normal de filhos, segue-se que, se os alimentos subirem permanentemente de preço sem que aumentem os salários, grande número de filhos morrerão prematuramente, e assim, ao final, os salários subirão, mas somente porque o número de pessoas será menor do que seria se os alimentos tivessem permanecido baratos. Mas, em segundo lugar, mesmo que os salários fossem suficientemente altos para permitir que os alimentos se tornassem mais caros sem privar os trabalhadores e suas famílias dos gêneros de primeira necessidade, ainda que pudessem suportar, falando fisicamente, ficar em uma situação pior, talvez não consentissem nisso. Poderiam ter hábitos de conforto que para eles seriam como necessidades e, antes que abrir mão desses hábitos, poderiam preferir restringir mais seu poder de multiplicação; assim sendo, os salários subiriam, não por aumentar o número de óbitos, mas por diminuírem os nascimentos. Nesses casos, então, os salários se adaptam ao preço dos alimentos, ainda que depois de um intervalo de mais ou menos uma geração. Segundo o Sr. Ricardo, esses dois casos englobam todos os casos. Ele supõe haver em toda parte uma taxa salarial mínima: ou o mínimo com o qual é fisicamente possível manter a população, ou o mínimo com o qual a população opta por fazê-lo. Supõe ele que a taxa geral dos salários sempre tende a esse mínimo, que eles nunca podem descer abaixo disso por um período de tempo que ultrapasse o necessário para uma taxa menor de aumento se fazer sentir, e nunca pode continuar alta por muito tempo. Essa suposição contém verdade suficiente para torná-la admissível para fins de ciência abstrata — e a conclusão que dela tira o Sr. Ricardo, a saber, que os salários a longo prazo sobem e descem com o preço permanente dos alimentos, é, como quase todas as suas conclusões, verdadeira em hipótese, ou seja, se estiverem asseguradas as suposições das quais o autor parte. Contudo, na aplicação à prática é necessário levar em conta que o mínimo do qual ele fala, sobretudo quando não é um mínimo físico, mas o que se pode chamar mínimo moral, é em si mesmo passível de variação. Se os salários fossem anteriormente tão altos que pudessem admitir redução, sendo que o obstáculo para isso fosse um alto padrão de conforto habitual entre os trabalhadores, um aumento do preço dos alimentos ou qualquer outra mudança desvantajosa na situação deles poderia ter dois efeitos: ele poderia corrigir-se a si mesmo por um aumento de salários gerado por um efeito gradual sobre a limitação prudencial da população, ou poderia fazer baixar permanentemente o padrão da classe, se os hábitos anteriores desta no tocante à população se mostrassem mais fortes do que seus hábitos anteriores em relação ao conforto. Nesse caso o dano para eles seria permanente, tendendo a perpetuar-se como o fez anteriormente o mínimo mais amplo. Há razões para temer que, dentre as duas maneiras em que a causa pode operar, a última seja a mais frequente, ou em todo caso suficientemente frequente para invalidar praticamente todas as proposições que atribuem uma característica auto reparadora às calamidades que afetam as classes trabalhadoras. Há evidência considerável de que a situação dos trabalhadores agrícolas na Inglaterra, mais de uma vez, durante a nossa história, sofreu grandes deteriorações permanentes, por motivos que operaram diminuindo a demanda de mão-de-obra, e que, se a população tivesse posto em prática seu poder de auto adaptar-se em obediência ao padrão anterior de conforto, só poderiam ter tido um efeito temporário; infelizmente, porém, a pobreza em que a classe esteve mergulhada durante uma série de anos fez com que caísse em desuso aquele padrão anterior de conforto, e a geração seguinte, por crescer sem ter conhecido os confortos anteriores, se multiplicou sem tentar recuperá-los. (Ver o esboço histórico da condição dos camponeses ingleses, preparado, com base nas melhores autoridades, pelo Sr. William Thornton, em sua obra intitulada Over-Population and its Remedy, obra que com honra se distingue da maior parte das outras que têm sido publicadas na geração atual, pela maneira racional como aborda as questões relativas à condição econômica das classes trabalhadoras). O caso inverso se dá quando, por efeito de aperfeiçoamentos ocorridos na agricultura, da revogação das leis do trigo ou por outros motivos similares, baixa o preço dos gêneros de primeira necessidade para os trabalhadores, e estes, com os mesmos salários, passam a ter condições de comprar mais conforto do que anteriormente. Os salários não cairão de imediato; é até possível que subam; mas ao final cairão, de maneira a não deixar os trabalhadores em situação melhor do que antes, a menos que suba permanentemente, durante esse intervalo de prosperidade, o padrão de conforto considerado indispensável pela classe. Infelizmente, de forma alguma se deve contar com esse efeito salutar; é muito mais difícil subir do que descer o padrão de vida que o trabalhador considerará como mais indispensável do que o casar e o ter uma família. Se a classe trabalhadora se contentar com desfrutar do conforto maior enquanto este durar, mas não aprender a exigir tal conforto, ela recairá em seu padrão de vida anterior. Se, devido à pobreza, seus filhos foram alimentados insuficiente ou inadequadamente, criarão agora um número maior de filhos, e a concorrência destes, quando crescerem, fará baixar os salários, provavelmente em igual proporção ao preço mais baixo dos alimentos. Se esse efeito não for produzido dessa maneira, será produzido por casamentos mais numerosos e contraídos em idade mais jovem ou por um número maior de nascimentos por casal. Segundo a experiência geral, o número de casamentos aumenta invariavelmente muito, em períodos de alimentos baratos e de pleno emprego. Não posso, pois, concordar com a importância que tantas vezes se atribui à revogação das leis do trigo considerada apenas um problema trabalhista, ou com a importância atribuída a qualquer desses esquemas — dos quais sempre há um ou outro em voga — para melhorar por pouco que seja a situação dos trabalhadores. Coisas que os afetam pouquíssimo não produzem nenhum efeito permanente em seus hábitos e exigências, e eles logo resvalam novamente para sua situação anterior. Para produzir uma vantagem permanente, a causa temporária que opera neles deve ser suficiente para gerar uma grande mudança na sua condição — uma dessas mudanças que sejam sentidas durante muitos anos, a despeito do estímulo que ela possa dar ao crescimento da população durante uma geração. Com efeito, quando a melhoria for dessa natureza considerável, e crescer uma geração que sempre esteve habituada a um melhor padrão de conforto, os hábitos dessa nova geração com respeito à população se moldam com base em um mínimo mais elevado, e a melhoria de sua condição se torna permanente. Dos casos em pauta, o mais notável é a França após a Revolução. Pelo fato de a maioria da população ser repentinamente erguida da miséria para a independência e o conforto relativo, o efeito imediato foi que a população, não obstante as guerras destrutivas daquele período, cresceu com rapidez sem precedentes, em parte porque a situação melhor possibilitou criar muitos filhos, que de outra forma teriam morrido, e em parte por terem aumentado os nascimentos. Acontece que a geração subsequente cresceu com hábitos notavelmente alterados, e conquanto o país nunca tenha estado antes em situação tão próspera, atualmente o número de nascimentos quase estacionou, e o aumento da população é extremamente reduzido. (Uma melhoria semelhante — embora não igual — do padrão de vida ocorreu entre os trabalhadores da Inglaterra durante os notáveis cinquenta anos de 1715 até 1765, que se distinguiram por uma tal sucessão extraordinária de boas colheitas (sendo que os anos de franca escassez não foram mais do que cinco em todo o período) que o preço médio do trigo durante aqueles anos era muito mais baixo que durante o meio século que precedera. O Sr. Malthus calcula que, na média de sessenta anos antes de 1720, o trabalhador podia comprar, com o que ganhava em um dia, apenas 2/3 de um peck de trigo, enquanto de 1720 até 1750 conseguia comprar um peck inteiro. O preço médio do trigo, conforme as tabelas de Eton, para os cinquenta anos com término em 1715, era de 41 s 7 3/4 d ao quarter, e para os últimos vinte e três desse período, 45 s 8 d, ao passo que para os cinquenta anos que seguiram não passava de 34 s 11 d. Uma melhoria tão notável na condição da classe trabalhadora, embora proveniente dos acidentes das estações, pelo fato de prolongar-se além de uma geração, tem tempo para operar uma mudança nas exigências habituais da classe trabalhadora; e esse período é sempre notado como a data de “uma melhoria marcante da qualidade do alimento consumido, e uma decidida elevação do padrão de seus confortos e conveniências”. MALTHUS. Principles of Political Economy. Quanto às características do citado período ver a excelente obra do Sr. TOOKE. History of Prices. E para os preços do trigo ver o Apêndice à citada obra). § 3. Consequentemente, os salários dependem da proporção existente entre o número de trabalhadores e o capital ou outros fundos destinados a pagar mão-de-obra — para fins de brevidade, diremos, simplesmente, o capital. Se em um determinado momento ou lugar os salários forem mais altos do que em outro, se forem folgados a subsistência e o conforto da classe de trabalhadores assalariados, é unicamente porque o capital é maior em proporção com a população. O que é importante para a classe trabalhadora não é o montante absoluto de acumulação ou de produção; nem o é sequer o montante dos fundos destinados a serem distribuídos entre os trabalhadores, mas é a proporção entre esses fundos e o número de trabalhadores entre os quais são distribuídos. A condição da classe trabalhadora só pode ser melhorada alterando-se essa proporção de maneira vantajosa para ela, sendo que todo esquema tendente a beneficiá-la e que não parta desse fundamento é uma ilusão, se visarmos qualquer fim permanente. Em países como a América do Norte e as colônias da Austrália, onde o conhecimento e as técnicas da vida civilizada, bem como um alto desejo efetivo de acumular, coexistem com uma extensão ilimitada de terra desocupada, o aumento de capital facilmente acompanha o máximo aumento possível da população, sendo retardado sobretudo pela inviabilidade de conseguir mão-de-obra em quantidade suficiente. Por isso, todos os que possivelmente nascem conseguem encontrar emprego sem saturar o mercado; toda família trabalhadora desfruta de abundância de gêneros de subsistência, além de muitos confortos de vida e até de alguns luxos, e, a não ser no caso de má conduta individual ou de incapacidade efetiva de trabalhar, não há pobreza e não é preciso existir dependência. Uma vantagem similar, embora em grau inferior, é ocasionalmente desfrutada por alguma classe especial de trabalhadores em países velhos, devido a um aumento extraordinariamente rápido, não do capital em geral, mas do capital empregado em determinada ocupação. Tão gigantesco tem sido o progresso da manufatura algodoeira de Watt e Arkwright que o capital nela empatado provavelmente quadruplicou no período que a população necessita para duplicar. Por isso, enquanto ela atraiu de outros empregos quase todos os operários que ficaram disponíveis em decorrência de circunstâncias geográficas e dos hábitos e inclinações da população, e enquanto a demanda, por ela criada, de mão-de-obra de crianças levou o interesse pecuniário imediato dos operários a fomentar o aumento da população, em vez de restringi-lo, não obstante os salários nos grandes centros dessas manufaturas costumam ser tão altos que os ganhos coletivos de uma família ascendem, em uma média de anos, a uma quantia bem satisfatória, não havendo, até agora, nenhum sinal de decréscimo permanente, enquanto se tem sentido também o efeito de elevar o padrão dos salários agrícolas nas regiões circunvizinhas. Entretanto, são raras e transitórias essas circunstâncias de um país ou de uma ocupação, em que a população pode aumentar impunemente à sua taxa máxima. Bem poucos são os países que apresentam a indispensável associação de condições para tanto. Ou as técnicas do trabalho são atrasadas ou estacionárias, e por isso o capital aumenta lentamente, ou sendo baixo o desejo efetivo de acumulação, o aumento de capital logo atinge seu limite; ou então, mesmo que esses elementos tenham atingido seu grau máximo que se conhece, o aumento de capital é obstaculizado, por não haver terra nova à qual se possa recorrer, de qualidade tão boa como a já ocupada. Ainda que o capital, durante algum tempo, dobre simultaneamente com a população, se todo esse capital e toda essa população tiverem que encontrar emprego na mesma terra, não terão condições de continuar a dobrar sua produção, a não ser que haja uma sucessão sem precedentes de invenções agrícolas; por isso, se os salários não baixarem, têm que baixar os lucros, e quando os lucros caem, diminui o aumento do capital. Além disso, mesmo que os salários não baixassem, necessariamente aumentaria, em tais circunstâncias, o preço dos alimentos (como ficará demonstrado mais plenamente a seguir) — o que equivale a uma baixa dos salários. Ressalvados, portanto, os casos muito peculiares que acabo de anotar — e dos quais o único de importância prática é o de uma nova colônia ou de um país em circunstâncias equivalentes a ela —, é impossível a população aumentar à sua taxa máxima sem baixarem os salários. Nem a descida dos salários cessará em algum ponto abaixo daquele que, pelos seus efeitos físicos ou pelos seus efeitos morais, impede o crescimento da população. Por isso, em nenhum país velho a população cresce em ritmo igual à sua taxa máxima; na maioria dos países o crescimento ocorre a taxa bem moderada, e em alguns países simplesmente não há crescimento populacional. Esses fatos só podem ser explicados de duas maneiras: ou não está ocorrendo todo o número de nascimentos admitido pela Natureza, e que em algumas circunstâncias acontece, ou, se tal ocorre, o número dos que morrem é proporcionalmente maior do que o daqueles que nascem. O retardamento do aumento populacional resulta ou da moralidade ou da prudência, ou da limitação positiva do Sr. Malthus ou de sua limitação preventiva; um dos dois métodos deve existir em todas as sociedades velhas, e existe realmente, agindo com grande poder. Onde quer que a população não for reduzida pela prudência dos indivíduos ou do Estado, ela o é pela inanição ou pela doença. O Sr. Malthus trabalhou muito no sentido de determinar, para quase cada país do mundo, qual desses dois métodos de limitação opera, e as evidências que ele coligiu sobre a matéria, em seu Essay on Population, podem ser lidas com proveito ainda hoje. Em toda a Ásia e, antigamente, na maioria dos países europeus em que as classes trabalhadoras não estavam em estado de servidão pessoal, não há ou não havia outra limitação populacional senão a morte. Nem sempre a mortalidade era defeito da pobreza: grande parte dela provinha da falta de perícia e de cuidado na criação dos filhos, de hábitos de vida anti-higiênicos e não saudáveis, reinantes entre a população adulta, e da ocorrência quase periódica de epidemias destrutivas. Na Europa, essas causas redutoras da longevidade diminuíram muito, mas nem por isso deixaram de existir totalmente. Até uma data não muito longínqua, dificilmente alguma das nossas grandes cidades manteve sua população, independentemente das correntes do fluxo sempre contínuo que lhes vinha das regiões rurais; isso era ainda verdade quanto a Liverpool até bem pouco tempo; e mesmo em Londres, a mortalidade é maior, e a duração média de vida é mais curta do que em distritos onde há pobreza muito mais intensa. Na Irlanda, as febres epidêmicas e mortes causadas pela exaustão física por alimentação insuficiente sempre têm acompanhado mesmo a deficiência mais moderada da safra das batatas. No entanto, hoje não se pode dizer que em alguma região da Europa a população seja reduzida sobretudo pela doença, e menos ainda pela inanição, seja de maneira direta ou indireta. A maneira mais comum de limitar a população é a preventiva, e não a positiva (para usar a linguagem do Sr. Malthus). Segundo acredito, porém, raramente a solução preventiva consiste na pura operação de motivos prudenciais sobre uma classe composta total ou principalmente de trabalhadores assalariados que não veem diante de si nenhuma outra perspectiva. Na Inglaterra, por exemplo, duvido muito de que a generalidade dos trabalhadores agrícolas pratiquem alguma limitação prudencial de qualquer espécie. Geralmente se casam tão cedo, e têm tantos filhos por casamento quanto o fariam ou poderiam fazer se habitassem nos Estados Unidos. Durante a geração que precedeu a promulgação da atual lei dos pobres receberam o encorajamento mais direto para esse tipo de imprevidência, não somente por se lhes assegurar o sustento, em condições fáceis, toda vez que ficassem desempregados, senão que, mesmo quando empregados, comumente recebiam da paróquia uma ajuda semanal proporcional a seu número de filhos; além disso, baseando-se em uma economia de visão curta, sempre se dava emprego aos casados com famílias numerosas, de preferência aos não-casados — prêmios à população que ainda existe hoje. Com esses estímulos, os trabalhadores rurais adquiriram hábitos de despreocupação, os quais são tão congênitos à mente inculta, que, qualquer que seja a maneira em que foram gerados, costumam durar muito além de suas causas geradoras imediatas. Há tantos elementos novos operando em uma sociedade, mesmo naquelas camadas mais profundas que são inacessíveis aos meros movimentos registrados na superfície, que é arriscado afirmar algo de positivo sobre o estado mental ou os impulsos práticos de classes e grupos de pessoas quando as mesmas afirmações podem ser verdadeiras hoje e podem exigir grandes modificações dentro de alguns anos. No entanto, parece que, se a taxa de crescimento populacional dependesse exclusivamente dos trabalhadores agrícolas, ela seria — na medida em que dependesse dos nascimentos e a menos que aumentassem os óbitos — tão rápida nos condados meridionais da Inglaterra quanto na América. O princípio da limitação reside na percentagem bem elevada da população composta das classes médias e dos artífices qualificados, que neste país quase iguala o número dos trabalhadores comuns, e nas quais os motivos prudenciais atuam efetivamente em grau considerável. § 4. Onde uma classe trabalhadora que não tem outra propriedade senão seus salários diários e nenhuma esperança de adquirir outra coisa se abstém de multiplicar-se em ritmo excessivamente rápido, acredito que a causa até hoje sempre foi a limitação efetiva imposta por lei ou então algum costume, o qual, sem intenção da parte dos trabalhadores, insensivelmente molda sua conduta ou lhes proporciona estímulos imediatos para não casarem. De modo geral, não se sabe em quantos países da Europa há obstáculos legais diretos que impedem contrair casamentos imprevidentes. As comunicações feitas à Comissão original sobre a lei dos pobres, pelos nossos Embaixadores no Exterior e os nossos cônsules em diversos países da Europa, contêm uma notável soma de informações sobre essa matéria. O Sr. Senior, em seu prefácio a essas Comunicações, afirma que nos países que reconhecem um direito legal ao amparo a necessitados, “o casamento por parte de pessoas que estão recebendo o abono parece ser em toda parte proibido, e o casamento daqueles que não têm probabilidade de auto sustento é permitido por muito poucos. Assim, estamos informados de que na Noruega ninguém pode casar sem demonstrar ao eclesiástico que está estabelecido de tal forma a poder oferecer uma perspectiva séria de ter condições de sustentar uma família. “Em Mecklenburg, que ‘os casamentos são adiados até se completar os 22 anos e até se completar o serviço militar de seis anos; além disso, os nubentes devem ter uma moradia, sem o que um eclesiástico não tem permissão para casá-los. Os homens casam entre 25 e 30 anos, as mulheres não muito mais cedo, já que ambos primeiro têm que ganhar, com trabalho, o suficiente para se estabelecerem’. ”Na Saxônia, que ‘um homem não pode casar antes de atingir 21 anos se tiver que servir no Exército. Em Dresden, os professionistas (entendendo-se com essa palavra, provavelmente, os artesãos) não podem casar-se antes de se tornarem mestres em sua profissão’. "Em Wurtemburg, que ‘nenhum homem pode casar antes dos 25, devido a suas obrigações militares, a menos que obtenha ou compre uma permissão especial; mesmo com essa idade, tem que obter permissão, que é dada ao demonstrar que ele e sua mulher juntos terão o suficiente para manter uma família ou se estabelecerem: em cidades grandes, digamos de 800 a 1 000 florins (de £ 66 13 s 4 d até £ 84 3 s 4 d); em cidades menores, de 400 a 500 florins; em aldeias, de 200 florins (£ 16 13 s 4 d)’. O Embaixador lotado em Munique afirma: “A grande causa pela qual o número de pobres é mantido tão baixo nessa região vem do fato de a lei proibir casamentos em casos em que não se pode provar que as partes têm recursos razoáveis para a subsistência, e essa norma é observada com rigor em todos os lugares e tempos. O efeito de uma observância constante e firme dessa norma tem, é verdade, uma influência notável em manter baixa a população da Baviera, que atualmente é pequena para a extensão do país, mas tem um efeito altamente salutar em afastar a pobreza extrema e a miséria consequente”. Em Lubeck, “os casamentos entre pobres são adiados pela obrigação que um homem tem, primeiro, de antes provar que tem um emprego, trabalho ou profissão regular, que lhe dará condições de manter uma mulher, e, segundo, de tornar-se um cidadão e de equipar-se com o uniforme de um guarda da cidade; tudo isto junto custa-lhe quase 4 libras”. Em Frankfurt, “o governo não prescreve idade para casar, mas a permissão só é concedida a quem provar que tem com que prover à subsistência independente”. A alusão feita em algumas dessas afirmações às obrigações militares denota um obstáculo indireto para o casamento, interposto pelas leis de alguns países em que não há limitação direta por lei. Na Prússia, por exemplo, as instituições que obrigam todo homem no pleno uso de suas forças físicas a servir durante vários anos no Exército, em um momento da vida em que os casamentos imprudentes têm mais probabilidade de acontecer, constituem provavelmente um equivalente pleno, em termos de população, para as restrições legais de Estados menores da Alemanha. Segundo o Sr. Kay, “a população da Suíça compreende tão bem, por experiência, a conveniência de seus filhos e filhas adiarem o momento de seu casamento que os Conselhos de Estado de quatro ou cinco dos cantões mais democráticos — eleitos, recorde-se, por sufrágio universal — aprovaram leis em virtude das quais jovens, que casarem antes de provar ao magistrado de seu distrito serem capazes de sustentar uma família, são passíveis de uma pesada multa. Em Luzern, Argovie, Underwalden e, acredito, St.-Gall, Schweitz e Uri, leis desse gênero estão em vigência há muitos anos”. § 5. Onde não existe uma lei geral restringindo o casamento, há muitas vezes costumes equivalentes a ela. Quando vigoravam as guildas ou corporações de negociantes da Idade Média, seus decretos ou regulamentos eram entendidos como um olho muito vigilante para a vantagem que a profissão hauria do fato de se limitar a concorrência; esses regulamentos faziam com muita eficiência com que os artesãos vissem não ser interesse deles casarem antes de passar pelos dois estágios de aprendiz e oficial e atingir o grau de mestre. (Em geral" — afirma Sismondi — “era fixo o número de mestres em cada corporação, e somente um mestre podia manter uma loja, ou comprar e vender por conta própria. Cada mestre só podia treinar um determinado número de aprendizes, que instruía em seu ofício; em algumas corporações só lhe era permitido manter um aprendiz. Cada mestre também só podia empregar um número limitado de operários, que eram chamados companheiros, os oficiais, e nas profissões em que ele só podia assumir um aprendiz, só lhe era permitido ter um oficial, ou no máximo dois. Ninguém podia comprar, vender ou trabalhar em uma profissão, a não ser que fosse aprendiz, oficial ou mestre; ninguém podia tornar-se oficial sem ter servido um determinado número de anos como aprendiz, nem podia passar a mestre a não ser que tivesse servido o mesmo número de anos como oficial, e se não tivesse também ele executado o que se chamava sua obra-prima, uma peça de serviço executado em sua profissão e que tinha que ser julgada pela corporação. Vê-se que esta organização colocava inteiramente na mão dos mestres o recrutamento de pessoal para a profissão. Só eles podiam assumir aprendizes, mas não eram obrigados a admitir nenhum; por isso, exigiam pagamento por esse favor, e muitas vezes um pagamento bem elevado, e um jovem não podia ingressar em uma profissão se não dispusesse, ao iniciar, da soma que tinha que pagar pelo seu aprendizado, bem como dos recursos necessários para seu sustento durante o aprendizado, uma vez que, durante quatro, cinco ou sete anos, todo seu serviço pertencia a seu mestre. Durante esse período era completa sua dependência em relação ao mestre, pois a vontade ou mesmo o capricho do mestre podia fechar-lhe a porta de uma profissão lucrativa. Depois de um aprendiz passar a oficial, tinha um pouco mais de liberdade: podia ligar-se a qualquer mestre que escolhesse, ou passar de um para outro; e já que só se podia ascender à condição de oficial através da aprendizagem, ele agora começava a tirar proveito do monopólio sob o qual havia anteriormente sofrido e tinha mais ou menos certeza de receber bom pagamento por um serviço que a ninguém mais era permitido realizar. Todavia, dependia da corporação para tornar-se mestre, e portanto não se considerava como tendo já assegurado sua sorte, ou como tendo uma posição permanente. No geral, não casava antes de tornar-se mestre. “É certo, tanto de fato como em teoria, que a existência de corporações profissionais impediu, e só podia impedir, o nascimento de uma população superabundante. Pelos estatutos de quase todas as corporações, um homem não podia ser mestre antes da idade de 25 anos; mas se não tivesse capital próprio, se não tivesse acumulado poupança suficiente, continuava a trabalhar como oficial por muito mais tempo; alguns, talvez a maioria dos artífices, permaneciam oficiais por toda a vida. No entanto, dificilmente havia um exemplo em que casassem antes de serem admitidos como mestres; se tivessem sido imprudentes a ponto de desejar casar-se, nenhum pai teria dado a mão de sua filha a um homem sem posição." Nouveaux Principes. Livro Quarto. Cap. 10. Ver também SMITH, Adam. Livro Primeiro. Cap. 10. Parte II). Na Noruega, onde a mão-de-obra é sobretudo agrícola, é proibido por lei contratar um empregado rural por menos de um ano — o que era a prática geral inglesa até que as leis dos pobres a suprimiram, possibilitando aos arrendatários encostarem seus trabalhadores na paróquia toda vez que não precisassem imediatamente do seu trabalho. Em decorrência desse costume e de sua força de lei, todos os membros da classe — propriamente restrita — de trabalhadores agrícolas na Noruega têm um compromisso para no mínimo um ano, o qual, se as partes estiverem satisfeitas uma com a outra, com naturalidade se transforma em um compromisso permanente; por conseguinte, em cada vizinhança se sabe se há, ou se há possibilidade de haver, uma vaga, e se não houver, um jovem não casa, sabendo que não conseguiria ocupação. Esse costume ainda [1848] existe em Cumberland e Westmoreland; apenas que o prazo é de meio ano, em vez de um ano — e ao que parece, o costume continua ainda a ter as mesmas consequências. Os empregados que trabalham na propriedade “vivem e se alimentam nas casas de seus patrões e raramente as deixam até o momento em que, pela morte de algum parente ou vizinho, sucedem na propriedade ou na locação de uma propriedade. Não existe aqui o que se chama mão-de-obra excedente”. Em outro capítulo mencionei a limitação à população na Inglaterra durante o século passado, em decorrência da dificuldade de se obter um lugar de moradia separado. Poder-se-ia especificar outros costumes limitadores da população: em algumas partes da Itália, segundo Sismondi, existe a prática, entre os pobres, de permanecerem solteiros todos os filhos, exceto um — prática que se sabe existir também nas camadas mais altas. Mas tais costumes familiares não têm probabilidade de existir entre trabalhadores diaristas. São práticas às quais recorrem pequenos proprietários e meeiros para evitar uma subdivisão excessiva da terra. Na Inglaterra, em geral é difícil haver hoje algum vestígio desses modos indiretos de limitar a população, a não ser que, em paróquias possuídas por um dono de terra ou um número bem limitado deles, o aumento de trabalhadores residentes seja ainda ocasionalmente obstaculizado, impedindo de se construírem novas casinhas, ou destruindo as que existem, restringindo-se assim a população que se possa transformar em ônus para o lugar, sem nenhum efeito substancial sobre a população em geral, e sendo o trabalho necessário em tais paróquias efetuado por trabalhadores estabelecidos alhures. Os distritos vizinhos sempre se sentem muito prejudicados por essa prática, contra a qual não podem defender-se com meios semelhantes, uma vez que um único acre de terra possuído por qualquer um que não entre em tal associação lhe dá condições de frustrar essa tentativa, muito vantajosa para ele mesmo, cobrindo aquele acre com casinhas. Vindo ao encontro de tais queixas, nesses últimos anos se promulgou uma lei do Parlamento pela qual a taxa para os pobres não é um encargo da paróquia, mas de toda a União. Esse dispositivo, sob outros aspectos muito benéfico, elimina o pequeno remanescente do que era uma limitação à população, cujo valor, porém, se havia tornado bem insignificante, devido às possibilidades limitadas de sua operação. § 6. Por isso, no caso do trabalhador agrícola comum, os obstáculos ao aumento da população podem ser considerados quase inexistentes. Se o crescimento das cidades e do capital aplicado, pelo qual os operários de fábrica são sustentados à atual taxa salarial não obstante seu aumento rápido, não absorvesse também uma grande parte do acréscimo anual da população rural, não pareceria haver razão, nos hábitos atuais da população, por que esta não deveria cair em condição tão miserável quanto os irlandeses antes de 1846; e se o mercado para os nossos manufaturados, já não digo cessasse, mas mesmo deixasse de expandir-se à taxa de rapidez dos últimos cinquenta anos, não há certeza de que não nos esteja reservado esse destino. Sem querermos levar as nossas previsões até o extremo dessa calamidade — a qual, podemos esperar, a grande e crescente inteligência da população fabril afastará, por meio de uma adaptação de seus hábitos a suas circunstâncias —, é suficientemente dolorosa a condição presente dos trabalhadores de alguns dos condados mais exclusivamente agrícolas, como Wiltshire, Somersetshire, Dorsetshire, Bedfordshire, Buckinghamshire. Os trabalhadores desses condados, com famílias numerosas e oito ou talvez nove xelins de salário semanal quando plenamente empregados, durante algum tempo têm constituído um dos principais alvos da compaixão popular; já é tempo que também eles tenham o benefício de alguma aplicação do bom senso. Infelizmente, a discussão sobre tais assuntos costuma ser mais dirigida no plano sentimental do que a nível de bom senso; e enquanto há uma grande sensibilidade em relação às dificuldades dos pobres e uma disposição pronta a admitir direitos destes à ajuda de outras pessoas, existe uma falta de disposição quase generalizada no sentido de encarar a dificuldade real de sua posição ou de advertir para todas as condições que por natureza são indispensáveis para melhorar sua sorte material. Em nenhum país do mundo e em nenhum momento estiveram tão maduras como na atual geração as discussões sobre a condição dos trabalhadores, as lamentações sobre sua miséria, as denúncias de todos os que se dizem ser indiferentes a ela, os projetos de um tipo ou outro para melhorar tal condição; mas há um acordo tácito no sentido de ignorar totalmente a lei dos salários ou de colocá-la em parênteses, com expressões como “malthusianismo de coração duro”, como se não fosse mil vezes mais cruel dizer a seres humanos que podem ou que não podem colocar no mundo enxames de criaturas que com certeza serão miseráveis e com a maior probabilidade serão viciadas, e esquecendo que tal conduta, que se diz ser tão cruel desaprovar, é uma escravatura degradante a um instinto bruto em uma das pessoas envolvidas [— o varão —] e, mui comumente, na outra [— a mulher —] a submissão impotente a um abuso revoltante de poder. Enquanto a humanidade permanecia em condição semibárbara, com a indolência e as poucas necessidades características de um selvagem, provavelmente não era desejável restringir a população; a pressão da necessidade física pode ter sido um estímulo necessário, naquele estágio mental, ao exercício da iniciativa e do engenho requeridos para levar a efeito a maior de todas as mudanças passadas nos modos de existência humana, pela qual a vida profissional conseguiu predominar sobre o estágio de caçador, de pastor ou o estágio militar e predatório. A necessidade física, naquela época do mundo, tinha suas utilidades, como as tinha a própria escravatura; e pode haver regiões do mundo em que tais usos ainda não foram substituídos, ainda que facilmente o pudessem ter sido se comunidades mais civilizadas lhes tivessem estendido uma mão para ajudar. Na Europa, porém, está bem longe o tempo — se é que um dia existiu — em que uma vida de privação tinha a mínima tendência a fazer dos homens operários melhores ou seres humanos mais civilizados. Pelo contrário, é evidente que, se os trabalhadores do campo estivessem em situação melhor, trabalhariam com mais eficiência e seriam melhores cidadãos. Pergunto então: é ou não verdade que, se o número de habitantes fosse menor, conseguiriam salários melhores? Essa é a questão, e não outra, e é inútil desviar a atenção dela, atacando alguma posição incidental de Malthus ou de algum outro autor, e pretender que, refutando esta, se desautoriza o princípio da população. Alguns, por exemplo, conseguiram uma vitória fácil sobre uma observação feita de passagem pelo Sr. Malthus, arriscada sobretudo a título de ilustração, que talvez se possa supor que o aumento de alimentos ocorre em razão aritmética, ao passo que a população aumenta em proporção geométrica — quando o leitor leal sabe que o Sr. Malthus não deu nenhuma ênfase a essa tentativa infeliz de dar precisão numérica a coisas que não a comportam, e toda pessoa capaz de raciocinar deve ver que ela é totalmente supérflua para a argumentação dele. Outros têm dado uma importância imensa a uma correção que economistas políticos mais recentes introduziram na simples linguagem dos primeiros seguidores do Sr. Malthus. Vários autores disseram que a população tende a crescer mais rapidamente do que os meios de subsistência. A afirmação era verdadeira no sentido entendido por tais autores, a saber, que a população na maior parte das circunstâncias aumentaria com mais rapidez do que os meios de subsistência, se ela não fosse impedida pela mortalidade ou pela prudência. Mas na medida em que esses obstáculos agem com força desigual em tempos e lugares diferentes, era possível interpretar o modo de falar desses autores como se tivessem desejado dizer que a população normalmente está ganhando pé em relação à abundância de alimentos e que a pobreza da população está aumentando. Interpretando assim o pensamento deles, afirmou-se que a verdade é o inverso, a saber, que à medida que a civilização avança, a limitação prudencial tende a tornar-se mais forte, e a população tende a diminuir sua taxa de crescimento, em relação à abundância de alimentos, e que é um erro sustentar que a população, em qualquer comunidade que se aperfeiçoa, tende a aumentar mais rapidamente do que a disponibilidade de alimentos ou até com a mesma rapidez. A palavra tendência é aqui usada em sentido inteiramente diferente daquele em que os referidos autores afirmaram a proposição supra; todavia, deixando de lado a discussão verbal, porventura as duas partes não reconhecem que, em países velhos, a população está chegando perto da disponibilidade de alimentos? E embora seja verdade que a pressão populacional diminui, quanto mais se conseguir melhorar as ideias e os hábitos da classe mais pobre de trabalhadores — sendo que para isso sempre se espera haja alguma tendência em um progressista —, não obstante, uma vez que essa tendência até agora foi e continua a ser extremamente fraca, e (para descermos a casos particulares) ainda não se chegou a dar aos trabalhadores de Wiltshire salário melhor do que 8 xelins por semana, a única coisa que é necessário considerar é se isso é uma medida suficiente e adequada para um trabalhador; com efeito, se não for, a população, como um fato existente, apresenta uma proporção excessiva em relação aos fundos destinados aos salários; e se em algum período anterior a pressão populacional foi ainda maior, ou se não foi tão grande, isso é uma questão que na prática não tem importância, a não ser que, se a relação entre os dois fatores estiver melhorando, haja melhores motivos para esperar que, aplicando meios e estímulos adequados, se poderá fazer com que a razão população-fundo salarial melhore e com maior rapidez. Todavia, não é contra a razão que o argumento sobre esse assunto tem que lutar, mas contra um sentimento de aversão, que somente cederá à verdade incômoda quando se tiverem esgotado todos os meios de fugir ao reconhecimento dessa verdade. É, pois, necessário penetrar no exame detalhado desses meios e forçar toda posição ocupada pelos inimigos do princípio da população em sua decisão de encontrar algum refúgio para os trabalhadores, algum meio plausível de melhorar a condição deles, sem exigir o exercício, forçado ou voluntário, de algum autocontrole, ou de algum controle maior do que o atual, sobre o poder animal de multiplicação. Este será o propósito do próximo capítulo. CAPÍTULO XII Soluções Populares para Salários Baixos § 1. O meio mais simples que se pode imaginar para manter os salários do trabalho no nível desejável seria fixá-los por lei, e este é virtualmente o objetivo visado, em uma variedade de planos, que em épocas diferentes foram, ou ainda são, correntes, para reformular a relação entre trabalhadores e empregadores. Provavelmente ninguém jamais sugeriu que os salários devam ser absolutamente fixos, já que os interesses de todas as partes envolvidas muitas vezes exigem que variem; mas alguns propuseram fixar um salário mínimo, deixando que a variação acima desse nível seja ajustada mediante concorrência. Outro esquema que tem encontrado defensores entre os líderes dos operários é que se formem conselhos ou assembleias, que na Inglaterra têm sido chamados de local boards of trade, na França, consens de prud’hommes, e outras denominações — constando estes de delegados dos trabalhadores e dos empregadores, os quais, conferenciando juntos concordem em uma taxa salarial e a promulguem com autoridade, obrigando geralmente empregadores e operários, sendo que a base de decisão não deve ser a situação do mercado de trabalho, mas a justiça, para assegurar que os operários tenham salários razoáveis e o capitalista tenha lucros razoáveis. Outros (mas estes são antes filantropistas que têm interesse pelas classes trabalhadoras, do que a própria população trabalhadora) têm receio de admitir a interferência da autoridade em contratos de trabalho; temem que, se a lei interferisse, interviria precipitadamente e de modo ignorante; estão convencidos de que duas partes, com interesses opostos, ao tentarem acertar esses interesses mediante negociações através de seus representantes com base em princípios de equidade, quando não se pode estabelecer nenhuma norma para determinar o que é justo, simplesmente exasperariam suas diferenças em vez de saná-las; assim, o que é inútil tentar pela sanção legal, tais pessoas desejam acertar pela moral. Pensam assim: cada empregador deve pagar salários suficientes; e se não o fizer voluntariamente, a isso deve ser obrigado pela opinião geral; o critério para estabelecer o que são salários suficientes seria sua própria opinião, ou aquilo que supõem ser o entender da opinião pública. Penso ser esta uma boa descrição de um grupo considerável de opinião reinante sobre o assunto. Desejo limitar minhas observações ao princípio envolvido em todas essas sugestões, sem levar em conta dificuldades práticas, por mais sérias que de saída possam parecer. Suporei que, com um ou outro desses meios excogitados, os salários possam ser mantidos acima do ponto ao qual chegariam por efeito da concorrência, vale dizer, acima da maior taxa que é compatível com o capital existente, sem que nenhum trabalhador fique desempregado. Com efeito, é um erro supor que a concorrência apenas mantém os salários baixos. Ela é igualmente o meio pelo qual os salários se mantêm altos. Quando há trabalhadores desempregados, estes, a menos que sejam mantidos pela caridade pública, concorrem para a contratação, e os salários descem; mas quando todos os que estavam sem trabalho encontrarem emprego, os salários não cairão, mesmo no mais livre sistema de concorrência. Quanto à natureza da concorrência, estão em voga conceitos estranhos. Alguns parecem imaginar que seu efeito seja algo de indefinido, que a concorrência de vendedores pode fazer baixar os preços, e a concorrência dos trabalhadores pode baixar os salários até zero, ou até um mínimo indeterminado. Nada de mais infundado do que isso. As mercadorias só podem baixar de preço por efeito da concorrência até o ponto em que surgem compradores capazes de comprá-las; e os salários só podem baixar em virtude da concorrência até o ponto em que se crie espaço para admitir todos os trabalhadores a participarem da distribuição do fundo destinado aos salários. Se os salários caíssem abaixo desse nível, permaneceria inaplicada uma parte de capital, por falta de trabalhadores; começaria com isso uma contra concorrência do lado dos donos de capital, e os salários subiriam. Portanto, uma vez que a taxa de salários resultante da concorrência distribui todo o fundo existente destinado a salários entre a totalidade da população trabalhadora, se a lei ou a opinião pública conseguir fixar salários acima dessa taxa, alguns trabalhadores ficam sem emprego; ora, já que não é intenção dos filantropistas que estes pereçam por inanição, devem eles ser sustentados forçando um aumento do fundo destinado aos salários, mediante uma poupança compulsória. Não há nada que possa fixar um salário mínimo, a menos que se cuide que haja trabalho, ou ao menos salário para todos os que o procuram. Isso, portanto, sempre faz parte do esquema e se concilia com as ideias de mais pessoas do que aquelas que admitiriam um salário mínimo, legal ou moral. O sentimento popular considera ser dever dos ricos, ou do Estado, encontrar emprego para todos os pobres. Se a influência moral da opinião pública não conseguir levar os ricos a pouparem de seu consumo o suficiente para dar emprego a todos os pobres, com “salários razoáveis”, supõe-se incumbir ao Estado conseguir fundos para esse fim, seja impondo tributos ou taxas locais, seja destinando verba pública. Assim, a proporção existente entre a mão-de-obra e o fundo destinado a salários seria modificada em vantagem dos trabalhadores, não mediante limitação da população, mas por um aumento de capital. § 2. Se esse direito cobrado da sociedade pudesse ser limitado à geração atual, se não fosse preciso outra coisa senão uma acumulação compulsória, suficiente para garantir emprego permanente, com bons salários, para o contingente atual da população, tal proposta não teria defensor mais vigoroso do que eu mesmo. A sociedade consta sobretudo daqueles que vivem de trabalho corporal, e se a sociedade, isto é, se os trabalhadores emprestam sua força física para assegurar aos indivíduos o gozo de coisas supérfluas, têm direito a fazê-lo, e sempre o fizeram, com a ressalva de um poder de taxar tais coisas supérfluas para fins de utilidade pública, entre as quais o primeiro é o sustento da população. Uma vez que ninguém é responsável por ter nascido, nenhum sacrifício é grande demais para não ser feito por parte daqueles que têm mais do que o suficiente, para o fim de assegurar o suficiente a todas as pessoas que já existem. No entanto, o caso é totalmente diverso, quando aqueles que produziram e acumularam são chamados a se absterem de consumir até haverem dado alimento e roupa, não somente àqueles que já existem, mas também a todos aqueles que os já existentes ou seus descendentes considerarem bom colocar no mundo. Tal obrigação, se reconhecida e posta em prática, suspenderia todas as limitações à população, tanto positivas como preventivas; nada haveria que impedisse a população de aumentar à sua taxa mais rápida; e já que o aumento natural de capital, na melhor das hipóteses, não seria mais rápido que antes, a tributação, para compensar a deficiência crescente, teria que aumentar na mesma proporção gigantesca. Naturalmente se faria a tentativa de cobrar trabalho em troca do sustento. Mas a experiência tem mostrado que tipo de trabalho se pode esperar de quem é beneficiado pela caridade pública. Quando o pagamento não é dado em função do trabalho que se encontra para justificar pagamento, a ineficiência é certa: conseguir serviço real de trabalhadores diaristas, sem ter o poder de demiti-los, é uma prática que só é possível sob a força do chicote. Sem dúvida, é possível que essa objeção possa ser superada. O fundo levantado com tributos poderia ser distribuído do mercado de mão-de-obra, como parecem pretender os defensores do direito ao trabalho na França, sem dar a nenhum trabalhador desempregado um direito a exigir sustento em um determinado lugar ou de um funcionário específico. Permaneceria então o poder de demitir no tocante a trabalhadores individuais, sendo que o Governo só empreenderia criar emprego adicional quando houvesse uma deficiência, salvaguardando, como outros empregadores, a opção de escolher seus próprios trabalhadores. Entretanto, por maior que seja a eficiência com que trabalhem, a população crescente não poderia, como tantas vezes mostramos, fazer aumentar proporcionalmente a produção; a sobra, depois de alimentados todos, apresentaria uma proporção cada vez menor em relação à produção total e em relação à população; e pelo fato de o aumento da população continuar a uma razão constante, ao passo que o aumento da produção ocorreria em razão decrescente, com o tempo a sobra seria inteiramente absorvida, a taxação para sustentar os pobres açambarcaria toda a renda do país, tanto os pagantes como os recebedores se confundiriam em uma única massa. Nesse momento, não haveria possibilidade de adiar mais a limitação à população, ou por morte ou pela prudência, senão que ela teria que operar repentinamente e de imediato; com efeito, tudo aquilo que coloca a humanidade em cima de um ninho de formigas ou sobre uma colônia de castores acabou perecendo no meio tempo. Essas consequências têm sido apontadas tantas vezes e com tanta clareza por autores de renome, em escritos conhecidos e acessíveis, que não há mais excusa para serem ignoradas por pessoas instruídas. É duplo descrédito para qualquer pessoa que se apresente como professor para instruir o público ignorar essas considerações, passá-las em silêncio e discutir ou fazer declarações sobre salários e leis referentes aos pobres, não como se esses argumentos pudessem ser refutados, mas como se eles não existissem. Cada qual tem direito a viver. Supô-lo-emos como um dado pacífico. Mas ninguém tem o direito de colocar criaturas no mundo para serem sustentadas por outros. Todo aquele que tenciona sustentar o primeiro desses dois direitos, tem que abdicar de qualquer pretensão ao segundo deles. Se uma pessoa não tem sequer condições de sustentar-se a não ser que outros o ajudem, esses outros têm o direito de dizer que também não aceitam sustentar qualquer filho que este tenha a possibilidade física de colocar no mundo. No entanto, há abundância de autores e oradores públicos, incluindo muitos dos que mais alardeiam sentimentos elevados, cujos conceitos sobre a vida são tão animalescos, que acham crueldade impedir indigentes de criarem indigentes hereditários no próprio asilo de desamparados. Um dia a posteridade perguntará com espanto que espécie de pessoas poderiam ser estas, entre as quais tais pregadores conseguiram encontrar adeptos. O Estado teria a possibilidade de garantir emprego, com bons salários, para todos os que nascem. Mas se o fizer, ele é obrigado, para sua própria proteção, e em função de cada finalidade para a qual o Governo existe, cuidar que nenhuma pessoa nasça sem seu consentimento. Se eliminarmos as motivações comuns e espontâneas para o autocontrole, temos que criar outras. Seriam então indispensáveis restrições ao casamento, no mínimo equivalentes àquelas que existem [1848] em alguns dos Estados da Alemanha, ou então penalidades severas para aqueles que têm filhos sem serem capazes de sustentá-los. A sociedade pode alimentar os necessitados, se colocar a multiplicação deles sob seu controle, ou então (se for destituída de todo sentimento moral em relação à infeliz progênie) pode deixar esses filhos à discrição dos pais, abandonando os necessitados a seus próprios cuidados. O que não pode, com impunidade, é encarregar-se de alimentar os necessitados, deixando-lhes a liberdade de se multiplicarem à vontade. Dar em profusão ao povo, sob o nome de caridade ou de emprego, sem colocá-lo sob influências tais que sobre ele ajam poderosamente motivos prudenciais, equivale a dilapidar os recursos destinados a beneficiar a humanidade, sem atingir o objetivo. Deixe-se a população em uma situação tal que sua condição dependa manifestamente de seu número, e se poderá auferir o maior benefício permanente de qualquer sacrifício feito para melhorar o bem-estar físico da geração presente, e para dessa forma elevar os hábitos dos filhos dela. Ao contrário, faça-se com que os salários da população não dependam mais deles mesmos, garanta-se-lhes, por lei ou pelo sentimento da comunidade, um determinado pagamento, e se verá que nenhum conforto que se lhes possa dar conseguirá fazer com que eles ou seus descendentes vejam em seu próprio autocontrole o meio adequado de conservá-los naquela condição. A única coisa que se conseguirá será fazê-los reclamar com indignação que se continue a dar-lhes garantia para o seu sustento e para poderem multiplicar plenamente a sua posteridade. Com base nesses fundamentos, alguns autores têm condenado inteiramente a legislação inglesa sobre os pobres, bem como qualquer sistema de amparo para os que têm capacidade de trabalhar, ao menos se essas medidas não vierem acompanhadas de precauções legais sistemáticas para impedir a superpopulação. A famosa lei do Decreto 43 de Elizabeth cuidou, por parte do Estado, de prover trabalho e salário para todos os que fossem capazes de trabalhar e fossem necessitados; há pouca dúvida quanto a um fato: se o intento dessa lei tivesse sido plenamente cumprido, e os administradores da ajuda aos pobres não tivessem adotado nenhum meio para neutralizar as tendências naturais da lei, a essa altura a taxa destinada aos pobres teria absorvido toda a produção líquida da terra e do trabalho do país. Não causa surpresa, portanto, que o Sr. Malthus e outros tenham de início concluído contra quaisquer leis beneficiando os pobres. Teria sido necessária muita experiência e atento exame de modalidades diferentes de administrar as leis dos pobres, para garantir que a admissão de um direito absoluto de ser sustentado à custa de outras pessoas poderia existir por lei e na realidade, sem fatalmente afrouxar as molas motoras do trabalho e do controle populacional pela prudência. Isso, porém, foi plenamente assegurado pelas investigações dos membros primitivos da Comissão para a lei dos pobres. Ainda que sejam injustamente acusados de serem hostis ao princípio do amparo legal aos necessitados, foram eles os primeiros que provaram plenamente a compatibilidade de qualquer lei de defesa dos pobres, que reconhecia o direito ao amparo, com os interesses permanentes da classe trabalhadora e da posteridade. Mediante uma coleta de fatos, experimentalmente verificados em paróquias espalhadas pela Inglaterra, mostrou-se que a garantia de sustento poderia ser isentada de seus efeitos danosos para o espírito e os hábitos da população, se o amparo, amplo com respeito ao indispensável para a subsistência, fosse acompanhado de condições de que não gostassem, consistentes em algumas limitações à sua liberdade e na privação de alguns privilégios. Sob essa condição, pode-se considerar irrevogavelmente firme que não há necessidade de abandonar ao acaso o destino de nenhum membro da comunidade; que a sociedade pode e, portanto, deve garantir todo indivíduo que lhe pertence contra a necessidade extrema; que a condição, mesmo daqueles que não podem prover a seu próprio sustento, não precisa ser uma condição de sofrimento físico, ou o medo dele, mas somente a de uma limitação de privilégios e de um rigor disciplinar reforçado. Isso seguramente representa um ganho para a humanidade — ganho importante em si mesmo, e mais ainda como passo para algo que vai além; e o senso de humanidade não tem inimigos piores do que aqueles que, conscientemente ou sem sabê-lo, empregaram suas forças para difundir ódio contra essa lei, ou contra os princípios que lhe deram origem. § 3. Depois das tentativas no sentido de regular os salários e de assegurar artificialmente que todos os que estiverem dispostos a trabalhar recebam uma remuneração adequada por seu trabalho, cabe-nos considerar outra categoria de soluções populares, que não professam interferir na liberdade de contrato, que deixam os salários serem fixados pela concorrência do mercado, mas, quando estes são considerados insuficientes, se empenham com algum recurso subsidiário a compensar os trabalhadores por essa insuficiência. Dessa natureza foi o meio a que se recorreu, por parte de autoridades paroquiais, durante trinta ou quarenta anos antes de 1834, geralmente conhecido sob o nome de sistema de pensões. Foi ele introduzido pela primeira vez quando, devido a uma sucessão de estações más, e consequentemente de altos preços da alimentação, os salários do trabalho se haviam tornado insuficientes para assegurar às famílias dos trabalhadores agrícolas o nível de sustento ao qual estavam habituados. Sentimentos de humanidade, aliados à ideia então inculcada em altos escalões de que não se devia permitir que a população sofresse por haver enriquecido seu país com uma multidão de habitantes, induziram os magistrados dos direitos rurais a começarem a dar amparo paroquial a pessoas que já tinham emprego particular; e uma vez que a prática se havia consolidado, o interesse imediato dos arrendatários, aos quais o sistema permitia descarregar parte do sustento de seus trabalhadores sobre outros habitantes da paróquia, levou a uma grande e rápida expansão desse uso. Sendo o princípio desse esquema declaradamente o de adaptar os recursos de cada família às suas necessidades, era uma consequência que se desse mais aos casados do que aos solteiros, e mais àqueles que tinham família numerosa do que aos que não a tinham: na realidade, geralmente se dava uma pensão para cada filho. Todavia, um encorajamento tão direto e positivo à população não é inseparável do esquema: a pensão em forma de ajuda salarial poderia ser um valor fixo, dado em montante igual a todos os trabalhadores; sendo esta a forma menos passível de objeção que o sistema pode assumir, dar-lhe-emos o benefício da suposição. É óbvio que isso não passa de um outro modo de fixar um mínimo salarial, que não difere da modalidade direta senão pelo fato de permitir ao empregador comprar a mão-de-obra a seu preço de mercado, sendo a diferença compensada ao trabalhador a partir de um fundo público. O primeiro tipo de garantia está sujeito a todas as objeções que foram feitas contra o segundo. Promete aos trabalhadores que todos terão um certo montante de salário, por mais numerosos que possam ser, e por isso elimina tanto os obstáculos positivos como os prudenciais a um aumento ilimitado da população. Mas além das objeções comuns a todas as tentativas de regular os salários sem regular a população, o sistema de pensões apresenta um absurdo que lhe é peculiar: ele inevitavelmente tira dos salários, com uma mão, aquilo que lhes acrescenta com a outra. Existe uma taxa salarial, seja a mais baixa com a qual a população pode viver, seja a mais baixa em que ela consentirá viver. Suponhamos que essa taxa mínima seja de 7 xelins por semana. Chocadas com a insignificância desse salário, as autoridades paroquiais caridosamente a corrigem e completam para 10. Mas os trabalhadores estão habituados com 7, e embora gostassem de ganhar mais, viverão com 7 (como prova a realidade), antes de coibirem o instinto de multiplicação. Seus hábitos não mudarão para melhor, caso a paróquia lhes complementar o salário. Recebendo 3 xelins adicionais da paróquia, não passarão melhor do que antes, e ainda com o risco de aumentarem a família suficientemente para fazer o salário baixar para 4 xelins. Com efeito, multiplicar-se-ão dessa maneira; ou talvez, sem esperar por um aumento da população, há número suficiente de trabalhadores desempregados no asilo para produzir esse efeito de imediato. É sabido que o sistema de pensões teve na prática os efeitos descritos, e que sob sua influência os salários baixaram a uma taxa inferior a qualquer taxa conhecida anteriormente na Inglaterra. Durante o século passado, sob uma administração um tanto rígida das leis dos pobres, a população aumentou lentamente e os salários agrícolas estavam bem acima do ponto de inanição. Sob o sistema de pensões a população cresceu com tanta rapidez, e os salários baixaram tanto, que com o salário e a pensão juntos, as famílias passavam pior do que antes, quando só tinham o salário. Quando o trabalhador depende exclusivamente do salário, existe um mínimo virtual. Se os salários caírem abaixo da taxa mínima que possibilite manter elevada a população, ao menos a despovoação os faz retornar àquela taxa mínima. Entretanto, se a deficiência for compensada por uma contribuição forçada por parte de todos os que têm algo a dar, os salários podem cair abaixo do ponto de inanição — podem cair quase a zero. Esse sistema deplorável, pior do que qualquer outra forma de abuso de assistência aos pobres já inventada, na medida em que empobrece não somente a parcela desempregada da população, mas a população toda, recebeu um duro xeque com a Lei dos Pobres de 1834; gostaria que se pudesse dizer que não há sinais de que tal sistema seja ressuscitado. § 4. Embora essa modalidade seja geralmente condenada, há outro tipo de amparo em forma de salário, que ainda é bem popular: uma modalidade bem preferível, do ponto de vista moral e social, à pensão paroquial, mas que tende, como se pode temer, a um resultado econômico muito semelhante: refiro-me ao tão enaltecido sistema de lotes. Também aqui trata-se de uma invenção para compensar o trabalhador pela insuficiência de seu salário, dando-lhe algo mais para complementá-lo; mas, em vez de esta compensação vir da taxa destinada aos pobres, dá-se ao próprio trabalhador a possibilidade de ele mesmo criar a compensação, arrendando um pequeno pedaço de terra, o qual cultiva a pá, à guisa de horta, produzindo batatas e outros legumes para o consumo caseiro, talvez com alguma quantidade adicional para vender. Se arrendar o chão já adubado, às vezes paga pelo terreno uma taxa que ascende a 8 libras por acre; entretanto, sendo gratuito seu próprio trabalho e o de sua família, ele tem condições de ganhar várias libras com ele, mesmo pagando uma renda tão alta. Os defensores do sistema insistem em que o lote deve ser uma forma de complementação salarial, e não um substitutivo do salário, e que ele não deve ser tal que um trabalhador possa viver dele, mas seja apenas suficiente para ocupar suas horas e dias vagos com uma ocupação agrícola razoavelmente regular, com a ajuda de sua mulher e seus filhos. Costumam limitar a extensão de cada lote a 1/4 de acre, ou a algo entre 1/4 e 2/4 de acre. Se o lote passar disso, sem ser suficiente para ocupar inteiramente o trabalhador, dizem que isso fará surgir um operário inapto e incerto para ser assalariado; se o lote for suficiente para tirá-lo inteiramente da categoria dos trabalhadores assalariados e para que o lote seja sua única fonte de subsistência, o trabalhador se transformará em um cottier irlandês — e efetivamente, com as rendas exorbitantes que se têm cobrado, há algum fundamento para essa suposição. Mas em suas precauções contra o sistema de cottier, essas pessoas bem-intencionadas não se dão conta de que, se o sistema que defendem não é um sistema de cottier, ele é, no essencial, nem mais nem menos do que um sistema de conacre. Sem dúvida há uma diferença substancial entre complementar salários insuficientes com um fundo levantado por tributação, e fazer a mesma coisa com meios que representam um acréscimo evidente à produção bruta do país. Também existe uma diferença entre ajudar um trabalhador por meio de seu próprio trabalho, e ajudá-lo em forma de subsídio, de um modo que tende a deixá-lo despreocupado e ocioso. Sob esses dois prismas, o sistema de lotes tem uma vantagem incontestável sobre as pensões paroquiais. Mas quanto ao seu efeito sobre os salários e a população, não vejo razão por que se deva dizer que os dois sistemas difiram essencialmente. Todos os subsídios em forma de complementação salarial colocam o trabalhador em condições de passar com uma remuneração inferior, e por isso, em última análise, fazem baixar o preço do trabalho no mesmo montante, a menos que se introduza uma mudança nas ideias e exigências da classe trabalhadora, uma alteração no valor relativo que ela atribui à satisfação de seus instintos e ao aumento de seus confortos e dos de sua família. Não me parece poder-se esperar que o sistema de lotes produza alguma mudança desse tipo no caráter dos trabalhadores. Dizem-nos às vezes que a posse de terra faz com que o trabalhador seja previdente. Efetivamente, a propriedade de terra tem esse efeito — ou melhor, tem-no aquilo que equivale a propriedade, a ocupação de terra em condições fixas e com título permanente. Mas nunca se constatou que o simples arrendamento de ano para ano produza tal efeito. Será que a posse de terra fez com que o irlandês fosse previdente? É verdade que abundam testemunhos — e não pretendo desacreditá-los — sobre a mudança benéfica acarretada na conduta e na condição dos trabalhadores, por receberem lotes. Tais efeitos podem ser esperados quando os que os ocupam são em número reduzido, uma classe privilegiada que tem um status acima do nível comum, que então não gostariam de perder. Além disso, sem dúvida, quase sempre constituem originalmente uma categoria selecionada, composta dos espécimes mais favoráveis da população trabalhadora — o que, porém, acarreta o seguinte inconveniente: as pessoas a quem o sistema facilita casarem e terem filhos são precisamente aquelas que de qualquer forma seriam as que mais provavelmente praticariam a limitação prudencial. No que tange a afetar a condição geral da classe trabalhadora, parece-me que o esquema ou é de valor irrelevante, ou é até prejudicial. Se somente uns poucos trabalhadores têm lotes, por natureza são aqueles que poderiam passar muito bem sem eles, e a classe como tal nada sai ganhando; se o sistema fosse generalizado, e quase cada trabalhador tivesse um lote, creio que o efeito seria mais ou menos o mesmo que seria se cada ou quase cada trabalhador tivesse uma pensão para complementar seu salário. Penso não haver dúvida de que, se no final do século passado se tivesse adotado na Inglaterra, de modo geral, o sistema de lotes em vez do sistema de pensões, também ele teria igualmente eliminado as limitações práticas à população que na época existiam realmente; a população teria disparado exatamente da mesma forma como na realidade disparou; e, em vinte anos, o salário mais o lote não teria representado mais do que o antigo salário sem qualquer lote, da mesma forma como aconteceu com o salário mais a pensão. A única diferença a favor dos lotes teria consistido no fato de que os lotes fazem as pessoas produzirem sua própria contribuição para a assistência ao pobre. Ao mesmo tempo estou inteiramente disposto a admitir que, em algumas circunstâncias, a posse de terra por uma renda justa, mesmo sem ser proprietário, por parte da generalidade dos trabalhadores assalariados, opera como uma causa de salários altos, e não de salários baixos. Isso ocorre, porém, quando sua terra os torna independentes do mercado de mão-de-obra, na extensão dos gêneros efetivamente necessários para viverem. Existe uma diferença enorme entre a situação de pessoas que vivem de salários, tendo terra como um recurso extra, e pessoas que, em caso de necessidade, podem subsistir totalmente de sua terra, e só trabalham por salário para complementar seu conforto. Os salários têm probabilidade de ser altos onde ninguém é obrigado por necessidade a vender seu trabalho. “Pessoas que têm em casa algum tipo de propriedade à qual possam aplicar seu trabalho não venderão seu trabalho por salários que não lhes possibilitem dieta melhor que batatas e milho, embora, poupando para si mesmas, possivelmente vivam muito de batatas e milho. Ao viajar pelo Continente europeu, muitas vezes surpreendemo-nos ao ouvir falar de uma taxa de salário diário muito alta, levando-se em conta a abundância e o baixo preço dos alimentos. É a ausência da necessidade e da propensão para assumir trabalho que fazem com que seja escassa a mão-de-obra diarista, e, levando-se em conta o preço dos gêneros alimentícios, cara, em muitas partes do continente, onde a propriedade de terra está amplamente difundida entre a população”. Há no Continente europeu regiões em que, mesmo entre os habitantes das cidades, dificilmente há um que pareça depender exclusivamente de seu emprego notório; somente isso pode explicar o alto preço que cobram pelos seus serviços, e a pouca preocupação que mostram por estar empregados. Entretanto, o efeito seria bem diferente se sua terra ou outros recursos lhes dessem apenas uma fração do que necessitam para subsistir, deixando-os na necessidade inevitável de vender seu serviço por salários em um mercado saturado. Sua terra nesse caso lhes daria apenas condições de subsistir com salários mais baixos e de levar a sua multiplicação apenas até aquele ponto em que, se a multiplicação aumentasse, atingiriam o ponto abaixo do qual não poderiam descer ou na realidade não desceriam. Quanto ao juízo por mim emitido no tocante ao efeito dos lotes, não vejo nenhum argumento que se lhe possa opor, a não ser o empregado pelo Sr. Thornton, do qual discordo nesse particular. Sua defesa dos lotes baseia-se na teoria geral de que somente os muito pobres se multiplicam sem atenderem às consequências, e que, se houvesse possibilidade de melhorar muito a condição da geração atual — o que ele acredita poder-se fazer com o sistema de lotes —, os sucessores desta cresceriam com um padrão mais alto de exigências e não criariam família antes de poderem dar-lhe tanto conforto quanto aquele no qual eles mesmos foram criados. Concordo com esse argumento até o ponto em que prova que uma melhoria repentina e muito grande na condição dos pobres sempre tem uma chance de tornar-se permanente, se fizermos com que ela tenha efeitos nos hábitos de vida dos trabalhadores. Temos um exemplo disso no que aconteceu ao tempo da Revolução Francesa. Mas não consigo pensar que o acréscimo de 1/4 de acre, ou mesmo de 1/2 acre à casinha de cada trabalhador, mesmo que ele pague uma renda insignificante, haveria (depois da queda de salários, que seria necessária para absorver a já existente massa de mão-de-obra indigente) de fazer uma diferença tão grande nos confortos de uma família durante uma geração futura, suficiente para criar desde a infância uma população trabalhadora com um padrão permanente realmente mais elevado de exigências e hábitos. Uma porção tão pequena de terra só poderia transformar-se em um benefício permanente se houvesse estímulo para adquirir, com trabalho e poupança próprios, os recursos para comprá-la — medida que, caso se fizesse amplo uso dela, representaria uma espécie de educação para a previdência e a economia para toda a classe trabalhadora, cujos efeitos possivelmente não cessariam com a ocasião. Nesse caso, porém, o benefício adviria, não daquilo que foi dado aos trabalhadores, mas daquilo que foram estimulados a adquirir. Nenhuma solução para salários baixos tem a menor chance de ser eficaz, se não operar sobre e através do espírito e dos hábitos da população. Enquanto estes não forem afetados, qualquer invenção, mesmo que tenha sucesso para melhorar temporariamente a condição dos muito pobres, não faria outra coisa senão afrouxar as rédeas que anteriormente freavam o crescimento populacional, e portanto só poderia continuar a produzir seu efeito se, com o chicote e a espora dos tributos, o capital fosse obrigado a acompanhar esse processo em um passo igualmente acelerado. Todavia, esse processo não teria possibilidade de continuar por muito tempo, e no momento em que parasse, deixaria o país com um número maior da classe mais pobre, e uma percentagem menor de tudo, exceto dos mais pobres, ou, então, talvez nem mesmo estes sobrariam se o processo se prolongasse por tempo suficiente. Com efeito, “é a esse ponto que chegarão necessariamente, ao final”, todas as estruturas sociais que suprimem as restrições naturais à população sem colocar outras em lugar delas. CAPÍTULO XIII Ulteriores Considerações Sobre as Soluções para Salários Baixos § 1. Que meios então se hão de empregar para combater a pobreza? Como remediar o mal dos salários baixos? Se os meios costumeiramente recomendados para isso não são adequados, não se pode excogitar outros? O problema não comporta solução? A Economia Política não pode fazer nada a não ser objetar a tudo e demonstrar que nada se pode fazer? Se assim fora, a Economia Política poderia ter uma tarefa necessária, mas sua missão seria lamentável e não mereceria reconhecimento. Se o grosso da humanidade sempre tiver que permanecer na situação atual, escravos para trabalhar naquilo em que não têm nenhum interesse engajado, e, portanto, não sentem nenhum interesse — afanando-se desde cedo até bem adentro da noite simplesmente para ganharem o sustento, e com todas as deficiências intelectuais e morais que isso implica, sem recursos de espírito ou de sentimentos, privados de instrução, por não poderem ser mais bem instruídos do que são alimentados, egoístas, porque todos seus pensamentos provêm de si mesmos, destituídos de interesses ou sentimentos como cidadãos e membros da sociedade, e com um sentimento de injustiça bulindo em sua mente, tanto pelo que não têm como pelo que os outros têm, não sei o que poderia haver que pudesse fazer qualquer pessoa dotada de razão preocupar-se com os destinos da humanidade. Não haveria para ninguém outra sabedoria senão extrair da vida, com indiferença epicurista, tanto de satisfação pessoal para si e para aqueles com quem compartilha seus sentimentos, quanto puder conseguir sem lesar ninguém, e deixar que os desdenhados conduzam a azáfama da assim chamada vida civilizada. Mas não há motivos para tal visão das coisas humanas. A pobreza, como a maioria dos males sociais, existe porque os homens seguem seus instintos animalescos sem a devida consideração. Acontece que a sociedade é possível, precisamente porque o homem não é necessariamente um bruto. A civilização, em cada um de seus aspectos, é uma luta contra os instintos animais. Sobre alguns, mesmo dentre os mais fortes, a civilização se mostrou capaz de adquirir controle abundante. Ela diminuiu tanto a naturalidade humana, que de muitas de suas inclinações mais naturais dificilmente restou algum vestígio ou lembrança. Se a civilização não conseguiu dominar o instinto da população tanto quanto é necessário, devemos lembrar que ela nunca o tentou com seriedade. Os esforços que tem feito têm atuado mais na direção contrária. A religião, a moral e os estadistas rivalizavam entre si para estimular o casamento, bem como a multiplicação da espécie no casamento. Quanto à religião, ainda hoje ela continua a encorajá-lo. O clero da Igreja católica romana (de outros cleros é supérfluo falar, pois nenhum outro tem uma influência considerável sobre as classes mais pobres) em toda parte acredita ser seu dever fomentar o casamento, a fim de evitar a fornicação. Em muitas inteligências continua a existir um forte preconceito religioso contra a doutrina verdadeira. Os ricos, desde que as consequências não atinjam a si mesmos, pensam contrariar à sabedoria da Providência supor que a miséria pode resultar da operação de uma propensão natural; os pobres pensam que “Deus sempre dá o frio conforme o cobertor”. Com base na linguagem das duas classes, ninguém acreditaria que o homem tenha alguma voz ou opção nesse assunto. Tal é a confusão de ideias em toda essa matéria, devida, em grande parte, à aura de mistério em que ela é envolvida, por uma delicadeza espúria que prefere que o certo e o errado sejam medidos erroneamente e confundidos em um dos assuntos de mais importância para o bem-estar humano, antes de deixar que se fale do tema e sobre ele se discuta com liberdade. As pessoas têm pouca consciência do custo que esse escrúpulo no falar acarreta para a humanidade. Os males da sociedade, tanto quanto as doenças corporais, não podem ser prevenidos ou curados se deles não se falar em linguagem aberta. Toda a experiência mostra que o grosso da humanidade nunca julga sobre questões morais por si mesma, nunca se convence que alguma coisa está certa ou errada se antes alguém não lho disse muitas vezes; e quem lhe diz que a humanidade tem algum dever na matéria em pauta, mesmo enquanto ficarem dentro dos limites do matrimônio? Quem recebe a mínima condenação, ou melhor, quem não encontra compreensão e benevolência, por tudo o que de mal pode ter causado a si mesmo e àqueles que dele dependem, com esse tipo de incontinência? Enquanto um homem intemperante no beber é desaprovado e desprezado por todos os que professam ter moral, um dos motivos principais de que se faz uso em apelos à benevolência é dizer que o requerente tem uma família numerosa e não tem condições de mantê-la. (Pouco se pode esperar melhorar na moral enquanto a procriação de famílias numerosas for encarada com os mesmos sentimentos que a embriaguez ou qualquer outro excesso físico. No entanto, enquanto a aristocracia e o clero forem os primeiros a dar o exemplo desse gênero de incontinência, que se pode esperar dos pobres?) Não se pode estranhar que o silêncio nesse grande setor da moral humana produza inconsciência em relação a obrigações morais, quando produz o esquecimento de fatos físicos. A maioria das pessoas está disposta a admitir que é possível adiar o casamento e viver em estado solteiro; mas, uma vez que as pessoas estão casadas, neste país nunca parece entrar na cabeça de ninguém a ideia de que as próprias pessoas têm condições de controlar se terão ou não uma família, ou qual o número de filhos que terão. Imaginar-se-ia que os filhos caíram diretamente do céu sobre as pessoas casadas, sem terem elas participado ativamente no processo, que foi realmente a vontade de Deus — como diz o linguajar comum — e não a própria vontade das pessoas que decidiu o número de seus filhos. Vejamos qual é a opinião de um filósofo do Continente europeu sobre a matéria — um homem dentre os mais benevolentes de seu tempo, e cuja felicidade matrimonial tem sido enaltecida. Afirma Sismond: “Quando não se radicaram preconceitos perigosos, quando não é inculcada em nome da autoridade mais sagrada uma moral contrária aos nossos deveres verdadeiros em relação a outros, e especialmente em relação àqueles que colocamos no mundo, nenhum homem prudente contrai matrimônio antes de estar em uma condição que lhe dê meios de vida assegurados, e nenhum homem casado tem um número de filhos superior àquele que pode criar adequadamente. Com razão o cabeça de uma família pensa que seus filhos podem contentar-se com a condição em que ele mesmo viveu, e seu desejo será que a geração vindoura seja uma imagem exata daquela que a precedeu: que um filho e uma filha, chegados à idade de casamento, substituam seu próprio pai e sua mãe, que os filhos de seus filhos, por sua vez, substituam a ele e sua mulher, que sua filha encontre em outra família o equivalente exato da sorte que caberá em sua própria família à filha de uma outra, e que a renda que bastou para os pais seja suficiente para os filhos”. Em um país em que a riqueza aumenta, seria admissível algum aumento da população, mas isso é uma questão de detalhe, e não de princípio. “Toda vez que se constitui essa família, a justiça e a humanidade exigem que ela se imponha o mesmo controle ao qual se submetem os solteiros. Se considerarmos quão reduzido é, em cada país, o número de filhos naturais, temos que admitir que esse controle é suficientemente eficaz, no global. Em um país em que a população não tem espaço para crescer, ou em que seu progresso tem que ser tão lento a ponto de dificilmente ser perceptível, quando não há vagas para novos empregos, um pai que tem oito filhos deve esperar, ou que seis morrerão na infância, ou que três homens e três mulheres, dentre seus contemporâneos, e, na próxima geração, três dos filhos dele e três de suas filhas permanecerão sem casar por causa dele”. § 2. Os que consideram inútil esperar que as classes trabalhadoras sejam induzidas a praticar um suficiente grau de prudência quanto ao aumento de suas famílias, por terem até agora ficado aquém desse ponto, demonstram uma incapacidade de avaliar os princípios comuns da ação humana. Provavelmente bastaria, para assegurar esse resultado, difundir generalizadamente uma opinião de que isso é desejável. Como princípio moral, tal opinião nunca existiu em país algum; é curioso que ela não exista, como princípio, em países em que, devido à operação espontânea da previdência, a população é eficazmente limitada em termos relativos. O que é praticado como prudência, ainda não é reconhecido como dever; os que falam e escrevem estão na maior parte do lado oposto, mesmo na França, onde um horror sentimental a Malthus é quase tão corrente quanto neste país. Pode-se identificar muitas causas, além da data recente dessa doutrina, que explicam por que ela ainda não se apossou da opinião pública em geral. Sob alguns aspectos, a sua verdade a prejudicou. Podemos permitir-nos duvidar se, exceção feita dos próprios pobres (cujos preconceitos, nessa matéria, não há dificuldade em compreender), já houve algum dia, em qualquer classe da sociedade, um desejo sincero e sério de que os salários sejam altos. Muitos têm desejado que a taxa destinada ao sustento dos pobres seja mantida baixa, mas, feito isso, as pessoas gostam muito que as classes trabalhadoras passem mal. Quase todos os que não são trabalhadores, são empregadores de mão-de-obra, e não se entristecem se puderem comprar essa mercadoria a preço baixo. É um fato que mesmo as Comissões de Tutores, que supostamente são apóstolos oficiais das doutrinas antipopulação, raramente ouvirão com paciência qualquer coisa que seja o que gostam de chamar de malthusianismo. As Comissões de Tutores em distritos rurais constam principalmente de arrendatários, e estes, como se sabe muito bem, em geral não gostam nem do sistema de lotes, por tornarem os trabalhadores “independentes demais”. Da pequena nobreza, que tem contato menos imediato e menos conflito de interesses com os trabalhadores, poder-se-ia esperar coisa melhor, e a pequena nobreza da Inglaterra costuma ser caridosa. Mas as pessoas caridosas têm fraquezas humanas, e, muitas vezes, em seu íntimo, secretamente não sentiriam o mínimo descontentamento se viessem a saber que ninguém precisa da caridade deles; é da boca deles que com mais frequência se ouve a doutrina básica de que Deus decretou que sempre deve haver pobres. Se a isso acrescentarmos que quase toda pessoa que teve em si algum estímulo para trabalhar por um objetivo social, teve também alguma reforma favorita a efetuar, a qual, em sua ideia, seria relegada à sombra em se admitindo esse grande princípio, teve que lutar pela revogação das leis do trigo ou pela redução de impostos, teve que despender pequenas notas, teve que reavivar ou abolir a igreja, teve que depor a aristocracia, e ainda considerar inimigo todo aquele que julgasse haver algo importante afora seu objetivo, dificilmente é de se estranhar que, desde que a doutrina da população foi promulgada pela primeira vez, nove décimos do que se falou sempre foi contra ela, e o décimo restante só pôde ser ouvido de vez em quando, e que até agora essa doutrina ainda não penetrou muito entre aqueles que, como se pode esperar, serão os que a receberão com menos simpatia, a saber, os próprios trabalhadores. Procuremos, porém, imaginar o que aconteceria se entre a classe trabalhadora se generalizasse a ideia de que a concorrência de uma população excessiva é a causa especial de sua pobreza — de sorte que cada trabalhador considerasse (como Sismondi) cada outro trabalhador que tivesse um número de filhos superior ao que as circunstâncias da sociedade permitissem a cada um, como alguém que o prejudica, como alguém que preenche a vaga que ele mesmo teria direito a ocupar. Deve ignorar profundamente a Natureza alguém que supusesse que esse estado de opinião pública não teria um grande efeito sobre a conduta; tal pessoa nunca pode ter considerado quantos, dentre os motivos que induzem o comum dos homens a cuidar até dos próprios interesses, provêm da consideração que se dá à opinião pública — ou seja, da expectativa de não ser estimado ou ser desprezado por não fazê-lo. No caso específico em questão, não é demais afirmar que o entregar-se excessivamente ao instinto sexual se deve tanto ao estímulo da opinião pública quanto à propensão puramente animal, pois em toda parte a opinião pública, especialmente entre as classes sem instrução, tem associado ideias de energia e poder com a força do instinto sexual, e ideia de inferioridade com a moderação ou ausência desse instinto — uma perversão de sentimento causada pelo fato de o instinto sexual ser o meio e o distintivo de um domínio exercido sobre outros seres humanos. Seria grande o efeito, caso se eliminasse esse simples estímulo artificial e convencional; e uma vez que a opinião pública se tiver voltado para uma direção oposta, logo ocorrerá uma revolução nesse setor da conduta humana. Afirma-se muitas vezes que a mais profunda percepção da dependência dos salários em relação à população não influenciará a conduta de um trabalhador, porque não são os filhos que ele mesmo pode ter que hão de produzir algum efeito em fazer baixar, no global, o mercado de mão-de-obra. É verdade, como também é verdade que não é a fuga de um único soldado que faz perder a batalha; consequentemente, não é essa consideração que mantém cada soldado em seu posto; é a felicidade que natural e inevitavelmente advém da conduta de qualquer indivíduo que, se imitada pela maioria, seria fatal, como cada um pode ver. Constata-se que raramente os homens desafiam a opinião geral de sua categoria, a menos que sejam apoiados por um princípio superior ao do respeito à opinião pública ou por algum outro conjunto poderoso da opinião pública. Importa outrossim ter em mente que a opinião em pauta, tão logo se tornasse prevalente, teria poderosas auxiliares na grande maioria das mulheres. Raramente é por opção da esposa que as famílias são excessivamente numerosas; a ela cabe arcar (juntamente com todo o sofrimento físico e no mínimo uma participação completa nas privações) com toda a estafa doméstica insuportável resultante dos excessos. Ser liberada disso seria aplaudido como uma bênção por multidões de mulheres que atualmente nunca se atrevem a fazer valer esse direito, mas que o fariam se fossem apoiadas pelos sentimentos morais da comunidade. Entre as barbáries que a lei e a moral ainda não deixaram de sancionar, a mais repugnante é seguramente a de se considerar que um ser humano tem um direito sobre a pessoa de um outro. Se uma vez se firmasse generalizadamente entre a classe trabalhadora a opinião de que seu bem-estar exige um controle do número de filhos nas famílias, os membros respeitados e de boa conduta do grupo obedeceriam à prescrição, e somente a violariam aqueles que têm o hábito de pouco ligar para as obrigações sociais em geral; e haveria então uma justificativa evidente para converter em uma obrigação legal a obrigação moral de não colocar no mundo filhos que representassem um ônus para a comunidade. Exatamente como em muitos outros casos de progresso da opinião pública, a lei acaba por impor a minorias recalcitrantes obrigações que, para serem úteis, têm que ser gerais, e que, em sentindo-se sua utilidade, uma grande maioria voluntariamente consentiu em assumir. Contudo, não haveria necessidade de sanções legais se as mulheres passassem a ter — como por todas as outras razões têm o mais claro direito de ter — os mesmos direitos de cidadania que os homens. Deixe-se que elas cessem de ser confinadas pelo costume a uma única função física como seu meio de vida de sua fonte de influência, e elas terão, pela primeira vez, uma voz igual à dos homens naquilo que diz respeito a essa função; e dentre todas as melhorias em aguardo para a humanidade, que é hoje possível prever, possivelmente de nenhuma se esperaria fosse tão fecunda como esta, em quase todos os tipos de benefício moral e social. Resta considerar que chance há de crescerem entre as classes trabalhadoras opiniões e sentimentos fundados na lei da dependência dos salários em relação à população, e de que maneira se podem despertar tais opiniões e sentimentos. Antes de considerarmos os motivos que justificam esperança nessa matéria — esperança que, sem dúvida, muitas pessoas estarão prontas a considerar quimérica, antes de refletirem —, observarei que, se não se puder encontrar uma resposta satisfatória a essas duas perguntas, estará irrevogavelmente condenado o sistema de trabalho dominante neste país, considerado por muitos autores o ápice da civilização — a saber, a dependência de toda a classe trabalhadora da comunidade em relação aos salários de mão-de-obra assalariada. A questão que estamos considerando é se a superpopulação e uma condição humilhante para a classe trabalhadora são a consequência inevitável desse estado de coisas. Se um prudente controle da população não for conciliável com o sistema de mão-de-obra assalariada, o sistema como tal será prejudicial, e o grande objetivo da Economia deve ser (por quaisquer estruturas de propriedade e alterações dos modos de aplicar trabalho) colocar a população trabalhadora sob a influência de estímulos mais fortes e mais óbvios para levar a esse tipo de prudência, do que aqueles que pode proporcionar a relação trabalhadores-empregadores. Todavia, essa incompatibilidade não existe. As causas da pobreza não são tão óbvias, à primeira vista, a uma população de trabalhadores assalariados, como o são a uma população de proprietários, ou como seriam para uma comunidade socialista. Mas essas causas de forma alguma são misteriosas. A dependência dos salários em relação ao número de concorrentes a emprego está tão longe de ser difícil de entender ou de ser ininteligível para as classes trabalhadoras, que grandes grupos delas já a reconhecem e costumam pautar seus atos por ela. A convicção é familiar a todos os sindicatos; com efeito, toda associação que tem sucesso em manter altos os salários deve seu êxito a meios excogitados para restringir o número de competidores; todas as profissões qualificadas se empenham em manter baixo o número de seus profissionais, e muitas impõem — ou procuram impor — como condição aos empregadores, que não contratem mais do que um número prescrito de aprendizes. Obviamente, há uma grande diferença entre limitar seu número excluindo outras pessoas e fazer a mesma coisa mediante restrições impostas a si mesmos; de qualquer forma, tanto um como o outro revelam uma percepção clara da relação existente entre a população e a remuneração. Esse princípio é compreendido em sua aplicação a qualquer ocupação, mas não em sua aplicação à massa geral das ocupações. Há várias razões que o explicam: primeiro, a operação de causas é vista com mais facilidade e clareza no campo mais circunscrito e limitado; segundo, os artífices qualificados constituem uma categoria mais inteligente que os trabalhadores manuais comuns; em terceiro e último lugar, eles são os mais previdentes, por serem os que estão em situação melhor e os que mais têm a salvaguardar. No entanto, deve haver esperança de que seja compreendido e reconhecido como uma verdade geral o que é claramente percebido e admitido em casos específicos. Seu reconhecimento, ao menos em teoria, parece uma coisa que deve ocorrer necessária e imediatamente quando a inteligência das classes trabalhadoras se tornar capaz de enxergar racionalmente sua própria condição conjunta. Até agora, a grande maioria dos trabalhadores tem sido incapaz disso, seja pelo despreparo de sua inteligência, seja devido à pobreza, a qual, não lhes deixando nem o medo do pior nem a mínima esperança do melhor, os torna despreocupados pelas consequências de suas ações e destituídos de preocupações pelo futuro. § 3. Se, pois, quisermos alterar os hábitos da população trabalhadora, há necessidade de uma dupla ação, dirigida simultaneamente à sua inteligência e à pobreza em que ela se encontra. A primeira coisa necessária é uma educação nacional eficiente dos filhos da classe trabalhadora; e juntamente com essa medida, requer-se um sistema de providências que extingam (como fez a Revolução na França) a pobreza extrema durante uma geração inteira. Não cabe aqui discutir, nem mesmo da maneira mais genérica, os princípios ou o mecanismo da educação nacional. É de se esperar, porém, que a opinião pública esteja progredindo quanto a isso, e que uma educação consistente apenas em palavras atualmente não seja considerada suficiente, lento como é o nosso progresso no sentido de conseguir oferecer algo de melhor até mesmo às classes às quais a sociedade professa dispensar a melhor educação que consegue enxergar. Sem entrarmos em pontos controversos, podemos afirmar sem escrúpulo que a meta de toda instrução intelectual para a massa da população deve ser cultivar o bom senso, prepará-la para formar um juízo prático sadio sobre as circunstâncias que a cercam. Tudo o que, no setor intelectual, se puder acrescentar a isso, é antes de tudo acessório, ao passo que isso constitui a base sobre a qual deve assentar a educação. Faça-se com que esse objetivo seja reconhecido e mantido como a primeira meta a ser colimada, e pouca dificuldade haverá em decidir o que ensinar ou a forma de ensinar. Uma educação voltada para difundir o bom senso entre o povo, com um conhecimento tal que o qualifique para emitir um juízo sobre as tendências de seus atos, seria um caminho seguro, mesmo sem qualquer inculcação direta, para fazer surgir uma opinião pública que acabasse por desacreditar qualquer tipo de intemperança e imprevidência, e a imprevidência que satura o mercado de mão-de-obra seria rigorosamente condenada como uma infração contra o bem comum. Contudo, embora não se possa duvidar de que bastaria tal estado de opinião pública, uma vez formada, para manter o crescimento da população dentro de limites apropriados, para a formação dessa opinião não bastaria confiar apenas na educação. A educação não é compatível com a pobreza extrema. É impossível ensinar eficientemente a uma população indigente. E é difícil fazer que sintam o valor do conforto aqueles que nunca o conheceram, ou então fazer com que avaliem a miséria de uma subsistência precária aqueles que foram reduzidos a essa condição de tanto viverem da mão à boca. Indivíduos isolados muitas vezes lutam para conseguir uma condição de tranquilidade; mas o máximo que se pode esperar de um povo inteiro é que se mantenha em tal estado; por outro lado, corrigir hábitos e exigências da massa de trabalhadores diaristas não qualificados será difícil e demorado se não se encontrarem meios de levantar a classe inteira e uma condição de conforto razoável, e de mantê-la em tal condição até que cresça uma nova geração. Para lograr essa meta, há dois recursos disponíveis sem causar prejuízo a ninguém, sem nenhuma das possibilidades de dano inerentes à caridade voluntária ou legal, e não somente sem enfraquecer, mas, pelo contrário, reforçando cada incentivo para o trabalho e cada motivação para planejamento previdente. § 4. O primeiro recurso consiste em uma grande medida nacional de colonização. Refiro-me à liberação de dinheiro público, suficiente para remover de imediato, e fixar nas colônias, uma parcela notável da população agrícola jovem. Dando preferência, como propõe o Sr. Wakefield, a casais jovens, ou, quando não for possível consegui-los, a famílias com filhos quase adultos, far-se-ia o gasto visando atingir o objetivo da melhor forma possível, enquanto às colônias se forneceria o montante máximo possível do que a elas faltasse — e aqui houvesse demais — em termos de mão-de-obra presente e futura. Outros têm mostrado — e os fundamentos dessa opinião serão apresentados em uma parte subsequente desta obra — que a colonização em escala poderia ser conduzida de maneira a não custar nada ao país, ou nada que com certeza não tivesse retorno, e que os fundos necessários, mesmo no caso de adiantamento, não seriam tirados do capital empregado em manter mão-de-obra, mas daquela sobra de capital que não consegue aplicação com lucro tal que constitua uma remuneração adequada pela abstenção do dono, e que portanto é enviada ao exterior para investimento, ou então gasta no país em especulações cheias de risco. Aquela porção da renda do país que habitualmente é ineficiente para qualquer propósito que beneficie a classe trabalhadora, suportaria qualquer sangria que pudesse ser necessário se fazer nela para o montante de emigração que se tem aqui em vista. O segundo recurso consistiria em se destinar toda a terra comum — a ser futuramente cultivada — para criar uma classe de pequenos proprietários. Durante bastante tempo tem havido a prática de tirar essas terras do uso público para o simples intuito de aumentar os domínios dos ricos. É tempo de se reter o que sobra dessas terras como uma propriedade sagrada para o benefício dos pobres. O mecanismo para administrá-las já existe, tendo sido criado pela Lei geral sobre a demarcação fundiária. O que eu proporia (embora deva confessar, com pouca esperança de que seja logo adotado) é que, em todos os casos futuros em que se permitir demarcar terra comum, primeiro se venda ou atribua uma porção que seja suficiente para compensar os proprietários por direitos senhoriais ou comuns, e o resto seja dividido em porções de aproximadamente 5 acres, para serem dadas em propriedade absoluta a indivíduos da classe trabalhadora que as arroteassem e as cultivassem com seu próprio trabalho. A preferência deveria ser dada a trabalhadores — e há muitos deles — que tivessem economizado bastante para se poderem sustentar até entrar a primeira safra, ou cujo caráter fosse de molde a induzir alguma pessoa responsável a adiantar-lhes a soma necessária, com base em sua garantia pessoal. As ferramentas, o adubo, e em alguns casos a própria subsistência, poderiam ser fornecidos pela paróquia, ou então pelo Estado; os juros pagos pelo dinheiro adiantado, cobrados à taxa assegurada pelos fundos públicos, seriam depositados como um foro perpétuo, assegurada ao camponês a faculdade de resgatá-lo a qualquer momento, pagando o valor de compra correspondente à renda de um razoável número de anos. Caso se considerasse necessário, a lei poderia decretar a indivisibilidade de tais propriedades pequenas — se bem que, se o plano funcionasse da maneira projetada, não teria nenhum perigo de visão que merecesse objeção. Em caso de falta de testamento válido e na falta de ajuste amigável entre os herdeiros, tais propriedades poderiam ser compradas pelo Governo por seu valor, sendo novamente dadas a algum outro trabalhador que oferecesse garantia de pagar o preço. O desejo de possuir uma dessas pequenas propriedades provavelmente se tornaria, como na Europa continental, um estímulo para que a prudência e a economia penetrassem em toda a população trabalhadora; conseguir-se-ia outrossim realizar aquele grande desideratum existente entre uma população de trabalhadores assalariados: uma classe intermediária entre ela e seus empregadores, proporcionando-lhe a dupla vantagem de um objetivo para suas esperanças e, como se poderia com boas razões esperar, de um exemplo para sua imitação. Contudo, de pouco serviria adotar uma dessas duas medidas de alívio ou as duas, se não fosse em escala tal que permitisse a todos os assalariados que permanecessem no solo conseguirem não somente emprego, mas um grande acréscimo ao salário atual — um acréscimo tal que lhes permitisse viver e criar seus filhos em um grau de conforto e autonomia que até ali não haviam conhecido. Quando o objetivo é criar uma condição permanente de um povo, recursos reduzidos não somente produzem efeitos pequenos, senão que não produzem efeito algum. Se não se conseguir fazer com que o conforto seja tão habitual para uma geração inteira quanto o é atualmente a indigência, nada se conseguirá; meias-medidas fracas apenas servem para dilapidar recursos, que em tal caso seria melhor guardar até que o aprimoramento da opinião pública e da educação faça surgir políticos que não pensem que, simplesmente porque um esquema promete muito, nada mais cabe a eles fazer. [1865] Deixei intatos os parágrafos anteriores, tais como foram escritos, pois permanecem verdadeiros em princípio, ainda que não haja mais urgência em aplicar essas recomendações específicas à situação atual do país. O barateamento extraordinário dos meios de transporte, que representa uma das grandes conquistas científicas desta época, e o conhecimento que agora adquiriram quase todas as classes do povo — ou estão em vias de adquirir — sobre a condição do mercado de trabalho em regiões longínquas do mundo, abriram uma emigração espontânea dessas ilhas para os novos países além do oceano, emigração esta que não tende a diminuir, senão a aumentar, e que, sem qualquer providência nacional de colonização sistemática, se pode demonstrar suficiente para produzir um aumento substancial dos salários na Grã-Bretanha — como já o fez na Irlanda — e para manter esse aumento intacto durante uma ou mais gerações. A emigração, em vez de ser uma válvula de saída ocasional, está-se transformando em uma válvula de saída constante para o excesso de população; esse fato novo da história moderna, aliado ao fluxo de prosperidade ocasionado pelo livre comércio, asseguraram a esse país superpovoado um período temporário para respirar, o qual pode ser aproveitado para efetuar aqueles aperfeiçoamentos morais e intelectuais em todas as classes do povo, incluindo as muito pobres, que tornariam improvável uma recaída na antiga situação de superpopulação. Será esta oportunidade áurea utilizada adequadamente? Isso depende da sabedoria dos nossos conselhos, e tudo o que depende disso é sempre precário em alto grau. As razões para a esperança estão no fato de que não houve nenhuma época em nossa história em que o progresso mental dependeu tão pouco dos Governos e tanto da disposição geral do povo, não houve nenhum tempo em que o espírito de aperfeiçoamento se tenha estendido a tantos setores da vida humana de uma só vez, nenhuma época em que todos os tipos de sugestões tendentes ao bem público em cada setor, desde a área física mais humilde até o mais elevado setor moral ou intelectual, foram ouvidas com tão pouco preconceito e tiveram tanta chance de se tornarem conhecidas e serem levadas em consideração com honestidade. CAPÍTULO XIV As Diferenças Salariais em Profissões Diferentes § 1. Ao tratar dos salários, até agora nos limitamos às causas que operam sobre eles em geral e maciçamente, bem como às leis que regem a remuneração do trabalho comum ou médio, sem referir-nos à existência dos tipos diferentes de trabalho que costumam ser pagos a taxas diferentes, dependendo em certo grau de leis diferentes. Agora levaremos em conta essas diferenças e estudaremos de que maneira afetam ou são afetadas pelas conclusões já assentadas. Um capítulo bem conhecido e muito popular de Adam Smith contém a melhor exposição que se conhece sobre essa parte da matéria. Não que eu considere sua abordagem tão completa e exaustiva quanto às vezes se tem achado, mas, até onde ela chega, sua análise é razoavelmente boa. As diferenças, diz ele, surgem em parte da política seguida na Europa, que em parte nenhuma deixa as coisas andarem com inteira liberdade, em parte decorrem “de certas circunstâncias nas próprias ocupações, que de maneira real ou ao menos na imaginação das pessoas acarretam um pequeno ganho em algumas e contrabalançam um grande ganho em outras”. Estas circunstâncias são, segundo ele: “Primeiramente, o caráter agradável ou desagradável das próprias ocupações: em segundo lugar, a facilidade e o baixo preço, ou, então, a dificuldade e o alto preço que envolve o aprendizado delas: em terceiro lugar, a constância ou inconstância do emprego que oferecem; em quarto lugar, o grau de confiança alto ou baixo que se deve depositar naqueles que as exercem; e, em quinto lugar, a probabilidade ou improbabilidade de ter sucesso nelas”. Smith ilustrou abundantemente vários desses pontos, ainda que seus exemplos por vezes sejam tirados de um contexto que já não existe. “Os salários do trabalho variam de acordo com a facilidade ou a dificuldade, com o caráter limpo ou sujo, ou com o caráter honroso ou desonroso da ocupação. Assim, na maioria dos lugares, considerando-se o ano inteiro, um oficial alfaiate ganha menos do que um oficial tecelão. Seu trabalho é muito mais fácil”. As coisas mudaram muito, desde o tempo de Adam Smith, no que concerne à remuneração do tecelão, e penso que o artífice, cujo trabalho era mais difícil que o do alfaiate, nunca pode ter sido um tecelão comum. “Um oficial tecelão ganha menos do que um oficial ferreiro. Seu trabalho nem sempre é mais fácil, mas é muito mais limpo”. Uma explicação mais provável é que ele requer menos força física. “Um oficial ferreiro, conquanto seja um artífice, raramente ganha em doze horas tanto quanto um mineiro de carvão, um simples operário, ganha em oito. Seu trabalho não é tão sujo, é menos perigoso, executado à luz do dia e acima do solo. O prestígio ou honra perfaz grande parte da remuneração das profissões honrosas. Em termos de ganho pecuniário e levando-se tudo em consideração”, sua recompensa está, na opinião dele, abaixo da média. “A desonra tem o efeito contrário. A profissão de um açougueiro é uma atividade brutal e odiosa, mas na maioria dos lugares é mais rentável do que a maior parte das profissões comuns. A mais detestável de todas as profissões, a do carrasco público, em proporção com a quantidade de trabalho executado, é mais bem paga do que qualquer profissão comum”. Uma das razões que fazem com que os tecelões de teares manuais [1848] se apeguem à sua ocupação a despeito da baixa remuneração que ela hoje proporciona, está, como se diz, em um atrativo especial que vem da liberdade de ação que ela permite ao operário. “Ele pode brincar ou vadiar — diz uma autoridade recente — de acordo com seu sentimento ou inclinação; pode levantar cedo ou tarde, trabalhar com cuidado ou desmazeladamente, conforme quiser, e recuperar a qualquer tempo, trabalhando mais, as horas sacrificadas ao prazer ou à recreação. Dificilmente existe outra condição de qualquer parte de nossa população trabalhadora que tenha a mesma liberdade em relação a controles externos. O operário de fábrica não perde apenas uma parte de seu salário em razão de sua ausência, mas, se esta for frequente, é simplesmente despedido. O pedreiro, o carpinteiro, o pintor, o marceneiro, o canteiro, o operário que trabalha ao ar livre, todos têm suas horas diárias determinadas de trabalho, e a desconsideração das quais levaria ao mesmo resultado”. Consequentemente, “o tecelão permanecerá em seu tear enquanto este permitir a ele garantir sua subsistência, por mais mísera que esta seja; muitos, induzidos temporariamente a abandoná-lo, a ele retornaram quando havia vaga”. "O emprego é muito mais constante" — continua Adam Smith — “em algumas ocupações do que em outras. Na maioria das manufaturas, um oficial pode ter muita certeza de emprego todos os dias do ano em que tiver condições de trabalhar” (as interrupções resultantes do excesso de estoques no mercado, uma suspensão da demanda ou uma crise comercial devem ser esperadas). “Ao contrário, um pedreiro ou assentador de tijolos não tem condição de trabalhar quando faz frio intenso ou tempo úmido, e seu emprego em todas as outras condições de tempo depende das solicitações ocasionais de seus clientes. Em consequência, está sujeito a ficar sem trabalho muitas vezes. Por isso, o que ganha enquanto ocupado, não somente deve sustentá-lo enquanto ocioso, mas também deve dar-lhe alguma compensação por aqueles momentos de ansiedade e abatimento que por vezes deve gerar o fato de refletir sobre a sua situação tão precária. Quando, pois, os ganhos calculados da maior parte dos operários de manufaturas estão mais ou menos em pé de igualdade com os salários diários de trabalhadores comuns, os ganhos de pedreiros e assentadores de tijolos geralmente são 50 ou até 100% superiores a tais salários. No entanto, não há tipo de trabalho qualificado mais fácil de se aprender do que o do pedreiro e do assentador de tijolos. Por isso, os altos salários desses operários não representam tanto a recompensa de sua perícia, mas antes a compensação pela inconstância de seu emprego. “Quando à inconstância do emprego se associa a aspereza, a vileza e o desconforto do trabalho, isso por vezes faz com que o salário do trabalho mais comum suba acima do nível dos artífices mais qualificados. Em Newcastle, um carvoeiro ou mineiro que trabalha por tarefa deve ganhar, no geral, o dobro do salário que é pago pelo trabalho comum e, na Escócia, ele ganha aproximadamente o triplo. Seu salário alto deve-se inteiramente à aspereza, ao desconforto e à vileza do serviço. Na maioria das ocasiões, o emprego pode ser constante se e na medida em que o quiser. Os carregadores de carvão de Londres desempenham uma profissão que, em aspereza, sujeira e desconforto é quase igual à dos mineiros de carvão; em razão da inevitável chegada irregular dos navios de transporte de carvão, o emprego da maioria deles é necessariamente inconstante. Se, portanto, os mineiros de carvão normalmente ganham o dobro ou o triplo do salário pago à mão-de-obra comum, não deve parecer um despropósito que os carregadores de carvão às vezes ganhem o quádruplo ou o quíntuplo desse salário. Na pesquisa feita sobre a sua condição anos atrás, constatou-se que, à taxa de remuneração da época, podiam ganhar em torno de quatro vezes o salário pago ao trabalho comum em Londres. Por mais exorbitante que possam parecer tais ganhos, se fossem mais do que suficientes para compensar todos os fatores desagradáveis da profissão, logo haveria um número tão grande de concorrentes que, em se tratando de uma profissão que não goza de nenhum privilégio especial, rapidamente reduziria tais salários a uma taxa mais baixa." Essas desigualdades de remuneração, que deveriam compensar as circunstâncias desagradáveis de ocupações específicas, sob certas condições seriam a consequência natural de uma concorrência plenamente livre; entre ocupações de nível mais ou menos igual e exercidas, mais ou menos, pelo mesmo tipo de pessoas, não há dúvida de que, em sua maioria, elas na prática existem. Todavia, é uma visão totalmente falsa dos fatos apresentar isso como a relação habitual existente entre profissões agradáveis e desagradáveis. Os trabalhos realmente cansativos e realmente repugnantes, em vez de serem mais bem remunerados do que os outros, quase invariavelmente são os menos bem remunerados de todos e isso pelo fato de serem executados por aqueles que não têm outra alternativa. Seria diferente se o mercado de mão-de-obra em geral estivesse em situação favorável. Se o número de trabalhadores em conjunto, em vez de ultrapassar o número de vagas, ficasse abaixo dele, não se assumiriam trabalhos geralmente desagradáveis a não ser que fossem pagos salários acima do normal. Quando, porém, a oferta de mão-de-obra ultrapassa a procura ao ponto de não se ter sequer certeza de encontrar emprego, e a oferta de emprego, em quaisquer condições, é um favor, o caso é totalmente inverso. Os trabalhadores desejáveis, aqueles que todo mundo está ansioso por conseguir, ainda podem ter uma opção. Os indesejáveis têm que aceitar o que puderem conseguir. Quanto mais revoltante for a ocupação, tanto mais certo é que receberá a remuneração mínima, pois esta cabe aos mais impotentes e rebaixados, àqueles que, devido à pobreza, ou devido à falta de qualificação e instrução, são excluídos de todos os outros empregos. Em parte, por essa causa e, em parte devido aos monopólios naturais e artificiais dos quais adiante falaremos, as desigualdades salariais costumam caminhar em direção oposta à do justo princípio da compensação, erroneamente apresentado por Adam Smith como a lei geral da remuneração de mão-de-obra. A aspereza e o ganho, em vez de diretamente proporcionais, o que seriam se fosse justa a estrutura da sociedade, costumam estar em razão inversa. Um dos pontos mais bem ilustrados por Adam Smith é a da influência exercida sobre a remuneração de uma ocupação, pela incerteza de sucesso nela. Se forem grandes as chances de falhar totalmente, a recompensa, em caso de sucesso, deve ser suficiente para compensar, no cômputo geral, as chances adversas. Mas, de conformidade com outro princípio da natureza humana, de que, se a recompensa vier em forma de alguns grandes prêmios, ela normalmente atrai os concorrentes em número tal que a remuneração média não somente pode reduzir-se a zero, mas inclusive a uma quantidade negativa. O sucesso das loterias mostra que isso é possível, pois a maioria absoluta dos que se aventuram nas loterias necessariamente perdem, do contrário os empresários não poderiam sair ganhando. Adam Smith considera similar o caso de certas profissões. “A probabilidade de uma pessoa determinada ser um dia qualificada para a ocupação para a qual é educada, varia muito conforme as diferentes ocupações. Na maioria das profissões mecânicas, o sucesso é quase certo, mas muito incerto nas profissões liberais. Coloque seu filho como aprendiz de um sapateiro, e haverá pouca dúvida de que aprenderá a fazer um par de sapatos; em contrapartida, ponha-o a estudar Direito, e será no mínimo vinte para um a probabilidade de ele um dia progredir a ponto de ter condições para viver dessa profissão. Em uma loteria perfeitamente honesta, os que ganham os prêmios deveriam ganhar tudo aquilo que os que não acertam perdem. Em uma profissão na qual para os vinte que falham, um tem sucesso, este um deveria ganhar tudo que deveriam ter ganho os vinte malsucedidos. O advogado que aos quarenta anos de idade começa a fazer algum dinheiro com a profissão, deveria receber como retribuição não somente o valor de seu estudo, tão cansativo e dispendioso, como o correspondente de mais de vinte outros que provavelmente nunca têm a possibilidade de ganhar alguma coisa com tal estudo. Por mais exorbitantes que às vezes possam parecer os honorários de conselheiros legais, sua retribuição real nunca se iguala a tanto. Calcule-se, em qualquer lugar específico, o provável ganho anual, e o que é provavelmente gasto anualmente pelos vários trabalhadores de qualquer profissão comum, tais como sapateiros ou tecelões, e se verá que a primeira soma geralmente superará a segunda. Faça-se, porém, o mesmo cálculo com respeito a todos os advogados e estudantes de Direito, nos diferentes tribunais, e se verá que seus ganhos anuais apenas constituem uma pequena porção de sua despesa anual, mesmo que se estimem seus ganhos o mais alto e seus gastos o mais baixo possível”. Dizer se isso é verdade ainda hoje, quando os ganhos dos privilégios são incomparavelmente maiores do que na época de Adam Smith, mas em compensação também os aspirantes malsucedidos existem em número muito maior, cabe aos que dispõem das informações necessárias. Contudo, ao que parece, Adam Smith não levou suficientemente em conta que os prêmios de que ele fala não incluem somente os honorários advocatícios, mas também os emolumentos e as honras aos quais a profissão dá acesso, juntamente com a cobiçada distinção de uma alta posição perante o público. Mesmo onde não há grandes prêmios ou recompensas, o simples atrativo da profissão às vezes é suficiente para fazer com que uma ocupação arriscada fique supersaturada. Isso se verifica “na prontidão, por parte do povo comum, em alistar-se como soldados ou como marinheiros. (...) Os perigos e os grandes riscos de uma vida cheia de aventuras, em vez de desencorajar os jovens, muitas vezes parecem atraí-los. A mãe afetuosa, pertencente às classes mais humildes, tem medo muitas vezes de enviar seu filho à escola de uma cidade portuária marítima, receando que a presença dos navios e a conversa sobre as aventuras dos marinheiros lhe acabem servindo de engodo para abraçar a profissão de marujo. A perspectiva distante de riscos, dos quais podemos esperar livrar-nos pela coragem e pela perícia, não nos é desagradável, e não faz subirem os salários do trabalho em nenhuma ocupação. É diferente com as profissões em que a coragem e a perícia de nada servem. Em ocupações reconhecidamente muito insalubres, os salários são sempre notoriamente altos. A insalubridade é um aspecto particular do caráter desagradável, e o efeito dessa característica sobre os salários deve ser classificado sob esse item geral”. § 2. Os até aqui citados são casos em que a desigualdade de remuneração é necessária para que a profissão seja igualmente atrativa, constituindo exemplos do efeito equalizador da livre concorrência. Os que ora seguem são casos de desigualdade real, casos que derivam de um princípio diferente. “Os salários variam de acordo com o pequeno ou grande grau de confiança que se tem que depositar nos operários. Os salários dos ourives e dos joalheiros são, em toda parte, superiores aos de muitos outros operários, não somente de igual talento, mas até de talento muito superior — isso devido aos metais preciosos que são confiados aos ourives e aos joalheiros. Confiamos nossa saúde ao médico, e às vezes entregamos nossa fortuna, nossa vida e reputação ao advogado ou ao procurador. Não poderíamos com segurança colocar tal confiança em pessoas de condição medíocre ou humilde. Por isso, a recompensa desses profissionais deve ser tal que possa assegurar-lhes na sociedade aquela posição que é exigida por um grau de confiança tão grande”. Nesse caso, a superioridade da remuneração não é consequência da concorrência, mas da ausência dela; não é uma compensação por desvantagens inerentes à profissão, mas uma vantagem extra — uma espécie de preço de monopólio, efeito de um monopólio, não legal, mas comumente denominado de monopólio natural. Se todos os trabalhadores fossem dignos de confiança, não seria necessário pagar mais aos ourives, em razão da confiança depositada neles. Pelo fato de se supor que seja incomum o grau de integridade exigida, os que demonstram tê-lo podem tirar vantagem dessa característica, obtendo uma remuneração mais alta em proporção com sua raridade. Isso dá azo a um conjunto de considerações que Adam Smith, bem como a maioria dos economistas políticos, pouco levaram em conta e, pelo fato de não haver atendido a essa circunstância, Adam Smith apresentou uma exposição altamente imperfeita sobre a grande diferença existente entre a remuneração da mão-de-obra comum e a que cabe às profissões qualificadas. Algumas profissões demandam um tempo muito mais longo que outras para serem aprendidas e um curso muito mais dispendioso; nessa mesma medida, como explica Adam Smith, há uma razão intrínseca para serem mais bem remuneradas. Se um artesão tem que trabalhar vários anos aprendendo seu ofício antes de ganhar alguma coisa, e vários anos mais, antes de se tornar suficientemente perito para as operações mais refinadas da profissão, deve ter uma perspectiva de ganhar no mínimo o suficiente para pagar os salários de todo esse aprendizado, com uma compensação pela demora do pagamento e uma indenização pelas despesas que teve com sua formação. Por conseguinte, seu salário deve proporcionar, além do montante normal, uma anuidade suficiente para cobrir tais somas, mediante a taxa comum de lucro, dentro do número esperado de anos que puder viver e ter condições de trabalhar. Isso, que é necessário para situar as profissões qualificadas, influindo todas as circunstâncias, em mesmo nível de vantagem que as profissões não qualificadas, é a diferença mínima que pode existir por um período qualquer de tempo entre as duas remunerações, pois, do contrário, ninguém aprenderia as profissões qualificadas. E aqui está todo o montante da diferença que os princípios de Adam Smith justificam. Quando a disparidade de remunerações é maior, parece pensar que ela deva ser explicada pelas leis sobre a aprendizagem e pelas normas das corporações, que limitam a admissão em muitas das profissões qualificadas. Todavia, independentemente destes ou de quaisquer outros monopólios artificiais, há um monopólio natural que favorece os trabalhadores qualificados contra os não qualificados, fazendo com que a diferença de remuneração supere, às vezes, em proporção múltipla, o que é apenas suficiente para igualar suas vantagens. Se os trabalhadores não qualificados tivessem condições de competir com os qualificados, dando-se simplesmente ao trabalho de aprender a profissão, a diferença de salários poderia não exceder o normal, o que os compensaria por esse trabalho de aprender, à taxa normal pela qual o trabalho é remunerado. Mas o fato de ser necessário fazer um curso, mesmo que seja o mais barato, ou o fato de o trabalhador ter que manter-se de outras fontes por um período considerável, em toda parte basta para excluir a grande massa de população trabalhadora da possibilidade de tentar uma concorrência desse tipo. Até recentemente, todos os empregos, até mesmo os que exigissem o baixo grau de escolaridade, de saber ler e escrever, só podiam ser ocupados por uma categoria seleta, já que a maioria não tinha oportunidade de aprender a ler e escrever. Em consequência, todas essas profissões eram muitíssimas bem pagas, em confronto com a remuneração comum da mão-de-obra. Desde que ler e escrever passaram ao alcance de todos, caiu em grande parte o preço de monopólio da categoria mais baixa de empregos que exigem instrução, havendo, em consequência, aumentado gradativamente e de maneira incrível a concorrência em torno de tais empregos. No entanto, ainda existe uma disparidade muito maior do que aquela que se justifica com base no princípio da concorrência. Um funcionário administrativo, do qual só se exige o trabalho mecânico de copiar, ainda ganha mais do que aquilo que vale seu serviço simples, se receber o salário de um pedreiro. A aspereza de seu trabalho não é nem sequer a décima parte do que é a do trabalho do pedreiro; o serviço desse funcionário pode ser aprendido com a mesma facilidade que o do pedreiro, e sua condição é menos precária, já que o cargo dele costuma assegurar-lhe um emprego para a vida toda. Por isso, a taxa mais alta de sua remuneração deve em parte ser atribuída a monopólio — já que o baixo grau exigido de instrução nem mesmo hoje é tão difundido, a ponto de aumentar o número de concorrentes —, em parte à influência remanescente de um antigo costume, impondo que os funcionários administrativos mantenham traje e aparência de uma classe mais bem remunerada. Em algumas ocupações manuais, que exigem uma habilidade que só se pode adquirir mediante longa prática, é difícil obter, a qualquer custo, operários em número suficiente, capazes do tipo de trabalho mais delicado; os salários que lhes são pagos são limitados apenas pelo preço que os compradores estão dispostos a pagar pela mercadoria que tais operários produzem. Ocorre isso com alguns operários que trabalham na fabricação de relógios e com aqueles que trabalham na manufatura de instrumentos astronômicos e ópticos. Se os operários qualificados para tais empregos fossem dez vezes mais numerosos, haveria compradores para tudo que pudessem manufaturar — não, certamente, pelos preços atuais, mas pelos mais baixos, que seriam a consequência natural dos salários mais baixos. Considerações similares aplicam-se em grau maior a ocupações que se procura limitar a pessoas de certa posição social, tais como as chamadas profissões liberais, às quais não se permite facilmente a entrada de pessoa de grau social muito baixo — se admitida, não lhe é fácil alcançar sucesso. Com efeito, até agora tem sido tão completa a separação e tão marcada a linha de demarcação entre os diversos graus de atividade, que equivale a uma distinção hereditária de castas; cada emprego isolado é preenchido sobretudo pelos filhos dos que já exercem esse emprego, ou os empregos que na estima social ocupam a mesma graduação, ou são preenchidos pelos filhos de pessoas que, se originalmente eram de posição mais baixa, conseguiram subir pela própria iniciativa. As profissões liberais em geral são supridas pelos filhos desses profissionais ou pelos filhos de classes ociosas; os empregos manuais mais qualificados são preenchidos pelos filhos de artesãos qualificados, ou oriundos da classe de comerciantes que ombreiam com eles; com as categorias mais baixas de ocupações qualificadas acontece coisa similar; por sua vez, os trabalhadores não qualificados, com exceções ocasionais, permanecem de pai a filho em sua condição original. Consequentemente, os salários de cada classe têm sido até agora regulados pelo aumento desta, mais do que pelo aumento da população geral do país. Se as profissões estão supersaturadas, é porque a classe social da qual provêm sobretudo tem aumentado muito em número e porque a maioria dos integrantes dessa classe tem famílias numerosas, educando no mínimo alguns de seus filhos para essas profissões. Se os salários dos artesãos permanecem mais altos que os dos trabalhadores comuns, é porque os artesãos pertencem a uma categoria de pessoas mais prudentes e não se casam tão cedo ou tão irrefletidamente. Todavia, as mudanças de costumes e ideias, que atualmente ocorrem com tanta rapidez, estão acabando com todas essas distinções; os hábitos ou as inaptidões que fixavam as pessoas à sua condição hereditária estão quase desaparecendo; cada classe está exposta, no mínimo, à maior ou à crescente concorrência por parte da classe imediatamente inferior. O desaparecimento generalizado de barreiras convencionais e as maiores facilidades de formação que já estão passando ao alcance de todos — o que futuramente ocorrerá em grau ainda muito maior —, tendem a produzir, entre muitos efeitos excelentes, um que é o inverso destes: fazer baixar o salário da mão-de-obra qualificada. Sem dúvida, a disparidade de remuneração entre os qualificados e os não qualificados é muitíssimo maior do que justificável; mas é desejável que ela seja corrigida mediante aumento dos salários dos não qualificados, jamais baixando os dos qualificados. Se, porém, as outras mudanças ocorrentes na sociedade não forem acompanhadas de maiores limitações à população da parte dos trabalhadores em geral, haverá uma tendência a colocar os graus mais baixos de qualificação dos trabalhadores sob a influência de uma taxa de aumento regulada por um padrão de vida mais baixo que o seu próprio, deteriorando assim a sua condição, sem melhorar a condição da grande massa, uma vez que o estímulo dado à multiplicação da classe mais humilde é suficiente para preencher, sem dificuldade, o espaço adicional ganho por ela e tirado da classe imediatamente superior. § 3. Resta ainda apontar uma circunstância ou modificador, que interfere, até certo ponto, na operação dos princípios até agora enunciados. Embora seja verdade, como norma geral, que os ganhos da mão-de-obra qualificada — sobretudo de qualquer mão-de-obra que requeira formação escolar — são regulados por uma taxa de monopólio devido à impossibilidade de a grande massa popular alcançar esse tipo de educação, também é verdade que a política das nações ou a bondade de algumas pessoas em muito contribuíam anteriormente para neutralização do efeito dessa limitação da concorrência, oferecendo instrução gratuita a uma classe de pessoas muito maior do que o número daqueles que poderiam ter obtido tais vantagens pagando o respectivo preço. Adam Smith apontou os efeitos que essa causa produz no sentido de manter baixa a remuneração de ocupações eruditas ou livrescas em geral, em especial dos integrantes do clero, dos homens de letras, dos professores primários e de outros níveis. A melhor maneira de expor esse item é citar as palavras do próprio autor. “Tem-se considerado tão importante que um número adequado de jovens sejam formados para certas profissões, que por vezes o Estado, às vezes a piedade dos fundadores particulares constituíram muitas pensões, bolsas de estudo, fundações etc., para esse fim, que acabam atraindo para essas profissões muito mais pessoas do que aquelas que, de outra forma, pretenderiam abraçá-las. Em todos os países cristãos, acredito que a formação da maior parte dos integrantes do clero é paga dessa maneira. Muito poucos são os que se formam totalmente às próprias custas. Por isso, a formação longa, cansativa e dispendiosa daqueles que se formam às próprias custas nem sempre lhes proporciona uma recompensa apropriada, pelo fato de a Igreja estar cheia de pessoas que, para conseguirem um emprego, estão dispostas a aceitar remuneração muito inferior àquela à qual esse tipo de educação lhes daria direito; assim sendo, a concorrência dos pobres elimina a recompensa dos ricos. Sem dúvida, seria indecoroso comparar um pároco ou um capelão com um oficial de qualquer profissão comum. No entanto, pode-se considerar que a remuneração de um pároco ou de um capelão é da mesma natureza que o salário de um oficial. Todos os três recebem por seu trabalho de acordo com o contrato que vierem a fazer com seus superiores respectivos. Até depois de meados do século XIV, 5 marcos, contendo tanta prata quanto 10 libras de nossa moeda atual, representavam na Inglaterra a remuneração costumeira de um pároco, como vimos, que é regulada pelos decretos de vários conselhos nacionais diferentes. No mesmo período, declara-se que 4 pence por dia, contendo a mesma quantidade de prata que 1 xelin de nossa moeda atual, representavam o salário de um mestre pedreiro, e 3 pence por dia, iguais a 9 pence de nossa moeda atual, o salário de um oficial pedreiro. Por conseguinte, os salários desses trabalhadores, suposto que estivessem empregados constantemente, eram muito superiores ao do pároco. O salário de um mestre pedreiro, mesmo supondo-se que ficasse sem trabalho durante a terça parte do ano, teria sido plenamente igual ao do pároco. O Estatuto 12 da Rainha Ana, cap. 12, declara: Considerando que, por falta de sustento e estímulo apropriado aos párocos, as paróquias em vários lugares têm sido mal supridas, o bispo tem a faculdade de, por documento escrito de próprio punho e selo, fixar determinado estipêndio ou pensão suficiente, que não ultrapasse 50 libras por ano e não fique abaixo de 20. Atualmente considera-se que 40 libras anuais representam um estipêndio muito bom para um pároco, mas não obstante essa lei do Parlamento, há muitos párocos que recebem menos de 20 libras por ano. Esta última soma não ultrapassa o que muitas vezes ganham os trabalhadores comuns em muitas paróquias do campo. Sempre que a lei tentou regular os salários dos trabalhadores, fê-lo mais para baixá-los do que para elevá-los. No entanto, a lei em muitas ocasiões tentou aumentar o salário dos párocos, e para salvaguardar a dignidade da Igreja, obrigar os reitores das paróquias a pagar-lhes mais do que o mísero sustento que eles mesmos poderiam estar dispostos a aceitar. E nos dois casos a lei parece ter sido igualmente ineficaz e nunca conseguiu elevar o salário dos párocos, nem baixar o dos trabalhadores no grau que pretendia, porque nunca foi capaz de impedir os párocos de aceitarem voluntariamente menos do que o mínimo de lei, devido à indigência de sua situação e da multidão de seus concorrentes, nem de impedir os trabalhadores de receberem mais, em razão da concorrência contrária por parte daqueles que esperavam auferir lucro ou prazer dando-lhes emprego. “Em profissões em que não há benefícios, como no Direito e na Medicina, se uma percentagem igual de pessoas fosse formada a expensas do público, a concorrência logo seria tão grande que faria baixar muitíssimo a sua remuneração pecuniária. Nesse caso poderia não ser compensador para ninguém educar seu filho para alguma dessas duas profissões, à própria custa. Essas duas profissões seriam, então, inteiramente abandonadas àqueles que foram educados com o dinheiro da caridade, sendo que, em razão do alto número desses profissionais e de suas necessidades, no geral estes seriam obrigados a se contentarem com uma remuneração extremamente miserável." "Essa raça impróspera de pessoas comumente chamadas de homens de letras está mais ou menos na mesma situação em que provavelmente estariam os advogadores e os médicos, na suposição acima. Em cada país da Europa, a maior parte deles foi formada para a Igreja, mas por motivos diversos foram impedidos de receber as ordens sagradas. Por isso, geralmente foram formados a expensas do público, e em toda parte seu número é tão grande ao ponto de submeter a remuneração de seu trabalho a uma recompensa muito reduzida." "Antes da invenção da imprensa, a única ocupação na qual um letrado conseguia fazer alguma coisa com seu talento era a de professor público ou particular, ou seja, transmitindo a outras pessoas os conhecimentos curiosos e úteis que ele mesmo havia adquirido; este, aliás, certamente ainda é um emprego mais honroso, mais útil e em geral mais rentável do que o outro, o de escrever para um livreiro, ocupação surgida em virtude da invenção da imprensa. O tempo e o estudo, o gênio, o conhecimento e a aplicação exigidos para qualificar um eminente professor das ciências são, no mínimo, iguais àquilo que é necessário para os maiores profissionais práticos do Direito e da Medicina. No entanto, a remuneração usual do eminente professor não tem proporção alguma com a do advogado ou a do médico — isso porque a profissão do primeiro está apinhada de gente formada para ela a expensas do público, ao passo que nas duas outras há poucos profissionais que não se formaram a próprias expensas. Contudo, a costumeira remuneração dos professores públicos e particulares, por mais baixa que pareça ser, sem dúvida seria menor ainda do que é se não se excluísse do mercado a concorrência desses homens de letras ainda mais indigentes, que escrevem apenas para ganhar o pão. Antes da invenção da imprensa, um erudito e um mendigo parecem ter sido palavras quase sinônimas. Antes daquela época, os diversos reitores das universidades parecem muitas vezes haver concedido a seus eruditos licença de mendigar." § 4. Desde Adam Smith ter escrito isso, a demanda de trabalho literário parece ter aumentado muito, ao passo que em parte nenhuma aumentaram os fundos destinados à formação gratuita; nos países que passaram por revoluções esses fundos diminuíram tanto que hoje se pode atribuir pouco efeito a essas instituições no sentido de manterem baixa a remuneração do trabalho literário. Todavia, um efeito quase equivalente é hoje produzido por uma causa similar — a concorrência de pessoas que, por analogia com outras profissões, podem ser chamadas de amadores. A literária é uma das ocupações nas quais podem obter sucesso as pessoas que empregam maior parte de seu tempo em outras coisas, e a formação necessária para a mesma é a comum a todas as pessoas cultas. Independentemente do dinheiro, no atual contexto mundial são fortes os estímulos para se abraçar essa profissão, por parte de todos os que ambicionam a satisfação de sua vaidade ou dos que desejam lutar por objetivos pessoais ou públicos. Tais motivações atualmente atraem para essa carreira um número grande e crescente de pessoas que não necessitam dos respectivos frutos pecuniários e abraçariam a carreira mesmo que ela não lhes desse nenhuma remuneração. Em nossa própria terra (para citar exemplos conhecidos), o filósofo recente mais influente, e no geral mais eminente (Bentham), o maior economista político (Ricardo), os poetas, tanto o de efêmero renome, quanto o maior de fato (Byron e Shelley) e o escritor mais bem-sucedido de ficção em prosa (Scott), nenhum deles era escritor profissional; apenas dois dos cinco citados (Scott e Byron) teriam conseguido sustentar-se com as obras que escreveram. Em grande parte, quase todos os autores que se dedicam a áreas mais elevadas estão em condições similares. Consequentemente, embora os mais altos prêmios pecuniários para autores bem-sucedidos sejam incomparavelmente superiores ao que eram em qualquer período anterior, apesar disso, com base em qualquer estimativa de suas chances, no atual contexto da concorrência, dificilmente um escritor pode esperar ganhar a vida escrevendo livros, cada vez tornando-se mais difícil também ganhar a vida escrevendo para revistas. Atualmente, a pessoa letrada só pode acreditar que ganhará a subsistência executando os tipos mais incômodos e desagradáveis de atividade literária, e aqueles que não proporcionam nenhum renome pessoal, como ocorre com a maioria ligada a jornais ou periódicos menores. Quanto a estes, a remuneração, em geral, é decididamente alta, porque embora sofrendo a concorrência dos assim chamados “bolsistas pobres” (pessoas que receberam sua formação de eruditos de um fundo público ou privado), estão isentos de concorrência de amadores, já que os que dispõem de outros meios de subsistência raramente se candidatam a tais empregos. Um assunto digno de atenção dos pensadores seria saber se essas considerações não se associam a algum erro básico com referência ao conceito de autoria como profissão, e se qualquer estrutura social dentro da qual os professores da humanidade têm aptidão ou a possibilidade de ser algo permanente é constituída de pessoas que ensinam suas doutrinas em troca de pão. A profissão clerical, como se literária, é muitas vezes abraçada por pessoas que têm autonomia de recursos: fazem-no, seja por zelo religioso, seja por amor à honra ou à utilidade que a religião pode proporcionar-lhes ou por uma chance de altos prêmios que a profissão propicia; é sobretudo por essa razão que hoje os salários dos párocos são tão baixos; efetivamente, tais salários, embora muito aumentados pela influência da opinião pública, ainda são insuficientes como meio único de sustento para quem for obrigado a manter o status que se espera de um clérigo da Igreja oficial. Quando uma ocupação é exercida principalmente por pessoas que auferem a parte principal de sua subsistência de outras fontes, sua remuneração pode ser mais baixa, quase em qualquer medida, do que os salários de trabalho e de igual dureza em outras ocupações. O exemplo principal desse gênero é constituído pelas manufaturas domésticas. Quando fiar e tricotar eram trabalhos executados na cozinha, por todas as famílias que auferiam sua subsistência básica da agricultura, o preço pelo qual vendiam seu produto (que constituía a remuneração de seu trabalho) por vezes era tão baixo, que haveria necessidade de uma grande perfeição de maquinaria para chegar a um mais baixo. O montante da remuneração, no caso, depende sobretudo da hipótese de a quantidade da mercadoria produzida por esse tipo de trabalho ser suficiente para atender a demanda toda. Sendo insuficiente e, por conseguinte, necessário que alguns trabalhadores se dediquem inteiramente a essa ocupação, o preço do artigo deve ser suficiente para pagar esses trabalhadores à taxa normal, bem como, pois, para remunerar tranquilamente os produtores domésticos. Mas se a demanda é tão limitada que a manufatura doméstica é mais do que capaz de atendê-la, é claro que o preço será mantido na taxa mínima à qual as famílias dos camponeses acham valer a pena continuar a produção. Indubitavelmente, é pelo fato de os artesãos suíços não dependerem totalmente de seus teares para subsistência, que Zurique é capaz de manter uma concorrência no mercado europeu, com o capital inglês, verificando-se o mesmo com o combustível e a maquinaria inglesa. (Quatro quintos dos manufatores do cantão de Zurique são pequenos exploradores de terra, realmente proprietários das áreas por eles cultivadas. A manufatura algodoeira ocupa, inteiramente ou em parte, 23 mil pessoas, quase a décima parte da população, sendo que esta consome, por habitante, uma quantidade de algodão maior do que a França e a Inglaterra. Ver o Statistical Account of Zurich anteriormente citado). Isso, quanto à remuneração da ocupação subsidiária; mas para os trabalhadores, pelo fato de terem esse recurso adicional, o efeito com certeza é uma diminuição proporcional dos salários da ocupação principal (a menos que intervenham causas neutralizantes especiais). Os hábitos do povo (como já observamos tantas vezes) em toda parte exigem um padrão de vida específico, e nada mais que isso, como condição sem a qual não constituirão família. Não faz diferença se a renda que os mantém nessa condição vem de uma ou de duas fontes: se houver uma segunda fonte de renda, exigirão menos da primeira e se multiplicam (ao menos este tem sido sempre o caso, até hoje) até um ponto que não lhes resta, com as duas ocupações, mais do que teriam ganho com uma das duas se só tivessem tido esta. Pela mesma razão constata-se que, em paridade com as demais condições, as ocupações de remuneração mais baixa são em geral aquelas nas quais a esposa e os filhos do artesão ajudam no serviço. A renda que os hábitos da classe exigem, abaixo da qual com quase certeza ela se multiplicará, é compensada, nessas ocupações, pelos ganhos de toda a família, ao passo que em outras ocupações a mesma renda tem que ser atingida somente com o trabalho do marido. É até provável que seus ganhos coletivos representem uma quantia inferior à que ganha o marido sozinho em outras ocupações, pois a limitação prudente com referência ao casamento é extraordinariamente fraca quando a única consequência sentida de imediato é uma melhoria da situação, já que os ganhos conjuntos dos dois são mais aplicados na economia doméstica depois do casamento do que antes dele. Por isso, tal é o fato, no caso dos teares manuais. Na maioria dos teares, as mulheres podem ganhar, e ganham efetivamente, tanto quanto os homens, e os filhos se empregam em uma idade muito jovem, mas os ganhos conjuntos de uma família são menores do que em qualquer outro tipo de atividade, e os casamentos ocorrem mais cedo. É de se notar outrossim que há certos setores da tecelagem manual em que os salários estão muito acima da taxa normal na ocupação, setores em que não estão empregadas nem mulheres nem pessoas jovens. Esses fatos foram confirmados oficialmente pelas pesquisas da Handloom Weavers Commission, que apresentou seu relatório em 1841. Daí não se pode deduzir nenhum argumento para a exclusão das mulheres da liberdade de concorrência no mercado de trabalho; pois, mesmo quando não se paga mais pelo trabalho de um casal do que seria pago pelo trabalho só do homem, a vantagem, para uma mulher, de não depender do marido para a sua subsistência, pode ser considerada mais do que um equivalente. Todavia, não se pode considerar desejável, como elemento permanente na condição de uma classe trabalhadora, que a mãe de família (o caso da mulher solteira é totalmente diferente) tenha necessidade de trabalhar para a subsistência, ao menos fora do lugar em que reside. No caso de crianças, que necessariamente são dependentes, a influência de sua concorrência na baixa do mercado de trabalho é elemento importante na questão da limitação de seu trabalho, a fim de se prover melhor a sua educação. § 5. Merece ser examinada a razão pela qual os salários das mulheres são em geral mais baixos, e muito mais baixos que os dos homens. Isso não ocorre em toda parte. Quando homens e mulheres trabalham no mesmo emprego, caso se trate de uma ocupação para a qual os dois têm aptidão igual em termos de força física, nem sempre recebem salário desigual. Nas fábricas muitas vezes as mulheres ganham tanto quanto os homens, e isso também acontece na tecelagem manual, trabalho que, sendo pago por peça, testa com segurança a eficiência de cada um. Quando a eficiência é igual, mas o salário é desigual, a única explicação que se pode dar é o costume, e este, fundado em preconceito, ou na presente estrutura da sociedade, a qual, por fazer de cada mulher (socialmente falando) um apêndice do homem, possibilita aos homens apossar-se sistematicamente da parte do leão em tudo o que pertence aos dois. Todavia, a questão principal se prende às ocupações específicas das mulheres. Segundo acredito, a remuneração destas está sempre muito abaixo da de ocupações que requeiram qualificação igual e igualmente desagradáveis exercidas por homens. Em alguns desses casos, a explicação é evidentemente a que demos: assim, como no caso dos empregados domésticos cujos salários, de modo geral, não são determinados por concorrência, mas excedem em muito o valor de mercado da mão-de-obra e, nesse excesso, como acontece com quase todas as coisas reguladas pelo costume, o sexo masculino obtém de longe a porção maior. Nas ocupações em que os empregadores tiram plena vantagem da concorrência, os baixos salários das mulheres, comparados com os ganhos normais dos homens, são prova de que os empregos estão super ocupados: que, embora seja bem menor o número de mulheres que se sustentam com salários, que o de homens, as ocupações que por lei e por costume são acessíveis a elas são relativamente tão poucas que o campo para emprego para elas se apresenta ainda mais saturado. Deve-se assinalar que, na situação atual, um grau suficiente de saturação pode rebaixar os salários das mulheres a um mínimo muito mais baixo ainda que o dos salários dos homens. Os salários, pelo menos das mulheres solteiras, devem ser iguais ao que custa o sustento delas, mas não precisam ser superiores: o mínimo, no caso delas, é o absolutamente indispensável para o sustento de um ser humano. Ora, o ponto mais baixo ao qual a concorrência mais abundante pode rebaixar de modo permanente os salários de um homem é sempre algo acima disso. Onde a esposa de um trabalhador não contribui, por costume geral, para os ganhos dele, o salário do homem deve ser suficiente, no mínimo, para sustentar a si mesmo, uma mulher e um número adequado de filhos para manter-se a população, pois, se fosse menos, não haveria maneira de manter a população. E, mesmo se a esposa ganhar alguma coisa, os salários somados devem ser suficientes, não somente para os dois se sustentarem, mas também (ao menos por alguns anos) para sustentarem também os seus filhos. O ponto ínfimo dos salários baixos, portanto (a não ser que seja durante alguma crise transitória ou em alguma ocupação em decadência), dificilmente pode ocorrer em alguma ocupação da qual a pessoa empregada tenha que viver, excetuadas as ocupações femininas. § 6. Até aqui, em nossa exposição trabalhamos com a suposição de que a concorrência é livre no que diz respeito à interferência humana, sendo limitada apenas por causas naturais ou pelo efeito não intencionado de circunstâncias sociais de ordem geral. Acontece que a lei ou o costume podem interferir na limitação da concorrência. Se as leis de aprendizagem ou os regulamentos das corporações fizerem com que o acesso a determinada ocupação seja lento, caro ou difícil, os salários daquela ocupação podem ser mantidos muito acima de sua proporção natural com os salários da mão-de-obra comum. Poderiam ser mantidos nesse alto nível sem quaisquer limites definíveis, se não fossem os salários que superam a taxa usual exigirem preços correspondentes, e não fosse o limite para o preço pelo qual até mesmo um número restrito de produtores consegue vender tudo o que produz. Na maioria dos países civilizados as restrições desse tipo, uma vez existentes, foram abolidas ou então mitigadas, não havendo dúvida que desaparecerão em breve totalmente. Em algumas ocupações, porém, em certa medida, as combinações de operários produzem similar efeito. Tais combinações falham sempre em manter os salários em uma taxa artificial, a não ser que simultaneamente também consigam limitar o número de concorrentes. Ocasionalmente conseguem fazê-lo. Em várias ocupações os trabalhadores já conseguiram tornar quase impossível a estranhos serem admitidos, seja como oficiais seja como aprendizes, senão em número limitado e com restrições. Foi dito à Comissão dos Tecelões Manuais que esta é uma das dificuldades que agravam a injusta condição daquela classe rebaixada. Sua própria ocupação está supersaturada e quase arruinada, mas há muitas outras ocupações que não lhes seria difícil aprender; todavia, afirma-se que a isso as combinações de operários dessas outras ocupações colocam um obstáculo até o presente insuperável. Não obstante a maneira cruel de operação do princípio exclusivo dessas combinações nesse caso peculiar, a questão de saber se, no conjunto, elas são úteis ou prejudiciais, deve ser respondida mediante a análise do quadro mais amplo de consequências, no qual se insere um fato como este, sem constituir um dos itens mais importantes. Prescindindo das atrocidades às vezes cometidas por operários sob a forma de abusos ou de intimidação pessoal — que não se podem reprimir com excessiva rigidez —, e considerando que não se melhorasse a condição atual dos hábitos gerais da população, essas combinações parciais, na medida em que conseguem manter o nível dos salários de alguma ocupação (limitando o número dos que conseguem emprego) poderiam ser consideradas como simples formas de defesa ocasionais e locais contra as incursões da superpopulação, fazendo os salários da classe dependerem de sua própria taxa de crescimento, em vez de dependerem da taxa de crescimento de uma classe mais despreocupada e mais imprevidente que ela mesma. O que à primeira vista parece ser a injustiça de excluir o conjunto mais numeroso da partilha dos ganhos de um grupo relativamente pequeno, desaparece ao considerarmos que, ao serem admitidos, só ficariam em situação melhor por pouco tempo; o único efeito permanente que sua admissão haveria de produzir seria o de fazer os outros baixarem para o próprio nível. Em capítulo subsequente desta obra, onde abordaremos as leis sobre a combinação, veremos até que ponto a força dessa consideração é anulada quando surge uma tendência de diminuição da supersaturação nas classes trabalhadoras em geral; veremos que motivos de natureza diferente pode haver para considerar desejável a existência de associações profissionais e não como algo condenável. § 7. Para encerrar esse assunto, devo repetir uma observação já feita, a saber: há tipos de trabalho cujos salários são fixados pelo costume, não pela concorrência; tais são os honorários ou encargos cobrados por profissionais liberais, como os médicos, cirurgiões, advogados e mesmo procuradores. Via de regra, estes não variam, e, se bem que nessas classes a concorrência opere tanto quanto em quaisquer outras, ela opera dividindo o negócio, não diminuindo em geral a taxa à qual a atividade é paga. A causa disso talvez tenha sido a prevalência de uma opinião de que tais pessoas são mais dignas de confiança quando muito bem remuneradas em relação ao serviço que prestam; e isso na medida em que, se o advogado ou o médico oferecesse seus serviços a uma taxa inferior à normal, ele, em vez de adquirir mais clientes, provavelmente perderia os que já tivesse. Por motivos análogos, é usual pagar muito além do preço de mercado pelo trabalho de todas as pessoas nas quais o empregador deseja depositar especialmente sua confiança ou das quais exige algo mais além dos simples serviços. Por exemplo, a maioria das pessoas que têm condições de fazê-lo pagam a seus criados domésticos salários superiores àqueles com os que conseguiriam no mercado o trabalho de pessoas igualmente competentes para o mesmo trabalho. Fazem-no, não apenas por ostentação, mas por motivos mais racionais: porque desejam que os empregados os sirvam com prazer e desejem ardentemente permanecer em seu serviço, ou porque não gostam de regatear muito com pessoas com as quais estão sempre em contato, ou ainda porque não gostam de ter a seu lado e ao alcance constante de suas vistas pessoas de cara feia e de modos habitualmente observados nas pessoas mal remuneradas. Sentimentos similares guiam a mente de pessoas de negócios em relação a seus funcionários e outros empregados. A liberalidade, generosidade e confiança do empregador são fatores que, em qualquer extensão na qual operem, impedem de tirar-se o máximo de vantagem da concorrência; sem dúvida esses motivos poderiam operar — e hoje mesmo operam — em empregadores de mão-de-obra em todos os grandes setores profissionais; aliás, é altamente desejável que operem. Todavia, nunca poderão elevar os salários médios do trabalho além da proporção capital-população. Por pagarem mais a cada pessoa empregada, limitam o poder de dar emprego a muitos; e por excelente que seja seu efeito moral, pouco bem fazem sob o prisma econômico, a menos que a indigência dos excluídos leve indiretamente a um reajuste salarial, através de uma limitação maior do crescimento da população. CAPÍTULO XV Os Lucros § 1. Tendo tratado da parte que o trabalhador tem na produção, passamos agora a abordar a parte que nela tem o dono do capital, ou seja, os lucros do capital, os ganhos da pessoa que adianta o pagamento das despesas da produção — pessoa esta que, com fundos de sua propriedade, paga os salários dos trabalhadores, isto é, sustenta-os durante o trabalho, que oferece as edificações necessárias, os materiais, as ferramentas ou máquinas; a esta pessoa, pelos termos usuais do contrato, pertence o produto, do qual ela pode dispor à vontade. Depois, da reposição do que ela gastou, comumente lhe resta um excedente, que é seu lucro, a renda líquida de seu capital: o montante que pode permitir-se gastar em coisas necessárias ou em prazeres, ou a partir do qual pode aumentar sua riqueza mediante poupança ulterior. Assim como o salário do trabalhador é a remuneração do trabalho, da mesma forma os lucros do capitalista constituem em sentido apropriado a remuneração da abstenção, segundo a expressão bem escolhida do Sr. Senior. Os lucros são o que ele ganha deixando de consumir seu capital para seus próprios interesses, e permitindo que ele seja consumido por trabalhadores produtivos para os interesses deles. Por essa abstenção ele exige uma recompensa. Muitíssimas vezes, em termos de prazer pessoal, ele sairia ganhando esbanjando seu capital, já que este quantitativamente representa mais do que a soma dos lucros que proporcionará durante os anos que ele pode esperar viver. Mas, enquanto o conservar sem redução tem sempre o poder de consumi-lo, se o desejar ou se precisar; pode deixá-lo a outros, ao morrer; e, nesse meio tempo, ele aufere do capital uma renda que ele pode, sem empobrecer, empregar para satisfazer as suas próprias necessidades ou inclinações. Entretanto, dos ganhos que a posse de um capital possibilita a uma pessoa auferir, somente uma parte é de fato um equivalente ao uso do próprio capital, a saber, tanto quanto uma pessoa de recursos estaria disposta a pagar ao tomá-lo emprestado. E isso que, como todos sabem, chamamos de juros, é tudo o que uma pessoa pode ganhar simplesmente abstendo-se do consumo imediato de seu capital e deixando que ele seja utilizado por outros para fins produtivos. A remuneração que se consegue, em qualquer país, pela simples abstenção, é medida pela taxa corrente de juros na base da melhor garantia, isto é, uma garantia que exclui toda chance considerável de perder o principal. O que espera ganhar uma pessoa que supervisiona o emprego de seu próprio capital sempre é mais do que isso, e geralmente é muito mais do que isso. A taxa de lucro supera em muito a taxa de juros. O excedente é em parte a compensação pelo risco assumido. Emprestando a outros seu capital, com base em garantia segura, o risco que corre é pequeno ou nulo. Ao contrário, em se aventurando a um negócio por própria conta, ele sempre expõe seu capital a algum perigo de perda parcial ou total, sendo que em muitos casos esse perigo é muito grande. O capitalista tem que ser compensado por esse risco, do contrário não o correrá. Tem que ser também remunerado por dedicar ao negócio seu tempo e seu trabalho. O controle das operações do empreendimento geralmente pertence à pessoa que fornece a totalidade ou a parcela maior dos fundos que fazem o empreendimento funcionar, pessoa esta que, segundo a estrutura corrente, é a única interessada no resultado, ou então é a pessoa mais interessada (ao menos de maneira direta) neste resultado. Para exercer esse controle com eficiência, se a empresa for grande e complexa, requer-se muita diligência, muitas vezes uma habilidade incomum. Essa diligência e essa habilidade precisam ser remuneradas. Os lucros brutos do capitalismo, os ganhos retornados àqueles que fornecem os fundos para a produção, devem ser suficientes para estas três finalidades. Devem proporcionar um equivalente suficiente pela obtenção, uma indenização pelo risco, e remuneração pelo trabalho e pela habilidade requeridas para a supervisão. Essas diversas compensações podem ser pagas à mesma pessoa ou a pessoas diferentes. O capital, ou uma parte dele, pode ser emprestado, ou seja, pode pertencer a alguém que não assume os riscos ou a preocupação do empreendimento. Nesse caso, o mutuante ou proprietário é a pessoa que pratica a abstenção, sendo ele remunerado por essa abstenção, com os juros que lhe são pagos, enquanto a diferença entre os juros e o lucro bruto remunera a atividade e os riscos do empresário. (É lamentável que essa palavra (undertaker), nessa acepção, não seja familiar ao ouvido inglês. Os economistas políticos franceses gozam de uma grande vantagem em poder falar corretamente dos profits de l’entrepreneur). Por vezes, o capital ou parte dele, é fornecido por um assim chamado sócio comanditário, que compartilha dos riscos da ampliação, mas não do trabalho, e que, em atenção a esses riscos, recebe não somente os simples juros, mas também uma parte estipulada do lucro bruto. Às vezes uma única pessoa fornece o capital e assume o risco, sendo o negócio conduzido exclusivamente em seu nome, ao passo que o trabalho da administração é confiado a outra pessoa contratada para isso com um salário fixo. Entretanto, a administração por empregados assalariados, que não têm outro interesse no empreendimento senão salvaguardar seus salários, é proverbialmente ineficiente, se não agirem sob a inspeção da pessoa mais interessada, quando não sob o controle dela; e a prudência quase sempre recomenda pagar a um administrador, que não for controlado dessa forma, uma remuneração que em parte depende dos lucros, o que virtualmente reduz o caso àquele do sócio comanditário. Ou, finalmente, a mesma pessoa pode possuir o capital e dirigir pessoalmente o empreendimento; caso queira e tenha condições de fazê-lo, pode acrescentar à administração do próprio, o capital que outros queiram confiar-lhe. Contudo, em qualquer uma dessas modalidades ou em todas elas, as mesmas três coisas exigem sua remuneração, devendo esta provir do lucro bruto: a abstenção, o risco e o trabalho. Os três componentes, em que se pode dizer que o lucro se decompõe, podem ser denominados, respectivamente, juros, seguro e salários pela supervisão. § 2. A taxa de lucro mínima que possa existir permanentemente é aquela que é apenas suficiente, no determinado lugar e tempo, para proporcionar um equivalente à abstenção, ao risco e ao trabalho implicados no emprego de capital. Do lucro bruto deve-se primeiro deduzir tanto quanto constituirá um fundo suficiente, em média, para cobrir todas as perdas ocorrentes na aplicação. A seguir, o lucro bruto deve proporcionar ao proprietário do capital um fundo equivalente para levá-lo a abster-se de consumi-lo, que no respectivo momento e lugar seja motivação suficiente para ele continuar a abster-se de consumi-lo. O necessário para a formação desse equivalente depende do valor comparativo empregado na sociedade em questão, tanto no presente como no futuro (para servirmo-nos de uma expressão idêntica à já utilizada); depende da forma do desejo efetivo de acumular poupança. Além disso, depois de cobrir todas as perdas e de remunerar o dono por abster-se de consumir o capital, deve sobrar algo para remunerar o trabalho e a perícia da pessoa que dedica seu tempo ao negócio. Além disso, essa remuneração deve ser suficiente para possibilitar ao menos aos donos dos capitais maiores receberem por seu trabalho — ou para pagar o trabalho de algum administrador — o que para eles ou para o administrador seja um estímulo suficiente para se submeterem a tal trabalho. Se a sobra não passar disso, só haverá emprego produtivo para grandes massas de capital; e se nem sequer a isso chegasse, o capital seria retirado da produção e seria consumido improdutivamente, até que, em virtude de uma consequência indireta de seu montante reduzido — o que explicaremos mais adiante —, a taxa de lucro aumentasse. Tal é, portanto, o lucro mínimo; contudo, esse mínimo varia ao extremo e em alguns tempos e lugares é extremamente baixo, em razão da grande variabilidade de dois de seus três componentes. Que a taxa da remuneração necessária para a abstenção, ou, em outros termos, o desejo efetivo de acumulação difere muito em diferentes épocas da civilização, já ouvimos em capítulo anterior. Há uma diferença ainda maior no elemento que consiste na compensação pelo risco. Não estou aqui falando da diferença, em termos de risco, entre empregos diferentes de capital na mesma sociedade, mas dos graus muito diferentes de segurança da propriedade nas épocas da sociedade. Em lugares onde, como em muitas regiões da Ásia, a propriedade está em perigo constante de espoliação por parte de um Governo tirânico ou por parte de seus oficiais espoliadores e mal contratados; em lugares onde possuir ou ser suspeito de possuir riqueza equivale a ser alvo não somente de saque, mas talvez também de maus tratos pessoais para extorquir a declaração e a entrega de valores escondidos; ou onde, como na Europa da Idade Média, a fraqueza do Governo, mesmo que este não seja propenso a oprimir, deixa seus súditos expostos sem proteção nem indenização à espoliação declarada ou à recusa audaciosa de justos direitos por parte de qualquer indivíduo poderoso — em tais circunstâncias, a taxa de lucro que exigirão pessoas de disposições médias para renunciar ao desfrute imediato daquilo que eventualmente possuírem a fim de expor suas posses e a si mesmos a tais perigos deve ser de um valor muito alto. Essas contingências afetam tanto aqueles que vivem apenas de juros de seu capital, quanto aqueles que estão pessoalmente engajados na produção. Em uma situação de geral segurança da sociedade, os riscos que podem advir da natureza das aplicações particulares raramente recaem sobre a pessoa que empresta seu capital, se empresta com boas garantias; mas em situação social como a de muitas regiões da Ásia, não há nenhuma garantia segura (a não ser, talvez, a penhora efetiva de ouro ou joias), e a simples posse de um tesouro, quando conhecido ou presumido, expõe esse tesouro e seu possuidor a riscos tais que dificilmente a eles equivaleria algum lucro que pudesse conseguir; assim sendo, haveria ainda menos acumulação do que há, se uma situação de insegurança também não multiplicasse as ocasiões em que a posse de um tesouro pode ser o meio de salvar a vida ou afastar sérias calamidades. Os que emprestam dinheiro em condições tão precárias de Governo, fazem-no com o máximo risco de nunca serem pagos. Na maior parte dos Estados indígenas da Índia, as condições mínimas em que alguém empresta dinheiro, mesmo ao Governo, são tais que, se os juros forem pagos apenas durante alguns anos, e o principal nunca for pago, o mutuante já estará razoavelmente indenizado. Mesmo que a acumulação do principal e dos juros compostos, em última análise, for comprometido por alguns xelins por libra esterlina geralmente ainda terá feito um negócio vantajoso. § 3. A remuneração do capital em diferentes aplicações, muito mais do que a remuneração da mão-de-obra, varia de acordo com as circunstâncias que tornam um emprego mais ou menos atrativo do que um outro. Por exemplo, os lucros do comércio varejista, em proporção ao capital empregado, superam os de comerciantes atacadistas ou de manufatores, entre outras razões, porque se dá menos importância ao tipo de emprego. Todavia, a maior dessas diferenças é a que advém da diferença de risco. Os lucros de um fabricante de pólvora devem superar consideravelmente a média, para compensar os riscos especiais aos quais ele e sua propriedade estão continuamente expostos. Quando, porém, como no caso de empreendimentos marítimos arriscados, os riscos peculiares puderem ser — e comumente o são — comutados por um pagamento fixo o prêmio de seguro ocupa seu lugar entre os encargos da produção, e a compensação que o dono do navio cargueiro recebe por esse pagamento não aparece no cálculo de seu lucro, mas é incluída na reposição de seu capital. É outrossim muito diferente, conforme a diferença de empregos, a parcela de lucro bruto que forma a remuneração do trabalho e da experiência do comerciante ou do produtor. Esta é sempre a explicação que se dá para a extraordinária taxa de lucro dos farmacêuticos. Com efeito, como observa Adam Smith, a maior parte muitas vezes não passa dos salários razoáveis de serviço profissional, pelo qual, até uma recente mudança da lei, o farmacêutico não podia exigir remuneração alguma, a não ser incluindo-a no próprio preço dos remédios. Algumas ocupações exigem um notável cabedal de formação científica ou técnica, só podendo [1848] ser exercidas por pessoas que a essa formação associam um capital considerável. Tal é a ocupação de um engenheiro, quer no sentido original da palavra, como construtor de máquinas, quer na sua acepção popular e derivada, como empresário de obras públicas. Estes são sempre os empregos mais rentáveis. Por outro lado, há casos em que se requer uma soma considerável de trabalho e perícia para se manter um empreendimento de extensão necessariamente limitada. Em tais casos, exige-se uma taxa de lucro superior à comum, para garantir apenas a taxa normal de remuneração. “Em uma pequena cidade portuária marítima” — diz Adam Smith — “um pequeno merceeiro ganhará 40 ou 50% sobre um capital de apenas 100 libras esterlinas, ao passo que um grande atacadista do mesmo lugar dificilmente ganhará 8 ou 10% sobre um capital de 10 mil libras. O comércio do merceeiro pode ser necessário para a conveniência dos habitantes, e a estreiteza de mercado pode não comportar o emprego de um grande capital no negócio. Entretanto, a pessoa não somente tem que viver de seu negócio, senão que dele deve viver à altura das condições que a ocupação exige. Além de possuir um pequeno capital, ela tem que ser capaz de ler, escrever e fazer contas, devendo também ser um conhecedor razoável talvez de cinquenta ou sessenta espécies diferentes de mercadorias, de seus preços, qualidades, e dos mercados em que estas podem ser compradas a preço mais barato. Trinta ou 40 libras por ano não podem ser consideradas como uma remuneração excessiva para esse trabalho que a pessoa executa. Deduza-se isso dos lucros aparentemente grandes de seu capital, e talvez sobre pouco mais do que o lucro normal do capital. Também nesse caso, a maior parte do lucro aparente se resume em salários reais”. Todos os monopólios naturais (entendendo-se com isso os que são criados pelas circunstâncias, e não por lei) que geram ou agravam as disparidades da remuneração dos diferentes tipos de trabalho, operam similarmente entre diferentes empregos de capital. Se um determinado empreendimento só puder ser dirigido com vantagem empregando um capital elevado, essa circunstância, na maioria dos países, restringe tanto a categoria de pessoas habilitadas a participar do negócio, que estas têm condições de manter sua taxa de lucro acima do nível geral. Conforme a natureza do caso, um empreendimento pode estar limitado a tão poucos que é possível manter altos os lucros por meio de uma associação entre os comerciantes. É bem notório que esse tipo de associação continuou a existir por muito tempo mesmo dentro de um conjunto tão numeroso quanto o dos livreiros de Londres. Já mencionei também o caso das companhias de gás e de água. § 4. Deixando a devida margem para as várias causas de desigualdade — isto é, as diferenças quanto ao risco ou ao caráter agradável dos diversos empregos e as diferenças decorrentes de monopólios naturais ou artificiais —, a taxa de lucro do capital, em todos os empregos, tende a uma igualdade. Tal é a proposição comumente colocada por economistas políticos, sendo ela verdadeira, com as devidas explicações. Aquela parcela do lucro que consiste propriamente nos juros, e que representa a remuneração pela abstenção, é estritamente a mesma, no mesmo tempo e lugar, qualquer que seja o emprego. A taxa de juros, se a garantia for igual, não varia de acordo com a aplicação do principal, ainda que de vez em quando varie muito conforme a circunstância do mercado. Não há nenhum emprego em que, na atual conjuntura, a concorrência seja tão ativa e incessante como no setor de empréstimo de dinheiro. Todas as pessoas que trabalham no comércio são ocasionalmente tomadores de empréstimos, e a maioria delas o são constantemente, ao passo que todas as pessoas que trabalham no comércio e que possuem valores em dinheiro emprestam a outros. Entre essas duas classes de pessoas existe uma categoria numerosa, ávida e inteligente de intermediários, composta de banqueiros, corretores da bolsa, agentes de cobranças e outros, atentos ao mais leve sinal de um ganho provável. A mínima circunstância ou a impressão mais passageira por parte do público, que tenda a um aumento ou redução da demanda de empréstimos, no momento ou mais tarde, tem efeitos imediatos sobre a taxa de juros; ora, circunstâncias na situação geral do comércio, e que realmente tendem a causar essa diferença de demanda, estão ocorrendo continuamente, às vezes em extensão tal que, como se sabe, a taxa de juros sobre os melhores títulos mercantis tem variado, em pouco mais de um ano, de 4% ou menos, até 8 ou 9% (mesmo sem a ocorrência de um grande transtorno ou crise comercial). Entretanto, no mesmo tempo e lugar, a taxa de juros é sempre a mesma, para todos aqueles que podem oferecer garantia igualmente segura. A taxa de juros de mercado é sempre uma coisa conhecida e definida. Bem outra coisa é o que acontece com o lucro bruto — o qual, embora (como logo veremos) não varie de um emprego para outro, varia muitíssimo de um indivíduo para outro, sendo que dificilmente pode ser o mesmo em dois casos quaisquer. O lucro bruto depende do conhecimento, dos talentos, da economia e da energia do próprio dono do capital ou dos intermediários que ele emprega; depende também das vicissitudes do relacionamento pessoal, e até da sorte. Dificilmente há dois comerciantes, do mesmo ramo, cujas mercadorias sejam de igual qualidade e preço, que efetuam seus negócios com a mesma despesa, ou precisam do mesmo tempo para fazer girar seu capital. Afirmar que capitais iguais produzem lucros iguais, como norma geral do comércio, seria tão falso como afirmar que idade ou tamanho igual dão força física igual, ou que grau igual de instrução ou de experiência produzem conhecimento igual. O efeito depende tanto de vinte outras coisas, quanto da única causa determinada. Entretanto, ainda que os lucros variem, no conjunto se mantém, em um sentido certo e muito importante, a semelhança dos modos diferentes de empregar capital (se não houver nenhum monopólio natural ou artificial). Em média (quaisquer que possam ser as flutuações ocasionais), os vários empregos de capital são tais que, embora não gerem lucros iguais, geram, sim, expectativas iguais de lucro, para pessoas de capacidades e posses médias, sendo que, ao dizer iguais, entendo essa igualdade depois de compensar qualquer inferioridade quanto ao caráter agradável ou à segurança de cada emprego. Se assim não fosse, se a evidência e a experiência comum demonstrassem que há chances mais favoráveis do sucesso pecuniário em um tipo de negócio do que em outros, mais pessoas haveriam de empregar seu capital nesse negócio ou educariam seus filhos para ele — o que de fato acontece sempre que se observa que um negócio, como o de um engenheiro atualmente [1848], ou como qualquer manufatura recentemente instalada e próspera, é uma profissão em ascensão e de grande sucesso. Se, ao contrário, um negócio não for considerado próspero, se se considera que as chances de lucro que ele oferece são inferiores aos prometidos por outros negócios, o capital gradualmente se retira dele, ou pelo menos ele não atrai novos capitais — e com essa mudança na distribuição do capital, entre as aplicações menos rentáveis e as mais rentáveis, se restabelece uma espécie de equilíbrio. Por isso, não podem continuar muito diferentes por longo tempo as expectativas de lucro em aplicações diferentes: tendem a uma média comum, embora geralmente oscilem de um lado da média para o outro. Esse processo de estabilização comumente descrito como a transferência de capital de uma aplicação para outra, não é necessariamente aquela operação onerosa, lenta e quase inviável que muitas vezes se pensa ser. Em primeiro lugar, ele nem sempre implica a remoção efetiva de capital já aplicado em um determinado negócio. Em uma situação rapidamente progressiva do capital, o ajuste muitas vezes ocorre por meio das novas acumulações de cada ano, que se canalizam diretamente, de preferência para as aplicações mais prósperas. Mesmo quando é necessária uma transferência real de capital, de forma alguma está implícito que algum dos capitais aplicados em negócios não rentáveis abandone esse ramo e acabe com tais estabelecimentos. Os numerosos e variados canais de crédito, pelos quais, em nações comerciais, o capital não aplicado se espalha pelos diversos ramos de negócios, fluindo em maior abundância para os níveis mais baixos, são os meios pelos quais se realiza esse processo de estabilização. O processo consiste em uma restrição por uma classe de comerciantes ou produtores, e em uma aplicação, pela outra categoria, daquela porção de seus negócios que é efetuada com capital emprestado. Dificilmente há algum comerciante ou produtor em escala considerável que limite seus negócios àquilo que pode movimentar com seus próprios fundos. Quando o negócio é bom, ele não somente utiliza ao máximo seu próprio capital, senão que também emprega muito do crédito que esse capital lhe consegue. Quando, devido a uma oferta excessiva ou em razão de alguma redução da demanda em relação à sua mercadoria, ele constata que demora muito mais para vender ou só consegue um preço mais baixo, ele reduz suas operações, não deixando de solicitar aos banqueiros ou outros agentes financeiros uma renovação de seus adiantamentos na mesma extensão que anteriormente. Ao contrário, um negócio que prospera abre uma perspectiva de aplicação rentável para um montante desse capital flutuante maior do que anteriormente e, em consequência, os que lidam com tal negócio passam a solicitar aos agentes financeiros empréstimos maiores, os quais eles não têm dificuldade em obter devido à melhoria de sua situação. Uma distribuição diferente do capital flutuante entre duas aplicações tem tanto efeito em recolocar seus lucros em posição de equilíbrio, como se os proprietários de igual montante de capital abandonassem um negócio e colocassem seu capital em outro. Esse método fácil e, digamos assim, espontâneo de ajustar a produção à demanda é perfeitamente suficiente para corrigir quaisquer desigualdades decorrentes das flutuações do comércio ou de outras causas normalmente observadas. No caso de uma atividade totalmente em decadência, na qual é necessário não somente variar ocasionalmente a produção, mas reduzi-la em grande escala e em regime permanente, ou talvez até paralisá-la inteiramente, sem dúvida o processo de liberação do capital é lento e difícil, e quase sempre vem acompanhado de perdas consideráveis, pois grande parte do capital imobilizado em máquinas, construções, obras permanentes etc., não é aplicável a nenhuma outra finalidade ou só é aplicável após alterações dispendiosas, e porque raramente há tempo para efetuar a mudança da maneira que permitiria minimizar a perda, isto é, não repondo o capital fixo à medida que se desgasta. Além disso, mudar totalmente a aplicação de um capital envolve um sacrifício tão grande de clientela conquistada, de habilidade e experiência adquiridas, que sempre as pessoas ficam muito indecisas em adotar essa providência, e só se decidem a fazê-lo muito tempo depois de constatarem não haver mais esperança de um golpe da sorte. Todavia, esses são casos certamente excepcionais, e mesmo nestes, ao final, se consegue restabelecer o equilíbrio. Também pode ocorrer que o retorno ao equilíbrio seja notavelmente adiado, quando, antes mesmo de se corrigir uma desigualdade ou desequilíbrio, já surge outra causa de desigualdade; segundo se afirma, tal aconteceu continuamente, durante os anos, com a produção de algodão nos Estados meridionais da América do Norte; com efeito, essa mercadoria manteve um preço que praticamente equivalia a preço de monopólio, já que o aumento da demanda, em razão de aperfeiçoamentos sucessivos na manufatura, ocorreu com uma rapidez que ultrapassou a tal ponto a expectativa que durante muitos anos a oferta nunca conseguiu atingir a demanda. Entretanto, não se dá com frequência o caso de uma sucessão de causas perturbadoras, todas agindo na mesma direção, que se sucedam praticamente sem intervalo entre uma e outra. Onde não existe monopólio, há probabilidade de estarem os lucros de uma atividade às vezes acima e às vezes abaixo do nível comum, tendendo sempre, porém, a voltar a esse nível normal, como acontece com as oscilações do pêndulo. Via de regra, portanto, ainda que os lucros variem muito de indivíduo para indivíduo, e de ano para ano, em se tratando do mesmo indivíduo, não pode haver muita diferença, no mesmo tempo e lugar, no lucro médio de aplicações diferentes (a não ser as diferenças permanentes, necessárias para compensar a diferença de atratividade das diversas aplicações), a menos que seja durante períodos breves, ou a não ser que alguma grande reviravolta permanente haja afetado uma determinada atividade. Se existir alguma impressão popular de que algumas atividades são mais rentáveis do que outras, independentemente de monopólio ou então de eventos raros como os que se observaram no tocante ao ramo algodoeiro, há toda probabilidade de ser facciosa essa impressão, pois, se ela fosse compartilhada por aqueles que têm melhor conhecimento e os maiores motivos para um exame acurado, ocorreria um tal afluxo de capital, que ela logo faria baixar os lucros para o nível normal. É verdade que, para pessoas que dispõem do mesmo montante de capital inicial, há mais chances de acumular uma grande fortuna em algumas aplicações do que em outras. Entretanto, constatar-se-ia que nessas mesmas aplicações também as falências são mais frequentes, e que a chance de maior sucesso é contrabalançada por uma probabilidade maior de fracasso total. Com muita frequência, a chance de maior sucesso é até mais do que contrabalançada; com efeito, como observamos em outro caso, a chance de grandes prêmios opera com um grau maior do que o garantido pela aritmética para atrair concorrentes; de minha parte, não duvido de que os ganhos médios, em ramo em que se pode ganhar grandes fortunas, são menores do que naqueles em que os ganhos são lentos, embora relativamente seguros, e nos quais, em última análise, não se espera nada mais do que ganhar a subsistência. O comércio madeireiro do Canadá [1848] é um exemplo de uma aplicação de capital tão similar ao de uma loteria, que se consolidou a opinião de que, se considerarmos a média dos que entraram nessa aventura, esse negócio acarretou mais perdas do que ganhos, ou seja, que a taxa média de lucro é inferior a zero. Em questões como esta, muito depende do caráter da população dos diversos países, da medida em que têm afinidade maior ou menor com o espírito aventureiro. Esse espírito é muito mais forte nos Estados Unidos do que na Grã-Bretanha, e na Grã-Bretanha é muito mais forte do que em qualquer país do Continente europeu. Em alguns países da Europa continental, a tendência contrária domina a tal ponto que as aplicações seguras e tranquilas provavelmente proporcionam um lucro médio menor ao capital nelas empregado do que aquelas que oferecem ganhos maiores a preço de riscos maiores. Contudo, não se deve esquecer que mesmo nos países em que a concorrência é mais ativa, também o costume tem uma participação notável em determinar o lucro de uma aplicação de capital. Às vezes, depara-se com uma ideia sobre qual deve ser o lucro proporcionado por uma aplicação, ideia que, embora nem todos os comerciantes a aceitem, e talvez nenhum a aceite com todo o seu rigor, continua a exercer uma certa influência sobre suas operações. Tem havido na Inglaterra uma ideia — não sei até que ponto ela é dominante — de que 50% representam uma taxa de lucro adequada e conveniente para transações varejistas: entenda-se, não 50% sobre o capital total, mas um acréscimo de 50% nos preços de atacado, com o qual se deve pagar dívidas a fundo perdido, o aluguel da loja, os salários de contabilistas, balconistas e empregados de todos os tipos, em suma, todas as despesas da atividade varejista. Se esse costume fosse geral e se ele fosse observado à risca, sem dúvida a concorrência ainda teria seus efeitos, mas o consumidor não auferiria dela vantagem alguma, pelo menos quanto ao preço; o modo pelo qual ela reduziria as vantagens dos envolvidos na atividade varejista seria subdividindo mais os negócios. Em algumas partes do Continente europeu, o padrão de lucro chega a ser de 100%. No entanto o aumento da concorrência, pelo menos na Inglaterra, está rapidamente tendendo a acabar com tais práticas. Na maioria das atividades (ao menos nos grandes empórios comerciais), há hoje numerosos comerciantes cujo princípio é “ganhos pequenos e frequentes” — um grande negócio a preços baixos, em lugar de preços altos e poucas transações; e girando seu capital com maior rapidez e acrescentando-lhe, se necessário, capital emprestado, os comerciantes muitas vezes conseguem individualmente lucros mais altos, ainda que necessariamente façam baixar os lucros daqueles seus concorrentes que não adotam o mesmo princípio. Contudo, como notamos em um capítulo anterior, a concorrência por ora tem um domínio limitado sobre os preços no varejo, e consequentemente continua exorbitante a parcela do total da produção da terra e do trabalho que é absorvida pela remuneração dos simples distribuidores; ora, não existe nenhuma função na economia da sociedade que comporte um número de pessoas tão desproporcional ao montante de trabalho a ser executado. § 5. Espero que as observações feitas até aqui tenham elucidado suficientemente o que se entende pela expressão comum “taxa normal de lucro”, e o sentido que realmente tem essa taxa normal, bem como as restrições dentro das quais ela existe. Resta agora considerar quais são as causas que determinam seu montante. Para a concepção popular, parece que os lucros de uma atividade dependem dos preços. Parece que um produtor ou um comerciante obtém seu lucro vendendo sua mercadoria por preço superior àquele pelo qual a comprou. As pessoas são propensas a pensar que o lucro é pura e simplesmente uma consequência das operações de compra e venda. Supõem que, se o produtor de uma mercadoria tem condições de obter algum lucro, é somente porque há compradores para adquiri-la. A demanda — os clientes —, um mercado para o produto, seriam a causa dos ganhos dos donos de capital. É pela venda de suas mercadorias que estes repõem o seu capital e aumentam o seu montante. Entretanto, isso equivale a considerar apenas a superfície externa do mecanismo econômico da sociedade. Constatamos que em caso algum apenas o dinheiro que passa de uma pessoa para outra representa o elemento fundamental em qualquer fenômeno econômico. Se examinarmos mais de perto as operações do produtor, veremos que o dinheiro que ele ganha com a venda de sua mercadoria não é a causa de seu lucro, mas apenas a maneira pela qual seu lucro lhe é pago. A causa do lucro está no fato de que a mão-de-obra produz a mais do que é necessário para o seu montante. A razão pela qual o capital agrícola dá um lucro está no fato de que os seres humanos podem produzir mais alimento do que o necessário para sustentá-los enquanto cultivam o produto, incluindo o tempo ocupado em construir as ferramentas e em fazer todos os outros preparativos necessários: disso resulta como consequência que, se um capitalista pretende alimentar os trabalhadores sob a condição de receber a produção, a ele sobra algo dessa produção, após repor o que adiantou aos trabalhadores. Mudando a formulação do teorema: se o capital proporciona um lucro, é porque o alimento, a roupa, as matérias-primas e as ferramentas duram mais do que o tempo que foi necessário para produzi-los, de sorte que, se um capitalista fornecer essas coisas a um grupo de trabalhadores sob a condição de receber tudo o que produzirem, além de reproduzirem seu próprio sustento e os instrumentos de trabalho, lhes sobrará uma parte de tempo para trabalhar para o dono do capital. Vemos, pois, que o lucro provém, não da eventual troca de mercadorias, mas da força produtiva do trabalho, e que o lucro geral do país é sempre aquilo que a força produtiva do trabalho produzir, ocorra ou não alguma troca de mercadorias. Se não houvesse diferenciação de empregos, não haveria nem compras nem vendas, mas ainda haveria lucro. Se os trabalhadores do país produzirem coletivamente 20% a mais do que seus salários, o lucro será de 20%, quaisquer que sejam os preços. Os acidentes de preço podem, por algum tempo, fazer com que certos produtores ganhem mais do que 20% e outros menos pelo fato de uma mercadoria ser cotada acima de seu valor natural em relação a outras mercadorias, ao passo que a outra é cotada abaixo, até que os preços se acertem novamente; mas sempre haverá exatamente 20% a ser dividido entre todos eles. Ampliando as considerações sumariamente anunciadas até aqui, passarei agora a expor mais detalhadamente a maneira de se determinar a taxa de lucro. § 6. Tomo por base simplesmente a situação que prevalece universalmente, com poucas exceções, onde os trabalhadores e os donos do capital constituem categorias diferentes, a saber, a situação em que o capitalista adianta todos os gastos, incluindo toda a remuneração do trabalhador. Que o capitalista assim faça, não é uma necessidade intrínseca; o trabalhador poderia esperar até concluir a produção, para receber toda aquela parte de seu salário que vai além de sua estrita subsistência; poderia mesmo esperar até lá para receber todo o seu salário, se tivesse em mãos fundos suficientes para se sustentar nesse meio-tempo. Contudo, nesse último caso o trabalhador seria realmente um capitalista, na medida em que pudesse permitir-se esperar pelo seu salário integral, um capitalista que investiria capital no empreendimento, fornecendo uma parcela dos fundos necessários para movimentar a empresa; e, mesmo no primeiro caso, ele ainda poderia ser considerado um capitalista, já que, contribuindo com seu trabalho a preço inferior ao do mercado, se poderia dizer que ele empresta a diferença a seu empregador, recebendo-a de volta com juros (computados com base em qualquer princípio que seja) da produção obtida pelo empreendimento. Pode-se, pois, supor que o capitalista paga todos os adiantamentos e recebe toda a produção. Seu lucro consiste no excedente da produção em relação ao que adiantou; sua taxa de lucro é a razão que esse excedente apresenta em relação ao montante adiantado. Mas em que consistem os adiantamentos? De momento é necessário supor que o capitalista não paga aluguel, não tem que pagar pelo uso de nenhum agente natural de que se apropriou. Na verdade, isso dificilmente acontece na realidade. O capitalista rural, excetuado o caso em que seja proprietário do solo que cultiva, sempre ou quase sempre paga renda, e mesmo no caso de manufaturas (para não mencionar o imposto predial) as matérias-primas da manufatura geralmente pagaram aluguel em algum estágio de sua produção. Mas ainda não estudamos a natureza do aluguel, e mais adiante veremos que, no tocante à questão que estamos examinando, a não consideração do aluguel não acarreta nenhum erro de ordem prática. Se, portanto, deixando de lado o aluguel, perguntarmos em que consistem os adiantamentos pagos pelo dono do capital para fins de produção, constataremos que eles consistem nos salários da mão-de-obra. Uma grande parte do gasto de cada capitalista consiste no pagamento direto de salários. O que não consiste em salários, consiste em matérias-primas e ferramentas, incluindo as construções. Mas as matérias-primas e as ferramentas são produzidas por mão-de-obra; e já que o nosso referido capitalista não pretende representar um emprego único, mas um protótipo da atividade produtiva do país inteiro, podemos supor que ele faça suas próprias ferramentas e cultive suas próprias matérias-primas. Ele o faz mediante seus adiantamentos anteriores, os quais, por sua vez, consistem totalmente em salários. Se supusermos que ele compra as matérias-primas e as ferramentas em vez de produzi-las, o caso não se altera, pois, nesse caso, ele repõe a um produtor anterior os salários que este havia pago. Sem dúvida, ele lhos paga com um lucro, e se ele mesmo tivesse produzido essas coisas, necessariamente teria ficado com esse lucro, em relação a essa parte de sua despesa, bem como em relação a qualquer outra parte. Permanece, porém, de pé o fato seguinte: em todo o processo da produção, começando com as matérias-primas e as ferramentas e terminando com o produto acabado, todos os adiantamentos não consistiram em outra coisa senão em salários; somente que alguns dos referidos capitalistas, por motivo de conveniência geral, receberam sua parcela de lucro antes de terminar a operação. Toda parcela do produto que não for lucro, é reposição de salários. § 7. Evidencia-se, portanto, que os dois elementos dos quais dependem — e exclusivamente deles — os ganhos do capitalista, são, primeiro, a quantidade da produção — em outros termos, a força produtiva do trabalho — e, segundo, a percentagem dessa produção que vai para os próprios trabalhadores, ou seja, a razão ou percentagem que a remuneração dos trabalhadores representa em relação ao montante que estes produzem. Essas duas coisas constituem os dados para determinar o montante bruto dividido como lucro entre todos os capitalistas do país, sendo que, porém, a taxa de lucro, a percentagem do capital, depende exclusivamente do segundo dos dois elementos — a parcela proporcional do trabalhador — não do montante a ser partilhado. Se a produção do trabalho fosse publicada, e os trabalhadores obtivessem a mesma participação proporcional que antes, isto é, se sua remuneração também fosse duplicada, os capitalistas, é verdade, ganhariam o dobro; mas, já que em compensação teriam tido que adiantar também o dobro, a taxa de seu lucro seria a mesma que antes. Chegamos assim à conclusão de Ricardo e de outros, de que a taxa de lucro depende dos salários, aumentando ela à medida que os salários baixam, e declinando à medida que os salários sobem. Ao adotar, porém, essa doutrina, devo insistir em fazer uma alteração altamente necessária em sua formulação. Em vez de dizermos que os lucros dependem dos salários, digamos (o que Ricardo realmente quis dizer) que eles dependem do custo da mão-de-obra. Salários e custo da mão-de-obra — o que o trabalho traz para o trabalhador, e o que ele custa para o capitalista —, eis aqui conceitos bem diferentes, sendo de importância máxima manter essa distinção. Por essa razão, é essencial não designá-los com o mesmo nome, como quase sempre se faz. Pelo fato de que, nas discussões públicas, tanto orais como impressas, os salários são considerados do ponto de vista de quem os paga, com muito mais frequência do que do ponto de vista de quem os recebe, nada existe de mais comum do que dizer que os salários são altos ou baixos, significando apenas que o custo da mão-de-obra é alto ou baixo. Com mais frequência a verdade seria o inverso, a saber: muitas vezes o custo da mão-de-obra atinge o máximo quando os salários são os mais baixos. Isso pode ocorrer por efeito de duas causas. Em primeiro lugar, a mão-de-obra, embora barata, pode ser ineficiente. Em nenhum país europeu os salários são (ou ao menos eram) tão baixos como na Irlanda, já que a remuneração de um trabalhador agrícola no oeste da Irlanda não passa da metade do salário do inglês de mais baixa remuneração, o trabalhador de Dorsetshire. No entanto, se por ser inferior a habilidade ou a laboriosidade do trabalho irlandês, o trabalho de dois dias de um irlandês não produzisse mais serviço do que um trabalhador inglês realizasse em um só dia, a mão-de-obra irlandesa custaria então tanto quanto a inglesa, embora para o próprio trabalhador irlandês o serviço rendesse tanto menos em dinheiro. O lucro do capitalista é determinado pelo custo da mão-de-obra, e não pelo salário do trabalhador. Que uma diferença desse porte existia efetivamente quanto à eficiência do trabalho, é demonstrado não somente por muitas provas, mas também pelo fato de que, a despeito de serem baixos os salários na Irlanda, não se observa que os lucros do capital tenham sido mais altos na Irlanda do que na Inglaterra. A outra causa que faz com que os salários e o custo da mão-de-obra não constituam critérios reais para medir um pelo outro está na variação do custo dos artigos que o trabalhador consome. Se esse custo for baixo, os salários, no sentido que é importante para o trabalhador, podem ser altos, e, no entanto, o custo da mão-de-obra pode ser baixo; se o custo dos artigos for alto, o trabalhador pode estar em situação miserável, embora seu trabalho possa custar muito para o capitalista. Esta última é a condição de um país superpovoado em relação às terras de que dispõe, pois nesse caso, pelo fato de ser caro o alimento, a pobreza da remuneração real do trabalhador não impede que a mão-de-obra custe muito ao empregador, coexistindo então salários baixos com lucros baixos. O oposto encontra um exemplo nos Estados Unidos da América. O trabalhador desfruta lá de uma abundância maior de confortos do que em qualquer outro país do mundo, excetuadas algumas das colônias mais recentes; entretanto, devido ao baixo preço ao qual se pode conseguir tais confortos (associado à grande eficiência da mão-de-obra), o custo da mão-de-obra para o capitalista no mínimo não é maior, nem a taxa de lucro é mais baixa do que na Europa. Em linguagem matemática, portanto, o custo da mão-de-obra é uma função de três variáveis: a eficiência da mão-de-obra, os salários da mão-de-obra (significando com isso a remuneração real do trabalhador) e o custo maior ou menor pelo qual se pode produzir ou comprar artigos que compõem essa remuneração real. É óbvio que o custo da mão-de-obra para o capitalista deve ser influenciado por cada um desses três fatores, e por nenhum outro. Esses são, pois, os fatores que determinam a taxa de lucro, não podendo esta ser afetada a não ser por um outro desses três. Se a mão-de-obra, em geral, se tornasse mais eficiente, sem que subisse sua remuneração; se, sem que essa mão-de-obra se tornasse menos eficiente, sua remuneração baixasse, sem aumentar o custo dos artigos que compõem essa remuneração; ou, se esses artigos passassem a ter um custo mais baixo, sem que os trabalhadores conseguissem mais desses artigos — em qualquer um desses três casos, os lucros aumentariam. Se, ao contrário, a mão-de-obra se tornasse menos eficiente (como poderia acontecer devido ao menor vigor físico da população, devido à destruição de capital fixo, ou por decadência da educação) ou se o trabalhador tivesse uma remuneração mais alta, sem que diminuísse o custo dos artigos que a compõem, ou então se, sem que o trabalhador obtivesse quantidade maior de artigos, a quantidade que ele obtivesse fosse de custo mais elevado — em todos esses casos os lucros sofreriam uma redução. Ora, não existe nenhuma outra combinação de circunstâncias em que a taxa geral de lucro de um país, em todas as aplicações, indiferentemente, possa baixar ou subir. A essa altura da nossa investigação, a evidência dessas proposições só pode ser afirmada de modo geral, ainda que contundentemente, como espero. Essa evidência se reforçará quando, após examinarmos a teoria sobre o valor e o preço, estivermos em condições de apresentar a lei que rege os lucros no emaranhado denso e complexo de circunstâncias no qual ela efetivamente opera. Isso só poderá ser feito no Livro Terceiro. Resta ainda abordar um item no contexto deste Livro Segundo, na medida em que é possível tratá-lo independentemente das considerações sobre o valor — A Renda da Terra. Será esta a matéria do capítulo que segue. CAPÍTULO XVI A Renda da Terra § 1. Visto que os requisitos da produção são a mão-de-obra, o capital e os recursos naturais, a única pessoa além do trabalhador e do capitalista, cujo consentimento é necessário para a produção, e que pode reclamar uma parte da produção como preço por tal consentimento, é a que, em virtude das estruturas da sociedade, possui algum poder de exclusividade sobre algum recurso natural. A terra é o principal dos recursos naturais capazes de se tornar objeto de apropriação, e o que se paga pelo uso dela se chama renda da terra. Os proprietários de terra constituem a única categoria, dentre outras categorias importantes da população, que tem direito a uma parte na distribuição da produção, pelo fato de serem proprietários de uma coisa que nem eles nem ninguém mais produziu. Se houver algum outro caso de natureza similar, será facilmente compreendido, uma vez que tivermos entendido a natureza e as leis da renda da terra. Evidencia-se de imediato que a renda da terra é o efeito de um monopólio, ainda que se trate de um monopólio natural, que pode ser regulado, que pode até ser possuído por delegação de confiança da parte da comunidade em geral, mas cuja existência não se pode impedir. A razão pela qual os proprietários de terra têm título para exigir renda pelo uso de sua terra está no fato de ser esta um bem de que muitos precisam, e que ninguém pode conseguir a não ser por meio deles. Se toda a terra do país pertencesse a uma única pessoa, esta poderia fixar a renda a seu bel-prazer. Toda a população dependeria da vontade dela para obter os gêneros de primeira necessidade, e ela poderia impor as condições que quisesse. Essa é a situação efetiva naqueles reinos orientais em que a terra é considerada propriedade do Estado. A renda da terra funde-se então com a taxação, sendo que o déspota pode cobrar o máximo que os infelizes lavradores puderem pagar. Efetivamente, o proprietário exclusivo da terra de um país dificilmente poderia ser outro senão o próprio déspota. O efeito seria mais ou menos o mesmo se a terra pertencesse a tão poucas pessoas que elas poderiam — e o fariam efetivamente — agir em conjunto como uma única pessoa e fixar a renda mediante acordo entre si. Quanto se saiba, porém, esse caso não existe em lugar nenhum; então, a outra única hipótese que resta é a da livre concorrência, por se supor que os proprietários de terra são — como na realidade acontece — em número excessivo para poderem associar-se. § 2. Uma coisa que existe em quantidade limitada, mesmo que seus donos não ajam de comum acordo, continua a ser um artigo de monopólio. Contudo, mesmo quando monopolizada, uma coisa que é dom da Natureza, e que para existir não exige como condição nenhum trabalho ou gasto, imporá um preço, se houver concorrente entre os seus donos, somente se existir em quantidade inferior à demanda. Se toda a terra de um país fosse necessária para o cultivo, toda ela poderia proporcionar uma renda. Mas em nenhum país, de qualquer extensão, as necessidades da população exigem que se cultive toda a terra suscetível de ser cultivada. O alimento e outros produtos agrícolas de que a população necessita, e pelos quais deseja e pode pagar ao lavrador um preço que compense, sempre podem ser obtidos sem cultivar toda a terra, por vezes cultivando apenas uma pequena parte dela, sendo que em um estágio bem primitivo da sociedade se preferem as terras mais fáceis de serem cultivadas, e em um estágio mais avançado se preferem as terras mais férteis ou as que apresentam localização mais favorável. Por conseguinte, sempre existe alguma terra que, nas circunstâncias atuais, não pode pagar renda, e nenhuma terra jamais paga renda se, em termos de fertilidade ou de localização, não pertencer àqueles tipos superiores que existem em quantidade inferior à demanda — terra esta da qual não se pode tirar toda a produção necessária para a comunidade a não ser em condições ainda menos vantajosas do que o recurso a solos menos favoráveis. Há terras que, como os desertos da Arábia, não produzirão nada, qualquer que seja a quantidade de trabalho que se lhes aplique; e há terras que, como algumas das nossas tristes charnecas arenosas, produziriam alguma coisa, mas, no atual estado do solo, não o suficiente para cobrir as despesas de produção. Tais terras, a menos que ainda se invente alguma aplicação da Química à agricultura, não podem ser cultivadas para fins de lucro, a não ser que alguém efetivamente crie um solo, espalhando novos ingredientes na superfície ou misturando-os com os materiais existentes. Se o subsolo contiver ingredientes adequados para esse fim ou se estes estiverem à mão, o aperfeiçoamento, mesmo das áreas menos promissoras, pode ser bom a título de especulação; mas se esses ingredientes forem dispendiosos e tiverem que ser trazidos de longe, raramente compensará fazer a tentativa com fins de lucro, ainda que por vezes a “mágica da propriedade” o faça. Por vezes se cultiva com prejuízo uma terra que não tem possibilidade de dar lucro, pois os cultivadores têm o suprimento de suas necessidades assegurado em parte por outras fontes de renda, como no caso dos indigentes, e no de alguns mosteiros ou instituições de caridade, entre as quais se pode mencionar as Colônias de Pobres da Bélgica. A pior terra que se pode cultivar como meio de subsistência é aquela que apenas reporá as sementes e o alimento dos trabalhadores nela empregados, além dos que o Dr. Chalmers denomina de seus coadjuvantes, isto é, dos trabalhadores necessários para lhes fornecerem as ferramentas e dos demais artigos necessários para a subsistência. Se uma determinada terra é ou não capaz de proporcionar mais do que isso, não é uma questão de Economia Política, mas um fato físico. A hipótese não deixa margem para lucro nem para nada que beneficie os trabalhadores, a não ser o indispensável para sobreviverem, e por isso, tal terra só pode ser cultivada pelos próprios trabalhadores ou então com prejuízo pecuniário, e a fortiori em nenhuma circunstância pode permitir-se pagar uma renda. A pior terra que pode ser cultivada como um investimento para capital é aquela que, após repor as sementes, não somente alimenta os lavradores e seus coadjuvantes, senão que também lhes permite a taxa corrente de salários que podem ir muito além do estritamente necessário para sobreviverem, e que permite àqueles que adiantaram os salários para esses dois tipos de trabalhadores uma sobra igual ao lucro que poderiam ter esperado de qualquer outra aplicação de seu capital. Se uma determinada terra é ou não capaz de dar mais do que isso não é somente um problema físico, mas em parte depende do valor de mercado dos produtos agrícolas. O que a terra pode trazer para os trabalhadores e para o capital, assim como para todos aqueles a quem ela dá emprego, de modo direto ou indireto, depende evidentemente do preço pelo qual se pode vender o resto da produção. Quanto mais alto for o valor de mercado da produção, tanto mais inferiores serão os solos aos quais se pode aplicar o cultivo, sem que o capital empregado deixe de assegurar a taxa normal de lucro. Entretanto, já que as diferenças de fertilidade de solos se sobrepõem umas às outras com gradações imperceptíveis — o mesmo acontecendo com as diferenças de acessibilidade, isto é, de distância do mercado — e já que há terras tão estéreis que de forma alguma compensaria cultivar, a qualquer preço que fosse, é evidente que, qualquer que possa ser o preço, em qualquer região extensa deve haver alguma terra que a esse preço pague exatamente os salários dos lavradores, e assegure ao capital empregado o lucro normal, e não mais do que isso. Por isso, enquanto o preço não subir, ou enquanto alguma melhoria não fizer com que essa terra específica atinja um grau maior de fertilidade, ela não tem condições de pagar renda. No entanto, é evidente que a comunidade necessita da produção desse tipo de terra, pois, se as terras mais férteis ou mais bem localizadas do que esta tivessem sido suficientes para atender às necessidades da sociedade, os preços não teriam subido tanto, a ponto de tornar rentável o cultivo dela. Por isso, esse tipo de terra será cultivada; e podemos estabelecer como princípio que enquanto permanecer incultivada qualquer área de terra de um país, suscetível de ser cultivada, e isso não for impedido por obstáculos legais ou outros obstáculos convencionais, a pior terra efetivamente cultivada (em termos de fertilidade e ao mesmo tempo de localização) não paga nada. § 3. Se, portanto, da terra cultivada, a parte que proporciona menor retorno ao trabalho e ao capital nela empregados rende apenas o lucro normal, sem deixar margem alguma para o pagamento da renda, temos aqui um padrão para avaliar o montante de renda que permitirão todos os outros tipos de terra. Toda terra proporciona exatamente tanto mais do que o lucro normal do capital, quanto proporciona mais do que representa o retorno dado pela pior terra cultivada. O excedente é aquilo que o arrendatário pode permitir-se pagar como renda ao proprietário da terra; e já que, se ele não pagasse tal renda, receberia mais do que a taxa normal de lucro, a concorrência de outros capitalistas — aquela concorrência que equilibra os lucros dos diversos capitais — possibilitará ao proprietário da terra apropriar-se dele. Por conseguinte, a renda que qualquer terra assegurará é o excedente de sua produção que vai além daquilo que seria o retorno do mesmo capital, se empregado na pior terra cultivada. Este não é — e jamais se pretendeu que fosse — o limite das rendas pagas pelo meeiro ou das rendas pagas pelo cottier, não é o limite das rendas pagas pelos arrendatários. Nenhuma terra arrendada a um locatário capitalista dará permanentemente mais do que isso; e quando proporciona menos, é porque o proprietário da terra renuncia a uma parte daquilo que poderia ser seu, se ele o quisesse. Essa é a teoria sobre a renda da terra, proposta pela primeira vez ao fim do século passado pelo Dr. Anderson, e que, negligenciada naquela época, foi quase simultaneamente redescoberta, vinte anos mais tarde, por Sir Edward West, pelos srs. Malthus e Ricardo. É uma das doutrinas fundamentais da Economia Política, e, enquanto ela não foi compreendida, não se conseguiu dar nenhuma explicação coerente a muitos dos fenômenos mais complexos da atividade fabril. A evidência da veracidade dessa teoria se tornará mais clara quando chegarmos a traçar as leis dos fenômenos do valor e do preço. Antes de lá chegarmos, não é possível livrar a doutrina de todas as dificuldades que ela encerra, nem talvez proporcionar aos ainda não familiarizados com essa matéria mais do que uma compreensão geral do raciocínio pelo qual se chega a esse teorema. Todavia, algumas das objeções feitas à teoria comportam uma resposta completa, mesmo no estágio atual em que nos encontramos nesta investigação. Tem-se negado que possa haver alguma terra cultivada que não pague renda, pois — assim se argumenta — os donos de terra não permitiriam que suas terras fossem ocupadas sem pagamento de renda. Os que dão alguma importância a essa objeção devem considerar que terras com uma qualidade que apenas paga seu cultivo existem juntas em grandes quantidades, e separadas de qualquer terra de qualidade melhor. Se uma propriedade consistisse inteiramente dessa espécie de terra, ou desta e de terra ainda pior, é bastante provável que o proprietário não cedesse seu uso gratuitamente; provavelmente (se fosse uma pessoa rica) preferiria destiná-la a outras finalidades, como para o adestramento ou para a ornamentação, ou talvez como uma reserva para a caça. Nenhum arrendatário teria condições de oferecer-lhe algo por ela, se utilizada para a lavoura, embora provavelmente ele conseguisse algo pelo uso de suas pastagens naturais, ou outros produtos espontâneos. No entanto, nem mesmo tal tipo de terra necessariamente permaneceria inculta. Ela poderia ser cultivada pelo proprietário — caso não raro, mesmo na Inglaterra. Partes dela poderiam ser cedidas como lotes temporários a famílias de trabalhadores, seja por motivos filantrópicos, seja para economizar a taxa a ser paga para assistência aos pobres; ou então a ocupação poderia ser permitida a posseiros de terras devolutas, com isenção de renda, na esperança de que o trabalho destes a pudessem valorizar futuramente. Ambos os casos ocorrem com frequência bastante comum. Assim sendo, mesmo que uma propriedade fosse composta inteiramente da pior terra suscetível de cultivo rentável, não permaneceria necessariamente incultivada pelo fato de não poder pagar renda. Entretanto, a terra de qualidade inferior não costuma ocupar, sem interrupção, muitas milhas quadradas, ela está espalhada aqui e acolá com intercalação de áreas de terra melhor, sendo que a mesma pessoa que arrenda a terra de qualidade melhor obtém com ela os solos de qualidade inferior que com ela se alternam. Ela paga uma renda que nominalmente é pela propriedade toda, mas que na realidade é calculada apenas com base na produção daquelas partes (embora representem uma parte mínima do todo) que têm possibilidade de dar um retorno superior à taxa normal de lucro. É, pois, cientificamente verdade que as partes restantes da gleba não pagam nenhuma renda. § 4. Contudo, suponhamos que houvesse uma validade nessa objeção — validade que de forma alguma se lhe pode reconhecer. Suponhamos que, quando a demanda da comunidade tivesse forçado os alimentos a um preço tal que seria compensador o gasto de produzi-los em uma determinada qualidade de solo, acontecesse que todo o solo dessa qualidade fosse retido e impedido de ser cultivado, devido à obstinação dos proprietários em exibirem uma renda não puramente nominal, não insignificante, mas suficientemente onerosa para representar um fator substancial nos cálculos de um arrendatário. Que aconteceria nesse caso? Ocorreria simplesmente o seguinte: o aumento de produção, exigido pelas necessidades da sociedade, seria obtido, enquanto durasse tal situação, inteiramente (como sempre o é, em parte), não aumentando a área cultivada, mas aplicando mais trabalho e mais capital a terras já em cultivo. Ora, já vimos que essa aplicação mais intensiva de trabalho e de capital, se não mudarem as outras circunstâncias ou fatores, sempre acarreta um retorno proporcional menor. Não suporemos que ocorra alguma nova invenção agrícola exatamente nessa conjuntura, nem uma ampliação repentina da habilidade e dos conhecimentos agrícolas, acarretando, exatamente nesse momento, uma prática mais generalizada de invenções em parte já em uso. Não devemos supor nenhuma mudança, a não ser uma demanda de mais trigo, e um consequente aumento do preço deste. O aumento do preço possibilita adotar novas providências para aumentar a produção, que não poderiam ter sido tomadas com lucro ao preço anterior. O arrendatário passa a usar adubos mais caros, ou aduba terras que anteriormente deixava ao natural, ou então traz de longe cal ou marga, como adubo para o solo, ou o pulveriza mais intensamente e arranca as ervas daninhas com mais cuidado; ou então, drena e irriga certas partes da terra, ou revolve o seu subsolo, o que, aos preços anteriores, não pagaria os custos da operação, e assim por diante. Tais coisas — ou algumas delas — se fazem quando, havendo maior demanda de alimentos, a lavoura não tem outros meios de ampliar para novas terras. E quando existe o estímulo para extrair do solo um montante maior de produção, o arrendatário ou autor das melhorias só considera se o gasto que faz para esta finalidade lhe retornará o lucro normal, e não se restará alguma sobra para pagar a renda. Por conseguinte, mesmo se fosse realidade que nunca se cultiva nenhuma terra pela qual não se paga renda — falo de uma renda digna de ser levada em consideração — seria verdade que sempre há algum capital agrícola que não paga renda por não dar outro retorno senão a taxa normal de lucro, pois este é a porção de capital que se aplica por último — aquela à qual era devida o último acréscimo à produção, ou (para expressar o essencial em uma única frase) aquela que é aplicada nas circunstâncias menos favoráveis. Entretanto, o mesmo montante de demanda e o mesmo preço que possibilitam que essa porção menos produtiva de capital apenas se reproduza com a taxa normal de lucro, possibilita a toda outra porção de capital produzir um excedente proporcional à vantagem que este possui. Ora, é desse excedente que o proprietário da terra pode apropriar-se, em virtude da concorrência. A renda de toda terra é medida pelo excedente que o retorno proporcionado por todo o capital nela empregado apresenta em relação ao que é necessário para repor o capital com a taxa normal de lucro, ou, em outras palavras, em relação àquilo que o mesmo capital renderia se fosse todo empregado em circunstâncias tão desvantajosas quanto o é a porção menos produtiva de capital — quer essa produtividade mínima dessa porção menos produtiva de capital se deva ao fato de ser ela empregada no solo de pior qualidade, quer se deva ao fato de ser essa porção de capital gasta para extrair mais produção de uma terra que já produzia tanto quanto se podia tirar dela em condições mais propícias. Não se pretende que os fatos de qualquer caso concreto obedeçam com precisão absoluta a este ou a qualquer outro princípio científico. Nunca devemos esquecer que as verdades da Economia Política são verdades somente se entendidas grosso modo elas têm a certeza da ciência exata, mas não sua precisão. Assim, por exemplo, não é verdade, no rigor estrito da expressão, que um arrendatário não cultivará nenhuma terra e não aplicará nenhum capital que lhe deem um retorno inferior ao lucro normal. Ele esperará o lucro normal do grosso de seu capital. Mas quando, uma vez que apostou na terra que lhe coube e trocou sua perícia e seu trabalho, uma vez por todas, por aquilo que a propriedade lhe renderá, provavelmente estará disposto a gastar com ela um capital (para um retorno imediato) de qualquer maneira que lhe proporcione um lucro excedente, por menor que seja, além do valor do risco e dos juros que tiver que pagar pelo capital — se emprestado — ou puder obter alhures por ele, se o capital for dele próprio. Um arrendatário novo, porém, ao entrar na posse da terra, faria seus cálculos de maneira diferente, e não tomaria a iniciativa se não pudesse esperar a taxa plena de lucro normal para todo o capital que tencionasse colocar no empreendimento. Também aqui os preços podem, durante a vigência da locação, subir ou descer além do que se esperava quando se fez o contrato, e portanto a renda da terra pode ser excessivamente alta ou excessivamente baixa, e mesmo quando a locação expirar, o proprietário da terra pode não querer concordar com uma redução necessária da renda, e o arrendatário, em vez de abandonar sua ocupação ou de procurar outra terra quando todas já estão ocupadas, pode consentir em continuar a pagar uma renda excessivamente alta. Temos sempre que contar com irregularidades desse gênero; é impossível em Economia Política, conseguir teoremas que abarquem toda a complexidade de circunstâncias que podem afetar o resultado em um caso individual. Além disso, quando a categoria dos arrendatários, possuindo apenas capital reduzido, cultiva, visando mais à subsistência do que ao lucro, e não pensa em abandonar sua gleba enquanto tiver condições de viver dela, as rendas que paga se aproximam das que são pagas pelo cottier, podendo ser forçados pela concorrência (se o número de concorrentes superar o número de propriedades) a pagar além do montante que permite ao arrendatário auferir a taxa normal de lucro. As leis que podemos estabelecer, no tocante a rendas da terra, lucros, salários, preços, são verdadeiras somente na medida em que as pessoas envolvidas estiverem isentas da influência de quaisquer outras causas que não sejam as decorrentes das circunstâncias gerais do caso, e quando se orientam, quanto a essas coisas, pela avaliação comercial comum de lucros e perdas. Aplicando essa dupla suposição ao caso de arrendatários e proprietários de terra, será verdade que o arrendatário exige a taxa normal de lucro de todo o seu capital; será verdade também que tudo aquilo que seu capital lhe render para além disso, ele está obrigado a dar ao proprietário da terra mas sem consentir em pagar mais do que isso; será verdade que há uma porção de capital aplicada à agricultura em circunstâncias tais de produtividade que produz apenas a taxa normal de lucros; finalmente, será verdade que a diferença entre a produção dessa porção de capital e a de qualquer outro capital de igual montante é a medida do tributo que esse outro capital poderá pagar e pagará efetivamente ao proprietário da terra, sob a denominação de renda. Esta é uma lei da renda da terra, tão próxima à verdade quanto possa estar uma lei — ainda que, naturalmente, possa ser modificada ou perturbada, em casos individuais, por contratos pendentes, por cálculos individuais errôneos, pela influência do hábito, e mesmo pelos sentimentos e disposições particulares das pessoas envolvidas. § 5. Muitas vezes se faz uma observação que não devemos omitir aqui, embora, em minha opinião, se lhe tenha dado mais importância do que merece. Sob o nome de renda da terra costumam-se incluir muitos pagamentos que não constituem uma remuneração pelas forças originais da própria terra, mas por capital que nela se empregou. Na opinião de alguns autores, a renda adicional que a terra proporciona em decorrência desse gasto de capital deve ser considerada lucro, e não renda. Mas antes de se poder admitir isso, importa fazer uma distinção. O pagamento anual feito por um rendeiro quase sempre inclui um montante pelo uso das construções existentes na propriedade — não somente celeiros, estábulos e outras dependências, mas também uma casa para morar, para não falar de cercas e similares. O proprietário da terra exigirá — e o rendeiro pagará — por essas coisas tudo o que for considerado suficiente para proporcionar o lucro normal, ou melhor (já que o risco e o trabalho não entram aqui em questão), os juros normais sobre o valor das construções — isto é, não sobre aquilo que custou a construção dessas obras, mas sobre o que seria hoje custo necessário para instalar outras construções de mesma qualidade; além disso, o rendeiro está obrigado a deixá-las no mesmo estado de conservação que as encontrou, pois do contrário se exigirá dele um pagamento muito superior aos simples juros. Essas construções constituem uma coisa tão distinta da propriedade como tal, quanto o capital ou a madeira nela empregada, e o que se paga por estes não pode ser chamado de renda da terra, tanto quanto não pode denominar-se de renda um pagamento pelo gado, no caso de ser costume que o proprietário da terra abasteça sua propriedade para o rendeiro. As construções, assim como o gado, não são terra, mas capital, regularmente consumido e reproduzido, sendo que todos os pagamentos feitos por eles são propriamente juros. No entanto, com respeito ao capital efetivamente empatado em melhorias, e que não exige renovação periódica, mas é um gasto efetuado uma vez por todas para dar à terra um acréscimo permanente de produtividade, parece-me que o retorno gerado por esse capital perde totalmente o caráter de lucro e é regido pelos princípios que estabelecemos para a renda da terra. É verdade que um proprietário de terra não gastará capital para melhorar sua propriedade, se não esperar da melhoria um aumento de receita que supere os juros de seus investimentos. Prospectivamente, esse aumento de receita pode ser considerado lucro; mas uma vez que a despesa foi feita e a melhoria foi efetuada, a renda da terra assim melhorada é regida pelas mesmas regras que a renda da terra que não recebeu melhorias. Terras de fertilidade igual exigem uma renda igual, seja essa fertilidade natural ou adquirida; e não consigo conceber que as rendas daqueles que possuem a planície de Bedford ou os campos de Lincolshire devam ser chamadas de lucro e não renda, pelo fato de que aquelas terras não teriam valido quase nada se neles não se tivesse gasto nenhum capital. Os proprietários não são capitalistas, mas senhores de terras; eles se desfizeram de seu capital; este foi consumido, destruído, e nada daquilo que esse capital produz é — nem precisa ser — retornado a eles, como acontece com o capital de um arrendatário ou de um manufator. Em lugar do capital, esses proprietários agora possuem terras de uma certa riqueza, que dão a mesma renda — e por efeito das mesmas causas — como se desde o começo elas tivessem possuído o mesmo grau de fertilidade que lhe foi dado artificialmente. Alguns autores, em particular o Sr. H. C. Carey, eliminam, ainda mais do que eu mesmo procurei fazer, a distinção entre essas duas fontes de renda da terra, rejeitando totalmente uma delas e considerando toda renda como o efeito do capital gasto. Em prova disso, o Sr. Carey sustenta que o valor pecuniário total da terra, em qualquer país, por exemplo, na Inglaterra ou nos Estados Unidos, não ascende sequer a algo que se aproxime da soma que já foi investida, ou que mesmo hoje seria necessário investir para colocar o país na sua condição atual, partindo da existência das florestas primitivas. Essa afirmação surpreendente foi aproveitada pelo Sr. Bastiat e outros, a fim de argumentar com mais força que de costume em defesa da propriedade fundiária. A proposição do Sr. Carey, em seu significado mais óbvio, equivale a dizer que, caso se adicionasse repentinamente às terras da Inglaterra um território não arroteado, de fertilidade natural igual, não valeria a pena para os habitantes da Inglaterra arroteá-lo, pois os lucros da operação não seriam iguais aos juros normais que renderia o capital despendido. Se é que essa asserção exige alguma resposta, seria suficiente observar que se está continuamente arroteando, na Inglaterra, não terra de qualidade igual, mas de qualidade muito inferior àquela anteriormente cultivada, e isso com uma despesa que a renda subsequente é suficiente para repor inteiramente, em poucos anos. Além disso, essa doutrina se opõe totalmente às opiniões econômicas do próprio Sr. Carey. Ninguém mantém com mais firmeza do que ele a verdade inconteste de que, à medida que uma sociedade cresce em população, em riqueza e combinação de trabalho, a terra aumenta constantemente de valor e de preço. Ora, isso não poderia ser verdade se o valor atual da terra fosse inferior à despesa de arroteá-la e prepará-la para o cultivo; com efeito, a terra deve ter valido isso, imediatamente depois de ser arroteada — e, segundo o Sr. Carey, ela aumentou de valor desde então. Quando, porém, o Sr. Carey afirma que a terra toda de qualquer país não vale hoje o capital que nela foi gasto, não tenciona dizer que cada propriedade específica valha menos do que aquilo que nela se gastou para melhorá-la, e que, para os proprietários, a melhoria da terra representou um cálculo malfeito, no resultado final. Ele não quer dizer que a terra da Grã-Bretanha não se venderia hoje por aquilo que nela se gastou, mas que não se conseguiria vendê-la por esse montante mais a despesa necessária para construir todas as estradas, canais e ferrovias. Isso provavelmente é verdade, mas vem menos a propósito e não tem mais importância para a Economia Política do que afirmar que não se conseguiria vender a totalidade da terra da Grã-Bretanha pelas somas nela gastas, mais a dívida nacional ou mais os custos da guerra da Revolução Francesa ou qualquer outra despesa contraída em função de uma vantagem pública, real ou imaginária. As estradas, as ferrovias e os canais não foram construídos para valorizar a terra; pelo contrário, seu efeito natural foi fazer baixar o valor dela, tornando acessíveis outras terras concorrentes; aliás, os senhores de terras dos condados meridionais encaminharam efetivamente ao Parlamento um requerimento contra as estradas de pedágio exatamente por esse motivo. A tendência dos meios de comunicação mais aperfeiçoados é fazer baixar as rendas da terra em vigor, pelo fato de aproximar o monopólio fundiário bem mais dos lugares onde está reunido grande número de consumidores. As estradas e canais não são planejados para aumentar o valor da terra que já supre os mercados, mas (entre outras finalidades) para baratear o suprimento, permitindo a entrada da produção de outras terras mais distantes — e quanto mais eficazmente se atingir esse objetivo, tanto mais baixa será a renda da terra. Se pudéssemos imaginar que as ferrovias e os canais dos Estados Unidos, em vez de somente baratearem a comunicação, tivessem cumprido sua missão com tanta eficiência a ponto de anular totalmente o custo do transporte e possibilitar à produção de Michigan chegar ao mercado de Nova York tão rapidamente e a preço tão baixo quanto a produção de Long Island — anular-se-ia todo o valor da terra dos Estados Unidos (excetuada aquela de localização apropriada para construção); ou, antes, as melhores terras seriam vendidas pela despesa necessária para o arroteamento, pelo imposto governamental de 1 1/4 dólar por acre, já que a terra do Michigan, igual à melhor que existe nos Estados Unidos, pode ser comprada, em abundância ilimitada, por esse montante de despesa. Entretanto, é estranho que o Sr. Carey pense que esse fato não se coaduna com a teoria de Ricardo sobre a renda da terra. Mesmo admitindo-se tudo o que ele afirma, continua sendo verdade que, enquanto houver terra que não proporciona renda alguma, a terra que a proporciona, o faz em consequência de alguma vantagem que ela apresenta em relação a outra, em termos de fertilidade ou proximidade de mercados; e a medida de suas vantagens é também a medida de sua renda. E a razão pela qual ela proporciona renda está no fato de possuir um monopólio natural, uma vez que uma extensão de terra tão boa como ela não é suficiente para suprir o mercado. Essas proposições constituem a teoria de Ricardo sobre a renda da terra, e, se forem verdadeiras, não consigo entender que isso importe muito, se a renda que a terra assegura atualmente é superior ou inferior aos juros de capital que foi gasto para aumentar seu valor, juntamente com os juros do capital gasto para diminuir seu valor. Contudo, a objeção do Sr. Carey é um pouco mais inteligente do que os argumentos que se costuma aduzir contra a teoria da renda da terra — um teorema que pode ser chamado de mata-burro (pons asinorum) da Economia Política, pois estou propenso a crer que dentre as pessoas que lhe recusaram seu assentimento, poucas são as que o fizeram por outro motivo que não seja o de não o terem entendido em profundidade. É muito notável o modo vago e impreciso em que o teorema é com frequência entendido por aqueles que pretendem refutá-lo. Muitos, por exemplo, têm acusado de absurda a teoria do Sr. Ricardo, por ser absurdo dizer que o cultivo de terra inferior é a causa da renda que grava sobre a terra de qualidade superior. O Sr. Ricardo não afirma que a causa é o cultivo de terra inferior, mas a necessidade de cultivá-la, devido à insuficiência da terra de qualidade superior para alimentar uma população em crescimento; ora, entre isso e a proposição a ela imputada existe uma diferença não menor que entre a procura e a oferta. Outros alegam, como objeção contra Ricardo, que, se todas as terras fossem de fertilidade igual, ainda poderiam continuar a assegurar uma renda. Ora, Ricardo afirma exatamente a mesma coisa. Ele diz que, se todas as terras tivessem a mesma fertilidade, as que estão mais próximas a seu mercado do que outras — e portanto estão menos oneradas com os custos de transporte — assegurariam uma renda equivalente à vantagem, e que a terra que não assegurasse nenhuma renda seria, então, não a menos fértil, mas a que apresentasse a localização menos favorável, que tivesse que ser cultivada em razão das necessidades da comunidade. É também um enunciado explícito da doutrina de Ricardo que, mesmo prescindindo de diferenças de localização, toda terra de um país supostamente de fertilidade uniforme, pagaria renda, dentro de uma determinada suposição, a saber, se a demanda da comunidade exigisse que toda ela fosse cultivada, e cultivada além do ponto em que uma ulterior aplicação de capital começa a proporcionar um retorno proporcional menor. Seria impossível mostrar que, a não ser por cobrança compulsória, a totalidade da terra de um país tem condições de proporcionar uma renda em qualquer outra suposição. § 6. Depois desse exame da natureza e das causas da renda da terra, voltemos ao tema dos lucros, e reconsideremos uma das proposições estabelecidas no capítulo precedente. Afirmamos ali que os adiantamentos feitos pelo capitalista, ou, em outros termos, as despesas de produção, consistem exclusivamente em salários de mão-de-obra, e que qualquer parte da despesa que não forem salários, é lucro anterior, e tudo o que não for lucro anterior, são salários. Entretanto, pelo fato de ser a renda da terra um elemento impossível de ser decomposto em lucros ou salários, fomos obrigados, àquela altura, a supor que o capitalista não precisa pagar renda da terra, ou seja, não precisa pagar um preço equivalente pelo uso de um recurso natural que foi objeto de apropriação; e propus-me então a mostrar, no lugar oportuno, que isso é uma suposição legítima, e que a renda da terra realmente não faz parte das despesas de produção, isto é, dos adiantamentos feitos pelo capitalista. Evidenciam-se agora as razões em que se baseia essa afirmação. É verdade que todos os arrendatários e muitas outras categorias de produtores pagam renda. Mas vimos agora que todo aquele que cultiva a terra, pagando uma renda por ela, recebe em retorno, pela renda que paga, um instrumento de força ou poder superior ao de outros instrumentos do mesmo gênero pelos quais não se paga aluguel. A superioridade do instrumento está em proporção exata à paga por ele. Se algumas pessoas tivessem motores a vapor de força superior a todos os demais existentes, mas limitados por leis físicas a um número inferior à demanda, o aluguel que um manufator estaria disposto a pagar por um desses motores a vapor não poderia ser considerado um acréscimo à sua despesa pois, pelo uso dele, economizaria em suas outras despesas o equivalente daquilo que lhe custou; sem ele não conseguiria executar a mesma quantidade de serviço, a não ser com uma despesa adicional, igual ao aluguel. O mesmo é verdade em relação à terra. As despesas reais da produção são as contraídas na pior terra ou pelo capital empregado nas circunstâncias menos favoráveis. Como vimos, essa terra ou esse capital não paga renda; mas as despesas às quais ela (ele) faz com que todas as outras terras ou todo outro capital agrícola estejam sujeitas a uma despesa equivalente na forma de aluguel. Todo aquele que paga recupera o pleno valor deste em vantagens extras, e o que paga não se coloca em uma posição pior — mas apenas na mesma situação — que seu colega produtor que não paga, mas cujo instrumento é de eficiência inferior. Completamos assim a exposição das leis que regulam a distribuição da produção da terra, do trabalho e do capital, na medida em que é possível expor essas leis independentemente dos instrumentos ou dispositivos pelos quais se faz a distribuição em uma sociedade civilizada — o mecanismo da troca e do preço. A elucidação mais completa e a confirmação final das leis que estabelecemos, bem como a dedução das consequências mais importantes dessas leis, têm que ser precedidas de uma explanação da natureza e do funcionamento desse mecanismo — matéria tão extensa e complexa, que a sua explanação exige um Livro à parte. LIVRO TERCEIRO As Trocas CAPÍTULO I O Valor § 1. O tema em que agora nos adentraremos ocupa posição tão importante e primordial na Economia Política que, no entender de alguns pensadores, seus limites se confundem com os dessa ciência. Um eminente autor propôs dar à Economia Política o nome de “Catallactics”, isto é, ciência das trocas; outros lhe deram a denominação de ciência dos valores. Se essas denominações me tivessem parecido logicamente corretas, deveria ter colocado a exposição das leis elementares do valor no início da nossa pesquisa, em vez de adiá-la para a terceira parte; aliás, a possibilidade de adiá-la tanto é por si mesma prova suficiente de que essa visão da natureza da Economia Política é por demais restrita. É verdade que nos Livros anteriores não fugimos à necessidade de antecipar uma pequena parte da teoria sobre o valor, especialmente quanto ao valor do trabalho e da terra. Contudo, é evidente que, entre as duas grandes partes da Economia Política — a produção da riqueza e a sua distribuição —, a consideração do valor só tem a ver com esta última, e mesmo assim somente na medida em que o fator de distribuição é a concorrência, e não o uso ou costume. As condições e as leis da produção seriam as mesmas que são, se as estruturas da sociedade não dependessem da troca, ou não a comportassem. Mesmo no atual sistema industrial, no qual as profissões estão minuciosamente subdivididas, e todos os envolvidos na produção dependem, para sua remuneração, do preço de uma mercadoria específica, a troca não é a lei fundamental da distribuição da produção, da mesma forma como as estradas e os transportes não são as leis essenciais do movimento, mas apenas uma parte do mecanismo necessário para efetuá-lo. Confundir essas ideias parece-me ser não somente um erro lógico, mas também um erro prático. É um exemplo de erro excessivamente comum em Economia Política o de não distinguir entre necessidades decorrentes da natureza das coisas e aquelas criadas por estruturas sociais — erro que, em meu entender, sempre produz dois males opostos: por um lado, faz com que os economistas políticos cataloguem verdades meramente temporárias de sua matéria entre as leis permanentes e universais que a regem; por outro lado, leva muitas pessoas a considerar erroneamente as leis permanentes da produção (tais como aquelas nas quais se funda a necessidade de limitar a população) como acidentes temporários decorrentes da estrutura atual da sociedade — leis que, portanto, não precisariam ser levadas em conta por aqueles que inventassem um novo sistema de estruturas sociais. Todavia, em um estágio social em que o sistema industrial esteja totalmente baseado na compra e venda, pelo fato de cada indivíduo viver, na maior parte, não de coisas de cuja produção participa pessoalmente, mas de coisas obtidas por meio de dupla troca — venda seguida de compra — a questão do valor é fundamental. Quase toda pesquisa concernente aos interesses econômicos de uma sociedade assim constituída implica alguma teoria sobre o valor; o mínimo erro nessa matéria acarreta erro correspondente em todas as nossas outras conclusões, e qualquer indefinição ou nebulosidade em nossa concepção sobre essa matéria cria confusão e incerteza em tudo o mais. Felizmente nada resta, nas leis sobre o valor, a ser esclarecido por mim ou por algum autor futuro; a teoria sobre esta matéria está completa: a única dificuldade a superar é a de enunciá-la de tal maneira que se resolvam por antecipação as perplexidades principais que ocorrem em sua aplicação, e para fazer isso são inevitáveis certo grau de detalhes na exposição e paciência considerável da parte do leitor. Entretanto, este será amplamente recompensado (se já não estiver familiarizado com essas investigações) pela facilidade e rapidez com que compreenderá a maioria das demais questões da Economia Política, se tiver entendido em profundidade o assunto em pauta. § 2. Temos que começar pela definição dos termos. Adam Smith, em uma passagem muitas vezes citada, deparou com a mais óbvia ambiguidade em relação ao termo valor — o qual, em uma de suas acepções, significa utilidade, e em outra, poder de compra; em sua própria terminologia, seriam o valor de uso e o valor de troca. Todavia (como observou o sr. De Quincey), ao ilustrar esse duplo significado, o próprio Adam Smith caiu em outra ambiguidade. Segundo ele, coisas que têm o máximo valor de uso muitas vezes têm pouco ou nenhum valor de troca o que é verdade, pois aquilo que pode ser obtido sem trabalho ou sacrifício não tem preço, por mais útil ou necessário que possa ser. Mas Smith continua, dizendo que coisas que têm o máximo valor de troca, como um diamante, por exemplo, podem ter pouco ou nenhum valor de uso. Isso equivale a empregar o termo uso não no sentido em que o aborda a Economia Política, mas em outra acepção, em que uso (utilidade) se opõe a prazer. A Economia Política nada tem a ver com a avaliação comparativa de utilidades diferentes no julgamento de um filósofo ou de um moralista. A utilidade de uma coisa, em Economia Política, significa a capacidade que essa coisa tem de satisfazer a um desejo ou de servir a uma finalidade. Os diamantes têm essa capacidade em grau elevado, e se não a tivessem, não teriam preço algum. O valor de uso, ou, como o denomina o sr. De Quincey, o valor teleológico é o limite extremo do valor de troca. O valor de troca de uma coisa pode ser inferior — para qualquer montante — ao seu valor de uso; mas que jamais possa superar o valor de uso, implica contradição; isso supõe que as pessoas pagarão, para possuir uma coisa, mais do que o valor máximo que elas mesmas lhe dão como meio de gratificar as suas inclinações. A palavra valor, quando usada sem adjunto, sempre significa, em Economia Política, valor de troca ou, como foi denominado por Adam Smith e seus sucessores exchangeable value, expressão que nem a máxima autoridade em Linguística poderá deixar de qualificar como inglês de má qualidade. O sr. De Quincey o substitui pelo termo exchange value, que é inatacável. O valor de troca precisa ser distinguido do preço. Os termos valor e preço foram usados como sinônimos pelos antigos economistas políticos, e o próprio Ricardo nem sempre os distingue. Os autores modernos mais precisos, porém, para evitar o dispêndio inútil de dois bons termos científicos para um único conceito, empregaram preço para expressar o valor de uma coisa em relação ao dinheiro, a quantidade de dinheiro pela qual a coisa será trocada. Por conseguinte, daqui em diante entenderemos por preço de uma coisa seu valor em dinheiro; por valor, ou valor de troca, seu poder geral de compra, isto é, o comando ou direito que a sua posse dá sobre bens ou mercadorias compráveis em geral. § 3. Mas aqui deparamos com nova necessidade de explicação. Que se entende por poder ou direito sobre bens ou mercadorias em geral? A mesma coisa pode ser trocada por grande quantidade de algumas mercadorias, e por quantidade muito pequena de outras. Um terno de roupa é trocado por (ou vale) grande quantidade de pão, e por quantidade muito pequena de pedras preciosas. O valor de uma coisa, se trocada por algumas mercadorias, pode subir; se trocada por outras, pode baixar. Um casaco pode, neste ano, ser trocado por (ou valer) menos pão do que no ano passado, se a colheita foi má, porém por mais vidro ou ferro, caso se tenha suprimido desses produtos algum imposto, ou se tiver sido efetuado um aperfeiçoamento na manufatura dos mesmos. Será que o valor do casaco, nessas circunstâncias, diminuiu ou aumentou? É impossível responder; pode-se dizer apenas que ele baixou em relação a uma coisa, e aumentou em relação a outra. Mas há um caso em que ninguém hesitaria dizer que tipo de mudança se operou no valor do casaco, isto é, se a causa da qual se originou a mudança dos valores de troca residiu em algo que afetou diretamente o próprio casaco, e não o pão ou o vidro. Suponhamos, por exemplo, que se fez um aperfeiçoamento nas máquinas, em virtude do qual se pôde tecer o tecido fino de lã preta pela metade do custo anterior. O efeito disso seria baixar o valor de um casaco, e se a baixa for devida a essa causa, ele baixaria não somente em relação ao pão, nem somente em relação ao vidro, mas em relação a todas as coisas compráveis, excetuadas aquelas que eventualmente fossem afetadas, neste mesmo momento, por uma causa similar de redução do valor. Devemos, pois, dizer que houve uma queda do valor de troca ou do poder de compra geral de um casaco. A ideia de valor geral de troca origina-se do fato de que há realmente causas que tendem a alterar o valor de uma coisa trocada por coisas em geral, isto é, por todas as coisas sobre as quais não agem causas de tendência similar. Ao considerarmos o valor de troca do ponto de vista científico, é conveniente abstrair dele todas as causas, excetuadas aquelas que se originam no próprio produto considerado. As causas que se originam nos produtos com os quais o comparamos afetam o valor deste em relação a esses produtos, ao passo que as causas que se originam no próprio produto em consideração afetam seu valor em relação a todos os produtos. A fim de restringirmos ainda mais nossa atenção a essas últimas causas, é conveniente supor que todos os produtos, exceto o que está em questão, permanecem com seus valores relativos inalterados. Ao considerarmos as causas que fazem subir ou descer o valor do trigo, supomos que o valor de lãs, sedas, artigos de cutelaria, açúcar, madeira etc., apesar da variação de seu poder de comprar trigo, permanece constante nas proporções em que esses produtos podem ser trocados uns pelos outros. Nessa hipótese, qualquer um deles pode ser considerado como representativo dos demais, já que, qualquer que seja a variação que o valor do trigo apresente em relação a uma mercadoria, ele varia da mesma forma e no mesmo grau com respeito a cada uma das outras; e o movimento de seu valor, para cima ou para baixo, avaliado segundo uma só coisa, é tudo que temos que levar em conta. Por conseguinte, seu valor em dinheiro, ou preço, representará, tão bem quanto qualquer outra coisa, seu valor geral de troca ou seu poder de compra; e por uma conveniência óbvia, com frequência será por nós empregado neste seu caráter representativo, sob a condição de que o próprio dinheiro não varie em seu poder geral de compra, mas que os preços de todas as coisas, excetuada a que estamos eventualmente considerando, permaneçam inalterados. § 4. A distinção entre valor e preço, como acabamos de defini-los, é tão óbvia que dificilmente parece carecer de alguma ilustração. Mas, em Economia Política, os maiores erros provêm do fato de se passar por cima das verdades mais óbvias. Embora essa distinção seja muito simples, ela tem consequências com as quais é bom um leitor alheio ao assunto familiarizar-se perfeitamente desde já. Uma das principais é a seguinte. Existe um fenômeno chamado aumento geral de preços. O preço em dinheiro de todas as mercadorias pode subir. Mas não pode haver um aumento geral de valores. Seria uma contradição terminológica. O valor de A só pode aumentar pelo fato de A ser trocado por uma quantidade maior de B e C, caso em que B e C devem valer uma quantidade menor de A. Não é possível que todas as coisas subam, umas em relação às outras. Se sobe o valor de troca de metade das mercadorias existentes no mercado, os próprios termos implicam uma queda do valor de troca da outra metade; e, reciprocamente, a queda do valor de troca de metade das mercadorias implica um aumento do valor de troca de outra metade. É tão impossível coisas trocadas umas pelas outras caírem todas de valor de troca, ou subirem todas, quanto, de doze corredores, cada um ultrapassar todos os demais, ou, de cem árvores, todas elas ultrapassarem em altura umas às outras. Por mais simples que seja essa verdade, logo veremos que ela se perdeu de vista em algumas das doutrinas mais conceituadas, defendidas tanto por teóricos como pelos assim chamados homens da prática. E como primeira amostra podemos citar a grande importância dada, na imaginação da maioria das pessoas, a um aumento ou queda dos preços gerais. Pelo fato de, quando sobe o preço de qualquer artigo, a circunstância costumar indicar um aumento de seu valor, quando todos os preços aumentam as pessoas têm a impressão de que todas as coisas aumentaram simultaneamente de valor, e de que todos os donos se tornaram mais ricos. O fato de os preços em dinheiro de todas as coisas subirem ou descerem, desde que todos subam ou caiam igualmente, não tem em si importância, prescindindo de contratos vigentes. Isso não afeta nem os salários, nem os lucros, nem a renda de ninguém. Cada um recebe mais dinheiro em um caso, e menos no outro, mas nem por isso conseguem comprar, em relação a antes, quantidade maior ou menor de todas as mercadorias que se compram com dinheiro. Não faz nenhuma diferença senão a de usar mais ou menos moedas. A única coisa que nesse caso muda realmente de valor é o dinheiro, e as únicas pessoas que ganham ou perdem são as que têm dinheiro, ou aquelas que têm somas fixas de dinheiro a receber ou a pagar. Há uma diferença para beneficiários de anuidades e para credores, de uma forma, e para aqueles que têm de pagar essas anuidades, ou dívidas, de forma contrária. Em suma, ocorre um distúrbio nos contratos em dinheiro fixo, e isso é um mal, quer aconteça a favor do devedor ou a favor do credor. Quanto a transações futuras, porém, não há diferença para ninguém. Recordemos, portanto (e não faltarão ocasiões para chamar a atenção para isso), que um aumento ou uma queda geral de valores é uma contradição, e que um aumento ou uma diminuição geral de preços não é outra coisa senão uma alteração no valor do dinheiro, constituindo isso um fato totalmente sem importância, a não ser enquanto afeta contratos vigentes de recebimento e pagamento de quantias fixas de dinheiro, e enquanto (é preciso acrescentar) afeta os interesses dos produtores de dinheiro. § 5. Antes de começar a investigação das leis que regem o valor e o preço, tenho mais uma observação a fazer. Devo advertir, de uma vez por todas, que os casos que analiso são aqueles em que os valores e os preços são determinados apenas pela concorrência. Somente na medida em que são por ela determinados podem ser reduzidos a alguma lei enunciável. A suposição é que os compradores se empenham tanto em comprar barato, quanto os vendedores em vender caro. Portanto, os valores e preços aos quais se aplicam as nossas conclusões são valores e preços comerciais, preços que são cotados em listas de preços correntes, preços nos mercados atacadistas, nos quais tanto o comprar como o vender são uma questão de negócio, em que os compradores se esforçam por conhecer — e geralmente conhecem — o preço mais baixo pelo qual se pode comprar um artigo de determinada qualidade, e nos quais, portanto, é verdadeiro o axioma de que não pode haver, para o mesmo artigo, da mesma qualidade, dois preços diferentes no mesmo mercado. As nossas proposições serão verdadeiras com muito mais ressalvas para os preços no varejo — os preços pagos em lojas por artigos de consumo pessoal. Para tais artigos, muitas vezes há não somente dois, mas muitos preços, em lojas diferentes, ou até na mesma loja, uma vez que o hábito e o acaso atuam, aqui, tanto quanto causas gerais. As compras para uso particular, mesmo quando feitas por homens de negócios, nem sempre são feitas com base em princípios comerciais: os sentimentos que atuam na operação de receber a renda, e na de gastá-la, muitas vezes diferem ao extremo. Seja por indolência, seja por descuido, ou porque as pessoas consideram “chique” pagar sem questionar, 3/4 daqueles que podem comprar pagam preços muito mais altos que o necessário pelas coisas que consomem, ao passo que os pobres muitas vezes fazem o mesmo por ignorância ou por falta de discernimento, por falta de tempo para procurar e investigar, e não poucas vezes por coerção aberta ou disfarçada. Por essas razões, os preços no varejo não obedecem, com toda a regularidade que se poderia esperar, à ação das causas que determinam os preços no atacado. A influência dessas causas é sentida, em última análise, nos mercados varejistas, constituindo a fonte real de variações de preços no varejo que são de caráter geral e permanente. Mas não existe uma correspondência regular ou exata. Sapatos da mesma qualidade são vendidos em lojas diferentes a preços que diferem consideravelmente, e o preço do couro pode cair, sem que isso faça com que a classe mais rica de compradores pague menos pelos sapatos que compra. No entanto, o preço dos sapatos às vezes cai; e quando isso acontece, a causa é sempre uma circunstância geral, como o barateamento do couro; e quando o couro fica mais barato, mesmo que não apareça nenhuma diferença nas lojas frequentadas por pessoas ricas, o artesão e o trabalhador geralmente conseguem seus sapatos a preço mais baixo, havendo também uma redução visível nos preços de contrato pelos quais se faz fornecimento de sapatos a um asilo ou a um quartel. Em todo o raciocínio sobre preços, deve-se subentender implícita a condição seguinte: que todas as partes envolvidas zelem pelo seu próprio interesse. A falta de atenção a essas distinções tem levado a aplicações inadequadas dos princípios abstratos da Economia Política, e com frequência ainda maior a um descrédito indevido desses princípios, por serem comparados com fatos diferentes daqueles aos quais se aplicam, ou seja, fatos diferentes daqueles que se pode com razão esperar que obedeçam a esses princípios. CAPÍTULO II A Procura e a Oferta em sua Relação com o Valor § 1. Para que uma coisa tenha algum valor de troca, são necessárias duas condições. A coisa deve ter alguma utilidade, isto é (como já explicamos), deve servir para alguma finalidade, atender a algum desejo. Ninguém pagará um preço, ou se desfará de alguma coisa que serve a algum de seus objetivos, para adquirir uma coisa que não atenda a nenhuma de suas finalidades. Em segundo lugar, a coisa não deve ter somente alguma utilidade, mas também deve haver alguma dificuldade para consegui-la. Afirma o sr. De Quincey: “Para que algum artigo obtenha aquele tipo de valor que se entende por valor de troca, deve começar por oferecer-se como um meio para o atendimento de algum objetivo desejável; em segundo lugar, mesmo que o artigo possua incontestavelmente essa vantagem preliminar, nunca terá um valor de troca em casos em que ele puder ser obtido gratuitamente e sem esforço — sendo que, dessas duas condições que acabo de citar, ambas são necessárias como limitações. Com efeito, com frequência ocorrerá a possibilidade de atingir-se gratuitamente um objetivo desejável: basta você abaixar-se, e apanhará a coisa a seus pés; no entanto, já que a repetição contínua desse ato de abaixar-se exige um esforço que custa, logo se constatará que apanhar a coisa você mesmo não é virtualmente gratuito. Nas vastas florestas do Canadá às vezes é permitido colher gratuitamente morangos silvestres à vontade: no entanto, é tão grande o cansaço decorrente da posição de ficar abaixado, e de um trabalho tão monótono que todo mundo terá prazer se puder passar logo esse serviço a pessoas que recebem para executá-lo”. Como assinalei no capítulo precedente, a utilidade de uma coisa segundo a avaliação do comprador é o limite extremo de seu valor de troca: disso não pode passar o seu valor; para elevar esse valor até esse ponto, requerem-se circunstâncias peculiares. Isso é bem ilustrado pelo sr. De Quincey: “Entre em qualquer loja, compre o primeiro artigo que enxergar. O que determinará o preço desse artigo? Em noventa e nove casos dentre cem, simplesmente o elemento D — dificuldade de consegui-lo. O outro elemento, U, isto é, a utilidade intrínseca, não terá influência alguma. Suponhamos que a coisa (medida pelas suas utilidades) valha, para suas finalidades, 10 guinéus, de sorte que você preferiria pagar 10 guinéus a perdê-la; no entanto, se a dificuldade de a produzir só valer 1 guinéu, este será o preço dela. Mesmo assim, embora U não influa, pode-se supor que esteja ausente? Em absoluto, pois se U tivesse estado ausente, seguramente você não teria comprado o artigo, nem mesmo pelo preço mais baixo. U influi sobre você, ainda que não influa sobre o preço. Por outro lado, no centésimo caso, suporemos que as circunstâncias sejam inversas: você está no lago Superior, em um barco a vapor, navegando para uma região desabitada, a 800 milhas de distância da civilização, e sabe que não tem nenhuma chance de comprar qualquer artigo de luxo, de pouco ou de muito luxo, durante o espaço de dez anos para a frente. Um colega passageiro, de quem você terá que separar-se antes do pôr-do-sol tem uma potente caixa de rapé com música; conhecendo por experiência a força de tal brinquedo sobre seus sentimentos, a mágica com a qual por vezes ele o acalma em seus momentos agitados, você sente desejo intenso de comprá-lo. Na hora de partir de Londres você havia esquecido de comprá-lo; agora tem uma última chance. Mas o proprietário, conhecendo sua situação não menos do que você, está decidido a jogar com o valor intrínseco desse artigo, em sua avaliação individual, para os seus objetivos individuais, esticando o máximo possível a corda do U. Ele não quer saber de D como poder ou fator mitigador no caso; e ao final, embora por 6 guinéus por peça em Londres ou Paris, você tivesse podido encher uma carroça com tais caixas, acaba preferindo pagar 60 guinéus a perdê-la quando tiver soado a última batida do relógio, a qual o intima a comprar agora, ou então a perdê-la para sempre. Aqui, como no caso anterior, só atua um elemento: no caso anterior foi D, agora é U. Mas em última análise, D não esteve ausente, embora não tenha atuado. A inércia de D permitiu a U gerar seu efeito total. Retirando-se a compressão prática de D, U salta como água em uma bomba quando libertada da pressão do ar. No entanto é evidente que D estava presente nos seus pensamentos, ainda que o preço tenha sido regulado por outro fator: tanto porque U e D têm de coexistir para criar qualquer caso de valor de troca que seja, como porque, inegavelmente, você leva muito em conta esse D, a dificuldade extrema de obtenção (que aqui é a máxima possível, a saber, uma impossibilidade) antes de você consentir no alto preço de U. O D especial desapareceu, mas é substituído, em seus pensamentos, por um D ilimitado. Sem dúvida, você se submeteu ao extremo a U, como força reguladora do preço, mas fez isso sob o senso da presença latente de D. Contudo, D está tão longe de exercer alguma força positiva, que a retirada de D como fator atuante sobre o preço cria, digamos assim, um vácuo total, sendo através desse vácuo que U avança e atinge seu grau mais alto e último”. Esse caso, no qual o valor é inteiramente regulado pelas necessidades ou desejos do comprador, é o caso de monopólio estrito e absoluto, em que, pelo fato de o artigo desejado só poder ser obtido de uma pessoa, esta pode cobrar qualquer preço, abaixo daquele ponto em que não haveria nenhum comprador. Mas nem mesmo o monopólio completo tem necessariamente como consequência que o valor seja forçado até esse limite último, conforme veremos ao estudarmos a lei que rege o valor, na medida em que este, depende do outro elemento, a dificuldade de obtenção. § 2. A dificuldade de obtenção que determina o valor não é sempre do mesmo tipo. Por vezes ela consiste em uma limitação absoluta da oferta. Há coisas cuja quantidade é materialmente impossível aumentar além de determinados limites restritos. Tais são os vinhos que só podem ser produzidos em circunstâncias especiais de solo, clima e exposição das uvas ao sol. Tais são também esculturas antigas, pinturas de mestres antigos, livros ou moedas raros, ou outras peças de antiquário. Entre eles podem também ser contadas casas, bem como terreno para construção em uma cidade de extensão definida (como Veneza, ou qualquer cidade fortificada, onde as fortificações são necessárias para a segurança), os locais mais desejáveis em qualquer cidade, casas e parques particularmente favorecidos por beleza natural, em lugares em que essa vantagem é incomum. Em potencial, também toda e qualquer terra é uma mercadoria desse gênero, podendo isso acontecer praticamente em regiões totalmente ocupadas e cultivadas. Mas há outra categoria (abarcando a maior parte de todas as coisas que são compradas e vendidas), em que o obstáculo para as conseguir consiste apenas no trabalho e nas despesas que a produção da mercadoria requer. Sem determinado trabalho e despesas não se consegue ter tais coisas, mas, se alguém estiver disposto a submeter-se a esse trabalho e a essa despesa, não precisa haver limite para multiplicar o produto. Se houvesse trabalhadores e máquinas em número suficiente poder-se-ia produzir algodão, lã ou linho em milhares de jardas para cada jarda atualmente manufaturada. Sem dúvida, com isso se atingiria um limite em que um aumento ulterior seria inexequível pela incapacidade da terra de fornecer mais matéria-prima. Entretanto, não há necessidade, para qualquer finalidade da Economia Política, de considerar um tempo em que esse limite ideal poderia tornar-se um limite prático. Há um terceiro caso, que está entre os dois anteriores, que é mais complexo e que no momento apenas indicarei, mas cuja importância em Economia Política é extremamente grande. Há produtos que podem ser multiplicados em extensão indefinida, aplicando trabalho e gastos, mas não por um montante fixo de trabalho e gastos. A determinado custo só se pode produzir uma quantidade limitada de modo que se houver necessidade de mais, o custo de produção será maior. Nessa categoria enquadra-se a produção agrícola, como temos repetido muitas vezes, e também, em geral, todos os produtos naturais da terra; e dessa peculiaridade decorrem consequências muito importantes, uma das quais é a necessidade de limitar a população, e outra, o pagamento de renda da terra. § 3. Sendo essas as três categorias nas quais se têm de enquadrar — em uma ou em outra — todas as coisas compradas e vendidas, examiná-las-emos pela ordem. Trataremos primeiro das coisas absolutamente limitadas em quantidade, tais como esculturas ou pinturas antigas. Quanto a essas coisas, costuma-se dizer que seu valor depende da raridade; mas a expressão não é suficientemente definida para servir ao nosso escopo. Outros dizem, com pouco mais de precisão, que seu valor depende da procura e da oferta. Mas mesmo essa afirmação demanda muita explicação para que se possa dizer que ela exprime claramente a relação entre o valor de uma coisa e as causas das quais tal valor decorre como efeito. A oferta de um artigo é uma expressão inteligível: significa a quantidade oferecida à venda, a quantidade que pode ser obtida, em determinado tempo e lugar, por aqueles que desejam comprá-la. Mas que se entende por procura? Não o simples desejo em relação ao artigo. Um mendigo pode desejar um diamante, mas seu desejo, por maior que seja, não terá nenhuma influência sobre o preço. Por isso, os autores têm dado um significado mais restrito à procura, definindo-a como sendo o desejo de possuir, associado ao poder de compra. Para distinguir entre procura nessa acepção técnica e procura que é sinônimo de desejo, denominam a primeira de procura efetiva (Adam Smith, que introduziu a expressão “procura efetiva”, empregou-a para designar a procura daqueles que estão dispostos e são capazes de pagar pela mercadoria o que ele chama de preço natural, isto é, aquele preço que possibilita em caráter permanente a produção e a comercialização da mesma. — Ver seu capítulo sobre o preço natural e o preço de mercado). Dada essa explicação, costuma-se supor que não resta nenhuma outra dificuldade, e que o valor depende da razão entre a procura efetiva, assim definida, e a oferta. Contudo, essas palavras não satisfazem a ninguém que exija ideias claras, com expressão inteiramente precisa. Aliás, sempre terá que conter certa confusão uma expressão tão inapropriada como a de razão entre duas coisas que não têm a mesma denominação. Que razão pode haver entre quantidade e desejo, ou mesmo desejo associado com poder? Uma razão entre procura e oferta só é inteligível se por procura entendermos a quantidade procurada, e se a razão que se quer exprimir é a que existe entre a quantidade procurada e a quantidade em oferta. Mas também aqui, a quantidade procurada não é uma quantidade fixa, mesmo no mesmo tempo e lugar; ela varia conforme o valor: se a coisa for barata, a procura por ela costuma ser maior do que quando ela é cara. Por isso, em parte a procura depende do valor. Mas anteriormente estabelecemos que o valor depende da procura. Como sair dessa contradição? Como resolver esse paradoxo, de duas coisas que dependem uma da outra? Se bem que a solução dessas dificuldades seja bastante óbvia, as dificuldades em si mesmas não são imaginárias; e se lhes dou tanta importância, é porque estou certo de que elas de uma forma ou de outra acossam todo pesquisador de matéria que não as encarou abertamente e não as percebeu com clareza. Indiscutivelmente, a verdadeira solução deve ter sido dada muitas vezes, embora não consiga citar ninguém que a tenha dado antes de mim, se excetuarmos o pensador eminentemente claro e o expositor hábil que é J. B. Say. Não obstante isso, teria imaginado que essa solução deveria ser familiar a todos os economistas políticos, se os escritos de vários deles não evidenciassem certa falta de clareza sobre o assunto e se o exemplo do sr. De Quincey não provasse que é possível ser dotado de grande talento intelectual e estar profundamente familiarizado com o assunto em questão, e ao mesmo tempo não reconhecer por inteiro e negar implicitamente essa solução. § 4. Significando, com o termo procura, a quantidade procurada e tendo em mente que esta não é uma quantidade fixa, mas em geral varia de acordo com o valor, suponhamos que a procura, em determinado momento, supere a oferta, isto é, há pessoas dispostas a comprar, ao valor do mercado, uma quantidade superior à que é oferecida à venda. Do lado dos compradores surge a concorrência, e o valor sobe: mas quanto? À mesma razão da falta (podem supor alguns): se a demanda excede a oferta em 1/3, o valor sobe 1/3. De maneira alguma! Pois, quando o valor sobe 1/3, a demanda ainda pode exceder a oferta; mesmo quando o valor aumenta, pode haver maior quantidade de demanda do que deveria haver; e continuaria a concorrência entre os compradores. Se o artigo for de primeira necessidade — de maneira que, antes de renunciarem a ele, as pessoas estão dispostas a pagar por ele qualquer preço — uma falta de 1/3 pode dobrar, triplicar ou quadruplicar o preço (Neste país, o preço do trigo subiu de 100 a 200% a mais, quando a deficiência máxima computada das safras não chegou a estar mais do que entre 1/6 e 1/3 abaixo de uma média, e quando tal deficiência foi aliviada por fornecimentos vindos do exterior. Se houvesse uma deficiência das colheitas no montante de 1/3, sem que tivesse havido alguma sobra de um ano anterior, e sem que tivesse havido nenhuma chance de a situação ser aliviada por fornecimento por importação, o preço poderia quintuplicar, sextuplicar, ou até decuplicar). Ou então, ao contrário, a concorrência pode cessar antes mesmo de o valor ter subido na mesma proporção que a falta. Uma subida inferior a 1/3 pode fazer com que o artigo ultrapasse as possibilidades ou as inclinações dos compradores para comprar a quantidade toda. Em que ponto, então, há de parar a subida do preço? Naquele ponto, qualquer que ele seja, em que a procura se torna igual à oferta: quando se atingir aquele preço que elimina da procura o terço extra, ou faz surgir mais vendedores, suficientes para atendê-lo. Quando, de um desses modos, ou por uma combinação dos dois, a procura igualar a oferta — e não a ultrapassar —, neste ponto o valor deixará de subir. O caso inverso é igualmente simples. Em vez de uma procura além da oferta, suponhamos uma oferta que supere a procura. Aqui a concorrência será entre os vendedores: a quantidade extra só pode encontrar mercado suscitando uma procura adicional igual a essa mesma quantidade. Isso ocorre barateando a mercadoria; o valor cai e faz com que o artigo fique ao alcance de mais clientes, ou então induz aqueles que já eram consumidores a fazerem compras maiores. A queda de valor exigida para restabelecer a igualdade difere conforme o caso. Os tipos de coisa em que essa queda costuma atingir o máximo estão nas duas extremidades da escala: artigos absolutamente necessários, ou aqueles artigos de luxo especiais, cujo gosto está limitado a uma classe pouco numerosa. No caso dos alimentos, uma vez que aqueles que já têm o suficiente não procuram mais em razão do baixo preço, senão que antes gastam em outras coisas o que economizam em alimentos, o aumento de consumo ocasionado pelo baixo preço absorve, como demonstra a experiência, apenas pequena parte da oferta extra gerada por uma colheita abundante, e a queda praticamente cessa apenas quando os agricultores retiram seu trigo e o retêm, na expectativa de obterem um preço melhor, ou então pelas operações de especuladores que compram trigo quando o preço é baixo e o estocam para colocá-lo à venda quando a necessidade é mais urgente. Seja que a procura e a oferta se igualem por efeito de um aumento da procura — resultado do baixo preço —, seja que isso aconteça pela retirada de uma parte da oferta, em ambos os casos a procura e a oferta se igualam. Vemos, pois, que o conceito de razão, entre procura e oferta, não vem a propósito, nada tem a ver com a questão; a analogia matemática apropriada é a de uma equação? A procura e a oferta, a quantidade em procura e a quantidade em oferta tendem a igualar-se. Se em algum momento forem desiguais, a concorrência se encarrega de igualá-las, e a maneira como se faz isso é por meio de um ajuste do valor. Se a procura cresce, aumenta o valor; se a procura decresce, baixa o valor; por outro lado, se a oferta cai, o valor aumenta, e se a oferta aumenta, o valor cai. A subida ou a queda continua, até que a procura e a oferta se igualem novamente entre si: e o valor que um artigo terá em qualquer mercado não é outro senão o valor que, naquele mercado, é dado por uma procura exatamente suficiente para atender a oferta existente ou esperada. Essa é, pois, a lei do valor, com respeito a todos os artigos não suscetíveis de serem publicados à vontade. Sem dúvida, tais artigos são exceções. Há outra lei para aquela categoria muito mais vasta de coisas que podem ser multiplicadas indefinidamente. Apesar disso, é necessário conceituar claramente e reter com firmeza a teoria desse caso excepcional. Primeiramente, constatar-se-á que ela ajuda muito a tornar inteligível o caso mais comum; segundo, o princípio que rege a exceção é mais amplo e abarca mais casos do que à primeira vista se poderia supor. § 5. São poucos os produtos cuja oferta é limitada por natureza e necessariamente. Mas essa limitação pode ocorrer com qualquer artigo, em virtude de algum artifício. Qualquer mercadoria pode ser objeto de monopólio: como o chá, neste país, até 1834, o fumo, na França, o ópio, na Índia britânica, atualmente [1848]. Costuma-se supor que é arbitrário o preço de uma mercadoria monopolizada, dependendo da vontade do monopolista, e sendo limitado apenas (como no caso do sr. De Quincey, relativo à caixa de música nas selvas da América) pela avaliação extrema que o comprador faz do valor da mercadoria para ele mesmo. Isso é verdade em um sentido, e no entanto não constitui exceção à regra segundo a qual o valor depende da oferta e da procura. O monopolista pode fixar o valor tão alto quanto quiser, desde que seja abaixo daquilo que o consumidor ou não poderia pagar ou não pagaria; mas ele só pode fazer isso limitando a oferta. A Companhia Holandesa das Índias Orientais conseguiu preço de monopólio para a produção das ilhas produtoras de especiarias, mas para isso foi obrigada, em estações favoráveis, a destruir parte da safra. Se ela tivesse continuado a vender tudo o que produzia, teria sido obrigada a forçar um mercado, diminuindo o preço, baixando-o talvez tanto, que teria recebido, pela quantidade maior, um retorno total menor do que pela quantidade inferior efetivamente vendida: pelo menos a Companhia mostrou que assim pensava, destruindo o excedente. Mesmo no lago Superior, o mascate do sr. De Quincey não poderia ter vendido sua caixa de rapé por 60 guinéus se possuísse duas caixas musicais e desejasse vender ambas. Supondo que o preço de custo de cada uma delas fosse de 6 guinéus, ele teria aceito 70 guinéus pelas duas, de preferência a 60 guinéus por uma só; ou seja, embora seu monopólio fosse o mais cerrado possível, teria vendido as caixas a 35 guinéus cada uma, apesar de 60 guinéus não ultrapassarem a avaliação que o comprador faz do artigo, para suas finalidades pessoais. Portanto, o valor de monopólio não depende de nenhum princípio especial, senão que é apenas uma variante do caso comum de procura e oferta. Por outro lado, embora sejam poucas as mercadorias cuja oferta não é em cada momento e para sempre suscetível de aumento, temporariamente isso pode ocorrer com qualquer mercadoria, e, em se tratando de algumas delas, esse é o caso habitual. Os produtos agrícolas, por exemplo, não podem aumentar em quantidade antes da safra subsequente; com efeito, a maior quantidade de trigo que se pode conseguir às vezes durante um ano inteiro que está pela frente, é apenas a quantidade de trigo já existente no mundo. Durante esse intervalo, o trigo praticamente é como coisas cuja quantidade não há condições de aumentar. No caso da maior parte das mercadorias, requer-se certo tempo para aumentar sua quantidade, e se a procura crescer, neste caso, até que a oferta consiga ajustar-se à procura, o valor aumentará ao ponto de ajustar a procura à oferta. Há outro caso exatamente inverso a esse. Existem alguns artigos cuja oferta pode ser aumentada indefinidamente, mas não pode ser diminuída rapidamente. Há coisas tão duráveis, que a quantidade existente é sempre muito grande em confronto com a produção anual. O ouro, bem como os metais de maior duração, são coisas desse gênero, o mesmo acontecendo com as casas. A oferta de tais coisas pode ser reduzida de repente destruindo-as, mas o dono só poderia ter interesse nisso se detivesse o monopólio do respectivo artigo e tivesse condições de compensar-se da destruição de uma parte, mediante o aumento de valor do remanescente. Por isso, o valor de tais coisas pode continuar por muito tempo tão baixo, ou seja, pode ser tão reduzido o excedente de sua oferta ou o decréscimo de sua procura, que se interrompa a produção ulterior, já que a diminuição da oferta, em virtude do desgaste, é um processo tão lento, que se requer longo tempo para restabelecer o valor original, mesmo suspendendo totalmente a produção. Durante esse intervalo, o valor será regulado exclusivamente pela oferta e pela procura, subindo de maneira muito gradual, à medida que o estoque existente se esgota, até que haja novamente um valor compensador, e a produção retome seu curso. Finalmente, há mercadorias que, embora sua quantidade possa aumentar ou diminuir muito, até em extensão ilimitada, têm valor que nunca dependerá de outra coisa senão da procura e da oferta. Esse é, em particular, o caso da mão-de-obra, de cujo valor tratamos copiosamente no Livro anterior — e, além disso, há muitos casos em que constataremos ser necessário invocar esse princípio para resolver problemas difíceis relacionados com o valor de troca. Daremos exemplos específicos disso ao tratarmos dos Valores Internacionais, isto é, das condições de intercâmbio de coisas produzidas em países diferentes, ou para falar de modo mais geral, em lugares distantes. Não podemos, porém, adentrar-nos em tais questões antes de termos examinado o caso de mercadorias cuja quantidade se pode aumentar indefinidamente e à vontade, e antes de havermos determinado qual é a lei — diferente da lei da procura e da oferta — que regula os valores permanentes ou médios dessas mercadorias. É o que faremos no capítulo seguinte. CAPÍTULO III O Custo da Produção em sua Relação com o Valor § 1. Quando a produção de um artigo resulta do trabalho e dos gastos feitos, seja o artigo suscetível de multiplicação ilimitada ou não, há um valor mínimo que representa a condição essencial para que ele seja permanentemente produzido. O valor, em qualquer momento determinado, é o resultado da oferta e da procura, sendo isso sempre necessário para criar um mercado para a oferta existente. Entretanto, se tal valor não for suficiente para compensar o custo da produção, e, além disso, para assegurar o lucro normal que se espera, não se continuará a produzir a mercadoria. Os donos de capital não continuarão permanentemente a produzi-la com perda. Nem sequer continuarão a produzi-la com um lucro inferior àquele do qual têm condições de viver. As pessoas cujo capital já estiver empatado no negócio, e que não puderem liberar com facilidade esse capital, continuarão por tempo considerável a operar sem lucro, sabendo-se de casos em que continuaram a operar mesmo com perda, aguardando tempos melhores. Mas não o farão indefinidamente, ou quando nada há que indique probabilidade de as coisas melhorarem. Não se investirá capital novo em um negócio, se não houver uma esperança, não somente de algum lucro, mas de um lucro tão grande (levando-se em conta o grau em que se pode optar livremente pela aplicação, sob outros aspectos) quanto o que se pode esperar em qualquer outra aplicação, naquele momento e lugar. Quando é evidente ser impossível conseguir tal lucro, se as pessoas não retiram efetivamente seu capital já empatado, pelo menos se abstêm de repô-lo, quando estiver consumido. Por isso, podemos denominar o custo de produção, juntamente com o lucro normal, preço ou valor necessário de todas as coisas produzidas com mão-de-obra e capital. Ninguém produz de boa vontade se a perspectiva for de perda. Toda pessoa que age assim, age baseada em cálculos errôneos, que corrigirá tão logo puder. Quando uma mercadoria puder ser produzida não apenas por mão-de-obra e capital, mas também por esses dois fatores em quantidade indefinida, esse valor necessário — o mínimo com o qual os produtores se contentarão — é também, no caso de a concorrência ser livre e ativa, o máximo que podem esperar. Se o valor da mercadoria é tal que pague o custo da produção não somente com a taxa de lucro costumeira, mas com uma taxa de lucro mais elevada, o capital entra na corrida para partilhar desse ganho extra, e, fazendo aumentar a oferta desse artigo, acaba reduzindo o valor do mesmo. Isso não é uma simples suposição ou conjectura, mas um fato conhecido daqueles que estão familiarizados com operações comerciais. Toda vez que se apresenta uma nova linha de comércio, que ofereça uma esperança de lucros fora do comum, e toda vez que se acredita que um comércio ou manufatura estabelecida proporcionará um lucro superior ao usual, é certo que dentro em pouco haverá uma produção ou importação tão grande da mercadoria, que não só acabará o lucro extra, mas geralmente este acaba ficando aquém desta marca, fazendo o valor dela baixar de forma tão excessiva quanto havia subido anteriormente — isto, até que o excesso de oferta seja corrigido por uma suspensão total ou parcial da produção ulterior. Como já indiquei, essas variações da quantidade produzida não pressupõem ou requerem que alguma pessoa mude de profissão. Aqueles cujo negócio prospera aumentam sua produção aproveitando em maior escala o crédito de que dispõem, ao passo que aqueles que não estão conseguindo o lucro normal restringem suas operações, e (em terminologia manufatureira) trabalham com capacidade ociosa. É dessa maneira que com segurança e rapidez se opera a igualização talvez não dos lucros, mas ao menos das expectativas de lucro, em ocupações diferentes. Por conseguinte, como norma geral, há a tendência de as coisas serem trocadas umas pelas outras a valores tais que possibilitam a cada produtor repor o custo da produção com o lucro normal; em outras palavras, a valores que proporcionarão a todos os produtores a mesma taxa de lucro para o que gastaram. Mas, para que o lucro possa ser igual quando é igual o gasto, isto é, o custo de produção, em média as coisas devem poder ser trocáveis umas pelas outras à razão de seu custo de produção: coisas cujo custo de produção for o mesmo devem ter o mesmo valor, pois somente assim um gasto igual dará um retorno igual. Se um arrendatário, com um capital igual a 1 000 alqueires de trigo, puder produzir 1 200 alqueires, com um lucro de 20%, qualquer outra coisa que puder ser produzida ao mesmo tempo com um capital de 1 000 alqueires deve valer, isto é, deve ter um valor de troca de 1 200 alqueires, do contrário o produtor estaria ganhando ou mais ou menos do que 20%. Adam Smith e Ricardo denominaram esse valor de uma coisa, que é proporcional a seu custo de produção, valor natural (ou seu preço natural). Com isso queriam dizer o ponto em torno do qual o valor oscila, e para o qual tende sempre a voltar — o valor central, para o qual, como se expressa Adam Smith, o valor de mercado de uma coisa está constantemente tendendo, sendo que qualquer desvio em relação a esse valor central é apenas uma irregularidade temporária, a qual, no momento em que ocorrer, aciona forças que tendem a corrigi-la. Em uma média de anos suficiente para possibilitar que as oscilações para um dos lados da linha central sejam compensadas pelas oscilações para o outro lado, o valor de mercado concorda com o valor natural, mas é muito raro que coincida exatamente com ele em algum momento específico. O mar em toda parte tende a um nível único, mas nunca está a um nível exato; sua superfície é constantemente encrespada por ondas, e muitas vezes agitada por tempestades. Basta que nenhum ponto, ao menos em alto-mar, tenha permanentemente nível mais alto que outro. Cada lugar ora apresenta nível mais elevado, ora nível mais baixo; mas o oceano como tal conserva seu nível. § 2. A influência latente que faz com que os valores das coisas a longo prazo concordem com o custo de produção é a variação que, se assim não fora, ocorreria na oferta da mercadoria. A oferta aumentaria se a coisa continuasse a ser vendida acima da razão de seu custo de produção, e diminuiria se caísse abaixo dessa razão. Mas nem por isso devemos supor seja necessário que a oferta diminua ou aumente efetivamente. Suponhamos que o custo de produção de uma coisa seja barateado por alguma invenção mecânica, ou aumente por um imposto. Em pouco tempo, se não imediatamente, o valor da coisa cairia, no primeiro caso, e aumentaria no segundo — e assim seria porque, se assim não fora, a oferta, no primeiro caso, aumentaria até o preço cair, e no segundo caso diminuiria até o preço subir. Por esse motivo, e devido ao conceito errôneo de que o valor depende da proporção entre a procura e a oferta, muitos supõem que essa proporção deve mudar toda vez que houver qualquer alteração no valor da mercadoria; e que o valor não pode cair em razão de uma diminuição do custo de produção, a menos que a oferta aumente permanentemente, nem aumentar, a menos que a oferta diminua permanentemente. Mas a realidade não é esta: não há necessidade que ocorra uma alteração efetiva da oferta, e quando esta existir, a alteração, se permanente, não é a causa, mas a consequência da mudança de valor. Certamente, se a oferta não pudesse aumentar, nenhuma diminuição do custo de produção haveria de fazer baixar o valor; mas não há necessidade alguma de que deva ocorrer esse aumento da oferta. Muitas vezes basta a simples possibilidade: os comerciantes têm consciência do que aconteceria, e sua concorrência mútua os faz antecipar o resultado baixando o preço. Se haverá ou não oferta permanente maior da mercadoria depois de baratear a produção da mesma, depende de uma questão bem diferente, a saber, se, com o valor reduzido, haverá necessidade de uma quantidade maior. É muito comum haver necessidade de uma quantidade maior, mas não necessariamente. “Uma pessoa, diz o sr. De Quincey, compra um artigo de aplicabilidade instantânea a suas próprias finalidades com tanto mais prontidão e em tanto mais quantidades quando calhar de ser mais barato. Se os lenços de seda caírem para a metade do preço, talvez compre o triplo; mas não comprará mais motores a vapor pelo fato de o preço deles baixar. Sua demanda ou procura de motores a vapor é quase sempre predeterminada pelas circunstâncias de sua situação. Na medida em que a pessoa não considera sequer o custo como um todo, o que leva em consideração é muito mais o custo de manufatura desse motor do que o custo na compra do mesmo. Entretanto, há muitos artigos para os quais o mercado é absoluta e simplesmente limitado por um sistema preexistente, ao qual tais artigos estão vinculados, como partes ou membros subordinados. Haveria porventura maneira de forçar uma venda mais abundante dos indicadores ou mostradores de relógios, só porque essas peças específicas baixaram de preço, continuando-se a vender peças internas em menor quantidade? Seria possível aumentar a venda de adegas para vinho sem aumentar a venda de vinho? Ou então, seria porventura possível comercializar mais ferramentas para construtores de navios estando a construção naval estacionária? (...) Ofereça-se a uma cidade de 3 mil habitantes um estoque de carros fúnebres, e se verá que nem os preços mais baixos tentarão essa cidade a comprar mais do que um. Ofereça-se um estoque de iates, cujo custo principal está em tripulá-los, abastecê-los de alimentos e repará-los, e se verá que a simples diminuição do preço de compra não tentará ninguém a comprar efetivamente o produto a não ser que se trate de pessoa cujos hábitos e propensões já o tinham anteriormente induzido a fazer tal aquisição. Assim acontece também com a indumentária profissional para bispos, advogados, estudantes de Oxford.” No entanto, ninguém duvida de que o preço e o valor de todas essas coisas eventualmente baixariam em decorrência de alguma diminuição de seu custo de produção, e baixariam devido ao medo que se tem de novos concorrentes, e de um aumento da oferta, se bem que o grande risco ao qual um novo concorrente se exporia, em se tratando de um artigo não suscetível de ter um aumento considerável de seu mercado, possibilitasse aos comerciantes estabelecidos manterem seus preços originais por muito mais tempo do que o poderiam fazer, caso se tratasse de um artigo que oferecesse mais estímulo à concorrência. Invertamos agora o caso, e suponhamos que o custo de produção aumente, como, por exemplo, pela imposição de um tributo sobre a mercadoria. O valor aumentaria, e provavelmente, de imediato. Diminuiria a oferta? Somente se o aumento do valor fizesse com que diminuísse a procura. Apareceria logo se esse efeito seguiria ou não; no caso positivo, o valor diminuiria um pouco, devido ao excesso de oferta, até que se reduzisse a produção, quando então aumentaria novamente. Há muitos artigos nos quais se requer um aumento bem considerável de preço para reduzir substancialmente a procura: em particular, artigos de primeira necessidade, tais como o alimento habitual do povo na Inglaterra, o pão de trigo; provavelmente, ao atual preço de custo, se consome mais ou menos tanto pão de trigo quanto se consumiria se o preço fosse consideravelmente mais baixo, mantendo-se inalterada a população atual. No entanto, é sobretudo em tais coisas que o preço baixo ou alto é popularmente confundido com escassez. O alimento pode subir de preço por efeito de escassez, como depois de uma má colheita; contudo, o preço alto (por exemplo) que é efeito da taxação, ou de leis do trigo, nada tem a ver, absolutamente, com a oferta insuficiente; tais causas não fazem diminuir muito a quantidade de alimento em um país; são outras coisas, mais do que os alimentos, que têm sua quantidade reduzida por tais causas, já que, pelo fato de aqueles que pagam mais pelo alimento não terem tanto para gastar de outra forma, a produção de outras coisas se restringe aos limites de uma procura menor. É, pois, estritamente correto dizer que o valor de coisas cuja quantidade não se pode aumentar à vontade não depende (a não ser acidentalmente, e durante o tempo necessário para a produção ajustar-se) da procura e da oferta; pelo contrário é a procura e a oferta que dependem do valor. Existe uma procura de determinada quantidade da mercadoria ao seu valor natural ou de custo, sendo a ela que a oferta procura ajustar-se a longo prazo. Quando em qualquer momento a oferta não consegue ajustar-se a essa procura, isso ocorre ou por efeito de cálculos malfeitos, ou por efeito de uma mudança ocorrida em alguns dos elementos do problema: ou no valor natural — isto é, no custo de produção —, ou na procura, devido a uma alteração havida no gosto do público, ou no número ou na riqueza dos consumidores. Tais causas perturbadoras têm muita probabilidade de ocorrer, e quando ocorre efetivamente alguma delas, o valor de mercado do artigo deixa de coincidir com o valor natural. Continua de pé a lei real da procura e da oferta, a equalização ou equilíbrio entre as duas: se for necessário um valor diferente do valor natural para igualar a procura à oferta, o valor de mercado será diferente do valor natural, mas somente por algum tempo, já que a tendência permanente da oferta é ajustar-se à procura que, por experiência, se constata existir para a mercadoria, quando vendida por seu valor natural. Se a oferta for ou superior ou inferior a essa procura, isso ocorre acidentalmente, proporcionando uma taxa de lucro ou superior ou inferior à normal — isso, porém, não poderá continuar por muito tempo em regime de concorrência livre e intensa. À guisa de recapitulação: a procura e a oferta comandam o valor de todas as coisas cuja quantidade não comporta aumento indefinido — salvaguardado o princípio de que, mesmo para essas coisas, se forem produzidas com trabalho, há um valor mínimo, determinado pelo custo de produção. Ao contrário, em todas as coisas cuja quantidade pode ser aumentada indefinidamente a procura e a oferta determinam apenas as perturbações do valor, durante um período que não pode superar a duração do tempo necessário para alterar a oferta. Embora, nesse caso, a procura e a oferta regulem dessa forma as oscilações do valor, elas mesmas obedecem a uma força superior, que faz com que o valor tenda em direção ao custo de produção — força esta que manteria esse valor igual ao custo de produção, se continuamente não surgissem novas influências perturbadoras para fazer o valor desviar novamente do custo de produção. Para prosseguirmos na mesma metáfora, a procura e a oferta sempre buscam avidamente um equilíbrio; mas a condição de equilíbrio estável ocorre efetivamente quando as coisas são trocadas umas pelas outras com base em seu custo de produção, ou, na expressão que temos utilizado, quando o valor das coisas é o seu valor natural. CAPÍTULO IV Análise Última do Custo de Produção § 1. Os elementos que compõem o custo de produção foram apresentados na primeira parte desta pesquisa. Constatamos que o principal deles, e tão primordial a ponto de ser praticamente o único, é a mão-de-obra. O que a produção de uma coisa custa a seu produtor, ou à sua série de produtores, é a mão-de-obra despendida em produzi-la. Se considerarmos como produtor o capitalista que efetua os adiantamentos, a palavra mão-de-obra está em lugar da palavra salários — o que o produto lhe custa são os salários que ele tem de pagar. Sem dúvida, à primeira vista isso parece ser apenas uma parte de seu gasto, pois ele não somente pagou salários aos trabalhadores, mas ainda lhes forneceu ferramentas, matérias-primas e talvez também construções. Mas acontece que essas ferramentas, matérias-primas e construções foram produzidas por mão-de-obra e capital, e o valor deles, como o do artigo para cuja produção servem, depende do custo de produção, que por sua vez pode ser decomposto em mão-de-obra. O custo de produção de tecido fino de lã preta não consiste totalmente nos salários dos tecelões, e são apenas estes que o fabricante do tecido paga diretamente. Consiste também nos salários de fiandeiros e cardadores de lã, e podemos dizer, dos pastores, sendo que tudo isso o fabricante de roupas pagou no preço do fio. Consiste também nos salários de construtores e oleiros, que ele reembolsou no preço de contrato de implantação de sua fábrica. Em parte, consiste também nos salários dos fabricantes das máquinas, nos dos fundidores do ferro e nos dos mineiros. E a estes se devem acrescentar os salários dos transportadores que transportaram quaisquer objetos e utensílios de produção ao local em que tinham de ser utilizados, e o próprio produto ao local em que este deve ser vendido. Por isso, o valor das mercadorias depende principalmente (logo veremos se depende somente disto) da quantidade de trabalho requerida para sua produção, incluindo no conceito de produção o do transporte ao mercado. “Ao calcularmos, diz Ricardo, o valor de troca de meias, por exemplo, constataremos que seu valor, em comparação com outras coisas, depende da quantidade total de trabalho necessário para manufaturá-las e comercializá-las. Primeiro, há o trabalho necessário para lavrar a terra na qual se cultiva o algodão bruto; segundo, o trabalho de levar o algodão ao local em que as meias serão manufaturadas, o que inclui parte do trabalho feito para construir o navio no qual o algodão é transportado, e que é cobrado no frete das mercadorias; terceiro, o trabalho do fiandeiro e do tecelão; quarto, parte do trabalho do engenheiro, do ferreiro e do carpinteiro, que levantaram as construções e instalaram as máquinas com as quais se fazem as meias; quinto, o trabalho do varejista e de muitos outros, que é supérfluo detalhar mais. A soma conjunta desses vários tipos de trabalho determina a quantidade de outras coisas pelas quais essas meias podem ser trocadas, enquanto o mesmo preço de várias quantidades de trabalho executadas nessas outras coisas determinará igualmente a porção delas que será dada em troca pelas meias. “Para convencer-nos de que esse é o fundamento real do valor de troca, suponhamos que se faça algum aperfeiçoamento no sentido de economizar mão-de-obra, em qualquer um dos vários processos pelos quais o algodão bruto deve passar antes de as meias manufaturadas serem levadas ao mercado para serem trocadas por outras coisas, e observemos os efeitos que seguirão. Se para cultivar o algodão bruto se precisasse de menos pessoas, ou se na navegação se precisasse de menos marinheiros, ou menos construtores para construir o navio em que o algodão chegasse até nós, se menos pessoas tivessem sido empregadas em levantar as construções e as máquinas, ou então se estas, uma vez instaladas, fossem mais eficientes, as meias inevitavelmente baixariam de valor e equivaleriam a uma quantidade menor de outras coisas. Baixariam de valor porque seria necessária uma quantidade menor de mão-de-obra para sua produção, e por isso poderiam ser trocadas por uma quantidade menor daquelas coisas nas quais não se tivesse reduzido mão-de-obra. "A economia na utilização da mão-de-obra nunca deixa de reduzir o valor relativo de uma mercadoria, quer a economia ocorra na mão-de-obra necessária para manufaturar a própria mercadoria, quer se faça na mão-de-obra necessária para a formação do capital por meio do qual ela é produzida. Nos dois casos, o preço das meias cairia, seja porque foram empregadas menos pessoas na função de descorador, fiandeiro e tecelão, pessoas diretamente necessárias para a manufatura delas, seja porque se empregaram menos pessoas na função de marinheiro, transportador, engenheiro e ferreiro, pessoas envolvidas de forma mais indireta na manufatura das meias. No primeiro caso, toda a economia de mão-de-obra recairia sobre as meias, pois essa parte da mão-de-obra se limitou exclusivamente às meias; no segundo, somente uma parte recairia nas meias, pois o restante é aplicado a todas aquelas mercadorias para a produção das quais serviram as construções, as máquinas e o transporte." § 2. O leitor deve ter observado que Ricardo se exprime como se a quantidade de mão-de-obra necessária para produzir uma mercadoria e comercializá-la fosse a única coisa de que depende o valor da mesma. Mas já que o custo de produção para o capitalista não é a mão-de-obra, mas os salários, e já que os salários podem ser maiores ou menores, sendo igual o contingente de mão-de-obra, pareceria que o valor do produto não pode ser determinado unicamente pela quantidade de mão-de-obra, mas pela quantidade de mão-de-obra junto com a remuneração, e que os valores em parte devem depender dos salários. A fim de decidir esse ponto, tem-se de considerar que o valor é um termo relativo — que o valor de uma mercadoria não é uma denominação para designar uma qualidade inerente e real da própria coisa, mas significa a quantidade de outras coisas que se pode obter em troca dessa mercadoria. O valor de uma coisa sempre deve ser entendido em relação a alguma outra coisa, ou a coisas em geral. Ora, a relação de uma coisa com outra não pode ser alterada por nenhuma causa que afete a ambas da mesma forma. Um aumento ou diminuição dos salários gerais é um fato que afeta da mesma forma todas as mercadorias, e por isso tal fato não constitui razão para que mude a proporção de valor entre essas mercadorias. Supor que salários altos acarretem valores altos é o mesmo que supor que possa haver valores altos de modo geral. Ora, isso é uma contradição de termos: o alto valor de algumas coisas é sinônimo de valor baixo de outras. O erro provém de não se atentar para os valores, mas somente para os preços. Embora não exista o que se chama de aumento geral de valores, existe um aumento geral de preços. No momento em que tivermos uma ideia clara do conceito de valores, perceberemos que salários altos ou baixos não podem ter nada a ver com eles; e, no entanto, é uma opinião popular e muito difundida que salários altos acarretam preços altos. Somente quando chegarmos à teoria do dinheiro será possível enxergar plenamente todo o erro envolvido nessa proposição — no momento, basta nos dizer que, se ela for verdadeira, não pode haver o que se chama de aumento real de salários, pois, se os salários não pudessem subir sem um aumento proporcional do preço de tudo, não poderiam em absoluto aumentar, para qualquer finalidade significativa. Isso certamente é uma suficiente reductio ad absurdum, e mostra a impressionante insensatez das proposições que podem transformar-se — e se transformam realmente — em doutrinas acreditadas de economia política popular, mantendo-se como tais por muito tempo. Importa recordar outrossim que preços altos gerais, mesmo na suposição de existirem, não podem ter utilidade alguma para um produtor ou comerciante, considerados como tais, pois, se aumentarem seus retornos em dinheiro, aumentam no mesmo grau todas as suas despesas. Não existe maneira de os capitalistas se compensarem pelo alto custo da mão-de-obra agindo sobre os valores ou preços. Não há possibilidade de impedir que o alto custo da mão-de-obra tenha seus efeitos na redução dos lucros. Se os trabalhadores realmente recebem mais, isto é, recebem a produção de mais trabalho, para o lucro tem de sobrar uma percentagem menor. Não há como escapar dessa lei da distribuição, pois ela se baseia em uma lei aritmética. O mecanismo da troca e do preço pode esconder essa lei aos nossos olhos, mas é impotente para alterá-la. § 3. Embora, porém, os salários em geral — sejam eles altos ou baixos — não afetem os valores, se os salários forem mais altos em uma ocupação do que em outra, ou se subirem e caírem permanentemente em uma ocupação, sem que isso ocorra em outras, essas desigualdades atuam realmente sobre os valores. As causas que fazem os salários variarem de um emprego para outro já foram consideradas em capítulo anterior. Quando os salários de uma ocupação superam permanentemente a taxa média, o valor da coisa produzida superará, no mesmo grau, o padrão determinado pela simples quantidade de mão-de-obra. Por exemplo, coisas fabricadas por mão-de-obra qualificada são trocadas pelo produto de uma quantidade muito maior de mão-de-obra não qualificada — isso unicamente porque a mão-de-obra no primeiro caso é mais bem paga. Se, ampliando a educação, o número de trabalhadores qualificados aumentasse ao ponto de diminuir a diferença entre seus salários e os da mão-de-obra comum, todas as coisas produzidas por mão-de-obra qualificada baixariam de valor, comparadas com coisas produzidas por mão-de-obra comum, e, portanto, se poderia dizer que estas últimas aumentariam de valor. Observamos anteriormente que a dificuldade de passar de uma categoria de ocupações para uma categoria muito superior até agora tem feito com que os salários de todas as categorias de trabalhadores que estão separadas entre si por alguma barreira muito marcante dependam, mais do que se poderia supor, do aumento da população de cada categoria considerada em separado, e que as desigualdades na remuneração da mão-de-obra são muito maiores do que as que poderiam existir, caso se conseguisse fazer com que a concorrência da população trabalhadora em geral influísse de maneira prática em cada ocupação específica. Disso segue que os salários em ocupações diferentes não sobem ou descem simultaneamente, senão que são quase independentes entre si, por curto tempo e às vezes até por longos períodos. Todas essas disparidades evidentemente alteram os custos relativos de produção de mercadorias diferentes, e, portanto, estarão bem presentes no valor natural ou médio dessas mercadorias. Vê-se, portanto, que a máxima estabelecida por alguns dos melhores economistas políticos, de que os salários não entram no valor, é expressa com latitude maior do que o garantido pela verdade, ou maior do que aquilo que eles mesmos pretendem afirmar. Os salários realmente entram no valor. Os salários relativos da mão-de-obra necessária para produzir mercadorias diferentes afetam o valor das mesmas, tanto quanto as quantidades relativas de mão-de-obra. É verdade que os salários absolutos pagos não têm efeito sobre os valores; mas nem a quantidade absoluta de mão-de-obra tem tal efeito. Se esta variasse simultaneamente e de maneira igual em todas as mercadorias, os valores não seriam afetados. Se, por exemplo, se aumentasse a eficiência geral de toda a mão-de-obra, de sorte que todas as coisas, sem exceção, pudessem ser produzidas na mesma quantidade que antes, mas com um contingente menor de mão-de-obra, nos valores das mercadorias não apareceria vestígio algum dessa redução geral do custo de produção. Qualquer mudança que pudesse ocorrer nelas representaria apenas os graus desiguais em que o aprimoramento afetaria coisas diferentes, e consistiria em baratear aquelas mercadorias em que a economia de mão-de-obra tivesse atingido o máximo, ao passo que aumentariam efetivamente de valor aquelas nas quais tivesse havido, sim, alguma economia de mão-de-obra, mas menor. A rigor, portanto, os salários da mão-de-obra têm tanto a ver com o valor quanto a quantidade de mão-de-obra; e nem Ricardo nem ninguém mais negou esse fato. Ao considerarmos, porém, as causas das variações de valor, a quantidade de mão-de-obra é a coisa mais importante, pois quando esta varia, isso ocorre geralmente em uma única mercadoria ou em algumas delas ao mesmo tempo, enquanto as variações de salários (excetuadas as flutuações passageiras) costumam ser gerais, não tendo efeito considerável sobre o valor. § 4. Isso quanto à mão-de-obra, ou aos salários, como um dos elementos que determinam o custo da produção. Entretanto, na análise que fizemos no Livro Primeiro, dos requisitos da produção, vimos que há outro elemento que o compõe, além da mão-de-obra. Existe também o capital; e por ser este o resultado da abstenção, a produção, ou seja, seu valor, deve ser suficiente para remunerar não somente toda a mão-de-obra requerida, mas também a abstenção de todas as pessoas que adiantaram a remuneração das diversas categorias de trabalhadores. O retorno da abstenção do capitalista é o lucro. E o lucro, como já vimos, não é exclusivamente o que sobra ao capitalista depois de lhe serem compensados os gastos que teve, senão que constitui, na maioria dos casos, uma parte não pouco importante do próprio gasto. O fiandeiro de linho, cujas despesas consistem em parte na compra do linho e das máquinas, teve que pagar, no preço do linho e das máquinas, não somente os salários da mão-de-obra que cultivou o linho e fez as máquinas, mas também os lucros do cultivador, do preparador, do mineiro, do fundidor de ferro e do fabricante de máquinas. Por sua vez, todos esses lucros, juntamente com os do próprio fiandeiro, foram adiantados pelo tecelão, no preço do material que processa, o fio de linho, e juntamente com isso também os lucros de uma nova série de fabricantes de máquinas, e dos mineiros e operários metalúrgicos que lhes forneceram sua matéria-prima metálica. Todos esses adiantamentos constituem parte do custo de produção do tecido de linho. Por isso, os lucros, tanto quanto os salários, fazem parte do custo de produção que determina o valor do produto. Todavia, o valor, por ser puramente relativo, não pode depender do lucro absoluto — da mesma forma como não pode depender dos salários absolutos — mas apenas dos lucros relativos. Lucros gerais altos não podem, tanto como não o podem salários gerais altos, ser uma causa de valores altos, pois valores gerais altos são um absurdo e uma contradição. Na medida em que os lucros entram no custo de produção de todas as coisas indistintamente, não podem afetar o valor de nenhuma delas. Os lucros só podem exercer alguma influência sobre o valor se entrarem em grau maior no custo de produção de algumas coisas do que no de outras. Por exemplo, constatamos haver causas que fazem com que seja necessária uma taxa permanentemente mais alta de lucro em certas ocupações do que em outras. Deve haver uma compensação pelo risco e pelo trabalho maior, e pela natureza mais desagradável. Isso só é possível vendendo-se a mercadoria a um valor acima do devido à quantidade de mão-de-obra necessária para sua produção. Se a pólvora não pudesse ser trocada por outras coisas a uma razão ou taxa superior à da mão-de-obra exigida, desde o início até o fim, para produzi-la, ninguém instalaria uma fábrica de pólvora. Os açougueiros certamente constituem uma categoria mais próspera que os padeiros, e não parecem estar expostos a riscos maiores, pois não se nota que entrem com mais frequência em falência. Parecem, pois, obter lucros maiores, o que só pode provir do fato de ser mais restrita a concorrência gerada pela natureza desagradável da profissão, e, até certo ponto, pela impopularidade de sua ocupação. Ora, esse lucro maior implica venderem sua mercadoria a um valor mais alto que o devido a sua mão-de-obra e a seu gasto. Todas as desigualdades de lucro que são necessárias e permanentes estão representadas nos valores relativos das mercadorias. § 5. No entanto, os lucros podem entrar em maior escala nas condições de produção de uma mercadoria do que nas de outra, mesmo que não haja diferença na taxa de lucro das duas ocupações. Uma mercadoria pode ter de dar lucro durante um período mais longo que a outra. O exemplo que costuma ilustrar esse caso é o do vinho. Suponhamos uma quantidade de vinho e uma quantidade de tecido feitas por quantitativos iguais de mão-de-obra, sendo essa mão-de-obra paga à mesma taxa salarial. O tecido não melhora pelo fato de ser conservado, ao passo que com o vinho isso acontece. Suponhamos que o vinho, para atingir a qualidade desejada, tenha de ser guardado por cinco anos. O produtor ou comerciante não o guardará se, ao fim dos cinco anos, não conseguir vendê-lo por tanto mais do que o tecido quanto representa o lucro de cinco anos acumulados a juros compostos. O vinho e o tecido foram fabricados com o mesmo gasto original. Aqui temos, pois, um caso em que os valores naturais, de duas mercadorias, em relação um ao outro, não são regulados apenas pelo seu custo de produção, mas pelo seu custo de produção mais alguma coisa — a não ser que, em virtude da generalidade da expressão, incluamos o lucro que o comerciante de vinhos deixa de ter durante os cinco anos no custo de produção do vinho, considerando isso como uma espécie de gasto adicional, além dos outros adiantamentos que fez, gasto este pelo qual, ao final, tem de ser indenizado. Todas as mercadorias fabricadas com máquinas assemelham-se, ao menos aproximadamente, ao vinho do exemplo anterior. Em comparação com coisas feitas inteiramente por mão-de-obra direta, os lucros entram em maior escala no custo de produção delas. Suponhamos duas mercadorias, A e B, cada uma delas exigindo um ano para sua produção, mediante um capital que, nesta ocasião, designaremos como dinheiro, supondo ser este de 1 000 libras. A mercadoria A é feita inteiramente por mão-de-obra direta, sendo o total de 1 000 libras gasto diretamente em salários. A mercadoria B é feita por mão-de-obra humana, custando 500 libras, e uma máquina custando 500 libras, sendo que a máquina se desgasta com o uso de um ano. As duas mercadorias terão exatamente o mesmo valor — o qual, se computado em dinheiro, e se os lucros forem de 20% ao ano, será de 1 200 libras. Ora, dessas 1 200 libras, no caso de A, somente 200 — ou seja, 1/6 — são lucros, enquanto no caso da mercadoria B há não somente as 200 libras, mas 500 libras (o preço da máquina), que consistem nos lucros do fabricante da máquina — o que, se supusermos que também a produção da máquina levou um ano, também representa 1/6. Assim sendo, no caso da mercadoria A, apenas 1/6 do retorno total é lucro, ao passo que na B o componente lucro compreende não somente 1/6 do total, mas ainda 1/6 adicional de uma grande parte. Quanto maior for a percentagem do capital total consistente em máquinas, ou em construções, ou em materiais, ou em qualquer outra coisa que se tem de fornecer antes de a mão-de-obra direta começar a operar, tanto maior a escala em que os lucros entrarão no custo de produção. É igualmente verdadeiro — embora não tão óbvio à primeira vista — que maior durabilidade da porção de capital consistente em máquinas ou construções tem exatamente o mesmo efeito que uma quantia maior de capital. Assim como há pouco supusemos um caso extremo, de uma máquina inteiramente desgastada com um ano de uso, suponhamos agora o caso oposto e ainda mais extremo de uma máquina que dure para sempre, e que não exija consertos. Nesse caso, que é tão adequado para fins ilustrativos como se fosse um caso possível, é supérfluo que o fabricante seja indenizado pelas 500 libras que pagou pela máquina, pois ele sempre possui a própria máquina, que vale 500 libras; no entanto, tem direito a um lucro sobre a máquina, como anteriormente. Por conseguinte, a mercadoria B, que no caso anterior supostamente foi vendida por 1 200 libras — sendo que, desta soma, 1 000 eram para repor o capital, e 200 representavam lucro — agora pode ser vendida por 700, das quais 500 são para repor salários, e 200 representam lucro sobre o capital total. O lucro, portanto, entra no valor de B à razão de 200 libras para 700 libras representando 2/7 do total, ou seja, 28 4/7%, ao passo que no caso da mercadoria A, como antes, ele entra apenas na razão de 1/6, ou seja, 16 2/3%. Naturalmente, o caso é meramente ideal, pois não há máquina ou qualquer outro capital fixo que dure para sempre; mas quanto mais durável for a máquina, tanto mais ela se aproximará desse caso ideal, e em escala tanto maior o lucro fará parte do retorno. Se, por exemplo, uma máquina valendo 500 libras perder 1/5 de seu valor em cada ano de uso, tem-se que acrescentar 100 libras ao retorno para compensar essa perda, e o preço da mercadoria será de 800 libras. Portanto, o lucro entrará nesse preço à razão de 200 para 800 libras, isto é, 1/4, o que ainda é uma percentagem muito superior a 1/6, isto é, 200 para 1 200 libras, como no caso da mercadoria A. Da desigualdade de percentagem em que, em ocupações diferentes, os lucros entram nos adiantamentos feitos pelo capitalista, e, portanto, nos retornos exigidos por ele, seguem duas consequências com relação ao valor. Uma delas é que o valor das mercadorias na troca não está somente em função da quantidade de mão-de-obra exigida para produzi-las — nem mesmo se deixarmos margem para as taxas desiguais às quais são permanentemente remunerados tipos diferentes de mão-de-obra. Já ilustramos isso com o exemplo do vinho, e agora o exemplificaremos mais com o caso de mercadorias fabricadas com máquinas. Suponhamos, como antes, um artigo A, feito por mão-de-obra direta valendo 1 000 libras. Mas em vez de B, feito por mão-de-obra direta valendo 500 libras e por uma máquina valendo 500 libras, suponhamos C, feito por mão-de-obra direta no valor de 500 libras, com o auxílio de uma máquina que foi produzida por outra mão-de-obra direta valendo outras 500 libras, sendo que a máquina leva um ano para ser fabricada e desgasta-se com um ano de uso; os lucros são, como antes, de 20%. Os artigos A e C são feitos por quantidades iguais de mão-de-obra, paga à mesma taxa: o artigo A custa, em mão-de-obra direta, 1 000 libras, e o artigo C somente 500 libras de mão-de-obra direta, mas que chegam a 1 000 libras, devido à mão-de-obra gasta na construção da máquina. Se a mão-de-obra, ou sua remuneração, fosse o único componente do custo de produção, esses dois artigos teriam o mesmo valor de troca entre si. Mas será realmente assim? Certamente não. Tendo a fabricação da máquina levado um ano, com um gasto de 500 libras e sendo os lucros 20%, o preço natural da máquina é de 600 libras, representando um adicional de 100 libras, que têm de ser adiantadas pelo fabricante do artigo C, além de todas as suas outras despesas, e têm de ser compensadas com um lucro de 20%. Eis por que o artigo A será vendido por 1 200 libras e o artigo C não poderá ser permanentemente vendido por menos de 1 320 libras. A segunda consequência é que todo aumento ou queda dos lucros em geral tem efeito sobre os valores. Não, certamente, por fazê-los aumentar ou diminuir em geral (o que, como dissemos tantas vezes, é uma contradição e uma impossibilidade), mas alterando a proporção em que os valores das coisas são afetados pelas diferenças de períodos durante os quais o lucro é devido. Quando duas coisas, embora manufaturadas por quantidade igual de mão-de-obra, têm valor desigual pelo fato de uma delas dever dar lucro durante um período mais longo de anos ou meses, essa diferença de valor será maior quando os lucros são maiores, e será menor quando os lucros são menores. O vinho, que tem de dar lucro de cinco anos mais que o tecido, ultrapassará o valor deste último de muito mais, se os lucros forem de 40%, do que se forem de apenas 20%. As mercadorias A e C, as quais, embora feitas por quantitativos iguais de mão-de-obra, foram vendidas por 1 200 e 1 320 libras respectivamente — uma diferença de 10% — teriam sido vendidas por 1 100 e 1 155 libras respectivamente — uma diferença de apenas 5% — se os lucros tivessem sido apenas a metade. Infere-se disso que mesmo um aumento geral de salários, quando envolve um aumento real no custo da mão-de-obra, influencia em certo grau os valores. Não os afeta da maneira popularmente suposta, elevando-os universalmente. Mas um aumento do custo da mão-de-obra faz os lucros baixarem, e por isso faz baixar o valor natural das coisas nas quais os lucros entram em uma proporção superior à média, e eleva o valor natural das coisas nas quais os lucros entram em uma proporção inferior à média. Todas as mercadorias em cuja produção as máquinas entram em grande escala, sobretudo se estas forem muito duráveis, sofrem baixa em seu valor relativo quando os lucros caem — ou, o que é equivalente, outras coisas passam a ter valor maior em relação a elas. Essa verdade é por vezes expressa com uma linguagem que é mais plausível do que correta, isto é, dizendo que um aumento de salário faz subir o valor de coisas feitas por mão-de-obra, em comparação com aquelas fabricadas com máquinas. Acontece que as coisas fabricadas com máquinas, como quaisquer outras coisas, são feitas por mão-de-obra, isto é, a mão-de-obra que fabrica as próprias máquinas; a única diferença é que os lucros entram em escala um pouco maior na produção de coisas em que se utilizam máquinas, se bem que o item principal de despesas continue a ser mão-de-obra. É, pois, melhor atribuir esse efeito à queda dos lucros do que à elevação dos salários, sobretudo porque essa última expressão é extremamente ambígua, sugerindo a ideia de um aumento da remuneração real do trabalhador, em vez da de um aumento da única coisa que aqui interessa, a saber, o custo da mão-de-obra para o empregador da mesma. § 6. Além dos elementos naturais e necessários que entram no custo de produção — a mão-de-obra e os lucros — há outros que são artificiais e casuais, como, por exemplo, um imposto. A taxa sobre o malte faz parte do custo de produção desse artigo, tanto quanto os salários dos trabalhadores. As despesas que a lei impõe, bem como aquelas impostas pela natureza das coisas, têm de ser reembolsadas com o lucro normal que sai do valor do produto, caso contrário não se continuará a produzir tais artigos. Mas a influência da tributação sobre o valor está sujeita às mesmas condições que a influência dos salários e dos lucros. Não é a taxação geral, mas a taxação diferenciada que produz esse efeito. Se todos os produtos fossem taxados de maneira a retirar uma percentagem igual de todos os lucros, os valores relativos das mercadorias não sofreriam alteração. Se somente se taxassem algumas mercadorias, o valor delas aumentaria, e caso se deixasse de taxar apenas algumas, o valor delas baixaria. Se a metade delas fosse taxada e o resto não o fosse, o valor da primeira metade subiria em relação ao da segunda metade, e o valor da segunda metade baixaria em relação ao da primeira. Isso seria necessário a fim de igualar a expectativa de lucro em todas as ocupações, sem o que as ocupações ou empregos taxados seriam ao final — se não imediatamente — abandonados. Mas a taxação geral, quando imposta igualmente a todas as mercadorias, e quando não perturba as relações recíprocas existentes entre os diversos produtos, não pode produzir efeito algum sobre os valores. Até aqui supusemos que todos os objetos e utensílios que entram no custo de produção das mercadorias são coisas cujo valor depende de seu próprio custo de produção. Contudo, algumas delas podem pertencer àquela categoria de coisas cuja quantidade não pode ser aumentada à vontade, e que, portanto, determina um valor de escassez, se a procura ultrapassar determinado montante. As matérias-primas de muitos dos artigos de ornamentação manufaturados na Itália são as substâncias denominadas rosso (vermelho), giallo (amarelo) e verde antico, as quais, como se afirma — ignoro se com razão ou não —, provêm exclusivamente da destruição de colunas antigas e de outras estruturas ornamentais, uma vez que estão esgotadas as pedreiras das quais originalmente se cortava esta pedra, ou então se esqueceu sua localização (Penso que algumas dessas pedreiras foram redescobertas e estão sendo novamente exploradas). Um material de tal natureza, se for objeto de grande procura, necessariamente terá um valor de escassez; ora, esse valor entra no custo de produção, e consequentemente no valor do artigo acabado. Parece aproximar-se o tempo em que as peles mais valiosas também estarão sob a influência de um valor de escassez do material. Até agora, o número decrescente dos animais que produzem tais peles, nas florestas da Sibéria e nas costas do mar dos Esquimós, tem influído sobre o valor somente por meio da mão-de-obra maior que se tornou necessária para assegurar determinada quantidade do artigo, já que, sem dúvida, empregando-se muita mão-de-obra, talvez se poderia ainda continuar a conseguir o artigo em maior abundância, por mais algum tempo. Entretanto, o caso em que o valor de escassez opera mais que tudo no sentido de aumentar o custo de produção é o de agentes naturais. Enquanto não se tornarem posse de ninguém, e enquanto para utilizá-los basta apanhá-los, não entram no custo de produção, a não ser na medida da mão-de-obra que pode ser necessária para prepará-los para o uso. Mesmo quando são posse de alguém, não possuem valor (como já vimos) pelo simples fato de sua apropriação, mas somente em virtude da escassez, isto é, da limitação da oferta. Mas é igualmente certo que os agentes naturais muitas vezes têm valor de escassez. Suponhamos uma queda-d’água, em uma localidade em que a necessidade de moinhos é maior do que a força hidráulica necessária para acioná-los. O uso da queda-d’água terá então um valor de escassez, suficiente ou para fazer a demanda baixar ao nível da oferta, ou para pagar a criação de uma energia artificial, a vapor ou outra, de eficiência igual à da força hidráulica. Se um agente natural for propriedade perpétua de alguém, e se tal agente for utilizável apenas para produtos resultantes de sua utilização continuada, a maneira comum de auferir benefício da propriedade do mesmo é por meio de um equivalente anual, pago pela pessoa que o utiliza e resultante dos rendimentos da utilização do mesmo. Esse equivalente sempre poderia ser denominado — e geralmente é — renda. Por isso, a questão concernente à influência que a apropriação de agentes naturais tem sobre os valores muitas vezes é assim formulada: a renda entra no custo de produção? — sendo que a resposta dos melhores economistas políticos é negativa. É forte a tentação de adotar essas expressões indiscriminadas, mesmo para aqueles que estão conscientes das restrições com as quais devem ser entendidas; com efeito, não há como negar que elas estabelecem um princípio geral, que se grava na mente com mais firmeza do que se fosse teoricamente circunscrito por todas as suas restrições práticas. Mas essas expressões também desorientam e confundem, e criam uma impressão desfavorável para a Economia Política, como se esta não levasse em conta a evidência dos fatos. Ninguém pode negar que às vezes a renda entra no custo de produção. Se compro ou arrendo um terreno, e nele construo uma manufatura têxtil, a renda do terreno constitui legitimamente parte das minhas despesas de produção, que precisa ser paga pelo produto. E já que as fábricas estão todas construídas em algum terreno, e a maioria delas em locais em que o solo é particularmente valioso, a renda paga pelo uso do terreno deve, no geral, ser compensada nos valores de todos os produtos manufaturados em fábricas. No capítulo que segue, mostrarei em que sentido é verdade que a renda não entra no custo de produção nem afeta o valor dos produtos agrícolas. CAPÍTULO V A Renda em sua Relação com o Valor § 1. Investigamos as leis que determinam o valor de duas categorias de mercadorias: a pequena categoria de artigos que, por existirem em quantidade limitada, têm seu valor inteiramente determinado pela procura e oferta, salvaguardado o princípio de que o custo de produção (se o tiverem) constitui um mínimo, abaixo do qual não pode cair em caráter permanente; e a categoria numerosa das mercadorias que podem ser multiplicadas à vontade, empregando mão-de-obra e capital, e cujo custo de produção fixa o máximo e o mínimo que podem valer, em caráter permanente. Mas resta ainda a considerar uma terceira classe de mercadorias: as que não têm um, mas vários custos de produção, e cuja quantidade sempre pode ser aumentada empregando mão-de-obra e capital, mas não empregando o mesmo montante de mão-de-obra e capital; em se tratando dessa classe de mercadorias, por determinado custo se pode produzir determinada quantidade, mas uma quantidade maior só pode ser produzida a um custo maior. Essas mercadorias formam uma classe intermediária, partilhando da natureza das duas outras categorias. A principal delas é a produção agrícola. Já fizemos referências abundantes à verdade fundamental de que, na agricultura, com determinado grau de técnica, dobrar a mão-de-obra não significa dobrar a produção — que, se for necessária uma quantidade adicional de produção, se obtém o fornecimento adicional a um custo mais elevado que o custo anterior. Lá onde no momento só se exigem 100 alqueires de trigo das terras de determinada aldeia, se o aumento da população tornasse necessário colher 100 alqueires a mais, seja cultivando terra pior, atualmente não lavrada, seja cultivando melhor a já cultivada, os 100 alqueires adicionais, ou ao menos parte deles, poderiam vir a custar duas ou três vezes mais por alqueire do que a quantidade anterior do produto. Se os primeiros 100 alqueires eram todos cultivados com o mesmo gasto (cultivando-se apenas a melhor terra), e se esse gasto fosse remunerado com o lucro normal por um preço de 20 xelins por alqueire, o preço natural do trigo, enquanto não se exigisse quantidade superior a esta, seria de 20 xelins, e o alqueire de trigo só poderia ir além desse preço, ou cair abaixo dele, em razão de vicissitudes das estações, ou de variações casuais na oferta. Mas se a população do distrito crescesse, chegaria um momento em que seriam necessários mais do que 100 alqueires para alimentá-la. Temos que supor que não há possibilidade de obter suprimento do exterior. Pela hipótese, não se pode produzir mais de 100 alqueires no distrito, a não ser cultivando terra pior ou substituindo o sistema de lavoura por um sistema mais dispendioso. Nenhuma dessas duas soluções poderá ser adotada sem aumentar o preço. Esse aumento do preço será gradualmente gerado pelo aumento da procura. Enquanto o preço tiver aumentado, mas não o suficiente para compensar com o lucro normal o custo de produção de uma quantidade adicional, o valor maior desse suprimento partilha da natureza de um valor de escassez. Suponhamos que não compense cultivar a segunda terra melhor, ou terra do segundo grau de longinquidade, por um retorno inferior a 25 xelins por alqueire, e que esse preço seja também necessário para compensar as operações dispendiosas com as quais se poderia tirar uma produção maior da terra de primeira qualidade. Se assim for, o preço aumentará, por efeito do aumento da procura, até atingir 25 xelins. Este será agora o preço natural — o preço abaixo do qual não se produzirá a quantidade para a qual há demanda na sociedade, a esse preço. Contudo, com esse preço a sociedade poderia continuar por mais algum tempo — talvez poderia até continuar para sempre, se a população não aumentasse. O preço, tendo uma vez atingido aquele ponto, não retrocederá mais em caráter permanente (embora possa cair temporariamente, devido à abundância acidental); tampouco subirá mais, enquanto a sociedade conseguir o suprimento de que necessita, sem um segundo aumento do custo de produção. Neste raciocínio, utilizei o preço como um símbolo conveniente de valor, devido a se estar mais familiarizado com esse conceito, e continuarei a fazer isso enquanto me parecer necessário. No caso suposto, porções diferentes do suprimento de trigo têm custos de produção diferentes. Embora os 20, ou 50, ou 150 alqueires adicionais tenham sido produzidos a um custo proporcional de 25 xelins, os 100 alqueires originais por ano continuam a ser produzidos a um custo proporcional de apenas 20 xelins. Isso é evidente por si mesmo, se o suprimento original e o adicional forem produzidos em terras de qualidades diferentes. Mas é igualmente verdadeiro se forem produzidos na mesma terra. Suponhamos que se tenha conseguido fazer com que a terra da melhor qualidade, que produzia 100 alqueires a 20 xelins, produza 150, mediante um processo dispendioso, que não compensaria adotar sem um preço de 25 xelins. O custo de 25 xelins por alqueire incorre apenas sobre 50 alqueires; os primeiros 100 alqueires poderiam ter continuado a ser produzidos para sempre ao custo original, e com o benefício, sobre aquela quantidade, de todo aumento de preço gerado pelo aumento da procura; por isso, ninguém haverá de arcar com a despesa adicional por causa dos 50 alqueires adicionais, se estes sozinhos não bastarem para pagar a despesa total. Por isso, os 50 alqueires serão produzidos ao seu preço natural, proporcional ao custo de sua produção, ao passo que os outros 100 agora renderão por alqueire 5 xelins acima de seu preço natural — 5 xelins acima do preço correspondente ao seu custo inferior de produção, e suficiente para remunerar esse custo. Se a produção de alguma porção, mesmo que mínima, do suprimento exigir como condição necessária determinado preço, esse preço será obtido pelo restante da produção. Não há meio de comprar um pão mais barato que outro pelo fato de o trigo com o qual foi feito, por ter sido cultivado em solo mais rico, ter custado menos ao lavrador. Por isso, o valor de um artigo (significando seu valor natural, que é o mesmo que seu valor médio) é determinado pelo custo daquela porção do fornecimento que é produzida e comercializada com maior despesa. Essa é a lei do valor, em se tratando da última das três categorias em que se dividem todas as mercadorias. § 2. Se a porção da produção cultivada nas circunstâncias mais desfavoráveis obtém um valor proporcional ao seu custo de produção, todas as porções cultivadas em circunstâncias mais favoráveis, pelo fato de terem que ser vendidas ao mesmo valor, obtêm um valor mais do que proporcional a seu custo de produção. Se quisermos falar com rigor, o valor delas não é um valor de escassez, pois é determinado pelas circunstâncias da produção da mercadoria, e não por esse preço superior ser necessário para manter a procura ao nível de uma oferta limitada. Todavia, os proprietários dessas porções do produto desfrutam de um privilégio: obtêm um valor que lhes proporciona lucro superior ao normal. Se essa vantagem lhes advier de alguma isenção especial — tal como ser isento de um imposto — ou de quaisquer vantagens pessoais, físicas ou mentais, ou de qualquer processo especial que só eles conhecem, ou da posse de um capital maior do que o de outras pessoas, ou de vários outros fatores que poderiam ser enumerados, nesses casos os proprietários retêm para si essa vantagem como um ganho extra além dos lucros gerais do capital — tratando-se, no caso, de uma espécie de lucro de monopólio. Mas quando, como no caso que estamos analisando mais especificamente, a referida vantagem depende da posse de um agente natural de qualidade especial — como, por exemplo, de terra mais fértil do que aquela que determina o valor geral da mercadoria —, e quando esse agente natural não é propriedade dos exploradores, o dono tem direito a exigir destes, em forma de renda, todo o ganho extra proveniente do uso desse agente natural. Somos assim conduzidos por outro caminho à lei da renda, lei essa investigada no último capítulo do Livro Segundo. Vemos agora novamente que a renda é a diferença entre os retornos desiguais para porções diferentes do capital empregado no solo. Qualquer excedente que alguma porção de capital agrícola produzir, além daquilo que é produzido pelo mesmo montante de capital no pior solo, ou utilizando o sistema de lavoura mais dispendioso, ao qual as demandas existentes da sociedade obrigam a recorrer, esse excedente será naturalmente pago como renda — e tirado desse capital — ao proprietário da terra na qual o capital é empregado. Por muito tempo, economistas políticos — entre eles o próprio Adam Smith — pensaram que o produto da terra sempre tivesse um valor de monopólio, porque (assim diziam), além da taxa normal de lucro ele sempre dá algo a mais, para pagar a renda. Vemos agora que isso é errôneo. Uma coisa não pode ter um valor de monopólio se sua oferta pode aumentar em extensão indefinida, desde que estejamos dispostos a arcar com o devido custo. Se não se cultiva mais trigo do que a quantidade existente, é porque o valor não subiu o suficiente para remunerar ninguém para cultivá-lo. Qualquer terra (não reservada para outros usos, ou para lazer) que, ao preço existente, e com os processos vigentes, der o lucro normal quase certamente será cultivada — a menos que intervenha algum obstáculo artificial —, mesmo que não sobre nada para pagar a renda. Enquanto houver terra cultivável, que, com o preço vigente, não possa ser de forma alguma cultivada com lucro, deve haver alguma terra um pouco melhor, que dará o lucro normal, mas não deixará nenhuma margem para pagar a renda; e essa terra, se estiver dentro dos limites de uma propriedade explorada, será cultivada pelo arrendatário, e se não por ele, provavelmente será cultivada pelo proprietário ou por alguma outra pessoa, com resignação. Dificilmente pode deixar de haver ao menos alguma terra desse tipo, cultivada nessas condições. Consequentemente, a renda não faz parte do custo de produção que determina o valor dos produtos agrícolas. Sem dúvida, é possível conceber circunstâncias em que isso pode ocorrer, em escala até muito grande. Podemos imaginar um país tão densamente povoado, e com todo o seu solo cultivável tão ocupado, que para produzir qualquer quantidade adicional se exigiria mais mão-de-obra do que o contingente que a produção conseguiria alimentar; e se supusermos ser essa a condição do mundo todo, ou de um país impedido de receber suprimentos do exterior, então, se a população continuasse a crescer, tanto a terra como os seus produtos realmente passariam a ter um preço de monopólio ou de escassez. Mas tal estado de coisas nunca existiu em parte alguma, a não ser, possivelmente, em alguma pequena ilha isolada do resto do mundo — nem há perigo de que venha a existir. Na verdade, esse estado de coisas não existe realmente em nenhuma região conhecida. O monopólio, como vimos, só pode ter efeito sobre o valor limitando a oferta. Em todos os países de certa extensão há mais terra cultivável do que terra cultivada, e enquanto houver tal excedente, é o mesmo — no que diz respeito àquela qualidade de terra — que se houvesse uma quantidade infinita. O que está praticamente limitado em termos de oferta são apenas as qualidades melhores de terra, e mesmo para essas não se pode exigir renda tão alta como a que decorreria da concorrência das terras ainda não cultivadas; a renda de uma área de terra deve ser inferior ao excedente total de sua produtividade em relação ao excedente da melhor terra que ainda não é rentável cultivar, isto é, ele deve ser mais ou menos igual ao excedente acima da pior terra que é rentável cultivar. Não paga renda a terra ou o capital empregado nas circunstâncias mais desfavoráveis entre os efetivamente empregados; ora, é essa terra ou esse capital que determina o custo de produção que regula o valor de toda a produção. Assim, como já vimos, a renda não é causa geradora do valor, mas o preço do privilégio que a desigualdade dos retornos para porções diferentes de produção agrícola dá a todas as porções, excetuadas as menos favorecidas. Em suma, a renda simplesmente equaliza os lucros de capitais agrícolas diferentes, possibilitando ao dono da terra apropriar-se de todos os ganhos extras ocasionados pela superioridade de vantagens naturais. Se todos os donos de terra concordassem em abrir mão de suas rendas, apenas as transfeririam aos arrendatários, sem beneficiarem o consumidor; com efeito, o preço vigente do trigo continuaria a ser condição indispensável para a produção de parte do suprimento existente, e se parte do produto conseguisse esse preço, também a totalidade o obteria. Por isso, a renda da terra, a menos que seja aumentada artificialmente por leis restritivas, não representa ônus para o consumidor; ele não aumenta o preço do trigo e só representaria um prejuízo para o público na medida em que, se o Estado o tivesse retido, ou se impusesse um equivalente em forma de imposto territorial, a renda tivesse nesse caso constituído um fundo aplicável em benefício do público, e não em benefício de particulares. § 3. Os produtos agrícolas não são as únicas mercadorias que têm vários custos de produção diferentes ao mesmo tempo, e que, em consequência dessa diferença, e em proporção a ela, provêm uma renda. Também com as minas ocorre isso. Quase todos os tipos de matéria-prima extraída do interior da terra — metal, carvões, pedras preciosas etc. — são obtidos de minas que diferem muito entre si, no que concerne à fertilidade, isto é, minas que fornecem quantidades muito diferentes de produção, com o emprego da mesma quantidade de mão-de-obra e de capital. Se assim for, surge uma pergunta óbvia: por que não se exploram as minas mais férteis, de modo a suprir todo o mercado? Tal pergunta não poderia ser feita em relação à terra, pois é evidente que não há condição possível de fazer com que terras mais férteis atendam a toda a demanda de um país plenamente povoado; e mesmo da produção que dão efetivamente, parte é extraída à força, por mão-de-obra e despesa tão grandes quanto as necessárias para colher o mesmo montante em terra pior. Mas isso não ocorre com as minas, ao menos não sempre. Talvez haja casos em que é impossível extrair de um veio específico, em dado momento, mais do que determinada quantidade de minério, porque só uma superfície limitada do veio está exposta, parte esta na qual não se pode simultaneamente empregar mais do que certo número de trabalhadores. Mas isso não acontece com todas as minas. Em minas de carvão, por exemplo, tem-se que procurar alguma outra causa dessa limitação. Em alguns casos, os proprietários limitam a quantidade extraída, a fim de não exaurir a mina com excessiva rapidez; em outros casos afirma-se haver associações de proprietários, visando a manter um preço de monopólio mediante limitação da produção. Quaisquer que sejam as causas, é um fato que estão em operação minas de graus diferentes de fertilidade, e já que o valor do produto deve ser proporcional ao custo de produção na pior mina (considerando-se ao mesmo tempo a fertilidade e a localização), esse valor é mais do que proporcional ao valor do produto da melhor mina. Por isso, todas as minas que são superiores em produção às piores efetivamente exploradas darão uma renda igual ao excedente. Podem dar mais, e mesmo a pior mina pode dar renda. Pelo fato de minas serem relativamente poucas, suas qualidades não se graduam em relação às outras com diferenciações tão pequenas, como acontece com as qualidades de terra: e a procura pode ser tal, que mantém o valor do produto consideravelmente acima do custo de produção da pior mina atualmente explorada, sem que seja suficiente explorar uma mina ainda pior. Durante esse intervalo, o produto tem realmente um valor de escassez. Os pesqueiros constituem outro exemplo disso. Os pesqueiros no alto-mar não são propriedade de ninguém, mas os existentes em lagos ou rios quase sempre o são, e os bancos de ostras ou outros locais específicos de pesca nas costas. Podemos tomar os locais de pesca de salmão como um exemplo para toda essa categoria. Alguns rios produzem muito mais salmão do que outros. No entanto, nenhum deles é capaz de atender mais do que a uma procura muito limitada, sem esgotar a reserva. A demanda de um país como a Inglaterra só pode ser atendida com a pesca de salmão em muitos rios diferentes, de produtividade diferente, e o valor do pescado deve ser suficiente para compensar o custo da pesca do peixe nos rios menos produtivos. Por isso, todos os demais locais de pesca, se forem propriedade de alguém, darão renda igual ao valor de sua superioridade. A renda não pode ir muito além disso, se houver rios acessíveis que tenham salmão, e que, devido a distância ou em razão de sua menor produtividade, ainda não contribuíram para atender ao mercado. Se não os houver, o valor, sem dúvida, pode atingir uma taxa de escassez, e então até os piores pesqueiros em uso poderão dar um aluguel considerável. Tanto no caso de minas como no de pesqueiros, a ordem natural de eventos está sujeita a ser perturbada pela abertura de uma nova mina ou de um novo pesqueiro, de qualidade superior à de alguns dos já em uso. O primeiro efeito de tal incidente é um aumento da oferta, o que naturalmente faz baixar o valor, para provocar procura maior. É possível que esse valor menor já não seja suficiente para remunerar as piores minas ou pesqueiros existentes, e em consequência disso é possível que estes sejam abandonados. Se as minas ou pesqueiros superiores, somados àquela ou àquele recém-aberto, produzirem o montante de mercadorias que se requer, ao valor mais baixo correspondente a seu custo de produção mais baixo, a queda do valor será permanente, e haverá queda correspondente nas rendas das minas ou pesqueiros que não forem abandonados. Nesse caso, quando as coisas se tiverem ajustado em caráter permanente, o resultado será que a escala de qualidades que suprem o mercado terá sido cortada na extremidade inferior, tendo-se feito nova inserção na escala, em algum ponto mais acima; e a pior mina ou o pior pesqueiro em uso — que regula as rendas das qualidades superiores e o valor da mercadoria — será uma mina ou um pesqueiro de qualidade superior àquela pela qual eram regulados anteriormente. A terra é utilizada para outros fins que não a agricultura, especialmente para residência; e quando o uso é este, a terra dá uma renda, determinada por princípios semelhantes aos já estabelecidos. A renda em um terreno construído, bem como a de um jardim ou parque anexo a ele, não será inferior à renda que a mesma terra daria se fosse usada para agricultura, porém pode ser superior a este, em qualquer montante, sendo que o excedente se deve à beleza ou à conveniência — consistindo esta última muitas vezes em facilidades maiores de auferir ganhos pecuniários. A oferta de locais de beleza notável costuma ser limitada, e por isso, no caso de a procura ser grande, esses locais têm um valor de escassez. Os locais superiores apenas em relação à conveniência são regidos, quanto a seu valor, pelos princípios comuns que regulam a renda. A renda de um terreno em que se construir uma casa, em uma pequena aldeia, é pouco mais alta que a renda de um solo semelhante nos campos abertos. Contudo, a renda de uma loja em Cheapside ultrapassará estes últimos, na proporção do montante total pelo qual as pessoas avaliam as oportunidades maiores de ganhar dinheiro no local mais povoado. Com base em princípios semelhantes podem ser analisadas as rendas de locais para atracagem, docas, instalações portuárias, energia hidráulica, e muitos outros privilégios. § 4. Casos de lucro extra, análogos à renda, são mais frequentes nas transações industriais do que se pode supor. Tomemos como exemplo o caso de uma patente ou privilégio exclusivo para utilização de um processo que reduz o custo de produção. Se o valor do produto continuar a ser regulado por aquilo que ele custa aos que são obrigados a continuarem com o processo antigo, o dono da patente auferirá um ganho extra igual à vantagem que o processo por ele patenteado possuir em relação ao processo antigo. Esse lucro extra é basicamente semelhante ao aluguel, e às vezes até assume a sua forma, já que o concessionário permite a outros produtores fazerem uso do privilégio a troco de pagamento anual. Enquanto ele e os que associa no privilégio não produzirem o suficiente para suprir todo o mercado, é o custo de produção original que regulará o valor de todo o produto produzido, por ser esse custo a condição necessária para produzir parte do produto — e nesse caso o concessionário poderá reter para si sua renda, no equivalente total da vantagem que seu processo lhe dá. Sem dúvida, de início provavelmente abrirá mão de parte dessa vantagem, para poder vender mais barato que outros: o fornecimento maior que ele provoca abaixará o valor, fazendo com que o negócio seja ruim para os que não participam do privilégio. Assim, muitos deles gradualmente abandonarão o ramo, ou limitarão suas operações, ou então farão acordo com ele. À medida que seu fornecimento aumenta, o deles diminui, sendo que nesse meio tempo o valor do produto continuará levemente baixo. Mas se ele suspender de forma brusca suas operações antes de o mercado estar totalmente abastecido pelo novo processo, as coisas se ajustarão de novo ao que era o valor natural antes de a invenção ser feita, e o benefício da invenção caberá exclusivamente ao proprietário da patente. A isso assemelham-se bastante os ganhos extras que qualquer produtor ou comerciante aufere em virtude de negociar com mais talento, ou de ter uma estrutura comercial melhor. Se todos os seus concorrentes tivessem as mesmas vantagens e delas fizessem uso, o benefício seria transferido aos clientes deles, por meio da redução do valor do artigo; ele só consegue reter para si o benefício por ter condições de comercializar sua mercadoria a custo mais baixo, enquanto o valor da mercadoria é determinado por um custo mais alto. Com efeito, todas as vantagens que um concorrente tem sobre outro, sejam naturais ou adquiridas, sejam pessoais ou resultado de estruturas sociais, inserem o produto na terceira categoria, e assemelha o possuidor da vantagem a um recebedor de renda. Os salários e os lucros representam os elementos universais na produção, ao passo que se pode considerar a renda como sendo o diferencial e o peculiar: qualquer diferença a favor de certos produtores, ou a favor da produção em determinadas circunstâncias, são a fonte de um ganho, o qual, embora só se chame de renda se pago periodicamente por uma pessoa a outra, é regido exatamente pelas mesmas leis que a renda. O preço pago por uma vantagem diferencial na produção de uma mercadoria não pode entrar no custo geral de produção dessa mercadoria. Sem dúvida, uma mercadoria, em algumas contingências, pode dar renda, mesmo se a sua produção ocorrer nas circunstâncias mais desvantajosas, mas isso só poderá acontecer quando ela estiver, nesse meio tempo, na condição das mercadorias de oferta absolutamente limitada, e portanto é vendida com valor de escassez; ora, isso nunca é — como nunca foi nem nunca será — uma condição permanente de nenhuma das grandes mercadorias que dão renda, a não ser por estarem prestes a se esgotar, no caso dos produtos minerais (por exemplo, o carvão), ou por um aumento de população, que continua depois de se tornar impossível um ulterior aumento da produção — contingência que não podemos considerar provável, devido ao progresso quase inevitável da cultura e do aperfeiçoamento humanos que deve ocorrer no longo período de tempo que tem de passar antes de a contingência acontecer. CAPÍTULO VI Sumário da Teoria do Valor § 1. Atingimos agora um ponto favorável para um olhar retrospectivo e para termos uma visão simultânea do itinerário que percorremos desde o início deste Livro Terceiro. Os princípios da teoria do valor, na medida em que até agora os assentamos, são os seguintes: I. O valor é um termo relativo. O valor de uma coisa significa a quantidade de alguma outra coisa, ou de coisas em geral, pela qual ela é dada em troca. Eis por que nunca é possível aumentarem ou baixarem simultaneamente os valores de todas as coisas. Não existe um aumento geral ou uma queda geral de valores. Todo aumento do valor supõe uma baixa, e toda baixa supõe um aumento. II. O valor temporário ou de mercado de uma coisa depende da procura e da oferta, aumentando quando aumenta a procura, e baixando quando aumenta a oferta. Todavia, a procura varia conforme o valor, sendo geralmente maior quando a coisa é barata do que quando é cara; e o valor sempre se ajusta de tal forma, que a procura iguale a oferta. III. Além de seu valor temporário, as coisas têm também valor permanente, ou, como se pode chamá-lo, valor natural, ao qual sempre tende a retornar o valor de mercado, depois de cada variação; e as oscilações se compensam mutuamente, de modo que, em média, as mercadorias são trocadas mais ou menos por seu valor natural. IV. O valor natural de algumas coisas é um valor de escassez; mas em sua maioria as coisas naturalmente são trocadas entre si à razão de seu custo de produção, isto é, à razão do que se pode chamar seu valor de custo. V. As coisas que natural e permanentemente têm um valor de escassez são aquelas cuja oferta não pode ser aumentada de maneira alguma, ou cuja oferta não pode ser aumentada o suficiente para atender a toda a procura que haveria por elas, se oferecidas pelo seu valor de custo. VI. Valor de monopólio significa valor de escassez. O monopólio só pode dar valor a alguma coisa, limitando a oferta da mesma. VII. O valor de troca de toda mercadoria cuja oferta pode ser aumentada indefinidamente com trabalho e capital é, em relação a outras coisas, proporcional ao custo necessário para produzir e comercializar a porção mais dispendiosa da produção exigida. O valor natural é sinônimo de valor de custo; e o valor de custo de um produto significa o valor de custo da porção mais dispendiosa desse produto. VIII. O custo de produção consiste em vários elementos, alguns dos quais são constantes e universais, ao passo que outros são ocasionais. Os elementos universais do custo de produção são os salários da mão-de-obra e os lucros do capital. Os elementos ocasionais são os impostos, bem como qualquer outro custo extra ocasionado pelo fato de algum dos requisitos ter valor de escassez. IX. A renda não é um componente do custo de produção da mercadoria que a proporciona, a não ser nos casos (mais imagináveis do que efetivamente existentes) em que ela resulte de um valor de escassez e o represente. Mas quando uma terra capaz de dar renda na agricultura é utilizada para outro fim, a renda que ela teria dado é um componente do custo de produção da mercadoria para cuja produção é empregada. X. Sem os elementos ocasionais, as coisas cuja quantidade comporta aumento indefinido de maneira natural e permanente têm um valor de troca entre si, de acordo com o montante comparativo de salários que se tem de pagar para produzi-las, e de acordo com o montante comparativo de lucros que têm de auferir os capitalistas que pagam esses salários. XI. O montante comparativo de salários não depende dos salários em si. Salários altos não acarretam valores altos, nem salários baixos acarretam valores baixos. O montante comparativo de salários depende em parte das quantidades comparativas de mão-de-obra necessárias, e em parte das taxas comparativas de sua remuneração. XII. Assim, a taxa comparativa de lucros não depende do montante dos lucros como tais; lucros altos ou baixos não acarretam valores altos ou baixos. Depende em parte da duração comparativa do tempo durante o qual o capital é empregado, e em parte da taxa comparativa de lucros em ocupações diferentes. XIII. Se duas coisas forem feitas pela mesma quantidade de mão-de-obra, sendo esta paga à mesma taxa, e se os salários do trabalhador têm de ser adiantados pelo mesmo espaço de tempo, e a natureza da ocupação não exigir que haja uma diferença permanente em sua taxa de lucro, então, em média, essas duas coisas terão valor de troca igual, sejam os salários e os lucros altos ou baixos, e seja grande ou pequena a quantidade de mão-de-obra despendida. XIV. Se, de duas coisas, uma determina, em média, um valor maior que a outra, a causa deve estar no fato de que sua produção requer ou uma quantidade maior de mão-de-obra, ou um tipo de mão-de-obra que sempre tem uma taxa de remuneração superior; ou então, a causa está no fato de o capital, ou parte do capital que sustenta essa mão-de-obra, ter de ser adiantado durante um período mais longo; ou, finalmente, a causa pode residir no fato de a produção comportar certas circunstâncias que precisam ser compensadas por uma taxa de lucro permanentemente mais elevada. XV. Dentre esses elementos, a quantidade de mão-de-obra necessária para a produção é o mais importante; o efeito dos demais é menor, ainda que nenhum deles seja insignificante. XVI. Quanto mais baixos forem os lucros, menos importância terão os elementos secundários do custo de produção, e menos as mercadorias diferirão de um valor proporcional à quantidade e à qualidade de mão-de-obra necessária para sua produção. XVII. Entretanto, cada baixa de lucros faz diminuir, em certo grau, o valor de custo de coisas fabricadas com muita maquinaria ou com máquinas duráveis, e faz aumentar o valor de custo de coisas feitas a mão; e todo aumento dos lucros tem o efeito inverso. § 2. Essa é a teoria geral do valor de troca. Impõe-se, porém, observar que essa teoria tem em mira um sistema de produção levado por capitalistas com vistas no lucro, e não por trabalhadores visando à sua subsistência. Se admitirmos essa última suposição — e na maioria dos países temos que a admitir, em extensão muito grande, ao menos com respeito à produção agrícola —, demandam modificação os teoremas precedentes que dizem respeito à dependência do valor em relação ao custo de produção. Esses teoremas baseiam-se todos na suposição de que o objetivo e o intuito do produtor é auferir lucro de seu capital. Isto posto, segue que ele tem de vender sua mercadoria ao preço que permita a taxa normal de lucro, ou seja, o valor de troca da respectiva mercadoria em relação a outras tem de ser seu valor de custo. Acontece que o camponês proprietário, o meeiro, e mesmo o camponês arrendatário ou o dono de um lote — enfim, qualquer tipo de trabalhador que produza por conta própria, qualquer que seja a denominação que lhe dermos — não estão procurando investimento para seu pequeno capital, mas emprego rentável para seu tempo e sua mão-de-obra. Suas despesas, além de seu próprio sustento e do de sua família, são tão pequenas, que quase toda a receita haurida da venda de sua produção é destinada a pagar salários de mão-de-obra. Se ele e sua família se alimentam da produção da propriedade (e talvez usem roupas feitas com materiais nela cultivados, e manufaturados pela própria família), ele pode, em relação à remuneração suplementar decorrente da venda do excedente de produção, ser comparado aos trabalhadores que, por tirarem sua subsistência de uma fonte independente, podem permitir-se vender seu trabalho a qualquer preço que no entender deles valha a pena. Um camponês que sustenta a si e a sua família com parte de sua produção muitas vezes venderá o resto da produção muitíssimo abaixo do que seria seu valor de custo para o capitalista. Contudo, mesmo nesse caso há um limite mínimo, ou inferior, de valor. A produção que ele comercializa tem de dar-lhe o valor de todos os gêneros ou artigos de primeira necessidade que é obrigado a comprar, e tem de possibilitar-lhe pagar sua renda. A renda, em regime de cultivo por camponeses, não é regida pelos princípios estabelecidos nos capítulos imediatamente precedentes, mas é determinada ou pelo costume — como no caso dos meeiros — ou, se for fixada pela concorrência, depende da razão população-terra. Nesse caso, portanto, a renda é um elemento do custo de produção. O camponês tem de trabalhar até garantir sua renda e o preço de todos os artigos de primeira necessidade que comprar. A partir daí ele só continuará a trabalhar se tiver condições de vender a produção a um preço capaz de superar sua relutância com relação ao trabalho. O mínimo que acabamos de mencionar é o que o camponês tem de obter em troca de todo o seu excedente de produção. Mas na medida em que esse excedente não for uma quantidade fixa, senão que pode ser ou maior ou menor, conforme o grau de sua operosidade, um valor mínimo para o excedente total não dá um valor mínimo para uma quantidade definida da mercadoria. Nessas condições, portanto, dificilmente se pode afirmar que o valor depende em absoluto do custo de produção. Depende totalmente da procura e da oferta, isto é, da proporção entre a quantidade do excedente de alimentos que os camponeses quiserem produzir, e o contingente da população não agrícola, ou melhor, o contingente da população não composta por agricultores. Se a classe compradora fosse numerosa, e a classe dos agricultores fosse preguiçosa, os alimentos poderiam ter permanentemente um preço de escassez. Não tenho conhecimento de que tal caso exista realmente, em algum lugar. Se a classe dos agricultores for diligente e operosa, e os compradores forem poucos, os alimentos terão um preço extremamente baixo. Também este é um caso raro, embora talvez algumas regiões da França se aproximem disso. Os casos comuns são estes: ou, como na Irlanda até há pouco, a classe camponesa é indolente e os compradores são poucos, ou então os camponeses são operosos e a população urbana é numerosa e opulenta, como na Bélgica, no norte da Itália, e em certas regiões da Alemanha. O preço dos produtos se ajustará a essas diversidades de circunstâncias, a menos que seja modificado — como o é em muitos casos — pela concorrência de produtores que não são camponeses, ou pelos preços de mercados estrangeiros. § 3. Outro caso anômalo é o de produtos cultivados por escravos, que nem de longe apresentam o mesmo grau de complexidade. O proprietário de escravos é um capitalista, e seu estímulo para produzir consiste em um lucro que quer auferir de seu capital. Esse lucro deve atingir a taxa de lucro corrente. Quanto às despesas, está na mesma posição que estaria se seus escravos fossem trabalhadores livres trabalhando com sua eficiência atual, e fossem contratados por salários equivalentes a seu custo atual. Se o custo, em proporção ao serviço executado, for inferior ao que seriam os salários da mão-de-obra livre, tanto maiores serão seus lucros; mas se todos os outros produtores no país tiverem a mesma vantagem, os valores das mercadorias de forma alguma serão afetados por esse fato. O único caso em que podem ser afetados é quando o privilégio de mão-de-obra barata estiver restrito a setores específicos de produção, sendo os trabalhadores livres empregados nos demais setores, com salários proporcionalmente mais altos. Nesse caso, como em todos os casos de desigualdade permanente entre os salários de ocupações diferentes, os preços e os valores serão afetados por essa desigualdade. As mercadorias cultivadas por escravos terão, em relação às cultivadas por não escravos, valor de troca inferior ao valor da quantidade de mão-de-obra exigida para sua produção; o valor das mercadorias produzidas por escravos será inferior ao que seria se a escravidão não existisse, e o das mercadorias produzidas por não escravos será superior ao que seria se a escravidão não existisse. Podemos deixar ao leitor inteligente, com grande vantagem, a ulterior adaptação da teoria do valor aos diversos tipos de sistema industrial vigentes ou possíveis. Como bem diz Montesquieu: “Não se deve sempre esgotar um assunto a tal ponto que ao leitor nada mais reste a fazer. Não se trata de fazer o leitor ler, mas de fazê-lo refletir”. (Esprit des Lois. Livro Décimo Primeiro, no final). CAPÍTULO VII O Dinheiro § 1. Tendo até aqui estabelecido as leis gerais sobre o valor, sem introduzir o conceito de dinheiro (a não ser, ocasionalmente, a título de ilustração), chegou agora o momento de acrescentarmos esse conceito, e considerar de que maneira os princípios do intercâmbio de mercadorias são afetados pelo uso do que se chama meio de troca. Para compreendermos as múltiplas funções de um meio de circulação, não há nada melhor do que analisar quais são os principais inconvenientes que sentiríamos, se não dispuséssemos dele. O primeiro e mais óbvio deles seria a falta de uma medida comum para aferir valores de espécies diferentes. Se um alfaiate só tivesse casacos, e quisesse comprar pão ou um cavalo, seria muito trabalhoso dizer com segurança quantos pães deveria obter por um casaco, ou quantos casacos teria que dar em troca de um cavalo. O cálculo teria que ser recomeçado com dados diferentes, toda vez que trocasse seus casacos por um tipo de artigo diferente; e seria impossível haver preços correntes, ou cotações regulares de valor, ao passo que atualmente cada coisa tem um preço corrente em dinheiro e o alfaiate supera todas as dificuldades cotando seu casaco a 4 ou 5 libras, e um pão de 4 libras-peso a 6 d ou 7 d. Assim como é muito mais fácil comparar comprimentos diferentes, expressando-os em uma linguagem comum de pés e polegadas, da mesma forma é muito mais fácil comparar valores utilizando uma linguagem comum de libras esterlinas, xelins e pences. Não há nenhum outro meio para uma pessoa calcular convenientemente a soma de suas posses; por outra parte, é mais fácil atinar e lembrar as relações de muitas coisas com uma única coisa, do que suas inúmeras relações recíprocas. Essa vantagem, de ter uma linguagem comum para expressar os valores, é, por si só, tão importante, que provavelmente haveria alguma forma de expressar e computar os valores, mesmo que uma libra esterlina ou um xelim não expressassem uma coisa real, mas uma simples unidade de cálculo. Segundo se afirma, existem tribos africanas em que efetivamente prevalece esse método um tanto artificial. Calculam o valor das coisas em uma espécie de moeda de conta, chamada macuta. Dizem que uma coisa vale 10 macutas, outra, 15, outra, 20 (MONTESQUIEU. Esprit des Lois. Livro Vigésimo Segundo. Cap. 8). Na realidade, não existe uma coisa real denominada macuta; trata-se de uma unidade convencional, para facilitar a comparação das coisas entre si. Todavia, essa vantagem representa apenas uma parte insignificante dos benefícios econômicos derivados do uso do dinheiro. Os inconvenientes do escambo são tão grandes, que sem algum instrumento mais cômodo para efetuar trocas a divisão das ocupações dificilmente poderia ter avançado muito. Um alfaiate que só tivesse casacos poderia vir a morrer de inanição antes de encontrar alguma pessoa que ao mesmo tempo tivesse pão para vender e precisasse de um casaco; além disso, ele não precisaria de tanto pão de uma vez, quanto valeria um casaco, e um casaco não poderia ser dividido. Por isso, cada um sempre se apressaria em desfazer-se de sua mercadoria em troca de qualquer coisa que, ainda que possivelmente não fosse indicada para as necessidades próprias imediatas, fosse objeto de procura grande e generalizada, e fosse facilmente divisível, de maneira a ter certeza de poder comprar com ela qualquer coisa que fosse colocada à venda. Os gêneros de necessidade vital possuem essas propriedades em alto grau. O pão é divisível ao extremo, sendo também um objeto por todos desejado. No entanto, não é esse o tipo de coisa de que se precisa, pois excetuado o caso da expectativa de escassez, ninguém deseja possuir, de uma só vez, mais alimento do que o necessário para consumo imediato, de sorte que uma pessoa nunca tem certeza de encontrar um comprador imediato para gêneros alimentícios — e a maior parte dos alimentos perece, se não for vendida logo. A coisa que as pessoas escolheriam para guardar consigo a fim de fazer compras deveria ser uma que, além de ser divisível e desejada por todos, não se deteriorasse com a conservação. Isso reduz a escolha a um pequeno número de artigos. § 2. Por um consenso tácito, quase todas as nações, em um período bem primitivo, fixaram-se em certos metais para servir a este propósito — especialmente o ouro e a prata. Não há nenhuma outra substância que associe em tão alto grau e com tantas vantagens paralelas as qualidades necessárias para isso. Logo depois do alimento e da roupa, e em alguns climas até antes da roupa, a inclinação mais forte, em um estágio primitivo de sociedade, é por ornamentos pessoais, e pelo tipo de prestígio que se consegue se tais ornamentos forem ou raros ou caros. Depois de satisfazer às necessidades imediatas da vida, cada um tinha avidez por acumular o maior estoque possível de coisas que fossem ao mesmo tempo caras e ornamentais — sobretudo o ouro, a prata e joias. Essas são as coisas que cada um mais apreciava possuir, e que mais certamente encontravam pessoas dispostas a recebê-las em troca de qualquer outro produto. Elas figuravam entre as substâncias existentes mais imperecíveis. Eram também fáceis de transportar, continham um valor alto em volume reduzido, e era fácil escondê-las — uma consideração de muita importância em uma época de insegurança. As joias são inferiores ao ouro e à prata em termos de divisibilidade; além disso, apresentam qualidades muito diversificadas, que só se consegue discriminar acuradamente com grande trabalho. O ouro e a prata são altamente divisíveis, e quando puros são sempre da mesma qualidade; quanto à sua pureza, ela pode ser constatada e garantida por uma autoridade pública. Eis por que, embora em alguns países se tenha utilizado como dinheiro as peles, em outros países, gado, na Tartária chinesa, cubos de chá comprimidos, conchas denominadas caurins na costa da África Ocidental, e na Abissínia, ainda hoje, blocos de sal-gema; e embora, mesmo em se tratando dos metais, por vezes se tenham escolhido os menos preciosos — como o ferro na Lacedemônia, em razão de uma política ascética; e o cobre na primitiva república romana, devido à pobreza da população — no geral se deu preferência ao ouro e à prata, por parte das nações que tinham condições de consegui-los com o trabalho próprio, pelo comércio ou pela conquista. Às qualidades que desde a origem recomendavam esses dois metais veio a juntar-se outra, cuja importância só aos poucos se foi revelando. Dentre todas as mercadorias, o ouro e a prata estão entre as que são menos influenciadas por qualquer das causas que produzem flutuações de valor. Nenhuma mercadoria está totalmente isenta de tais flutuações. O ouro e a prata passaram, desde o início da História, por uma única grande alteração permanente de valor, devido à descoberta das minas americanas; sofreram também algumas variações temporárias, como aquela que, na última grande guerra, foi provocada pela absorção desses metais por tesouros e cofres militares dos exércitos imensos constantemente em campo de batalha. Na época atual, a abertura de novas fontes de suprimento, tão abundantes como as montanhas dos Urais, a Califórnia e a Austrália, pode representar o início de outro período de declínio, sobre cujas dimensões seria hoje inútil fazer especulações. No conjunto, porém, não há nenhuma mercadoria tão pouco exposta a causas de variação. O custo de produção do ouro e da prata flutua menos que o de quase todas as outras mercadorias. Por outro lado, devido à sua durabilidade, a quantidade total existente é sempre tão grande, em relação ao fornecimento anual, que não é repentino o efeito sobre seu valor, mesmo em decorrência de uma alteração do custo de produção; requer-se muitíssimo tempo para diminuir significativamente a quantidade existente de ouro e prata, sendo que um aumento muito grande dessa quantidade também não é um processo rápido. Eis por que o ouro e a prata são mais adequados do que qualquer outra mercadoria para serem objeto de compromissos no sentido de receber ou pagar determinada quantidade em algum período distante. Se o compromisso fosse feito em termos de cereais, um fracasso das colheitas poderia, em um ano, multiplicar por quatro o ônus esperado, ou então, uma safra exuberante poderia reduzi-lo, em outro ano, à quarta parte do real. Se o pagamento fosse estipulado em tecidos, alguma invenção manufatureira poderia reduzir o pagamento permanentemente a 1/10 de seu valor original. Tais eventos têm ocorrido mesmo no caso de pagamentos estipulados em ouro e prata, mas até agora o único exemplo historicamente comprovado que temos disso é a grande baixa de seu valor após a descoberta da América; e mesmo nesse caso, a mudança foi extremamente gradual, distribuindo-se por um período de muitos anos. Uma vez que o ouro e a prata se tornaram virtualmente um meio de troca e passaram a ser as coisas pelas quais as pessoas geralmente vendiam, e com as quais compravam tudo o que tinham para vender ou para comprar, tornou-se óbvio pensar em introduzir a cunhagem. Por meio desse processo o metal foi dividido em partes convenientes, de qualquer tamanho reduzido, apresentando cada peça uma proporção reconhecida em relação às demais; poupou-se outrossim o incômodo de pesar e avaliar a peça a cada mudança de dono — inconveniente este que logo se teria tornado insuportável por ocasião de compras pequenas. Os governos acreditaram ser de seu interesse assumir essa operação e proibir qualquer cunhagem por particulares; efetivamente, a garantia por eles oferecida muitas vezes era a única na qual se confiaria — confiança que, porém, com muita frequência, os governos traíram. Com efeito, até recentemente, com o fim de roubar seus credores, governos corruptos raramente têm tido escrúpulos em permitir a todos os outros devedores que roubem os credores deles, recorrendo à artimanha vil e vergonhosa de baixar o padrão monetário — essa guarida mais indigna de todas as formas de velhacaria, que consiste em dar o nome de 1 xelim a 1 libra esterlina, a fim de que uma dívida de 100 libras possa ser liquidada pagando-se apenas 100 xelins. Teria sido uma ideia igualmente simples, e teria atendido igualmente bem ao propósito visado, decretar que “cem” deve sempre ser interpretado como sendo cinco — isso teria como efeito a mesma redução em todos os contratos pecuniários, e de forma alguma teria sido mais desavergonhado. Tais golpes políticos não deixaram totalmente de ser recomendados, mas deixaram de ser praticados — a não ser ocasionalmente por meio do instrumento de papel moeda caso em que a natureza da transação é um pouco menos descarada, devido à maior obscuridade da coisa. § 3. Uma vez que o uso do dinheiro se tornou habitual, ele é o instrumento por meio do qual se distribuem as rendas aos diversos membros da comunidade, e a medida com a qual estes avaliam suas posses. Já que é sempre com o dinheiro que as pessoas proveem às suas diversas necessidades, desenvolve-se nelas uma poderosa associação de ideias que as leva a considerar o dinheiro como riqueza, em um sentido mais especial do que qualquer outro artigo; e mesmo aqueles que passam sua vida na produção dos objetos mais úteis acabam contraindo o hábito de considerar estes como importantes, sobretudo pelo fato de poderem ser trocados por dinheiro. Imagina-se que uma pessoa que se desfaz de dinheiro para adquirir mercadorias, a menos que tencione vendê-las, faz um negócio pior do que uma pessoa que se desfaz de mercadorias para conseguir dinheiro — supondo-se que a primeira esteja gastando seus recursos, e a segunda os esteja aumentando. Tais ilusões, embora estejam hoje até certo ponto dissipadas, durante muito tempo foram suficientemente poderosas para convencer todos os políticos da Europa, tanto os teóricos como os práticos. Deve ser evidente, porém que a simples introdução de um sistema específico de trocar coisas umas pelas outras, trocando primeiro a coisa por dinheiro, e só então trocando o dinheiro por alguma outra coisa, não acarreta nenhuma diferença para a natureza básica das transações. Não é por dinheiro que as coisas são realmente compradas. Não há ninguém cujo rendimento provenha dos metais preciosos (excetuando o caso dos que trabalham nas minas de ouro ou de prata). O rendimento que uma pessoa recebe por semana ou por ano não são as libras esterlinas ou os xelins — estes não passam de uma espécie de bilhetes ou ordens de pagamento que a pessoa pode apresentar para pagamento em qualquer loja que quiser, e que a habilita a receber determinado valor de qualquer mercadoria que escolher. O arrendatário paga seus trabalhadores e o dono de sua terra com esses bilhetes ou cédulas, por ser este o sistema mais conveniente para as duas partes; mas o rendimento real dos trabalhadores e do dono da terra consiste na sua participação no trigo, no gado e no feno do arrendatário, não fazendo nenhuma diferença essencial se este lhes distribui o rendimento diretamente, ou se o vende para eles e lhes dá o preço correspondente; já que, porém, de qualquer forma eles teriam que vender seu rendimento por dinheiro se o arrendatário não o fizesse, e já que este é em qualquer hipótese um vendedor, atende-se melhor às finalidades de todos se o arrendatário vender a parte deles na produção juntamente com a sua própria, deixando aos trabalhadores mais tempo para trabalharem e ao dono da terra mais tempo para permanecer na ociosidade. Os donos de capital, excetuados aqueles que são produtores de metais preciosos, não auferem parte alguma de seu rendimento dos metais, já que só os adquirem comprando-os com seu próprio produto, enquanto todas as outras pessoas recebem seus rendimentos pagos pelos donos de capital, ou por aqueles que receberam pagamento dos donos de capital; e já que os donos de capital nada têm, desde o início, a não ser seu produto, é com este — e com nada mais — que pagam todos os rendimentos que fornecem aos outros. Em suma, intrinsecamente não pode haver coisa mais insignificante do que o dinheiro na economia da sociedade, a não ser como invenção para poupar tempo e trabalho. É um mecanismo para fazer, com rapidez e comodamente, o que seria feito mesmo sem ele, ainda que com rapidez menor e com mais trabalho; e como muitos outros tipos de mecanismo, o dinheiro só exerce influência característica, nítida e independente quando desvirtuado. A introdução do dinheiro não interfere na operação de nenhuma das leis reguladoras do valor estabelecidas nos capítulos precedentes. As razões que fazem com que o valor temporário ou de mercado das coisas dependa da procura e da oferta, e seus valores médios ou permanentes dependam de seu custo de produção são tão aplicáveis a um sistema monetário quanto a um sistema de escambo. Coisas que no sistema de escambo seriam trocadas umas pelas outras, se vendidas por dinheiro serão vendidas por um montante igual de dinheiro, e, portanto, poderão ser trocadas umas pelas outras, ainda que o processo de troca conste de duas operações em vez de uma só. O dinheiro não altera as relações das mercadorias entre si; a única relação nova que se introduz é a relação delas com o próprio dinheiro, isto é, por quanto dinheiro serão trocadas — em outras palavras, como se determina o valor de troca do próprio dinheiro. E isso não é nenhum problema difícil, uma vez que se dissipar a ilusão que fez com que o dinheiro fosse considerado como uma coisa especial, não regida pelas mesmas leis que outras coisas. O dinheiro é uma mercadoria, e seu valor é determinado da mesma forma que o de outras mercadorias: temporariamente, pela procura e oferta, e permanentemente e na média, pelo custo de produção. A explicação desses princípios, considerados em sua aplicação ao dinheiro, precisa ser dada com certo detalhamento, devido à confusão que envolve a matéria, para pessoas não cientificamente instruídas sobre o assunto. Isso se deve, em parte, a um remanescente ainda persistente das associações de ideias que confundem, em parte à massa de especulações nebulosas e infundadas que nos últimos tempos tem cercado este item da Economia Política, mais do que qualquer outro. Por isso, tratarei do valor do dinheiro em um capítulo à parte. CAPÍTULO VIII O Valor do Dinheiro, em Dependência da Oferta e Procura § 1. É lamentável que já de saída tenhamos de eliminar do nosso caminho uma tremenda ambiguidade de linguagem. O valor do dinheiro se apresenta como uma expressão tão precisa, tão isenta de possibilidades de equívoco, como qualquer outra expressão científica. O valor de uma coisa é aquilo pelo que ela pode ser trocada: por conseguinte, o valor do dinheiro é aquilo pelo qual o dinheiro pode ser trocado, o poder de compra do dinheiro. Se os preços forem baixos, o dinheiro comprará um montante elevado de outras coisas, tendo grande valor; se os preços forem altos, comprará um montante pequeno de outras coisas, tendo pouco valor. O valor do dinheiro comporta-se em razão inversa aos preços gerais: cai quando eles sobem, e sobe quando eles baixam. Infelizmente, porém, a mesma expressão é também empregada, na linguagem comercial corrente, em sentido bem diferente. O dinheiro, que é tão comumente entendido como sinônimo de riqueza, é o termo mais particularmente utilizado para designar a riqueza, quando ele é objeto de empréstimo. Quando uma pessoa empresta a outra, e também quando ela paga salários ou renda a outra, o que ela transfere não é simplesmente dinheiro, mas um direito a determinado valor da produção do país, a ser escolhido à vontade, sendo que anteriormente a própria pessoa que dá o empréstimo comprou esse direito, pagando por ele parte de seu capital. O que o mutuante realmente empresta é um montante de capital, e o dinheiro não passa do instrumento usado na transferência. Mas o capital normalmente passa do mutuante para o mutuário por meio do dinheiro, ou então de uma ordem de pagamento, e em qualquer hipótese é em dinheiro que o capital é computado e avaliado. Daí que emprestar capital em toda parte se denomina emprestar dinheiro; o mercado de empréstimos é denominado mercado monetário; os que têm seu capital disponível para investimento em empréstimos são denominados classe endinheirada; e o equivalente pago pelo uso do capital, ou, em outras palavras, os juros, não somente são denominados juros do dinheiro, mas, adulterando ainda mais os termos, valor do dinheiro. Essa linguagem ambígua, secundada por algumas aparências falaciosas que notaremos e esclareceremos mais adiante, criaram uma ideia generalizada entre as pessoas de negócios, de que o valor do dinheiro — no sentido da taxa de juros — tem relação íntima com o valor do dinheiro em seu sentido adequado, a saber, o valor ou poder de compra do meio circulante. Dentro em pouco voltaremos a esse item; de momento basta dizer que, por valor, entenderei sempre o valor de troca, e por dinheiro, o instrumento de troca, e não o capital que é passado de um para o outro por meio desse instrumento. § 2. O valor ou poder de compra do dinheiro depende, em primeira instância, da procura e da oferta. Mas a procura e a oferta, em relação ao dinheiro, se apresentam de forma algo diferente da procura e oferta de outras coisas. A oferta de uma mercadoria significa a quantidade oferecida à venda. Mas não é comum falar-se em oferecer dinheiro à venda. Não se costuma dizer que as pessoas compram ou vendem dinheiro. Isso, porém, não passa de uma questão de linguagem. Na realidade, o dinheiro é comprado e vendido como outras coisas, toda vez que outras coisas são compradas e vendidas por dinheiro. Toda pessoa que vende trigo, sebo ou algodão compra dinheiro. Toda pessoa que compra pão, vinho ou roupas vende dinheiro a um comerciante que lida com tais artigos. O dinheiro que as pessoas oferecem para comprar outras mercadorias é dinheiro oferecido à venda. A oferta de dinheiro, portanto, é a quantidade de dinheiro que as pessoas desejam aplicar, isto é, todo o dinheiro que têm em seu poder, excetuado aquele que estão entesourando, ou ao menos guardando consigo como uma reserva com vistas nas contingências futuras. Em suma, a oferta de dinheiro é todo o dinheiro em circulação no momento. Quanto à procura de dinheiro, ela consiste em todos os bens oferecidos à venda. Todo vendedor de bens é um comprador de dinheiro, e os bens que traz consigo constituem sua procura. A procura de dinheiro difere da procura de outras coisas pelo fato de ser limitada somente pelos recursos do comprador. A procura de outras coisas é de certa quantidade, e não mais, ao passo que a procura de dinheiro é sempre tanta quanto dinheiro se puder conseguir. Certamente, as pessoas podem recusar-se a vender, e retirar seus bens do mercado, se não conseguirem o que consideram um preço suficiente. Mas isso só acontece quando pensam que o preço subirá, e que conseguirão mais dinheiro com a espera. Se acreditassem na possibilidade de permanência do preço baixo, haveriam de contentar-se com o que conseguissem obter. Para um comerciante, vender suas mercadorias é sempre uma condição sine qua non. Assim como a totalidade dos bens existentes no mercado compõe a procura de dinheiro, da mesma forma a totalidade do dinheiro constitui a procura de bens. O dinheiro e as mercadorias se procuram reciprocamente, para serem trocados um pelo outro. São reciprocamente oferta e procura um em relação ao outro. É indiferente, ao caracterizarmos os fenômenos, falar de procura e oferta de mercadorias, ou de oferta e procura de dinheiro. São expressões equivalentes. Passemos a ilustrar melhor essa proposição. E, ao fazermos isso, o leitor notará grande diferença entre o tipo de problema que agora nos ocupa, e aqueles que discutimos anteriormente em relação aos valores. Ao considerarmos o valor, interessavam-nos apenas causas que agem sobre determinadas mercadorias, prescindindo das demais. As causas que afetam igualmente todas as mercadorias não afetam os valores. Ao contrário, ao considerarmos a relação existente entre as mercadorias e o dinheiro, interessam-nos especialmente as causas que operam sobre todas as mercadorias, quaisquer que sejam. Estamos comparando mercadorias de todos os tipos, de um lado, com o dinheiro, do outro, como duas coisas a serem trocadas uma pela outra. Suponhamos que, permanecendo inalterados todos os outros fatores, ocorra um aumento da quantidade de dinheiro: digamos, pela chegada de um estrangeiro em um lugar, trazendo consigo um tesouro de ouro e prata. Quando ele começar a gastá-lo (não interessando aqui se o faz de maneira produtiva ou improdutiva), aumentará a oferta de dinheiro e, por isso mesmo, a procura de mercadorias. Não há dúvidas de que, em primeira instância, aumenta somente a procura por determinados tipos de mercadoria, isto é, aquelas que ele escolhe para comprar; imediatamente ele fará subir o preço destas, e somente delas, na medida em que o interessado é ele individualmente. Se gastar seus fundos com hospitalidades fará subir os preços dos alimentos e do vinho. Se os gastar em implantar uma manufatura, fará subir os preços da mão-de-obra e das matérias-primas. Entretanto, a preços mais altos, terão mais dinheiro os vendedores desses diversos artigos — e esses vendedores, sejam eles trabalhadores ou vendedores, por terem mais dinheiro para gastar, criarão uma procura maior para todos os artigos que estão habituados a comprar; esses artigos, portanto, aumentarão de preço, e assim por diante, até o aumento de preço atingir tudo. Digo tudo, se bem que naturalmente é possível que o afluxo de dinheiro ocorra por meio de alguma nova categoria de consumidores, ou de maneira a alterar as proporções de diferentes classes de consumidores entre si, de sorte que em alguns artigos se gastaria uma porção maior da renda nacional do que antes, e em outros uma menor — exatamente como se tivesse ocorrido uma mudança de gostos e necessidades na comunidade. Se fosse esse o caso, enquanto a produção não se tivesse adaptado a essa mudança da procura relativa por coisas diferentes, haveria uma alteração real nos valores, e algumas coisas aumentariam de preço mais do que outras, ao passo que outras talvez não aumentariam em nada. Esses efeitos, porém, obviamente não adviriam do simples aumento de dinheiro, mas de circunstâncias acessórias decorrentes desse aumento. No momento, interessa-nos examinar apenas qual seria o efeito de um aumento de dinheiro, considerado em si mesmo. Supondo que aumentasse o dinheiro nas mãos dos indivíduos, permanecendo totalmente inalteradas as necessidades e as inclinações da comunidade coletivamente, com respeito ao consumo, o aumento da procura atingiria todas as coisas de maneira igual, e haveria um aumento geral dos preços. Poderíamos imaginar, como Hume, que algum dia, de manhã cedo, cada cidadão da nação acordasse e encontrasse uma moeda de ouro no bolso. Esse exemplo, porém, provocaria uma alteração na proporção da procura de mercadorias diferentes: em primeira instância, os artigos de luxo dos pobres subiriam de preço, muito mais do que outras coisas. Por isso, suponhamos que subitamente se acrescentasse a cada libra esterlina, ou xelim, ou pêni de posse de cada um outra esterlina, ou xelim, ou pêni. Haveria um aumento da demanda de dinheiro, e consequentemente um aumento do valor ou do preço do dinheiro, para coisas de todos os gêneros. Esse aumento de valor não beneficiaria a ninguém, não acarretaria nenhuma diferença, a não ser a de se ter de contar mais esterlinas, xelins e pence. Haveria um aumento de valores somente avaliados em dinheiro — do qual só se necessita para com ele comprar outras coisas — e isso não faria com que alguém tivesse condição de comprar mais coisas do que antes. Os preços teriam subido em determinada proporção, e o valor do dinheiro teria caído na mesma proporção. Há que notar que essa proporção seria exatamente aquela na qual a quantidade de dinheiro havia aumentado. Se a totalidade do dinheiro em circulação dobrasse, os preços dobrariam. Se tivesse aumentado apenas de 1/4, os preços subiriam 1/4. Haveria 1/4 a mais de dinheiro, sendo que todo ele seria usado para comprar bens de alguma espécie. Se tivesse havido tempo para o aumento da oferta de dinheiro atingir todos os mercados, ou (segundo a metáfora convencional) para encher todos os canais de circulação, todos os preços teriam subido 1/4. Mas esse aumento geral dos preços é independente desse processo de difusão e de equalização. Mesmo que alguns preços tivessem subido mais, e outros menos, o aumento médio teria sido de 1/4. Isso é uma consequência necessária do fato de que se teria pago 1/4 a mais de dinheiro pela mesma quantidade de bens. Em qualquer caso, portanto, os preços em geral aumentariam de 1/4. Exatamente o mesmo efeito seria produzido nos preços se supuséssemos uma diminuição dos bens, em vez de um aumento do dinheiro, e o efeito contrário, se os bens aumentassem ou o dinheiro diminuísse. Se houvesse menos dinheiro nas mãos da comunidade, e o mesmo montante de bens a serem vendidos, pagar-se-ia por eles menos dinheiro no global, e os bens seriam vendidos a preços mais baixos — mais baixos, exatamente na mesma proporção em que diminuísse o dinheiro. Assim, pois, o valor do dinheiro, não se alterando outros fatores, varia à razão inversa da sua quantidade: todo aumento de sua quantidade faz baixar seu valor, e toda redução de sua quantidade faz aumentar seu valor a uma razão exatamente equivalente. Cumpre lembrar que essa é uma propriedade peculiar ao dinheiro. Vimos que isso não é verdade em relação às mercadorias em geral, que toda redução da oferta aumenta o valor exatamente na proporção da deficiência, que todo aumento da oferta faz o valor baixar exatamente na proporção do excedente. Algumas coisas costumam ser afetadas em uma proporção superior à do excedente ou da deficiência; outras, em proporção inferior. Isso ocorre porque, em casos normais de demanda, o desejo, por referir-se à própria coisa, pode ser mais forte ou mais fraco, e pelo fato de o montante que as pessoas estão dispostas a gastar nela ser em qualquer caso uma quantidade limitada, esse desejo pode ser afetado em graus muito desiguais pela dificuldade ou pela facilidade de obtenção. No caso do dinheiro, porém, que é desejado como instrumento de compra universal, a procura consiste em tudo aquilo que as pessoas têm para vender, e o único limite ao que estão dispostas a pagar é estabelecido pelo fato de não terem nada mais a oferecer. Como em qualquer caso a totalidade dos bens é trocada pela totalidade de dinheiro que está no mercado para ser aplicado, essa totalidade será vendida por menos ou por mais dinheiro, exatamente na medida em que se tiver menos ou mais desses bens. § 3. Do que precede poder-se-ia provisoriamente imaginar que todos os bens à venda em um país, a qualquer momento fossem trocados por todo o dinheiro existente e em circulação naquele mesmo momento; ou, em outras palavras, que sempre esteja em circulação, em um país, uma quantidade de dinheiro igual em valor à totalidade dos bens então existentes à venda. Isso seria um equívoco total. O dinheiro aplicado é igual em valor aos bens que ele compra, mas a quantidade de dinheiro aplicado não é a mesma coisa que a quantidade em circulação. Uma vez que o dinheiro, passa de mão em mão, a mesma peça de dinheiro é aplicada muitas vezes antes que todas as coisas à venda em certo momento sejam compradas e finalmente retiradas do mercado; e cada libra esterlina ou dólar têm de ser contados como tantas esterlinas ou dólares quantas forem as vezes que mudarem de dono para cumprir esse objetivo. Também a maioria dos bens tem de ser contada mais de uma vez, não somente porque a maioria das coisas passa pelas mãos de várias séries de manufatores e comerciantes antes de assumirem a forma em que são finalmente consumidas, mas também porque, em períodos de especulação (e todos o são, em grau maior ou menor), as mesmas mercadorias muitas vezes são compradas repetidas vezes, para serem revendidas com lucro, antes de serem compradas para serem diretamente consumidas. Se supusermos que a quantidade de bens à venda e o número de vezes que esses bens são revendidos são quantidades fixas, o valor do dinheiro dependerá de sua própria quantidade, juntamente com o número médio de vezes que cada moeda muda de dono no processo. A totalidade dos bens vendidos (contando cada revenda dos mesmos bens como um montante acrescentado aos bens) foi trocada pela totalidade do dinheiro, multiplicado pelo número de compras feitas, em média, por cada moeda. Consequentemente, sendo iguais o montante de mercadorias e o de transações, o valor do dinheiro é o inverso da quantidade multiplicada pelo que se chama rapidez da circulação. E a quantidade de dinheiro em circulação é igual ao dinheiro de todos os bens vendidos, dividido pelo número que expressa a rapidez da circulação. A expressão rapidez de circulação exige alguma explicação. Não se deve pensar que o termo significa o número de compras feitas por cada moeda em determinado tempo. O aspecto a ser considerado não é o tempo. O estágio social pode ser tal, que cada moeda dificilmente realiza mais do que uma compra em um ano; mas se isso provier do número reduzido de transações — do reduzido número de negócios feitos, da inatividade do comércio ou porque o comércio que existe se efetua mais que tudo por meio de escambo — não há razão alguma para os preços baixarem ou para o valor do dinheiro subir. O ponto essencial não é quantas vezes o mesmo dinheiro muda de dono em determinado tempo, mas quantas vezes ele muda de dono para efetuar determinado montante de comércio. Devemos comparar o número de compras feitas pelo dinheiro em determinado tempo não com o próprio tempo, mas com os bens vendidos, nesse mesmo tempo. Se cada peça de dinheiro muda de dono, em média, dez vezes enquanto se vendem bens no valor de 1 milhão de esterlinas, é evidente que o dinheiro necessário para fazer circular essas mercadorias é 100 mil libras e, inversamente, se o dinheiro em circulação for 100 mil libras e cada moeda mudar de dono, pela compra de bens, dez vezes em um mês, as vendas de bens por dinheiro, que ocorrem cada mês, devem montar em média a 1 milhão de libras. Por ser o termo rapidez de circulação tão pouco adequado para exprimir a única coisa que é importante expressar com ele, e por ter ele tendência a gerar confusão, sugerindo um significado diferente do que se pretende, seria bom se pudéssemos livrar-nos dele, substituindo-o por outro, que significasse mais diretamente a ideia que se deseja exprimir. Uma expressão como “a eficiência do dinheiro”, embora não inatacável, seria melhor, já que chamaria a atenção para a quantidade de serviço prestado, sem sugerir a ideia de avaliá-lo em termos de tempo. Enquanto não se puder achar um termo apropriado, temos que contentar-nos, quando houver motivos para temer ambiguidade, com exprimir a ideia pela única circunlocução que a exprime adequadamente, a saber, o número médio de compras feitas por cada moeda para gerar determinado montante pecuniário de transações. § 4. A proposição que estabelecemos, de que os preços gerais dependem da quantidade de dinheiro em circulação, deve ser entendida como algo aplicável somente a um estado de coisas em que o dinheiro, isto é, ouro ou prata, é o instrumento exclusivo de troca, e efetivamente passa de um dono para outro a cada compra, desconhecendo-se o crédito em qualquer uma de suas formas. Quando entrar em jogo o crédito — diferente do dinheiro vivo — como instrumento de compra veremos mais adiante que a relação entre preços e o montante do meio circulante é muito menos direta e íntima, e que o tipo de relação existente no caso de crédito já não comporta uma forma de expressão tão simples. Entretanto, em se tratando de um assunto tão complexo como o da moeda e dos preços, é necessário situar a base de nossa teoria numa compreensão cabal dos casos mais simples, que, conforme constataremos, constituem o fundamento ou substrato dos casos que ocorrem na prática. Que um aumento da quantidade de dinheiro faz os preços subirem, e que uma redução da mesma os faz baixar, eis a proposição mais elementar da teoria do dinheiro, sem a qual não teríamos explicação para qualquer outra proposição. Todavia, em qualquer situação, excetuada aquela simples e primitiva que supusemos, a proposição só será verdadeira se outros fatores permanecerem iguais — e quais são esses outros fatores que devem permanecer os mesmos, ainda não podemos dizê-lo. Mesmo a esta altura, porém, podemos apontar uma ou duas precauções que se devem tomar na utilização desse princípio para explicar os fenômenos que ocorrem na prática — precauções tanto mais indispensáveis, porque a doutrina, embora seja verdade científica, tem constituído, nos últimos anos, fundamento para muita teoria falsa e interpretação errônea da realidade em medida muito maior do que qualquer outra proposição relativa ao intercâmbio de mercadorias. Desde a época da reintrodução dos pagamentos em dinheiro pela lei de 1819, e especialmente desde a crise comercial de 1825, a explicação preferida de cada aumento ou queda de preços tem sido a “moeda”; e como acontece com a maioria das teorias populares, tem-se aplicado essa doutrina com pouca atenção às condições necessárias para que a aplicação seja correta. Por exemplo, costuma-se supor que sempre que houver quantidade maior de dinheiro no país, ou sempre que essa quantidade exista de fato, necessariamente ocorrerá um aumento de preços. Ora, isso de forma alguma é uma consequência inevitável. Em qualquer mercadoria, o que determina o valor não é a quantidade existente, mas a quantidade oferecida à venda. Qualquer que seja a quantidade de dinheiro existente no país, a quantidade que afetará os preços é somente aquela que entra na comercialização de bens e nesse mercado é trocada efetivamente por mercadorias. Tudo o que faz aumentar essa porção do dinheiro existente no país tende a aumentar os preços, mas o dinheiro acumulado não atua sobre os preços. O dinheiro que se mantém de reserva para atender a contingências individuais, que na verdade não ocorrem, não influencia os preços. O dinheiro guardado nos cofres do banco, ou retido como reserva por banqueiros privados, não influencia os preços enquanto não for sacado, e mesmo que o seja, só influenciará os preços se for sacado para ser gasto em mercadorias. Com frequência acontece que somas consideráveis de dinheiro entram no país, são efetivamente investidas ali como capital, e saem novamente do país sem terem uma vez sequer agido sobre o mercado de bens, mas apenas sobre o mercado de títulos ou, como se diz comumente, ainda que utilizando uma expressão inadequada, sobre o mercado financeiro. Voltemos ao caso, já apresentado como exemplo, de um estrangeiro que chega à região com um tesouro. Supusemos que ele empregava o tesouro na compra de bens para seu próprio uso, ou na implantação de uma fábrica e em dar emprego a trabalhadores; em qualquer dos dois casos, na permanência de outros fatores, ele faria os preços subirem. Entretanto, em vez de fazer uma dessas duas coisas, poderia, muito provavelmente, investir sua fortuna a juros — suporemos que o faça da maneira mais óbvia, tornando-se um concorrente para parte das letras da Bolsa, do tesouro, de debêntures das companhias ferroviárias, títulos comerciais, hipotecas etc. (...), que sempre estão nas mãos do público. Fazendo isso, ele faria subir o preço desses diversos títulos ou, em outros termos, faria baixar a taxa de juros; e já que isso perturbaria a proposição anteriormente existente entre a taxa de juros sobre o capital no próprio país e a existente em países estrangeiros, provavelmente levaria alguns dos que têm capital flutuante à procura de aplicação a enviá-lo ao exterior para investimentos estrangeiros, em vez de comprar títulos no próprio país, ao preço adiantado. Com isso, poderia sair do país tanto dinheiro quanto o que anteriormente havia entrado, ao passo que o preço das mercadorias não teria apresentado traço algum da presença temporária desse dinheiro. Esse é um caso que merece muita atenção, e é um fato que hoje se começa a reconhecer que a transferência dos metais preciosos de um país a outro é determinada, muito mais do que se supunha anteriormente, pela situação do mercado de empréstimos nos diversos países e muito menos pela conjuntura dos preços. É importante advertir para outro ponto, a fim de evitar erro grave na interpretação dos fenômenos do comércio. Se, em qualquer momento, houver um aumento do número de transações financeiras — coisa que pode acontecer continuamente, devido a diferenças de intensidade na especulação, e mesmo em razão de diferenças devidas à época do ano (já que certos tipos de negócio são feitos somente em determinadas épocas) — nesse caso, um aumento de dinheiro que for apenas proporcional a esse aumento de transações, e não durar mais tempo, não tende a fazer os preços subirem. Nos períodos trimestrais em que o banco paga dividendos públicos, ocorre um aumento repentino de dinheiro nas mãos do público — aumento que é estimado entre 1/5 e 2/5 do total das emissões do Bank of England. E, no entanto, isso nunca tem nenhum efeito sobre os preços; em pouquíssimas semanas, o dinheiro fica novamente reduzido às suas dimensões usuais, por simples redução das procuras do público (depois de uma oferta tão copiosa de dinheiro vivo) em relação a uma acomodação do banco na forma de descontos ou empréstimos. De maneira análoga flutua, em estações diferentes do ano, o montante de dinheiro nos distritos agrícolas. Em agosto ele é sempre mais baixo: “ele costuma aumentar pelo Natal, atingindo seu ápice em torno da Festa da Anunciação, quando o arrendatário geralmente faz provisão de capital, e tem de pagar sua renda e seus impostos de verão”, e quando, portanto, ele costuma fazer suas solicitações principais de empréstimos bancários. “Essas variações ocorrem com a mesma regularidade que as estações, perturbando tão pouco o mercado quanto as flutuações trimestrais das notas do Bank of England. Assim que se completarem os pagamentos extras”, o dinheiro “que sobra” — que é estimado em meio milhão de esterlinas — “com a mesma certeza e com a mesma rapidez é reabsorvido e desaparece.” Se não viesse dinheiro extra para efetuar esses pagamentos extras, aconteceria uma de três coisas. Ou os pagamentos teriam que ser feitos sem dinheiro, recorrendo a algum daqueles meios que fazem dispensar o uso do dinheiro, ou teria que haver um aumento da rapidez de circulação — fazendo com que a mesma quantia de dinheiro efetue mais pagamentos — ou, se nenhuma dessas duas soluções fosse adotada, o dinheiro para efetuar esses pagamentos extras teria que ser retirado do mercado de bens e consequentemente os preços cairiam. Um aumento do meio circulante, não superior em extensão e duração às exigências temporárias dos negócios, não faz os preços subirem, mas apenas impede que caiam. A sequência de nossa investigação apontará muitas outras ressalvas que se devem acrescentar à proposição de que o valor do meio circulante depende da procura e da oferta, e de que ocorre na razão inversa da quantidade — essas ressalvas, em um sistema complexo de crédito como o existente na Inglaterra fazem com que essa proposição constitua expressão extremamente incorreta da realidade. CAPÍTULO IX O Valor do Dinheiro, em Dependência do Custo de Produção § 1. Mas o valor do dinheiro, em definitivo, não é regulado pela procura e oferta mais do que o das mercadorias em geral. O regulador último do valor do dinheiro é seu custo de produção. Naturalmente, estamos supondo que se deixe as coisas evoluírem normalmente com liberdade. Os governos nem sempre têm feito isso. Têm procurado impedir que a quantidade de dinheiro se ajuste de acordo com as leis naturais, procurando regulá-la a seu bel-prazer — em geral, no intuito de manterem no país uma quantidade de dinheiro superior àquela que do contrário nele teria permanecido. Até recentemente, a política de todos os governos era proibir a exportação e a fusão de dinheiro, enquanto, estimulando a exportação e impedindo a importação de outras coisas, procuravam fazer com que entrasse constantemente no país um fluxo de dinheiro. Com isso, favoreceram dois preconceitos: atraíram, ou pensaram atrair para o país, mais dinheiro, que acreditavam ser a mesma coisa que mais riqueza; e deram, ou acreditaram dar, a todos os produtores e comerciantes preços altos, os quais, embora não constituam nenhuma vantagem, as pessoas sempre estão propensas a considerar como vantagem. Nessa tentativa de regular artificialmente o valor do dinheiro, por meio da oferta, os governos nunca tiveram sucesso no grau ou mesmo da maneira que tencionavam. Suas proibições contra a exportação ou a fusão da moeda nunca tiveram efeito. É fácil contrabandear uma mercadoria de volume tão reduzido em proporção ao seu valor, e sua fusão é ainda tanto mais fácil que tem sido impossível impedir tais operações, mesmo com as medidas mais rigorosas. Todo risco que os governos tinham condições de anexar a tais operações ilegais era suplantado por um lucro muito modesto (No entanto, o efeito dessa proibição não pode ter sido tão insignificante como supuseram alguns autores que escreveram sobre o assunto. Os fatos aduzidos pelo sr. Fullarton, na nota à p. 7 de sua obra Regulation of Currencies, mostram que para levar à fusão da moeda era necessária uma percentagem maior de diferença de valor entre a moeda e o metal não cunhado do que se tem comumente imaginado). Quanto à maneira mais indireta de conseguir o mesmo propósito, isto é, criando dificuldades, a fim de que o pagamento por bens exportados só se fizesse em outras mercadorias, e não em dinheiro, o insucesso dos governos não tem sido tão grande. Não conseguiram fazer com que continuamente entrasse dinheiro no país, mas conseguiram, até certo ponto, manter o dinheiro a um nível superior ao seu nível natural, e sob esse aspecto conseguiram evitar que o valor do dinheiro dependesse exclusivamente das causas que fixam o valor das coisas nas quais não há interferência artificial. Todavia, temos que supor uma situação de liberdade, e não de regulagem artificial. Em tal situação, e supondo que não se cobre nenhum encargo pela cunhagem, o valor do dinheiro obedecerá ao valor do metal em barras, de que é feito. Valerão exatamente a mesma coisa uma libra-peso de ouro ou prata em moeda e o mesmo peso em lingotes. Numa situação em que reina liberdade, o metal não pode valer mais em estado não cunhado do que em estado de moeda, pois, já que o metal pode ser fundido sem nenhuma perda de tempo, e praticamente sem despesas, essa operação seria praticada até a quantidade em circulação diminuir a ponto de seu valor ser igual ao do mesmo peso em barras ou lingotes. Poder-se-ia, porém, pensar que a moeda, embora não podendo valer menos do que o metal não cunhado contido nela, pode valer mais — e, por ser um artigo manufaturado, vale efetivamente mais — com base no mesmo princípio segundo o qual o tecido de linho manufaturado vale mais do que um peso igual de fio de linho. Isso seria verdade se o governo, neste país, e em alguns outros, não cunhasse moeda gratuitamente para quem fornecesse o metal. O trabalho e a despesa da cunhagem, quando não cobrados do dono, não fazem subir o valor do artigo. Se o governo abrisse um escritório em que, contra a entrega de determinado peso de fio, cada cidadão que o pedisse recebesse o mesmo peso de tecido, este não valeria no mercado mais do que o fio de que é feito. No momento em que uma moeda vale uma fração a mais do que o valor do metal não cunhado, os donos de metal não cunhado têm interesse em mandá-lo cunhar. Se, porém, o governo cobrar do proprietário a despesa da cunhagem, como é justo, cobrando uma taxa para compensar a despesa (o que se faz, devolvendo em moeda menos do que se recebeu em metal não cunhado, e se denomina cobrar uma senhoriagem), o valor da moeda será superior ao do metal não cunhado, no montante representado pela senhoriagem. Se a Casa da Moeda retivesse 1% para cobrir o gasto da cunhagem, seria contrário aos interesses dos donos de metal não cunhado fazê-lo cunhar, enquanto a moeda não valesse mais do que o metal não cunhado no mínimo no montante equivalente a essa fração. Por isso, o valor da moeda seria mantido 1% mais alto, o que só poderia acontecer conservando sua quantidade 1% abaixo do que seria no caso de sua cunhagem ser gratuita. O governo poderia tentar obter lucro nessa transação, e poderia impor uma senhoriagem para esse fim, mas tudo o que cobrasse pela cunhagem, além das despesas dessa operação, seria um lucro equivalente sobre a cunhagem feita por particulares. A cunhagem, embora não seja uma operação tão fácil como a fusão, está longe de ser uma operação difícil, não sendo fácil descobrir quando a moeda produzida tem o peso pleno e o quilate padrão. Se, portanto, fosse possível auferir algum lucro cunhando moeda boa, certamente isso se faria, e fracassaria a tentativa de fazer da senhoriagem uma fonte de receita. Da mesma forma se frustraria qualquer tentativa de manter artificialmente elevado o valor da moeda, não pela senhoriagem, mas pela recusa em cunhar. (Na Inglaterra, se bem que não haja senhoriagem para a moeda em ouro (pois a Casa da Moeda devolve em moeda o mesmo peso de metal puro que recebe em metal não cunhado), existe uma demora de algumas semanas, a partir da entrega do metal não cunhado, para se poder receber a moeda — o que gera uma perda de juros, que para o dono equivale a uma senhoriagem insignificante. Em razão disso, o valor da moeda em geral está levemente acima do valor do metal não cunhado que ela contém. Uma onça de ouro, pela quantidade de metal contida em uma moeda de uma libra esterlina, deveria valer £ 3 17 s. 10 1/2 d., ao passo que costumava ser cotada a £ 3 17 s. 6 d., até que a Lei das Cartas-Patentes dos Bancos de 1844 determinou ao banco vender suas notas, em troca de metal não cunhado que lhe fosse oferecido, à taxa de £ 3 17 s. 9 d). § 2. Eis por que o valor do dinheiro é sempre igual — e, onde há liberdade, isso acontece quase imediatamente — ao valor do metal do qual é feito, adicionando-se ou não as despesas de cunhagem, conforme elas forem pagas pelo indivíduo ou pelo Estado. Isso simplifica ao extremo a questão que temos que analisar aqui, pois o ouro e a prata em barras são mercadorias como quaisquer outras, e seu valor depende, como o de outras coisas, de seu custo de produção. Na maioria dos países civilizados, o ouro e a prata são bens importados; ora, as circunstâncias que regem os valores de produtos estrangeiros apresentam alguns problemas que ainda não temos condições de examinar. De momento, portanto, precisamos supor que o país que estamos analisando recebe ouro e prata de suas próprias minas, deixando para estudar mais tarde até que ponto nossas conclusões têm de ser modificadas, para adaptá-las ao caso mais comum. Dentre as três categorias em que se dividem as mercadorias — aquelas cuja oferta é absolutamente limitada, aquelas que se podem conseguir em quantidade ilimitada a determinado custo de produção, e aquelas que se podem conseguir em quantidade ilimitada, mas a um custo de produção maior —, os metais preciosos fazem parte da terceira, por serem produzidos por minas. A longo prazo, portanto, seu valor natural é proporcional a seu custo de produção nas circunstâncias vigentes mais desfavoráveis, isto é, na pior mina que se tem de explorar para obter o suprimento necessário. Nos países produtores de ouro, em última análise, uma libra-peso de ouro tenderá a valer tanto de qualquer outra mercadoria quanto dela se puder produzir com um custo igual, entendendo-se por custo de uma libra-peso de ouro o custo da mão-de-obra e a despesa, nas piores fontes de suprimento que a procura então existente impõe explorar. O valor médio do ouro corresponde a seu valor natural, da mesma forma que os valores de outras coisas equivalem ao valor natural delas. Suponhamos que o ouro fosse vendido acima de seu valor natural, isto é, acima do valor equivalente ao trabalho e despesas de mineração, e aos riscos presentes em um setor em que, de dez tentativas, nove têm fracassado. Uma parte da massa de capital flutuante que está à procura de investimento se encaminharia para os empreendimentos de mineração: a oferta aumentaria, e o valor do ouro diminuiria. Se, ao contrário, o ouro estivesse sendo vendido abaixo de seu valor natural, as empresas de mineração não estariam auferindo seu lucro normal; haveriam de reduzir suas operações. Se a depreciação fosse grande, algumas das minas de qualidade inferior seriam simplesmente paralisadas, e uma redução da oferta anual, pelo fato de impedir de compensar por completo o desgaste anual do ouro em circulação, gradualmente haveria de reduzir a quantidade, restabelecendo o valor do ouro. Os detalhes do processo são os seguintes, se analisados mais de perto. Se o ouro estiver acima de seu valor natural ou de custo — sendo que, como vimos, o valor da moeda equivale ao valor do metal não cunhado —, o dinheiro terá valor alto, sendo baixos os preços de todas as coisas, incluindo a mão-de-obra. Esses preços baixos farão baixar as despesas de todos os produtores; mas, já que seus retornos também serão reduzidos, nenhum produtor terá vantagem a não ser o produtor de ouro — cujos retornos da mina, por não dependerem do preço, serão os mesmos que antes, e sendo menores suas despesas, auferirá lucros extras, e será estimulado a aumentar sua produção. Ocorrerá o contrário se o metal estiver abaixo de seu valor natural, pois isso é a mesma coisa que dizer que os preços são altos, e os gastos em dinheiro de todos os produtores são extraordinariamente altos; essa desvantagem, porém, para todos os outros produtores será compensada por maiores retornos em dinheiro: somente o empresário de mineração não extrairá de sua mina mais metal do que antes, e suas despesas serão maiores. Por esse motivo, diminuindo ou desaparecendo seus lucros, reduzirá sua produção, se é que não abandonará sua ocupação. É isso que faz com que o valor do dinheiro equivalha ao custo de produção do metal do qual é feito. Será bom, porém, repetir (o que já foi dito anteriormente) que o ajuste leva muito tempo para ser feito, no caso de uma mercadoria tão universalmente desejada e ao mesmo tempo tão durável como os metais preciosos. Por serem tão amplamente usados não apenas como dinheiro, mas também como prataria e para fins de ornamentação, existe sempre em circulação grande quantidade desses metais, ao passo que o desgaste deles é tão lento, que é suficiente uma produção anual relativamente pequena para manter e aumentar a oferta, o que pode ser exigido devido ao aumento dos bens que é necessário fazer circular, ou devido ao aumento da procura de artigos de ouro e prata por parte de consumidores ricos. Mesmo que esse pequeno fornecimento anual cessasse inteiramente, seriam necessários muitos anos para reduzir tanto essa quantidade, a ponto de acarretar alguma diferença substancial para os preços. Aumentar a quantidade é coisa que se pode fazer com muito mais rapidez do que fazê-la diminuir, porém o aumento teria que ser muito grande para se fazer sentir sobre uma quantidade tão grande dos metais preciosos como a que existe em todo o mundo comercial. Eis por que os efeitos de todas as mudanças nas condições de produção dos metais preciosos são, de início — e continuam a sê-lo durante muitos anos —, questões apenas de quantidade, importando pouco o custo de produção. Mais especialmente isso acontece quando, como agora, abrem-se simultaneamente muitas novas fontes de suprimento, sendo que a maioria delas pode ser explorada apenas por mão-de-obra, não precisando adiantar capital algum, afora uma picareta e a alimentação de uma semana, e quando as operações até agora são puramente experimentais, já que é ainda totalmente incerta a produtividade permanente relativa das diversas minas. § 3. Todavia, uma vez que o valor do dinheiro obedece realmente, como o de outras coisas — ainda que mais lentamente —, ao seu custo de produção, alguns economistas políticos têm feito uma objeção básica à afirmação de que o valor do dinheiro depende de sua quantidade, juntamente com a rapidez de circulação; isso, dizem eles, significa supor para o dinheiro uma lei que não existe para nenhuma outra mercadoria, quando a verdade é que o dinheiro é regido exatamente pelas mesmas leis. A isso podemos responder, primeiramente, que a afirmação em pauta não supõe nenhuma lei especial. É simplesmente a lei da procura e oferta, que se reconhece ser aplicável a todas as mercadorias, e que, no caso do dinheiro, como no da maior parte das outras mercadorias é controlada, mas não suprimida, pela lei do custo de produção, já que o custo de produção não teria efeito algum sobre o valor, se não pudesse ter nenhum sobre a oferta. Mas, em segundo lugar, existe realmente, sob um aspecto, uma relação mais íntima entre o valor do dinheiro e sua quantidade, do que entre os valores de outras coisas e a quantidade delas. O valor de outras coisas obedece às mudanças no custo de produção, sem exigir como condição que haja alguma alteração efetiva da oferta; a alteração potencial é suficiente; e mesmo que haja alguma alteração efetiva é apenas uma alteração temporária, a não ser na medida em que o valor alterado pode produzir uma diferença na procura, e assim exigir um aumento ou diminuição de oferta, como consequência, e não causa da alteração de valor. Ora, isso é verdade também em relação ao ouro e à prata, considerados como artigos de gasto para fins de ornamentação e de luxo, mas não é verdade em relação ao dinheiro. Se o custo permanente da produção do ouro fosse reduzido de 1/4, poderia acontecer que não se comprasse mais ouro do que antes para prataria, douração ou joias; e se assim fosse, ainda que o valor caísse, a quantidade extraída das minas para essas finalidades não seria maior do que antes. O mesmo não aconteceria com as porções de ouro usadas como dinheiro; essa parte não poderia baixar de valor por 1/4, a não ser que a sua quantidade efetivamente aumentasse de 1/4; com efeito, a preços 1/4 mais altos, seria necessário 1/4 a mais de dinheiro para fazer as compras costumeiras, e se esse dinheiro a mais não entrasse em circulação, algumas das mercadorias ficariam sem compradores, e não se poderia manter os preços elevados. Por isso, alterações no custo de produção dos metais preciosos não agem sobre o valor do dinheiro, a não ser na exata proporção em que aumentar ou diminuir a sua quantidade — o que não se pode dizer de nenhuma outra mercadoria. Entendo, pois, que seria um erro, tanto científico quanto prático, rejeitar a proposição que afirma uma relação entre o valor do dinheiro e sua quantidade. É evidente, porém, que o custo de produção, a longo prazo, regula a quantidade, e que todo país (excetuadas as flutuações temporárias) possuirá e terá em circulação exatamente a quantidade de dinheiro que for suficiente para efetuar todas as trocas que dele se requerem, sem deixar de manter um valor que obedeça ao seu custo de produção. Em média, os preços das coisas serão tais que o dinheiro será trocado a seu próprio custo por todos os outros bens; e precisamente porque não se pode impedir que a quantidade afete o valor, a própria quantidade (por uma espécie de mecanismo automático) se manterá no montante compatível com esse padrão de preços — no montante necessário para efetuar, a esses preços, todos os negócios que dele se exigem. “A quantidade necessitada dependerá em parte do custo de produção do ouro, e em parte da rapidez de sua circulação. Sendo definida a rapidez da circulação, dependeria do custo de produção; e se for definido o custo de produção, a quantidade de dinheiro dependeria da rapidez de sua circulação.” (Extraído de algumas preleções do sr. Senior, impressas, mas não publicadas. Ilustram-se aí, de maneira interessante, as grandes diferenças existentes nos negócios feitos com dinheiro, bem como na rapidez de sua circulação, em diferentes estágios sociais e de civilização). Depois do que já foi dito, espero que nenhuma dessas duas proposições precise de ulterior explicação. Portanto, pelo fato de o valor do dinheiro — como o das mercadorias em geral — depender de seu custo de produção, e ser proporcional a ele, a teoria do dinheiro, admitindo-se esse princípio, perde grande parte do mistério que aparentemente a cercava. Não devemos esquecer, porém, que essa doutrina se aplica somente aos lugares em que os metais preciosos são efetivamente produzidos, e que ainda nos resta investigar se a lei da dependência do valor em relação ao custo de produção se aplica ao intercâmbio de coisas produzidas em lugares distantes. Entretanto, seja como for, as nossas proposições em relação ao valor não exigirão outra alteração, onde o dinheiro for uma mercadoria importada, senão a de colocar em lugar do custo de sua produção o custo de obtenção dele no país. Toda mercadoria estrangeira é comprada pagando-se por ela algum produto do país, e a mão-de-obra e capital que nos custa uma mercadoria estrangeira é a mão-de-obra e o capital gastos para produzir a quantidade de nossos próprios bens que pagamos em troca. De que depende essa quantidade? O que determina as proporções de intercâmbio entre os produtos de um país e os de outro? Eis uma questão de complexidade um pouco maior do que a daquelas que consideramos até agora. Uma coisa, no mínimo, é inegável: dentro do próprio país, o valor de mercadorias importadas é determinado pelo valor, e consequentemente pelo custo de produção, do produto equivalente dado em troca por elas; e o dinheiro está sujeito à mesma lei, quando ele for uma mercadoria importada. CAPÍTULO X Duplicidade de Padrão Monetário e Moedas Subsidiárias § 1. Embora as qualidades necessárias para fazer com que uma mercadoria possa ser usada como dinheiro raramente se encontrem reunidas em perfeição notável, há duas mercadorias que as possuem em grau eminente, e quase em grau igual: os dois assim chamados metais preciosos, o ouro e a prata. Eis por que algumas nações têm procurado compor seu meio circulante desses dois metais indiscriminadamente. Há uma conveniência óbvia em fazer uso do metal mais caro para pagamentos maiores, e do mais barato para pagamentos menores, sendo que o único problema diz respeito à maneira como isso pode ser feito da melhor forma. A maneira adotada com mais frequência tem sido estabelecer uma proporção fixa entre os dois metais, decidindo, por exemplo, que uma moeda de ouro denominada soberano equivalha a vinte moedas de prata denominadas xelins, sendo que, no dinheiro comum de cálculo do país, umas e outras recebem a mesma denominação, a saber, libra esterlina, deixando-se à opção de cada um que tenha de pagar 1 libra esterlina fazer o pagamento com uma moeda de ouro ou com vinte de prata. Na época em que se fez pela primeira vez a avaliação dos dois metais um em relação ao outro, digamos 20 xelins para 1 soberano, ou 21 xelins para 1 guinéu, provavelmente a proporção correspondia, tanto quanto se podia conseguir isso, aos valores relativos correntes dos dois metais, baseados no custo de produção dos mesmos. E se esses valores naturais ou de custo sempre continuassem a apresentar a mesma proporção entre si, a decisão não encontraria objeções. Mas isso está longe de ser a realidade. O ouro e a prata, embora sejam, dentre todas as mercadorias, as que menos mudam de valor, não são invariáveis, e nem sempre variam ao mesmo tempo. A prata, por exemplo, baixou de valor permanente mais do que o ouro, com a descoberta das minas americanas; e essas pequenas variações que ocorrem ocasionalmente não afetam os dois metais da mesma forma. Suponhamos que tal variação aconteça; pelo fato de os valores dos dois metais, um em relação ao outro, não mais manterem sua proporção cotada, um ou outro passará a ser cotado abaixo de seu valor em barras, e será rentável fundi-lo. Suponhamos, por exemplo, que o ouro aumente de valor em relação à prata, de sorte que a quantidade de ouro contida em 1 soberano passe agora a valer mais do que a quantidade de prata contida em 20 xelins. Duas consequências advirão disso. Nenhum devedor terá mais interesse em pagar em ouro. Sempre pagará em prata, porque 20 xelins são moeda legal para pagar uma dívida de 1 libra esterlina, e a pessoa pode comprar prata conversível em 20 xelins por menos ouro que o contido em 1 soberano. A outra consequência será a seguinte: a menos que se possa vender 1 soberano por mais de 20 xelins, todos os soberanos serão fundidos, pois como metal em barra comprarão um número maior de xelins do que poderiam comprar se cunhados em moeda. Aconteceria o contrário de tudo isso se a prata, e não o ouro, fosse o metal que tivesse aumentado de valor relativo. Nesse caso, 1 soberano não valeria tanto quanto 20 xelins, e toda pessoa que tivesse 1 libra esterlina a pagar preferiria pagar com 1 soberano enquanto as moedas de prata seriam juntadas para serem fundidas, sendo vendidas como prata em lingotes, em troca de ouro, e pelo valor real delas, ou seja, acima da avaliação legal. Por isso, o dinheiro da comunidade nunca constaria realmente dos dois metais, mas somente daquele que, em determinado momento, melhor servisse aos interesses dos devedores, e o padrão monetário estaria constantemente exposto a mudar de um metal para outro, perdendo-se, em cada mudança, a despesa de cunhagem, anteriormente incorrida no metal em desuso. Evidencia-se, pois, que o valor do dinheiro está sujeito a flutuações mais frequentes quando os dois metais são moeda legal a um valor fixo do que quando o padrão exclusivo da moeda é ouro ou prata. Em vez de ser afetado somente por variações no custo de produção de um metal, o dinheiro está sujeito a variações no dos dois metais. O tipo específico de variação à qual uma moeda fica mais exposta por ter dois padrões legais é uma queda de valor, ou o que se costuma denominar uma depreciação, pois na prática o padrão será sempre aquele dos dois metais, cujo valor real tiver caído abaixo do valor cotado. Se a tendência dos metais for aumentar de valor, todos os pagamentos serão feitos no metal que tiver aumentado menos de valor; e se a tendência for de cair, os pagamentos serão feitos no metal que tiver baixado mais de valor. § 2. Ocasionalmente, o sistema de duplo padrão monetário continua a ser citado aqui e ali por autores ou oradores como um grande aperfeiçoamento monetário. E provável que, para a maioria dos adeptos desse sistema, seu mérito principal resida na tendência a um tipo de depreciação, já que em todos os tempos há inúmeros defensores de qualquer modalidade que, aberta ou disfarçadamente, faça baixar o padrão monetário. Alguns, porém, são influenciados por uma avaliação exagerada de uma vantagem até certo ponto real, de se poder recorrer, para completar a circulação, ao estoque conjunto de ouro e prata existente no mundo comercial, em vez de se estar limitado a um dos dois, o qual, devido a uma absorção casual, pode não estar disponível com rapidez suficiente. A vantagem de um padrão monetário duplo, sem as desvantagens que lhe são inerentes, parece ser mais bem obtida por aquelas nações nas quais somente um dos dois metais constitui moeda legal, apesar de também o outro metal ser cunhado, permitindo-se que tenha o valor que o mercado lhe atribuir. Quando se adota essa modalidade, é naturalmente o metal mais caro que se permite vender e comprar como artigo de comércio. Entretanto, nações que, como a Inglaterra, adotam como padrão monetário o metal mais caro, recorrem a um expediente diferente para conseguir que os dois metais fiquem em circulação, isto é, fazendo com que a prata seja moeda legal, mas somente para pagamentos pequenos. Na Inglaterra, não se pode obrigar ninguém a aceitar moeda de prata em pagamento de uma quantia superior a 40 xelins. A esse regulamento necessariamente se associa outro, isto é, que a moeda de prata seja cotada, em comparação com o ouro, algo acima de seu valor intrínseco, para que não haja, em 20 xelins, tanta prata quanto vale 1 soberano, pois se houvesse uma virada mínima do mercado, em favor da prata, a faria valer mais do que 1 soberano e seria rentável fundir a moeda de prata. A supervalorização da moeda de prata gera um estímulo a comprar prata e entregá-la à Casa da Moeda para cunhar, por ser restituída a um valor superior ao que propriamente lhe cabe; todavia, têm-se adotado precauções para evitar que isso aconteça, limitando a quantidade da cunhagem de prata, que não é deixada, como a de ouro, a critério dos indivíduos, mas determinada pelo Governo, sendo restringida ao montante que se supõe necessário para pagamentos pequenos. A única precaução necessária consiste em não permitir que a prata seja cotada tão alto que acarrete uma tentação forte de recorrer à cunhagem por parte de particulares. CAPÍTULO XI O Crédito, Substituindo o Dinheiro § 1. As funções do crédito têm sido objeto de tantos equívocos e tanta confusão de ideias quanto qualquer item da Economia Política. Isso não se deve a alguma dificuldade especial da teoria que regula a matéria, mas à natureza complexa de alguns dos fenômenos comerciais decorrentes das modalidades de que o crédito se reveste, o que faz com que a atenção seja desviada das propriedades do crédito em geral para as peculiaridades de suas formas específicas. Como um exemplo das noções confusas que circulam com respeito à natureza do crédito, podemos chamar a atenção para a linguagem exagerada e tantas vezes utilizada em relação à sua importância nacional. O crédito tem poder grande, mas não mágico, segundo parecem supor muitos: não pode criar alguma coisa do nada. Quantas vezes se fala de uma ampliação do crédito de uma forma como se ela equivalesse a uma criação de capital, ou como se o crédito fosse efetivamente capital. Parece estranho que seja necessário assinalar que, por consistir o crédito apenas na permissão de utilizar o capital de outrem ele não dá condições de aumentar os meios de produção, mas apenas de transferi-los. Se os meios de produção e os recursos para empregar mão-de-obra aumentam para o tomador do empréstimo, em virtude do crédito que lhe é concedido, os recursos do mutuante diminuem, em montante igual. A mesma soma não pode ser utilizada como capital pelo proprietário e também pela pessoa à qual é emprestada; ela não pode fornecer seu valor total em salários, ferramentas e matérias-primas a dois conjuntos de trabalhadores ao mesmo tempo. É verdade que o capital que A tomou emprestado de B, e utiliza em seu negócio, continua a formar parte da riqueza de B para outras finalidades: este pode entrar em acordos com base nele, podendo tomar emprestada, se necessário, uma soma equivalente, tendo como garantia o capital por ele anteriormente dado em empréstimo. Assim sendo, a um observador superficial poderia parecer que tanto B como A estariam utilizando a soma ao mesmo tempo. Mas o mínimo de atenção mostrará que, quando B se desfez de seu capital para emprestá-lo a A, o uso desta soma como capital compete exclusivamente a A, e B não pode esperar mais nenhum serviço desta soma, senão na medida em que seu direito último sobre ela lhe serve para conseguir o uso de outro capital, de uma terceira pessoa C. Todo capital (que não seja sua propriedade) que qualquer pessoa utilizar efetivamente é, e tem de ser, subtraído, no mesmo montante, do capital de outra pessoa. (Para que a proposição enunciada no texto seja totalmente verdadeira, é necessário fazer uma correção, ainda que muito pequena. O meio circulante existente em um país, em determinado momento, em parte é empregado em compras para consumo produtivo e em parte em compras para consumo improdutivo. O capital real do país é maior ou menor, conforme uma percentagem maior do capital for empregada da primeira ou da segunda maneira. Se, portanto, se aumentasse somente o meio circulante que está nas mãos de consumidores improdutivos, comprar-se-ia uma porção maior do estoque existente de mercadorias para consumo improdutivo, e uma porção menor para consumo produtivo, situação que, enquanto persistisse, equivaleria a uma diminuição de capital; ao contrário, se o acréscimo fosse feito à porção do meio circulante que está em poder dos produtores, e destinado a seus negócios, empregar-se-ia como capital, no momento, uma porção maior das mercadorias existentes no país, e uma parte menor seria empregada improdutivamente. Ora, um efeito dessa última natureza naturalmente acarreta algumas ampliações do crédito, sobretudo quando ocorrer na forma de notas bancárias ou de outros instrumentos de troca. Normalmente, as notas bancárias adicionais são primeiro emitidas para produtores ou comerciantes para serem empregadas como capital; e embora o estoque de mercadorias no país não seja maior do que antes, pelo fato de chegar agora às mãos dos produtores e comerciantes por compra, uma parte maior desse estoque, na mesma medida daquilo que teria sido consumido improdutivamente, é aplicada à produção, sendo aí um aumento real de capital. Esse efeito cessa, passando a ocorrer um processo contrário, quando se paralisa o crédito adicional, e as notas são recolhidas). § 2. Mas embora o crédito não passe de uma transferência de capital, de uma pessoa para outra, geralmente é uma transferência natural para mãos que têm mais competência para empregar o capital na produção, de maneira eficiente. Se não houvesse coisas como o crédito, ou se, devido à insegurança geral e à falta de confiança, a prática do crédito fosse rara, muitas pessoas que possuem capital, em quantidade maior ou menor, e que, devido às suas ocupações, ou por falta da perícia e do conhecimento necessários, não podem supervisionar pessoalmente o emprego do mesmo, não aufeririam benefício algum de seu capital: seus fundos ou permaneceriam ociosos, ou então talvez seriam desperdiçados e aniquilados em tentativas inábeis para fazê-los render lucro. Atualmente, todo esse capital é emprestado a juros, e colocado à disposição para a produção. O capital assim emprestado constitui grande parte dos recursos produtivos de qualquer país comercial, sendo naturalmente atraído para aqueles produtores ou comerciantes que, movimentando os maiores negócios, têm os meios para empregá-lo da maneira mais rentável, pois essas são as pessoas que mais desejam esse capital e ao mesmo tempo têm condições de oferecer as melhores garantias. Portanto, ainda que o crédito não aumente os fundos produtivos do país, faz com que esses recursos se tornem mais produtivos. À medida que se amplia a confiança na qual se baseia o crédito, criam-se meios pelos quais mesmo as porções mínimas de capital; as somas que cada um guarda consigo para atender a contingências, são colocadas à disposição para usos produtivos. Os instrumentos principais para essa finalidade são os bancos de depósito. No caso de eles não existirem, uma pessoa prudente fica obrigada a guardar consigo, ociosa, uma soma suficiente para atender a qualquer necessidade que ela pense precisar atender, mesmo que seja por uma razão insignificante. Quando, porém, se desenvolveu a prática de guardar essa reserva não em sua própria custódia, mas com um banqueiro, pelo fato de este juntar em seus cofres muitas pequenas somas que anteriormente permaneciam ociosas, e pelo fato de o banqueiro, ensinado pela experiência, saber que percentagem dessa soma provavelmente será necessária em determinado momento, e saber que, se um depositante vier eventualmente a necessitar de mais do que a média, outro precisará de menos, tem ele condições de emprestar o restante, isto é, a parte que é de longe a maior, a produtores e comerciantes. Com isso aumenta não certamente o capital existente, mas o montante de capital aplicado, gerando-se com isso aumento correspondente da produção conjunta da comunidade. Se, pois, o crédito é indispensável para tornar produtiva a totalidade do capital do país, ele é também um meio pelo qual o talento industrial do país é melhor aproveitado para fins de produção. Muitas pessoas que ou não têm capital próprio ou têm muito pouco, mas que têm qualificações para negócios, conhecidas e reconhecidas por alguns donos de capital, podem assim obter ou adiantamentos em dinheiro ou, com mais frequência, produtos a crédito, por meio dos quais suas capacidades de trabalho contribuem para aumentar a riqueza pública; e esse benefício trará muito mais frutos toda vez que, por meio de melhores leis e melhor instrução, a comunidade tiver feito tal progresso no tocante à honradez, que o caráter pessoal possa ser aceito como garantia suficiente não somente contra a apropriação desonesta do que pertence a outrem, mas também contra o arriscar desonestamente o que a outros pertence. Essas são, do ponto de vista mais geral, as utilidades do crédito para os recursos produtivos do mundo. Mas essas considerações só se aplicam ao crédito concedido às classes produtivas — os produtores e os distribuidores. O crédito dado por distribuidores a consumidores improdutivos nunca representa um acréscimo, mas sempre um prejuízo para as fontes da riqueza pública. Tal crédito transfere, para uso temporário, não o capital das classes improdutivas para as produtivas, mas o das classes produtivas para classes improdutivas. Se o distribuidor A fornece mercadorias a B, proprietário de terra ou beneficiário de renda anual — mercadorias estas a serem pagas ao término de cinco anos —, permanece improdutiva, durante cinco anos, uma parte do capital de A, igual ao valor destas mercadorias. Durante tal período, se o pagamento das mercadorias tivesse sido feito logo, essa soma poderia ter sido gasta e reposta várias vezes, e mercadorias no mesmo montante poderiam ter sido várias vezes produzidas, consumidas e reproduzidas; consequentemente, o fato de B reter 100 libras durante cinco anos, mesmo que ao final as pague, custou às classes trabalhadoras da comunidade, durante esse período uma perda absoluta que provavelmente importa em várias vezes aquela quantia. A, como indivíduo, é compensado, cobrando um preço maior pelas mercadorias que vende, preço este que, em última análise, é pago por B; mas não se paga compensação alguma às classes trabalhadoras, as que mais sofrem com cada desvio de capital para fins improdutivos, seja esse desvio permanente ou temporário. O país teve à disposição 100 libras de capital a menos, durante aqueles cinco anos, já que B recebeu essa soma do capital de A e a gastou improdutivamente em antecipação de seus próprios recursos, e por ter colocado à parte uma quantia de sua renda somente após cinco anos, e convertido esta em capital para indenizar A. § 3. Isso quanto à função geral do crédito na produção. O crédito não é em si mesmo uma força produtiva; entretanto, sem ele não se poderia dar aplicação plena às forças produtivas já existentes. Contudo, uma parte mais complexa da teoria do crédito é a influência que ele exerce sobre os preços — a causa principal da maior parte dos fenômenos comerciais que deixam os observadores perplexos. Em uma conjuntura comercial em que se costuma operar com muito crédito em cada momento os preços gerais dependem muito mais da situação do crédito do que da quantidade de dinheiro disponível. Pois o crédito, embora não sendo uma força produtiva é poder de compra, e uma pessoa que, tendo crédito, se vale dele na compra de mercadorias, cria tanta procura em relação a esses bens, e tende tanto a aumentar seus preços, quanto se fizesse um montante igual de compras com dinheiro vivo. O crédito que agora precisamos examinar, com um poder de compra distinto, independente do dinheiro, evidentemente não é o crédito em sua modalidade mais simples, a de dinheiro emprestado por uma pessoa a outra e pago diretamente a ela, pois quando o tomador gasta esse dinheiro em compras, efetua as compras com dinheiro, e não com crédito, e não exerce nenhum poder de compra, além daquele que é conferido pelo dinheiro. As modalidades de crédito que geram poder de compra são aquelas em que não corre dinheiro no momento, e muitíssimas vezes não corre dinheiro de forma alguma, pois as transações são incluídas, juntamente com grande quantidade de outras transações, em uma conta, sendo que nada se paga a não ser um saldo. Isso acontece de vários modos, que passaremos a examinar, começando com o mais simples deles, como é nosso costume. Primeiro: suponhamos que A e B sejam dois distribuidores que mantêm entre si transações comerciais, tanto como compradores quanto como vendedores. O distribuidor A compra de B a crédito. B faz o mesmo em relação a A. No final do ano, a soma dos débitos de A em relação a B é confrontada com a soma dos débitos de B em relação a A verificando-se qual das duas partes tem saldo credor em relação à outra. Esse saldo, que possivelmente é inferior ao montante de muitas das transações individuais efetuadas, e que necessariamente é inferior à soma das transações, é tudo o que se paga em dinheiro; e talvez nem mesmo esse saldo seja pago, mas transportado em uma conta corrente, para o ano seguinte. Assim, um único pagamento de 100 libras pode ser suficiente para liquidar uma longa série de transações. Algumas das quais importando um valor de milhares de libras. Segundo: os débitos de A a B podem ser pagos sem intervenção de dinheiro, mesmo que não haja dívidas de B em relação a A. A pode pagar a B transferindo-lhe o recebimento de uma soma que uma terceira pessoa, C, deve a A. Um meio conveniente de fazer isso é mediante um instrumento escrito, denominado letra de câmbio a qual na realidade, é uma ordem de pagamento transferível, emitida por um credor contra seu devedor, ordem esta que, quando aceita pelo devedor — isto é, reconhecida pela assinatura deste —, se torna um reconhecimento de uma dívida. § 4. As letras de câmbio começam a ser introduzidas para economizar a despesa e o risco de transportar metais preciosos de um lugar a outro. “Suponhamos”, diz o sr. Henry Thornton (Enquiry into the Nature and Effects of the Paper Credit of Great Britain. Essa obra, publicada em 1802, constitui ainda hoje a exposição mais clara que conheço, em inglês, sobre as maneiras de conceder e receber crédito em uma comunidade mercantil), “que há em Londres dez manufatores que vendem seu artigo a dez lojistas de York, os quais vendem o artigo no varejo; e que em York haja dez manufatores de outra mercadoria, que a vendem a dez lojistas de Londres. Não haveria necessidade de os dez lojistas de Londres enviarem anualmente guinéus a York para o pagamento dos manufatores de lá, e de os dez lojistas de York mandarem anualmente o mesmo número de guinéus a Londres. Bastaria apenas os manufatores de York receberem de cada um dos lojistas, em sua própria porta, o dinheiro em questão, dando em troca letras que validassem o recebimento do dinheiro, e as quais fizessem com que o dinheiro, que está nas mãos de seus devedores em Londres, fosse pago aos manufatores em Londres, de maneira a cancelar a dívida em Londres da mesma forma que a de York. Poupar-se-iam com isto o gasto e o risco de todas as transferências de dinheiro. As letras que ordenam a transferência da dívida são denominadas, na linguagem atual, letras de câmbio. São títulos com os quais a dívida de uma pessoa é trocada pela dívida de outra, e, possivelmente, a dívida que é devida em um lugar é trocada pela dívida devida em outro lugar.” Por se ter constatado que as letras de câmbio são convenientes como meios de pagar dívidas em lugares distantes, sem o gasto de transporte e dos metais preciosos, sua utilização foi posteriormente muito ampliada, por outra razão. É costume, em cada tipo de comércio, conceder crédito por certo período de tempo, para mercadorias compradas: três meses, seis meses, um ano, e até dois, conforme a conveniência ou o costume vigente no respectivo ramo de comércio. Um distribuidor que vendeu mercadorias, as quais lhe devem ser pagas dentro de seis meses, mas que deseja receber o pagamento antes, emite um título contra seu devedor, pagável dentro de seis meses e esse título é descontado por um banco ou por alguma outra pessoa que empresta dinheiro, isto é, transfere o título a ele, recebendo a soma, deduzidos desta os juros pelo período que ainda tem de decorrer. As letras de câmbio passaram a ter como uma de suas funções principais servir como instrumento por meio do qual se pode dispor de uma soma devida por uma pessoa, para conseguir crédito de outra. A conveniência desse expediente levou à criação frequente de letras de câmbio não fundadas em nenhuma soma anteriormente devida ao emissor do título pela pessoa contra quem a letra é emitida. Estas são chamadas letras de favor ("papagaios"), e às vezes, com um toque de desaprovação letras fictícias. O autor que acabo de citar descreve com tanta clareza a natureza desses títulos, e o faz com observações tão pertinentes, que transcreverei a passagem inteira. “A, necessitando de 100 libras, pede a B que aceite uma nota ou letra emitida com vencimento para daqui a dois meses, e que B, portanto, é obrigado a pagar, contra a apresentação da mesma; subentendendo-se, porém, que A cuidará ou de pagar ele mesmo a letra, ou de dar a B os recursos para pagá-la. A recebe dinheiro vivo pela letra, com base no crédito conjunto das duas partes. A cumpre sua promessa de pagá-la quando vencer, e assim conclui a transação. Entretanto, não é improvável que esse serviço prestado por B a A seja retribuído mais cedo ou mais tarde, por uma aceitação similar de um título contra A, emitido e descontado para ajudar a B. “Comparemos agora essa letra com uma letra real. Vejamos em que pontos as duas diferem ou parecem diferir, e em que pontos se identificam. "Identificam-se no fato de ambas serem um artigo descontável; as duas também foram criadas para o fim de serem descontadas, e as duas são, talvez, efetivamente descontadas. Por conseguinte, as duas servem igualmente para proporcionar recursos de especulação ao comerciante. Além disso, as letras fictícias e as reais se identificam na medida em que letras e notas constituem o que se chama o meio circulante ou papel-moeda do país, e evitam a utilização de guinéus; e se o preço das mercadorias subir em proporção à quantidade de papel-moeda, os dois tipos de letra contribuem para tal aumento exatamente da mesma maneira. “Antes de analisarmos os pontos em que diferem, advirtamos para um ponto em que comumente se supõe serem diferentes, mas em que não se pode dizer que difiram sempre ou necessariamente. “Notas reais (afirma-se às vezes) representam propriedade efetiva. Existem bens efetivos, que constituem a contrapartida ou lastro para cada nota real. Notas que não são emitidas em consequência de uma venda de mercadoria são uma espécie de riqueza falsa, com as quais se engana uma nação. Elas proporcionam capital apenas imaginário, ao passo que as notas reais indicam capital real. "Em resposta a essa afirmação, observa-se em primeiro lugar que não se pode dizer que as notas pagas em consequência de uma venda real de mercadorias representem com certeza, e por esse motivo, alguma propriedade efetiva. Suponhamos que A venda a B mercadorias no valor de 100 libras, a crédito para seis meses, e receba por isso uma letra com vencimento para daqui a seis meses, e que B, dentro de um mês, venda as mesmas mercadorias a C, com crédito igual, recebendo uma letra similar, suponhamos também que C, decorrido mais um mês venda essas mercadorias a D, recebendo uma letra similar, e assim por diante. Ao final de seis meses poderá haver, portanto, seis letras de 100 libras cada uma existindo ao mesmo tempo, sendo que todas já podem ter sido descontadas. De todas essas letras, portanto, apenas uma representa alguma propriedade efetiva. “Para justificar a suposição de que uma letra real (como se denomina) representa propriedade efetiva o portador da letra deve ter algum poder de impedir que a propriedade representada pela letra seja aplicada para outras finalidades que não a de pagar a letra em questão. Ora, não existe tal poder, pois nem a pessoa que tem a letra real nem a que a desconta é proprietária das mercadorias específicas em troca das quais a letra foi emitida: ela confia tanto na capacidade geral de pagar de quem deu a letra quanto confia o portador de qualquer letra fictícia. A letra fictícia pode, em muitos casos ser uma letra dada por uma pessoa que tem um capital grande e conhecido, caso este em que se pode dizer que a letra fictícia representa parte desse capital. A suposição de que letras reais representam propriedade, e que isso não acontece com as letras fictícias, parece, portanto, dar a um desses dois tipos de letra valor superior ao que é justo, e ao outro tipo, às vezes, valor abaixo do que é justo. “Vejamos agora alguns pontos em que os dois tipos de letra diferem entre si. "Primeiramente, a nota fictícia, ou nota de favor, sofre a objeção de professar ser uma coisa que na realidade não é. Essa objeção, porém, vale somente contra aquelas letras fictícias que circulam como reais. Em muitos casos é suficientemente óbvio o que são na realidade. Em segundo lugar, em geral há menos probabilidade de se pagar pontualmente a letra fictícia do que a real. Existe uma presunção geral de que aquele que lida com letras fictícias é um especulador mais aventureiro do que aquele que cuidadosamente se abstém delas. Em terceiro lugar, segue que as letras fictícias, além de serem menos seguras, estão menos sujeitas a serem limitadas no tocante à sua quantidade. A extensão das vendas efetivas de uma pessoa constitui algum limite para o montante de suas notas reais, e já que é altamente desejável, no comércio, que o crédito seja concedido a todas as pessoas em alguma proporção regular e apropriada, a medida das vendas efetivas de uma pessoa, certificada pela evidência de suas letras emitidas em virtude dessas vendas, constitui certa regra no caso, ainda que seja uma regra muito imperfeita, sob muitos aspectos. "Uma letra fictícia, ou letra de favor, é evidentemente, em sua substância, o mesmo que qualquer nota promissória comum; e sob um aspecto ela é até melhor: há apenas uma garantia para a nota promissória, ao passo que no caso da letra de favor há duas. Existe tanto medo de que os comerciantes exagerem em seus meios para levantar dinheiro, que o papel — igual, em sua natureza geral, ao que é emitido por não comerciantes, por ser o único papel que pode ser dado por eles — é alvo de certo descrédito quando vem de um comerciante. E pelo fato de tal papel, quando nas mãos do comerciante, necessariamente imitar o papel que corre por ocasião de uma venda de mercadorias deu-se-lhe o epíteto de fictício — um epíteto que, ao que parece, sancionou a noção confusa e equívoca de que há algo de basicamente falso e enganoso na natureza de determinada parte do papel e da riqueza manifesta do país." Uma letra de câmbio, quando apenas descontada e guardada na carteira do descontador até seu vencimento, não cumpre as funções do dinheiro, nem lhe faz as vezes senão que ela mesma é comprada e vendida por dinheiro. Não é mais dinheiro do que os fundos públicos ou quaisquer outros títulos. Mas quando uma letra emitida contra uma pessoa é paga a outra (ou até a mesma pessoa) em pagamento de uma dívida ou direito pecuniário ela cumpre uma função que teria que ser cumprida por dinheiro, se a letra não existisse: ela cumpre as funções de moeda. Essa é uma utilização que se faz muitas vezes das letras de câmbio. “Elas não somente poupam o uso de dinheiro vivo”, prossegue o sr. Thornton, “elas também ocupam o seu lugar em muitos casos. Imaginemos que um arrendatário do campo pague uma dívida de 10 libras ao seu vizinho merceeiro, dando-lhe uma letra nesse montante, emitida contra seu vendedor de trigo em Londres por trigo vendido na metrópole; e suponhamos que o merceeiro passe a letra depois de endossá-la, a um refinador de açúcar vizinho, em pagamento de uma dívida de montante igual, e que o refinador de açúcar, depois de endossá-la, a envie a um comerciante das Índias Ocidentais em um porto externo e que o comerciante das Índias Ocidentais a entregue ao banco de seu país, que também a endossa, e a manda adiante, para continuar em circulação. Nesse caso, a letra terá efetuado cinco pagamentos, exatamente como se fosse uma nota de 10 libras, pagável a um portador sob pedido. Grande número de letras circula entre os comerciantes do país, da maneira que acabamos de descrever e elas evidentemente constituem, no sentido mais rigoroso, parte do meio circulante do Reino.” Muitas letras, tanto do país como do exterior, acabam sendo apresentadas para pagamento totalmente cheias de endossos, cada um dos quais representa ou um novo desconto, ou então uma transação pecuniária na qual a letra cumpriu as funções de dinheiro. Dentro da geração atual, o meio circulante do Lancashire para quantias acima de 5 libras esterlinas, compunha-se quase inteiramente de tais letras. § 5. A terceira modalidade em que se emprega o crédito em substituição ao dinheiro é a das notas promissórias. Uma letra emitida contra alguém e por ele aceita, e uma nota promissória dele, prometendo pagar a mesma soma, são exatamente a mesma coisa para esse alguém, com exceção do seguinte: a primeira costuma render juros, a segunda geralmente não; além disso, a primeira em geral é pagável somente após certo lapso de tempo, e a segunda é pagável a vista. Ora, é sobretudo nesta última forma — notas promissórias — que em países comerciais tem surgido como ocupação definida a de emitir tais instrumentos em substituição ao dinheiro. Os agentes financeiros (como se denominam impropriamente os que por profissão emprestam dinheiro) desejam, como outros distribuidores, estender suas operações além daquilo que podem efetuar com seus próprios recursos: desejam emprestar não somente seu capital, mas também seu crédito, e não somente aquela porção de seu crédito que consiste em fundos efetivamente depositados com eles, mas também seu poder de conseguir crédito do público em geral, na medida em que acreditam poder exercê-lo com segurança. Isso é feito de maneira muito apropriada, emprestando suas próprias notas promissórias, pagáveis ao portador a pedido; e o tomador está disposto a aceitar essas notas promissórias como equivalentes a montante igual de dinheiro, porque o crédito desfrutado pelo mutuante faz com que outras pessoas as aceitem de bom grado nas mesmas condições, em compras ou em outros pagamentos. Essas notas promissórias, portanto, desempenham todas as funções da moeda, tornando supérfluo um montante equivalente de dinheiro que anteriormente estava em circulação. Todavia, uma vez que, por serem pagáveis a pedido, podem ser a qualquer momento devolvidas ao emissor podendo-se exigir dinheiro por elas, o banqueiro, sob pena de falência, deve manter consigo tanto dinheiro que tenha condições de atender a quaisquer exigências desse gênero que podem ocorrer no prazo necessário para conseguir mais dinheiro. Além disso, a prudência exige que ele não tente emitir notas promissórias além do montante que, conforme mostra a experiência, pode permanecer em circulação sem ser apresentado para pagamento. Uma vez descoberta a conveniência dessa maneira de cunhar crédito (se assim pudermos dizer), os governos se valeram do mesmo recurso, emitindo suas próprias notas promissórias em pagamento de suas despesas — recurso tanto mais útil porque é a única modalidade em que o governo tem condições de tomar dinheiro emprestado sem pagar juros, uma vez que, na opinião dos portadores dessas notas, as promessas do governo, de pagar sob pedido, equivalem a dinheiro na mão. Logo a seguir analisaremos as diferenças práticas existentes entre tais notas do governo e as notas promissórias emitidas por banqueiros particulares, bem como as outras formas que pode apresentar essa categoria de instrumentos que substituem o dinheiro. § 6. O quarto modo de fazer com que o crédito cumpra os objetivos do dinheiro — modo que, se for suficientemente desenvolvido, pode substituir completamente o dinheiro — consiste em fazer pagamentos por meio de cheques. Em nosso país, vai-se ampliando sempre mais entre o público o costume de conservar o dinheiro reservado para uso imediato ou para atender a emergências em um banco e de fazer todos os pagamentos, com exceção dos pequenos, mediante ordens emitidas contra bancos. Se a pessoa que efetua o pagamento e a que o recebe mantiverem seu dinheiro no mesmo banco, o pagamento é feito sem nenhuma intervenção de dinheiro, por meio da simples transferência do montante, na escrituração do banco, do crédito do pagante para o do recebedor. Se todos os habitantes de Londres mantivessem seu dinheiro no mesmo banco, e fizessem todos os seus pagamentos por meio de cheques, não se usaria dinheiro nem se precisaria dele para nenhuma transação que começasse e terminasse em Londres. Esse limite ideal é quase atingido na realidade, no que concerne às transações entre distribuidores. É sobretudo nas transações do comércio varejista entre comerciantes e consumidores, e no pagamento de salários, que se utiliza atualmente dinheiro ou notas bancárias, e mesmo assim somente quando as quantias são pequenas. Em Londres, mesmo os lojistas donos de qualquer montante de capital e de qualquer volume de negócios geralmente mantêm uma conta em um banco; isso, além da segurança e da conveniência inerente a essa prática, lhes traz vantagens sob um ou outro aspecto: dá-lhes direito subentendido de terem suas letras descontadas pelo banco nos casos em que, não fora isso, não poderiam esperar esse privilégio. Quanto aos comerciantes e distribuidores de maior porte, habitualmente fazem todos os pagamentos em seus negócios com cheques. No entanto, nem todos tratam com o mesmo banco, e quando A dá um cheque a B, este geralmente o deposita não no mesmo banco, mas em algum outro. Contudo, a conveniência dos negócios deu origem a um dispositivo que transforma virtualmente todos os estabelecimentos bancários da cidade de Londres, para certas finalidades, em um único estabelecimento. Um banco não envia os cheques depositados em seus estabelecimentos aos bancos contra os quais são emitidos, exigindo dinheiro por esses cheques. Há um edifício chamado Câmara de Compensação, ao qual cada banco envia, toda tarde, todos os cheques contra outros bancos que recebeu naquele dia, sendo estes cheques trocados aí pelos cheques emitidos contra ele, que chegaram a outros bancos, sendo que somente os saldos são pagos em dinheiro — ou então mesmo estes são pagos não em dinheiro, mas em cheques contra o Bank of England. Com esse método, todos os negócios da Cidade de Londres realizados naquele dia, que frequentemente ascendem a milhões de libras, e além disso grande soma de transações efetuadas no país, e representadas por títulos que os bancos do país emitiram contra seus correspondentes em Londres, são liquidados por pagamentos que não superam, em média, 200 mil libras. (Segundo o sr. Tooke (Inquiry into the Currency Principle, p. 27), os acertos da Câmara de Compensação “no ano de 1839 ascenderam a 954 401 600 libras, totalizando um montante médio de pagamentos superior a 3 milhões de libras de letras de câmbio e cheques, pagamentos esses efetuados diariamente com pouco mais de 200 mil libras de notas bancárias”. Atualmente, liquida-se diariamente um montante muito superior de transações, sem nenhum uso de cédulas bancárias, pois em lugar delas, temos cheques contra o Bank of England). Mediante os vários instrumentos de crédito que acabamos de explicar, o imenso volume de negócios de um país como a Grã-Bretanha é transacionado com um montante surpreendentemente pequeno dos metais preciosos — muitas vezes menor, em proporção ao valor pecuniário das mercadorias compradas e vendidas, do que o montante necessário na França ou em qualquer outro país em que, por não estar tão difundido o hábito e a disposição para conceder crédito, esses “expedientes de economia”, como têm sido denominados, não são praticados na mesma extensão. Que é feito com o dinheiro assim substituído em suas funções? E de que maneira se faz com que ele desapareça de circulação? A discussão dessas questões ocorrerá um pouco mais adiante. CAPÍTULO XII A Influência do Crédito Sobre os Preços § 1. Tendo uma ideia geral das maneiras pelas quais se tem acesso ao crédito em substituição ao dinheiro, cabe agora estudar de que maneira o uso desses sucedâneos do dinheiro afeta o valor deste, ou, o que é a mesma coisa, o preço das mercadorias. Será desnecessário enfatizar que o que está em questão aqui não é o valor permanente do dinheiro — os preços naturais ou médios das mercadorias. Estes são determinados pelo custo de produção ou de obtenção dos metais preciosos. Uma onça de ouro ou prata a longo prazo terá o valor de troca da quantidade de qualquer outra mercadoria que se puder produzir ou importar ao mesmo custo que o da produção ou importação de uma onça de ouro ou prata. E uma ordem de pagamento, ou nota promissória, ou letra pagável a vista, valendo uma onça de ouro valerá nem mais nem menos do que o próprio ouro, enquanto não for afetado o crédito do pagante. O que aqui nos interessa, porém, não são os preços últimos ou médios, mas os preços imediatos e temporários. Estes, como já vimos, podem diferir muito do padrão do custo de produção. Entre outras causas das flutuações, constatamos a quantidade de dinheiro em circulação. Permanecendo inalterados outros fatores, um aumento do dinheiro em circulação faz os preços subirem, e uma diminuição dele os faz baixar. Se entrar na circulação mais dinheiro do que a quantidade que pode circular, a um valor compatível com seu custo de produção, o valor do dinheiro, enquanto durar esse excesso, ficará abaixo do padrão do custo de produção, e os preços gerais se manterão acima da taxa natural. Acabamos de constatar, porém, que há outras coisas — tais como notas bancárias, letras de câmbio e cheques — que circulam como dinheiro e desempenham todas as suas funções. Surge, pois, a questão: esses vários instrumentos que substituem o dinheiro atuam sobre os preços da mesma forma que o próprio dinheiro? Um aumento da quantidade de papéis transferíveis tenderá a aumentar os preços, da mesma forma e no mesmo grau que um aumento da quantidade de dinheiro? Entre os autores que escreveram sobre moeda tem havido não pouca discussão em torno desse tema, sem que se tenha atingido nenhum resultado conclusivo, capaz de obter adesão geral. Entendo que as notas bancárias, letras ou cheques, como tais, não exercem influência alguma sobre os preços. O que influencia os preços é o crédito, qualquer que seja a forma em que é concedido, e quer ele dê ou não origem a quaisquer instrumentos transferíveis, capazes ou não de entrar na circulação. Passo a explicar e a fundamentar esse ponto de vista. § 2. O dinheiro só influencia os preços por ser oferecido em troca de mercadorias. A procura que influencia os preços consiste no dinheiro oferecido por elas. Mas o dinheiro oferecido não é a mesma coisa que o dinheiro possuído: às vezes é menos, às vezes é muitíssimo mais. Certamente, a longo prazo, o dinheiro que as pessoas gastam não será nem mais nem menos do que o dinheiro que têm para gastar; mas isso nem de longe é verdade para qualquer momento determinado. Às vezes, as pessoas guardam dinheiro consigo, temendo alguma emergência, ou então esperando uma oportunidade mais vantajosa para gastá-lo. Nesse caso se diz que o dinheiro não está em circulação; em linguagem mais simples, ele não é oferecido nem está por ser oferecido em troca de mercadorias. O dinheiro que não está em circulação não tem efeito sobre os preços. Muito mais comum é, porém, o caso inverso: as pessoas fazem compras com dinheiro que não possuem. Por exemplo, um artigo que é pago com um cheque emitido contra um banco é comprado com dinheiro que não somente não está na posse do pagante, mas em geral nem sequer está na posse do banco, por ter sido emprestado por este (todo ele, excetuada a reserva costumeira) a outras pessoas. Acabamos precisamente de supor que todas as pessoas tratem com um banco, e todos com o mesmo banco, sendo todos os pagamentos feitos com cheques. Nesse caso ideal, em parte alguma haveria dinheiro, a não ser nas mãos do banqueiro, que então poderia com segurança desfazer-se dele todo, vendendo-o como metal em barras, ou então emprestando-o, para ser enviado para fora do país em troca de mercadorias ou títulos estrangeiros. No entanto, mesmo que nessa situação ninguém possuísse dinheiro, ou mesmo que, em última análise, talvez nem sequer existisse dinheiro algum, oferecer-se-ia dinheiro, e com ele se comprariam mercadorias, tanto quanto atualmente. As pessoas continuariam a contar suas rendas e seus capitais em dinheiro, e continuariam a fazer suas compras com ordens de recebimento de uma coisa que teria literalmente deixado de existir. Em tudo isso nada haveria de que se queixar, enquanto o dinheiro, ao desaparecer, deixasse um valor equivalente em outras coisas, aplicável quando fosse necessário para reembolsar aqueles aos quais originalmente pertencia o dinheiro. Todavia, no caso de pagamento com cheques, de qualquer maneira as compras continuam a ser feitas, embora não com dinheiro em posse do comprador, mas com dinheiro a que ele tem direito. Mas ele pode fazer compras com dinheiro que apenas espera ter futuramente, ou até mesmo, que apenas pretende ter futuramente. Pode comprar mercadorias em troca de suas letras, pagáveis futuramente, ou com base em nota promissória, ou então com base em simples crédito contábil, isto é, com base em simples promessa de pagamento. Todas essas compras têm exatamente o mesmo efeito sobre o preço que teriam se fossem pagas a vista. O montante de poder de compra que uma pessoa pode exercer engloba todo o dinheiro que possui ou que lhe é devido, bem como todo o crédito de que dispõe. Para exercer esse poder de compra em sua totalidade, a pessoa só encontra motivação suficiente em circunstâncias especiais, mas o poder como tal, ela o possui sempre, e a parte desse poder que exercer em qualquer momento é a medida do efeito que produzirá sobre o preço. Suponhamos que, na esperança de que alguma mercadoria subirá de preço, a pessoa resolva investir nela não somente todo o seu dinheiro vivo, mas resolva também comprar a crédito, dos produtores ou importadores, toda a quantidade de mercadoria que, na opinião destes, ela terá recursos para pagar. Vê-se que, agindo assim, esse comprador produz sobre o preço efeito maior do que se restringisse suas compras ao dinheiro que tem efetivamente em mãos. Ele cria uma procura pelo artigo, equivalente ao montante total de seu dinheiro e seu crédito somados, fazendo o preço da mercadoria subir proporcionalmente a essa soma. Esse efeito é produzido, mesmo que não haja no caso nenhum desses instrumentos escritos que substituem o dinheiro — mesmo que a transação não dê origem a nenhuma letra de câmbio nem à emissão de nenhuma nota bancária. O comprador, em vez de utilizar simplesmente um crédito contábil, poderia ter dado um título correspondente ao montante, ou então poderia ter pago as mercadorias com notas bancárias emprestadas de um banco para essa finalidade, efetuando assim a compra não com base em seu próprio crédito junto ao vendedor, mas com base no crédito do banco junto ao vendedor, e com base em seu próprio crédito junto ao banco. Se tivesse feito isso, teria produzido sobre o preço efeito tão grande quanto com uma simples compra no mesmo montante, com base em um crédito contábil, mas o efeito não seria maior. A causa que age sobre o preço é o próprio crédito, e não a forma e a modalidade de concessão do crédito. § 3. A propensão do público comercial a aumentar sua procura de mercadorias fazendo uso de todo o seu crédito ou de grande parte dele como um poder de compra depende da expectativa que tem em relação ao lucro. Quando existe impressão generalizada de que há probabilidade de subir o preço de alguma mercadoria, em razão de uma procura extra, de uma safra escassa, de obstruções à importação, ou de algum outro motivo, os distribuidores têm propensão a aumentar seus estoques, a fim de auferir lucro do aumento de preço que se espera. Essa simples propensão tende a produzir o efeito que se aguarda, uma subida do preço; e se o aumento de preço for considerável e progressivo, o negócio atrai outros especuladores, os quais, enquanto o preço não começar a cair, estão inclinados a crer que ele continuará a subir. Estes, comprando mais, produzem ulterior aumento do preço; assim, uma subida de preço para a qual havia inicialmente alguns motivos racionais, é muitas vezes agravada ainda mais por compras de caráter puramente especulativo, até o preço superar de muito o nível que os motivos iniciais justificavam. Passado algum tempo, começa-se a perceber isto: o preço cessa então de subir, e os que compraram as mercadorias, pensando ter chegado o momento de auferir seus ganhos, se preocupam em vendê-las. Então o preço começa a declinar: os que haviam comprado as mercadorias se precipitam ao mercado para evitar uma perda ainda maior, e, pelo fato de serem poucos os que gostam de comprar em um mercado declinante, o preço cai muito mais repentinamente do que subira. Aqueles que haviam comprado a um preço superior ao justificado por um cálculo razoável, e que foram surpreendidos pela reviravolta antes de auferirem seus ganhos, perdem na proporção da intensidade da baixa de preço e da quantidade de mercadoria que têm em estoque ou que se obrigaram a pagar. Ora, todos esses efeitos poderiam ocorrer em uma comunidade que desconhecesse o crédito: os preços de algumas mercadorias poderiam subir, em decorrência da especulação, a um nível fora do comum, e depois baixar rapidamente. No entanto, se não houvesse crédito, dificilmente isso poderia ocorrer em relação às mercadorias em geral. Se todas as compras fossem feitas com dinheiro disponível, o pagamento de preços mais altos por alguns artigos atrairia uma percentagem incomum do dinheiro da comunidade para os mercados desses artigos, e, portanto, teria que desviá-la de alguma outra classe de mercadorias fazendo assim baixar os preços delas. Sem dúvida, o vazio poderia ser preenchido em parte pela aceleração da circulação, sendo dessa forma que o dinheiro da comunidade aumenta virtualmente em um período de intensa especulação, pois as pessoas guardam pouco dinheiro consigo, apressando-se em empregá-lo em alguma aventura tentadora, assim que o recebem. Ocorre que esse recurso é limitado: no global, as pessoas, enquanto permanecer inalterada a quantidade de dinheiro, não têm condições de gastar muito mais dinheiro em algumas coisas, sem gastarem menos em outras. Entretanto, o que não podem fazer com dinheiro disponível, podem fazê-lo utilizando mais o crédito. Quando as pessoas vão ao mercado e compram com dinheiro que esperam receber mais tarde, estão sacando de um fundo ilimitado, e não de um fundo limitado. Assim alimentada, a especulação pode continuar em qualquer número de mercadorias, sem perturbar o andamento regular em outras. Ela poderia até continuar em todas as mercadorias de uma vez. Poderíamos imaginar que, em um acesso epidêmico da paixão de arriscar, todos os distribuidores, em vez de fazerem apenas suas encomendas costumeiras aos manufatores ou produtores de sua mercadoria, começassem a comprar todo o estoque que conseguissem adquirir, na medida em que lho permitisse o capital e o crédito de que dispõem. Todos os preços subiriam espetacularmente, mesmo que não houvesse nenhum aumento de dinheiro, nem nenhum crédito em papéis, mas simplesmente um aumento de compras com base em créditos contábeis. Depois de certo tempo, os que houvessem comprado desejariam vender, e os preços cairiam. Esse é o caso extremo ideal do que se chama crise comercial. Fala-se de crise comercial quando, ao mesmo tempo, grande número de comerciantes e distribuidores têm dificuldade em atender a seus compromissos, ou temem vir a tê-la. A causa mais comum desse problema é o recuo dos preços, depois de terem aumentado em virtude do espírito de especulação, de grau intenso, atingindo muitas mercadorias. Um evento que desperte expectativas de aumento de preços, tal como a abertura de um novo mercado externo, ou indícios simultâneos de uma redução da oferta de vários artigos comerciais de importância, ativa imediatamente a especulação em vários setores líderes. Os preços sobem, e os detentores da mercadoria auferem grandes ganhos, ou ao menos parecem poder auferi-los. Em certas condições de opinião coletiva, tais exemplos de aumento rápido de fortuna despertam imitadores numerosos, e a especulação não somente vai muito além do que é justificado pelos motivos iniciais para esperar aumento de preço, senão que se estende a artigos nos quais nunca houve tais motivos para esperar aumento de preço. No entanto, também esses produtos aumentam de preço juntamente com os restantes, assim que a especulação começa. Em tais períodos ocorre grande ampliação do crédito. Todos os atingidos pelo contágio da especulação não apenas utilizam seu crédito com muito mais liberdade do que habitualmente, mas na realidade conseguem mais crédito, por parecer que estão auferindo ganhos descomunais, e porque prevalece um sentimento de aventura em geral arrojado, que dispõe as pessoas a conceder e a tomar crédito mais amplamente do que em outros períodos, e a conceder crédito a pessoas que não têm lastro para tanto. Foi dessa maneira que, no célebre ano especulativo de 1825, e em vários outros períodos deste século, aumentaram bastante os preços de muitos dos principais artigos comerciais, sem nenhuma queda de preço em outros, de sorte que se poderia dizer corretamente que subiram os preços em geral. Quando, depois de tal subida, vem a reação, e os preços começam a cair, ainda que, de início, talvez isso aconteça apenas em decorrência do desejo dos detentores de estoque de ganhar, cessam as compras especulativas. Se as coisas parassem aqui, os preços apenas cairiam até ao nível a partir do qual haviam subido, isto é, até ao nível justificado pela conjuntura do consumo e da oferta. No entanto, os preços caem muito abaixo disso; pois quando os preços estavam subindo, e parecia que todo mundo estava fazendo fortuna, era fácil conseguir praticamente qualquer montante de crédito; da mesma forma, agora, quando parece que todos estão perdendo e alguns vão à falência, mesmo as firmas de solidez reconhecida têm dificuldade em obter o crédito com o qual estão habituadas, e cuja privação representa para elas o máximo inconveniente. Pelo fato de todos os comerciantes terem compromissos a pagar, e pelo fato de ninguém sentir segurança de poder dispor, no momento certo, da porção de recursos que emprestou a outrem, ninguém gosta de desfazer-se do dinheiro de que dispõe, ou de adiar a cobrança do direito a ele. A essas considerações racionais soma-se, em casos extremos, um estado de pânico, tão irracional quanto a confiança excessiva anterior: toma-se dinheiro emprestado para curto prazo, pagando praticamente qualquer taxa de juros, procurando-se a qualquer custo vender mercadorias com pagamento a vista. Assim sendo, durante uma reviravolta comercial, os preços gerais caem abaixo do nível usual, na mesma medida em que haviam subido acima dele durante o período de especulação antecedente; e a queda de preços, bem como a sua subida, não provém de alguma coisa que afete o dinheiro, mas da conjuntura creditícia: uma utilização extraordinariamente grande do crédito durante o período anterior, seguida por grande redução do mesmo no período subsequente — redução que nunca leva porém, a uma cessação total do crédito. Todavia, não é sempre verdade que a restrição de crédito, característica de uma crise comercial, necessariamente foi precedida por ampliação extraordinária e irracional do mesmo. Entram em jogo também outras causas: em uma das crises mais recentes, a de 1847, temos um exemplo, em que a restrição creditícia não foi precedida de nenhuma ampliação especial do crédito nem de quaisquer especulações, excetuadas as referentes às ações de companhias ferroviárias. Essas especulações, embora em muitos casos tenham sido extravagantes por serem efetuadas sobretudo com aquela porção de recursos que os especuladores podiam permitir-se perder, não tinham capacidade de produzir a vasta ruína decorrente de vicissitudes de preço das mercadorias habitualmente comercializadas e nas quais os comerciantes investem o grosso de seu capital. A crise de 1847 enquadra-se em outra classe de fenômenos comerciais. Ocasionalmente ocorre um concurso de circunstâncias tendentes a retirar do mercado financeiro parte considerável do capital que costuma supri-lo. Nesse caso, essas circunstâncias consistiam em grandes pagamentos feitos ao exterior (gerados por um alto preço do algodão e por uma importação de alimentos sem precedentes), juntamente com as exigências contínuas de capital circulante do país e as transações de empréstimos por parte das empresas ferroviárias, para converter esse capital em capital fixo, tornando-se este indisponível para empréstimos futuros. Essas diversas demandas de capital, como sempre acontece com elas, recaíram especialmente sobre o mercado financeiro. Grande parte — embora não a maior parte — dos alimentos importados foi efetivamente paga com a receita resultante de um empréstimo do governo. Os pagamentos extras, que os compradores de cereais e de algodão, bem como os acionistas das empresas ferroviárias, foram obrigados a efetuar, realizaram-se com suas próprias reservas de dinheiro, com dinheiro levantado para essa finalidade. Na primeira hipótese, esses pagamentos foram efetuados retirando depósitos dos bancos, e, portanto, estancando parte das fontes que alimentavam o mercado financeiro; na segunda hipótese, os pagamentos foram feitos mediante saques efetivos do mercado de crédito, vendendo títulos ou tomando empréstimos de dinheiro a juros. Essas duas circunstâncias associadas — nova demanda de empréstimos e redução do capital disponível para eles — fizeram aumentar a taxa de juros, impossibilitando a tomada de empréstimos, a não ser com as melhores garantias. Eis por que algumas empresas, as quais, por conduzirem seus negócios de maneira imprevidente e não comercial, permitindo que seu capital se tornasse indisponível, temporária ou permanentemente, caíram na impossibilidade de exigir aquela constante renovação de crédito que anteriormente lhes possibilitara sobreviver. Essas empresas deixaram de efetuar pagamentos, e sua falência envolveu, em maior ou menor grau, muitas outras empresas que nelas haviam confiado — e, como costuma acontecer em tais casos, a desconfiança geral, comumente chamada de pânico, começou a agir, e poderia ter produzido uma destruição do crédito igual à de 1825, se certas circunstâncias, que quase se podem qualificar de acidentais, não tivessem conferido a uma medida muito simples do Governo (a suspensão da Lei da Carta-Patente Bancária de 1844), o feliz poder de apaziguar o pânico, poder que por si mesmo a medida nunca poderia ter. (As dificuldades comerciais de 1864, que não chegaram a ser uma crise comercial, tiveram basicamente a mesma origem. Grandes pagamentos por algodão importado a altos preços, e grandes investimentos em projetos bancários e outros projetos de sociedades anônimas, tudo isso associado às operações de empréstimos da parte de governos estrangeiros, produziram tal sangria no mercado financeiro, que fizeram subir até 9% a taxa de desconto deduzida em títulos comerciais). § 4. Se o efeito geral do crédito sobre os preços é aquele que acabamos de descrever, é evidente que, se alguma modalidade ou forma específica de crédito é capaz de ter sobre os preços um efeito maior do que outras modalidades ou formas, só pode ser por facilitar ou estimular mais a multiplicação de transações creditícias em geral. Se, por exemplo, as notas bancárias, ou as letras, têm sobre os preços efeitos maiores do que os créditos contábeis, não é resultado de alguma diferença existente nas próprias transações — que são essencialmente iguais, quer ocorram de uma forma ou de outra — senão que o efeito maior se deve ao fato de essas notas bancárias e essas letras provavelmente serem utilizadas em quantidade maior do que os créditos contábeis. Se há maior probabilidade de utilizar mais amplamente o crédito como poder de compra, quando os instrumentos usados para isso são notas bancárias ou letras, do que quando a concessão do crédito ocorre simplesmente por meio de créditos contábeis, é só nessa medida — e não mais — que há motivo para atribuir à primeira modalidade um poder maior sobre os mercados do que o poder que se atribui à modalidade de crédito contábil. E, no entanto, é manifesto que existe tal diferença, até certo ponto. No que concerne às transações específicas, não faz nenhuma diferença, quanto ao efeito sobre o preço, se A compra mercadorias de B simplesmente a crédito, ou emite uma letra em troca das mesmas, ou se as paga com notas bancárias emprestadas a A por um banco C. A diferença ocorre em um estágio subsequente. Se A comprou as mercadorias com base em um crédito contábil, não há nenhuma maneira óbvia ou conveniente de B aproveitar a dívida de A como meio para ampliar seu próprio crédito. Qualquer crédito que B tiver será devido ao conceito geral que o público tem acerca de sua solvência. B não tem condições, especificamente, de caucionar a dívida de A em favor de uma terceira pessoa, como uma garantia por dinheiro emprestado ou bens comprados. Mas se A lhe deu uma letra naquele montante, B pode fazê-la descontar, o que é a mesma coisa que tomar dinheiro emprestado com base no crédito de A e dele próprio; ou então B pode passar a letra adiante, em troca de mercadorias, o que equivale a comprar mercadorias com base no mesmo crédito conjunto. Nos dois casos, ocorre uma segunda transação creditícia, baseada na primeira, e que não ocorreria se a primeira transação creditícia tivesse ocorrido sem a intervenção de uma letra. E as transações não precisam terminar aqui. A letra pode ser novamente descontada, ou pode ser novamente passada adiante em troca de mercadorias, e isso várias vezes, antes de ser efetivamente apresentada para cobrança. Tampouco seria correto afirmar que esses proprietários sucessivos da letra, se não a tivessem tido, teriam podido conseguir seu propósito comprando mercadorias com base em seu próprio crédito junto aos comerciantes. Talvez nem todos sejam pessoas de crédito, ou podem já ter utilizado seu crédito ao máximo possível. E de qualquer forma, é mais fácil obter dinheiro ou mercadorias com o crédito de duas pessoas do que com o crédito de uma só. Ninguém pretenderá afirmar que, para um comerciante, é tão fácil tomar um empréstimo de 1000 libras com base em seu próprio crédito, quanto descontar uma letra no mesmo montante, quando o sacado é pessoa de solvência conhecida. Se agora supusermos que A, em vez de dar uma letra, consegue um empréstimo de notas de um banco C, e com elas paga mercadorias vendidas por B, veremos que a diferença é ainda maior. B é agora independente, mesmo de alguém que lhe desconte a letra; com efeito, a letra de A só teria sido aceita em pagamento por aqueles que conhecessem sua reputação de solvência, ao passo que um banqueiro é uma pessoa que tem crédito junto ao público em geral, e cujas notas são aceitas em pagamento por todos, ao menos nas proximidades. Isso acontece porque, por um costume que se transformou em lei, o pagamento em notas bancárias equivale a uma quitação completa para o pagante, ao passo que, se tivesse pago com uma letra, a pessoa ainda continuaria sujeita à dívida se a pessoa contra quem é sacada deixar de pagar no vencimento. Por conseguinte, B pode gastar todas as suas notas bancárias sem envolver em nada seu crédito pessoal, e todo o poder que tinha anteriormente, de comprar mercadorias com crédito contábil, permanece para ele inalterado, além do poder de compra que lhe advém da posse das notas bancárias recebidas de A. A mesma observação aplica-se a todas as pessoas que, sucessivamente, vierem eventualmente a ter em mãos essas notas. Somente A, o primeiro portador (que utilizou seu crédito para conseguir as notas como um empréstimo dado pelo banco emissor), pode sofrer uma redução do crédito que possuía junto a outras pessoas; e mesmo neste caso, esse resultado não é provável. Embora em teoria, e se toda a situação dele fosse conhecida, todo saque já feito com base em seu crédito deva diminuir, na mesma extensão, seu poder de obter mais crédito, na prática é mais frequente acontecer o inverso: o fato de uma pessoa ter confiado nele é considerado como uma evidência de que também outros podem confiar nele com segurança. É, pois, manifesto que as notas bancárias representam um instrumento mais poderoso para aumentar os preços do que as letras, e que estas são mais poderosas para isso do que os créditos contábeis. Com efeito, do fato de se poder utilizar mais crédito não segue que se utilizará efetivamente mais crédito. Quando a situação comercial não encerrar nenhuma tentação especial para fazer grandes compras a crédito, os comerciantes utilizarão apenas uma pequena parte de seu poder de crédito, e dependerá apenas da conveniência a porção de poder de crédito que utilizarão, de uma forma ou de outra. As propriedades que diferenciam as diversas modalidades de crédito só se revelam no momento em que as circunstâncias dos mercados e o estado de espírito dos comerciantes levarem muitas pessoas a utilizar seu crédito em medida além da costumeira. O crédito que já foi utilizado ao máximo na forma de débitos contábeis pode ser aumentado em muito ao se recorrer a letras, e muito mais ainda ao se recorrer a notas bancárias. No primeiro caso, porque cada distribuidor, além de seu próprio crédito, teria possibilidade de criar um ulterior poder de compra com o crédito que concedeu a outros; no segundo caso, porque o crédito do banco junto ao público em geral, cunhado em notas, como o metal em barras é cunhado em moedas para torná-lo transportável e divisível, representa, nas mãos de cada dono sucessivo, novo poder de compra acrescentado àquele que possivelmente lhe advém de seu próprio crédito. Formulando as coisas de outra maneira: um único exercício do poder de crédito, na forma de crédito contábil, constitui apenas a base de uma só compra, ao passo que, emitindo-se uma letra, essa mesma porção de crédito pode ser usada para tantas compras quanto for o número de vezes que a letra mudar de dono, enquanto cada nota bancária emitida transforma o crédito do banqueiro em um poder de compra, no mesmo montante, na mão de todos os portadores sucessivos, sem prejudicar o poder que possam ter de efetuar compras com base em seu próprio crédito. Em suma, o crédito tem exatamente o mesmo poder de compra que o dinheiro; e assim como o dinheiro influi sobre os preços não simplesmente em proporção a seu montante, mas em proporção a seu montante multiplicado pelo número de vezes que muda de mãos, da mesma forma o crédito influi sobre os preços; e por isso o crédito transferível de um a outro é, nessa proporção, mais potente do que o crédito que só efetua uma compra. § 5. Todo esse poder de compra, porém, tem efeito sobre os preços somente na proporção em que é utilizado, e por isso o efeito só é sentido em um conjunto de circunstâncias capaz de induzir a uma utilização do crédito que vai além do costumeiro. Em tais circunstâncias, isto é, em períodos de especulação, penso não se poder negar que os preços têm probabilidade de subir mais se as compras especulativas forem feitas com notas bancárias do que quando são feitas com letras, e têm probabilidade de subir mais quando as compras são feitas com letras do que quando feitas com créditos contábeis. Isso, porém, tem muito menos importância prática do que à primeira vista se imagina, pois, em termos de realidade, as compras especulativas, na grande maioria dos casos, não são feitas com notas bancárias ou com letras, mas quase exclusivamente com base em créditos contábeis. “As solicitações feitas ao Bank of England no sentido de ampliar o desconto — afirma a maior autoridade em tais assuntos (e o mesmo deve ser verdade em relação a solicitações a outros bancos) — raramente ocorrem, se é que ocorrem, na origem ou no decorrer de grandes especulações com mercadorias. Essas solicitações, em sua maioria, se não em todos os casos, dão entrada, na primeira instância, com base no crédito, para a duração de prazo usual nos vários negócios, não impondo às partes, portanto, nenhuma necessidade imediata de tomar emprestado tanto quanto pode ser preciso para essa finalidade, além do capital disponível das próprias pessoas. Aplica-se isto especialmente a compras especulativas de mercadorias no ato, com vistas na revenda. Ora, estas costumam constituir a percentagem menor de compromisso a crédito. A grande maioria das solicitações que dão entrada, na expectativa de uma subida de preços, são as que têm em vista importações do exterior. A mesma observação é aplicável também à exportação de mercadorias, quando grande percentagem de compras é feita com base no crédito dos embarcadores ou de seus consignatários. Enquanto as circunstâncias comportam a perspectiva de um resultado favorável, o crédito das partes geralmente é mantido. Se alguns deles desejam acumular ganhos, há outros, com capital e crédito prontos para substituí-los; e se os eventos justificarem plenamente os motivos com base nos quais se efetuaram as transações especulativas (comportando assim vendas para consumo, em tempo para repor o capital empatado) não há procura fora do comum de capital emprestado para sustentá-las. Um aumento da demanda de capital só ocorre quando, em virtude das vicissitudes de eventos políticos, ou das estações, ou de outras circunstâncias adventícias, se constata que as ofertas supervenientes superam a taxa calculada de consumo, seguindo-se uma queda dos preços; nesse caso sobe a taxa de mercado dos juros, aumentando o número de solicitações de desconto feitas ao Bank of England." Assim, a multiplicação de notas bancárias e de outros papéis transferíveis, na maioria dos casos, não acompanha nem facilita a especulação; essa multiplicação atua sobretudo quando a maré está mudando, e se começam a sentir as dificuldades. Pouquíssimas são as pessoas que têm conhecimento de quanto as transações especulativas podem ser efetuadas com base em simples créditos contábeis sem acarretar o menor acréscimo ao que se usa chamar de moeda. A propósito, o sr. Tooke afirma: “O poder de compra de pessoas que têm capital e crédito vai muito além de tudo o que possam imaginar os que não estão na prática familiarizados com os mercados especulativos (...) Uma pessoa que tem fama de ter capital suficiente para negócio regular, e que desfruta de bom crédito em seu negócio, e é favorecida por circunstâncias no início e no decorrer de sua especulação, pode efetuar compras em uma extensão simplesmente enorme, em confronto com seu capital”. (Inquiry into the Currency Principle) O sr. Tooke confirma essa afirmação com alguns exemplos dignos de nota, exemplificando o imenso poder de compra que se pode exercer, e o aumento de preços que se pode produzir, com crédito não representado por notas bancárias nem por letras de câmbio. “Entre os primeiros especuladores que visavam a um aumento do preço do chá, em consequência de nossa disputa com a China em 1839, figuravam vários merceeiros varejistas e distribuidores de chá. Havia disposição geral, nesse ramo, a acumular estoque, isto é, a acumular de uma vez uma quantidade que atenderia à demanda provável dos clientes durante vários meses. Entretanto, alguns deles, mais ousados e mais dotados de espírito de aventura que os demais se valeram de seu crédito junto aos importadores e atacadistas para comprar quantidades muito além da demanda existente em seu próprio ramo. Uma vez que as compras eram feitas, na primeira vez, ostensivamente, e talvez na verdade em função dos objetivos legítimos e dentro dos limites de seu negócio regular, as partes tiveram a possibilidade de comprar sem a condição de fazer algum depósito, ao passo que os especuladores, conhecidos como tais, têm de pagar 2 libras por caixa, para cobrir qualquer diferença provável de preço que possa ocorrer antes de expirar o prazo do pagamento — o qual, para esse artigo, é de três meses. Portanto, sem gastarem a menor quantia de capital efetivo ou de dinheiro de qualquer tipo, fizeram compras consideráveis, e com o lucro auferido na revenda de parte dessas mercadorias compradas tinham condições de pagar o depósito necessário para comprar quantidades ulteriores, quando necessário, como ocorria quando a extensão das compras atraía a atenção. Dessa maneira, a especulação continuava a preços em ascensão (100% e mais), até expirar o prazo de pagamento; e se, naquele momento, as circunstâncias tivessem sido de molde a justificar a apreensão reinante de que seriam cortados todos os fornecimentos futuros, os preços poderiam ter subido ainda mais, e em qualquer hipótese poderiam não ter declinado. Nesse caso, os especuladores poderiam ter auferido se não todos os lucros que esperavam, ao menos uma soma muito grande, com a qual poderiam ter aumentado muito seu negócio ou então retirar-se totalmente dele, com uma reputação de grande sagacidade em fazer fortuna. Mas, em vez desse resultado favorável aconteceu que duas ou três cargas de chá que estavam apenas sendo baldeadas na Inglaterra, contrariando as expectativas, tiveram permissão para entrar no país; e se descobriu que estavam em andamento outros embarques indiretos. Assim, a oferta aumentou além do calculado pelos especuladores, e, ao mesmo tempo o consumo diminuíra devido ao preço elevado. Em consequência, houve reação violenta no mercado; os especuladores só conseguiram vender com perdas tão grandes que não tinham condições de cumprir com seus compromissos, e em decorrência disso vários deles faliram. Entre estes, fez-se menção de um que, não tendo empatado em seu negócio mais do que 1 200 libras de capital, havia encontrado meios de comprar 4 mil caixas, valendo mais de 80 mil libras, e que teve que resignar-se, na venda, com um prejuízo em torno de 16 mil libras. “O outro exemplo que tenho a dar é o do efeito da especulação sobre o mercado de trigo, entre 1838 e 1842. Houve o caso de uma pessoa que, ao começar suas grandes especulações, possuía um capital não superior a 5 mil libras — conforme se constatou na verificação subsequente de seus negócios —, mas, por ter tido sucesso no início, e sendo favorecido pelas circunstâncias no decurso de suas operações, encontrou meios de efetuar compras que, quando ele suspendeu o pagamento de seus compromissos, se constatou ascenderem a um montante entre 500 mil e 600 mil libras. Poder-se-iam citar outros casos, de pessoas totalmente destituídas de capital, as quais, simplesmente com base no crédito, conseguiram fazer compras enormes, enquanto as aparências do mercado favoreciam seus planos. "Observe-se, aliás, que essas especulações, envolvendo compras enormes sem ter capital algum, ocorreram em 1839 e 1840, quando o mercado financeiro estava na fase de suas maiores restrições, ou seja, quando, para usar o linguajar moderno, se verificou a escassez máxima de dinheiro." Todavia, se bem que o grande instrumento de compras especulativas sejam os créditos contábeis, não se pode contestar que, em períodos de especulação, ocorre aumento tanto da quantidade das letras de câmbio como das notas bancárias. Certamente, esse aumento, no que tange às notas bancárias, dificilmente acontece no primeiro estágio das especulações, já que (como observa o sr. Tooke) não se solicitam empréstimos bancários para comprar, mas para resistir sem vender, quando se esgotou o prazo usual de crédito e não veio o aumento de preço com que se contava. Entretanto, os especuladores de chá mencionados pelo sr. Tooke não poderiam ter continuado suas especulações além dos três meses que representam o prazo usual de crédito em seu ramo de negócio, se não tivessem conseguido obter empréstimos bancários — o que provavelmente poderiam ter conseguido, se ainda tivesse continuado a expectativa de um aumento de preço. Já que, portanto, o crédito na forma de notas bancárias constitui um instrumento mais poderoso para aumentar os preços do que os créditos contábeis, um poder ilimitado de recorrer a esse instrumento pode contribuir para prolongar e aumentar a subida especulativa de preços, e, portanto, para agravar a subsequente queda de preços. Em que medida? E que importância devemos atribuir a essa possibilidade? Para formarmos um juízo sobre isso, convém considerarmos a percentagem que pode apresentar o aumento máximo de notas bancárias em um período de especulação. Não me refiro à percentagem em relação à massa total de crédito existente no país, mas apenas em relação às letras de câmbio. Supõe-se que o montante médio de letras, existente em qualquer momento [1848], supera em muito 100 milhões de libras esterlinas. (A estimativa mais sólida é a do sr. Leatham, baseada nos rendimentos dos selos emitidos para as letras de câmbio. Os resultados são os seguintes: “O Sr. Leatham”, afirma o Sr. Tooke, “indica o processo por meio do qual, com base nos dados fornecidos pelos rendimentos dos selos, chega a esses resultados; estou propenso a crer que os resultados se aproximam tanto da verdade, quanto a natureza do material o permite”. Inquiry into the Currency Principle. — O Sr. Newmarch (Apêndice nº 39 ao Report of the Committee on the Bank Acts em 1857, e History of Prices, v. VI) apresenta razões para a opinião de que a totalidade das letras em circulação em 1857 não foi muito inferior a 180 milhões de libras esterlinas, e de que às vezes o montante chega a 200 milhões). A circulação de cédulas bancárias da Grã-Bretanha e da Irlanda raramente supera os 40 milhões, sendo que o aumento delas em períodos de especulação raramente ultrapassa 2 ou 3 milhões, no máximo. E mesmo isso, como já vimos, dificilmente ocorre antes de se chegar àquele estágio avançado da especulação, no qual a maré dá sinais de inversão, e os distribuidores já estão geralmente pensando mais em como cumprir os compromissos assumidos do que em como ampliá-los — ao passo que a quantidade das letras existentes aumenta muito desde o início das especulações. § 6. Sabe-se perfeitamente que, nestes últimos anos, muitos economistas políticos, e grande parte do público, têm considerado uma limitação artificial da emissão de células bancárias como expediente altamente eficaz para impedir a febre da especulação, e quando isso não é possível, para moderá-la. Esse ponto de vista recebeu o reconhecimento e a sanção do Parlamento com a Lei da Moeda de 1844. Todavia, a esta altura das nossas investigações, embora tenhamos reconhecido às notas bancárias uma influência sobre os preços superior à que tem as letras ou os créditos contábeis, não encontramos razão para pensar que essa eficácia superior tenha grande efeito no aumento de preços que acompanha um período de especulação, nem, consequentemente, que qualquer restrição a esse instrumento possa ter o grau de eficácia que muitas vezes se supõe, no sentido de atenuar esse aumento de preços, ou o recuo que se lhe segue. Ainda menos propensos estaremos a pensar assim, se considerarmos que há uma quarta forma de transações de crédito, isto é, por meio de cheques emitidos contra bancos, e transferências na contabilidade de um banco — modalidade esta que sob todos os aspectos é exatamente paralela às notas bancárias, dando facilidades iguais para ampliação do crédito, e capaz de agir sobre os preços com a mesma força. No dizer do sr. Fullarton. (On the Regulation of Currencies). “não há um único objetivo, atualmente atingido com as cédulas emitidas pelo Bank of England, que não se poderia atingir, com a mesma eficácia, se cada indivíduo mantivesse uma conta nesse banco, e efetuasse com cheque todos os seus pagamentos de 5 libras ou mais”. Um banco, em vez de emprestar suas notas a um comerciante ou distribuidor, poderia abrir uma conta para ele, e creditar-lhe a soma que tivesse concordado em adiantar-lhe sob a condição de que ele só pudesse sacar essa quantia de sua conta, emitindo cheques contra o banco a favor daqueles aos quais tivesse que efetuar pagamentos. Esses cheques poderiam possivelmente até passar de mão em mão, como cédulas bancárias; seria mais comum, porém, o recebedor depositá-los no seu próprio banco, e quando precisasse do dinheiro, emitiria outro cheque contra o banco; consequentemente, um objetante poderia retrucar que, já que o cheque original muito cedo seria apresentado para cobrança, e já que o pagamento dele deve ser ou em cédulas ou em moeda, o banco tem de ter um montante igual de cédulas ou de moeda, como meio último de liquidação. Todavia, não é isso o que acontece. A pessoa a quem o cheque é transferido pode, talvez, tratar com o mesmo banco, e o cheque pode voltar ao próprio banco contra o qual o cheque foi emitido, como ocorre muitas vezes em distritos rurais. Se assim ocorrer, não se exigirá nenhum pagamento por parte do banco, mas uma simples transferência na contabilidade do banco acertará a transação. Se o cheque for depositado em outro banco, ele não será apresentado para pagamento, mas será liquidado mediante compensação por outros cheques; e em uma conjuntura favorável a uma ampliação geral dos créditos bancários, um banco que ofereceu mais crédito, e que portanto tem mais cheques sacados contra ele, terá também mais cheques emitidos por outros bancos e pagos a ele, e só terá que efetuar com cédulas ou com dinheiro o pagamento dos saldos — e para esse fim é amplamente suficiente a reserva normal dos bancos prudentes, isto é, 1/3 de suas obrigações. Ora, se o banco tivesse concedido a ampliação de crédito mediante emissão de suas próprias notas, de qualquer forma teria sido obrigado a manter a reserva usual, em moeda ou em cédulas do Bank of England; assim sendo, como diz o sr. Fullarton, o banco pode dar, com o que se pode chamar de circulação de cheques, todas as facilidades que poderia oferecer com a circulação de notas. Esse aumento de crédito, por meio do simples registro na contabilidade de um banco, tem toda a eficácia para influir sobre os preços que atribuímos a uma ampliação do crédito mediante cédulas bancárias. Assim como uma cédula bancária de 20 libras paga a alguém lhe dá um poder de compra de 20 libras, baseado em crédito, além de qualquer crédito próprio que a pessoa já possa ter, o cheque pago a essa pessoa também faz isso: com efeito, embora possivelmente não possa fazer nenhuma compra com o próprio cheque, ele o deposita em seu banco, podendo sacar contra ele. Uma vez que esse ato de sacar um cheque contra outro que foi trocado ou cancelado pode ser repetido tantas vezes quantas se pode repetir uma compra com uma cédula bancária, ele gera o mesmo aumento de poder de compra. O empréstimo original, ou crédito, dado pelo banco a seu cliente, é potencialmente multiplicado como instrumento de compra, nas mãos das sucessivas pessoas às quais se transferem partes desse crédito, da mesma forma que o poder de compra de uma cédula bancária é multiplicado pelo número de pessoas por cujas mãos ela passa, antes de ser devolvida ao emitente. Essas considerações reduzem muito a importância de qualquer efeito que possa aliviar as vicissitudes do comércio por meio de uma invenção tão superficial quanto esta, em que tanto se tem confiado ultimamente, da limitação da emissão de cédulas bancárias por força de um regulamento artificial. Um exame de todas as consequências dessa restrição e uma avaliação das razões pró e contra ela têm de ser adiados até que tivermos tratado das trocas com o exterior e dos movimentos internacionais de metal não cunhado. No momento, o que nos ocupa é apenas a teoria geral dos preços, tema este do qual faz parte essencial a diversidade de influência exercida por modalidades diferentes de crédito. § 7. Muito se tem discutido e argumentado em torno da questão: será que várias dessas formas de crédito, e em especial as cédulas bancárias, devem ser consideradas como dinheiro? O problema é simplesmente de palavras, a ponto de quase não valer a pena levantá-lo; e teríamos certa dificuldade em entender por que se lhe dá tanta importância, se não houvesse algumas autoridades que — aderindo ainda à doutrina característica do estágio infantil da sociedade e da Economia Política, de que a quantidade de dinheiro, comparada à de mercadorias, determina os preços em geral — consideram importante provar que as cédulas bancárias, e não outras formas de crédito, é que são dinheiro, a fim de sufragar a conclusão de que as cédulas bancárias, e não outras formas de crédito, exercem influência sobre os preços. É óbvio, porém, que os preços não dependem do dinheiro, mas das compras. O dinheiro guardado num banco, e que não é sacado, ou é sacado para outras finalidades que não a compra de mercadorias, não tem efeito algum sobre os preços, como acontece com o crédito que não é utilizado. O crédito usado para comprar mercadorias afeta os preços da mesma forma que o dinheiro. Assim, o dinheiro e o crédito estão em pé de igualdade, no que concerne ao seu efeito sobre os preços, sendo sob esse aspecto totalmente secundário optarmos por qualificar as cédulas bancárias como dinheiro ou como crédito. Entretanto, já que se levantou essa questão de nomenclatura, parece desejável respondê-la. A razão dada para considerar as cédulas bancárias como dinheiro é que, por lei e pelo costume, elas têm uma propriedade em comum com o dinheiro metálico: a de encerrar definitivamente as transações nas quais são empregadas, ao passo que nenhuma outra forma de pagar uma dívida, transferindo outra, tem esse privilégio. A primeira observação que aqui se apresenta é a seguinte: se o argumento for esse, ao menos as cédulas emitidas por bancos particulares não são dinheiro, pois não se pode forçar um credor a aceitá-las em pagamento de uma dívida. Elas certamente encerram a transação, se o credor as aceitar; mas esse mesmo efeito teria também, na mesma suposição, um fardo de tecido, ou uma pipa de vinho, que nem por isso são considerados como dinheiro. Uma condição essencial do conceito de dinheiro parece ser que ele seja moeda legal. Admite-se universalmente que um papel não conversível que seja moeda legal é dinheiro; no idioma francês, o termo papier-monnaie (papel-moeda) significa efetivamente inconversibilidade, pois as cédulas conversíveis são simplesmente denominadas billets à porteur (bilhetes ao portador). É somente no caso das cédulas do Bank of England, sob a lei da conversibilidade, que surge alguma dificuldade, pois esses bilhetes não são moeda legal para o próprio banco, embora sejam moeda legal para todas as outras pessoas. Incontestavelmente, os bilhetes do Bank of England encerram as transações, no que tange ao comprador. Uma vez que ele pagou em cédulas do Bank of England, em caso algum se pode exigir dele que pague novamente. Mas confesso que não consigo entender como se pode considerar completa a transação, no tocante ao vendedor, se só se acha que este recebeu o preço de sua mercadoria sob a condição de o banco cumprir sua promessa de pagar. Um instrumento que não tivesse valor algum em razão da insolvência de uma corporação não poderia ser dinheiro, no sentido em que este se contrapõe ao crédito. De duas uma: ou as notas bancárias não são dinheiro, ou são dinheiro e também crédito. Elas podem ser denominadas; mais adequadamente, crédito cunhado. As demais formas de crédito podem ser distinguidas delas como crédito em lingotes. § 8. Algumas importantes autoridades têm reclamado para as cédulas bancárias, se comparadas com outras modalidades de crédito, uma distinção maior, com relação à sua influência sobre o preço, do que aquela que consideramos razoável admitir — uma diferença não de grau, mas de espécie. Baseiam essa distinção no fato de que se pressupõe que todas as letras e cheques, bem como todos os débitos contábeis, serão em última análise liquidados ou com dinheiro ou com cédulas, como, de fato, ocorre. Segundo essas autoridades, portanto, as cédulas bancárias em circulação, juntamente com a moeda, são a base sobre a qual assentam todos os demais instrumentos de crédito, e a superestrutura será proporcional à base, de maneira que a quantidade de cédulas bancárias determina a das outras formas de crédito. Parecem pensar que, multiplicando-se as cédulas bancárias, haverá mais letras, mais pagamentos em cheque e, presumo, mais créditos em conta. Regulando e limitando a emissão de cédulas bancárias, pensam que todas as demais formas de crédito são limitadas de maneira similar, por consequência indireta. Acredito ter reproduzido corretamente a opinião dessas autoridades, conquanto em parte alguma tenha visto suas razões apresentadas com tal clareza que me inspirem a certeza completa de entendê-las. Pode ser verdade que, conforme houver mais ou menos notas bancárias, haja também, de modo geral (ainda que não invariavelmente), maior ou menor quantidade de outras modalidades de crédito, pois a mesma conjuntura comercial que ocasiona um aumento do crédito em uma modalidade acarreta um aumento deste em outras. Mas não vejo nenhuma razão para crer que uma seja causa da outra. Efetivamente, se começarmos por supor — como suspeito que o façam tacitamente essas autoridades — que os preços são regulados pela moeda e pelas cédulas bancárias, a proposição que sustentam é uma conclusão certa, pois, conforme os preços forem mais altos ou mais baixos, as mesmas compras darão origem a letras, cheques e créditos contábeis de montante maior ou menor. Acontece que a premissa utilizada nesse raciocínio é exatamente a proposição que tem de ser provada. Negando-se essa suposição, não sei como se possa demonstrar a conclusão que se tira. O crédito dado a alguém, por aqueles com quem negocia, não depende da quantidade de cédulas bancárias ou de moeda em circulação naquele momento, mas do conceito que as pessoas têm sobre a solvência do solicitante do crédito; se nos cálculos dessas pessoas entra alguma consideração de natureza mais geral, isso ocorre somente em um período de pressão sobre o mercado financeiro, quando elas mesmas não têm certeza de obterem o crédito no qual estão habituadas a confiar — e mesmo então, o que levam em conta é a situação geral do mercado financeiro, e não (se prescindirmos de uma teoria preconcebida) o montante de notas bancárias existentes. Isso quanto à disponibilidade para conceder crédito. Quanto à disposição de um comerciante para utilizar seu crédito, esta depende de suas expectativas de ganho, ou seja, do conceito que tem sobre o preço futuro provável de sua mercadoria — conceito este fundado ou no aumento ou queda de preço já em curso, ou no seu prejulgamento relativo à oferta e à taxa de consumo da mercadoria. Quando um comerciante amplia suas compras além de seus meios de pagamento imediatos, comprometendo-se a pagar em uma data especificada, fá-lo esperando que a transação tenha terminado favoravelmente antes de vencer esse prazo, ou então que ele esteja de posse de fundos suficientes derivantes da receita de suas outras transações. O cumprimento dessas expectativas depende de preços, mas não especialmente do montante de notas bancárias. Sem dúvida, ele pode também perguntar-se, no caso de essas expectativas serem frustradas, em que fonte poderá procurar um empréstimo temporário, para possibilitar-lhe, na pior hipótese, cumprir com seus compromissos. Mas, primeiramente, essa reflexão prospectiva sobre a dificuldade maior ou menor que poderá encontrar no sentido de superar seus problemas parece ser um fator muito fraco com freio eficaz em um período supostamente de aventura irrefletida, em se tratando de pessoas tão confiantes no êxito, que se envolvem além da medida dos recursos certos de que dispõem para sair das dificuldades. Além disso penso que sua confiança em encontrar ajuda no caso de terem má sorte dependerá sobretudo do conceito que têm sobre seu próprio crédito, talvez juntamente com alguma consideração; não da quantidade de moeda, mas da situação geral do mercado financeiro. São conscientes de que, no caso de uma crise comercial, terão dificuldades em conseguir empréstimos. Por outro lado, se acreditassem na probabilidade de ocorrer uma crise comercial antes de auferirem seus ganhos, não especulariam. Se não ocorrer nenhuma grande redução do crédito em geral, não duvidarão de que obterão quaisquer empréstimos de que venham a necessitar muito, desde que a situação de seus próprios negócios no momento garanta, na avaliação dos mutantes, uma perspectiva suficiente de que esses empréstimos serão pagos. CAPÍTULO XIII Um Papel-Moeda Inconversível § 1. Depois que a experiência mostrou ser possível fazer circular como francos, dólares, ou libras esterlinas, pedaços de papel, destituídos em si mesmos de qualquer valor intrínseco, mas simplesmente pelo fato de trazerem neles impressa a declaração de serem equivalentes a certo número dessas moedas, e que tais pedaços de papel produzem então, para quem os emitiu, todas as vantagens que poderiam ter sido produzidas pelas moedas que pretendem representar, os governos começaram a pensar que seria bom poderem apropriar-se eles mesmos desse benefício, ficando isentos daquela condição, à qual estavam sujeitos indivíduos que emitissem tais papéis em substituição ao dinheiro, a saber, de pagarem, quando solicitados, em troca desse sinal, a coisa significada. Resolveram tentar livrar-se dessa obrigação desagradável, fazendo com que um pedaço de papel por eles emitido passasse por uma libra esterlina, simplesmente dando-lhe a denominação de uma libra, e consentindo em aceitar tal papel em pagamento dos impostos. O poder de quase todos os governos estabelecidos é tão grande que geralmente conseguiram atingir esse objetivo; acredito poder dizer que sempre o conseguiram por algum tempo, perdendo esse poder apenas depois de tê-lo comprometido pelo abuso mais flagrante. No caso suposto, as funções do dinheiro são cumpridas por uma coisa que deriva seu poder de cumpri-las exclusivamente da convenção; ora, a convenção é plenamente suficiente para conferir esse poder, já que nada mais se requer, para fazer uma pessoa aceitar qualquer coisa como dinheiro, e até mesmo a qualquer valor arbitrário, senão a persuasão de que essa coisa será aceita por outros, nas mesmas condições, quando ela a oferecer. O único problema é saber o que determina o valor de tal moeda, pois esse valor não pode ser, como no caso de ouro e prata (ou no de papéis trocáveis por ouro e prata à vontade), o custo de produção. Ora, vimos que, mesmo no caso de uma moeda metálica, o fator imediato que determina o valor é sua quantidade. Se a quantidade, em vez de depender dos motivos comerciais normais de lucro e perda, pudesse ser fixada arbitrariamente pela autoridade, o valor dependeria diretamente dessa autoridade, e não do custo de produção. A quantidade de um papel-moeda não conversível em metais à opção do portador pode ser fixada arbitrariamente, sobretudo se o emitente for o poder supremo do Estado. Portanto, o valor de tal tipo de moeda é totalmente arbitrário. Suponhamos que, em um país cuja moeda seja exclusivamente metálica, se emita de repente um papel-moeda, no montante da metade da moeda metálica em circulação — emissão feita não por um estabelecimento bancário, ou na forma de empréstimos, mas pelo Governo, em pagamento de salários e compra de mercadorias. Pelo fato de a moeda aumentar repentinamente de 50%, todos os preços subirão, e entre outras coisas também os preços de todos os objetos feitos de ouro e prata. Uma onça de ouro manufaturado valerá mais do que uma onça de moeda em ouro, sendo a diferença superior àquela costumeira, que compensa o valor da mão-de-obra: e nesse caso será rentável fundir a moeda metálica para transformá-la em objeto de ouro manufaturado; isto, até quando a quantidade de moeda metálica em circulação for reduzida, pela retirada de ouro àquela quantidade que existia no momento da emissão de papel-moeda. Quando isso acontecer, os preços cairão ao nível em que estavam de início, e nada terá mudado, senão o fato de se ter substituído a metade da moeda metálica anteriormente existente por uma moeda em papel. Suponhamos agora que se faça uma segunda emissão de papel-moeda; renovar-se-á a mesma série de efeitos; e assim por diante, até desaparecer toda a moeda metálica; isso acontecerá se o papel-moeda emitido for de denominação tão baixa quanto a moeda metálica mais baixa; se não for assim permanecerá tanta moeda metálica quanto a conveniência exigir para pagamentos menores. O acréscimo feito à quantidade de ouro e prata disponível para fins ornamentais reduzirá um pouco, por algum tempo, o valor desse artigo, e enquanto isso durar, mesmo que se tenha emitido papel-moeda no montante original da circulação metálica, permanecerá em circulação tanto de moeda metálica, juntamente com o papel-moeda, quanto for necessário para manter o valor da moeda igual ao valor reduzido do material metálico; entretanto, pelo fato de o valor ter caído abaixo do custo de produção, uma parada ou uma diminuição do fornecimento das minas possibilitará aos agentes normais de destruição eliminarem da circulação o excedente, e depois disso os metais e a moeda recuperarão seu valor natural. Estamos aqui supondo, como supusemos no decurso de todo este raciocínio, que o país tenha suas próprias minas, e não mantenha intercâmbio comercial com outros países. Com efeito, em um país que mantém comércio exterior, a moeda metálica que se torna supérflua em virtude de uma emissão de papel-moeda é eliminada da circulação por um método muito mais rápido. Até esse ponto, os efeitos de um papel-moeda são essencialmente os mesmos, seja ele conversível ou não em moeda sonante. A diferença entre papel conversível e papel não conversível começa a operar quando os metais tiverem sido totalmente substituídos e retirados de circulação. Quando todo o ouro ou toda a prata tiverem desaparecido de circulação, e seu lugar tiver sido ocupado por uma quantidade igual de papel, suponhamos que se faça nova emissão de papel-moeda. Recomeça a mesma série de fenômenos: os preços sobem, entre eles os preços dos artigos de ouro e prata, e como antes procura-se moeda metálica para convertê-la em ouro e prata em barras. Não há mais moeda metálica em circulação, mas se o papel-moeda for conversível, pode-se ainda obter moeda metálica dos emissores, em troca de notas. Por conseguinte, todas as cédulas adicionais em papel, que se tentar forçar introduzir na circulação depois de se ter totalmente substituído as moedas metálicas, retornarão aos emissores, em troca de moedas metálicas, e os emissores não serão capazes de manter em circulação uma quantidade tal, de papel conversível que faça seu valor descer abaixo do metal que este represente. O mesmo não acontece, porém, se o papel-moeda for inconversível. Não há impedimento para aumentar esse tipo de papel-moeda (desde que seja permitido por lei). Os emissores de papel-moeda não conversível podem aumentar a quantidade deste indefinidamente, baixando seu valor e subindo os preços, na mesma proporção; em outros termos, os emissores podem depreciar a moeda ilimitadamente. Esse poder, esteja nas mãos que estiver, constitui um mal intolerável. Todas as variações do valor do meio circulante são prejudiciais: perturbam os contratos existentes e as expectativas, e a possibilidade de tais mudanças torna inteiramente precário qualquer compromisso pecuniário para longo prazo. A pessoa que compra para si, ou dá a outra, uma unidade de 100 libras, não sabe se, dentro de alguns anos, essa quantia equivalerá a 200 ou a 50 libras. Se esse mal já seria grande no caso de depender de um evento casual, ele é ainda maior quando colocado à disposição arbitrária de um indivíduo ou de um conjunto de indivíduos, os quais podem ter qualquer tipo ou grau de interesse a ser beneficiado por uma flutuação artificial de valores, e em todo caso têm forte interesse em emitir o máximo possível, pois toda emissão representa por si mesma uma fonte de lucro. Acresce ainda que os emissores podem ter — e no caso de papéis emitidos pelo Governo, sempre têm — interesse direto em fazer baixar o valor da moeda, pois é com ela que se medem as suas próprias dívidas. § 2. Para que o valor da moeda esteja a salvo de alterações propositais, e para que sejam reduzidas ao mínimo as possibilidades de flutuação fortuitas, todos os países civilizados fizeram com que os artigos menos sujeitos a flutuações de valor do que todas as outras mercadorias conhecidas, a saber, os metais preciosos, constituíssem o padrão de valor para o meio circulante, não devendo existir nenhum papel-moeda cujo valor não se possa fazer equivaler ao deles. Essa norma fundamental não tem sido perdida de vista nem mesmo pelos governos que mais têm abusado do poder de criar papel-moeda inconversível. Se não tiverem professado (mas em geral o têm feito) intenção de pagar em moeda sonante, em data futura indefinida, no mínimo, pelo fato de darem às suas emissões de papel os nomes de suas moedas respectivas, têm feito uma profissão virtual, ainda que geralmente falsa, de pretenderem manter esse papel-moeda em um valor correspondente ao das moedas metálicas. Isso é exequível, mesmo com um papel-moeda inconversível. Certamente não há, no caso, o impedimento automático inerente à moeda conversível. Mas há indicação clara e inequívoca, com base na qual se pode julgar se a moeda está depreciada, e em que medida. Essa indicação é o preço dos metais preciosos. Quando os portadores de papel-moeda não têm condições de exigir moeda metálica para ser convertida em metal em barras, e quando não há mais moeda metálica em circulação, o metal em barras sobe e baixa de preço como outras coisas, e se estiver acima do preço da Casa da Moeda, ou seja, se uma onça de ouro, que seria cunhada no equivalente a £ 3 17 s. 10 1/2 d., for vendida por 4 ou 5 libras em papel, o valor da moeda desceu exatamente neste montante abaixo do que seria o valor de uma moeda metálica. Se, portanto, a emissão de papel-moeda inconversível fosse sujeita a normas rigorosas — uma das quais estabelecesse que, toda vez que o metal em barras subisse acima do preço da Casa da Moeda as emissões devessem restringir-se até coincidirem novamente o preço de mercado do metal em barras e o seu preço na Casa da Moeda —, em tais condições, esse tipo de moeda não estaria sujeito a nenhum dos males que costumeiramente são considerados inerentes a um papel inconversível. Contudo, mesmo tal sistema monetário não apresentaria vantagens suficientes para recomendar sua adoção. Uma moeda inconversível, regulada pelo preço do metal não cunhado, acompanharia exatamente todas as variações de um papel-moeda conversível, e a única vantagem que se ganharia, consistiria em se estar isento da necessidade de guardar uma reserva dos metais preciosos — o que não é uma consideração muito importante, sobretudo porque um governo, enquanto sua boa-fé não for suspeita, não precisa manter uma reserva tão grande quanto emissores particulares, por não estar tão sujeito a demandas grandes e repentinas, pois nunca pode haver dúvida real sobre sua solvência. Contra essa pequena vantagem deve-se colocar, em primeiro lugar, a possibilidade de forçar fraudulentamente o preço do metal em barras, para agir sobre a moeda — na forma de vendas fictícias de cereais, para influenciar as médias, artifício que provocou tantas queixas justas durante a vigência das leis que impunham restrições à comercialização de cereais. Mas uma consideração ainda mais forte é a importância de se apegar a um princípio simples, compreensível à inteligência de nível mais baixo. Todos são capazes de entender a conversibilidade; todos são capazes de enxergar que aquilo que a qualquer momento pode ser trocado por 5 libras vale 5 libras. Já uma regulagem com base no preço do metal em barras é um conceito mais complexo, e não tem a seu favor as mesmas associações de ideias familiares a todos. O público em geral nem de longe teria em uma moeda inconversível regulada dessa maneira a mesma confiança que tem em um papel-moeda conversível, e mesmo a pessoa mais instruída poderia com razão duvidar se tal norma teria a mesma probabilidade de adesão incondicional. Pelo fato de os motivos da norma não serem tão bem entendidos pelo público, este provavelmente não a faria valer com tanta firmeza, e, no momento em que surgissem dificuldades, provavelmente se voltaria contra ela; por outro lado, para o próprio Governo, uma suspensão da conversibilidade seria uma medida muito mais forte e mais extremada do que um abrandamento daquilo que poderia ser considerado como uma norma algo artificial. Há, pois, grande preponderância de razões a favor de um papel-moeda conversível de preferência a um papel-moeda inconversível, mesmo que este fosse o mais bem regulamentado. É tão grande a tentação de emitir em excesso, em determinadas emergências financeiras, que não se admite nada que possa tender, no menor grau que seja, a abrandar os obstáculos que limitam tal emissão excessiva. § 3. Embora nenhuma doutrina da Economia Política se fundamente em razões mais óbvias do que o mal de um papel-moeda que não mantenha o mesmo valor que uma moeda metálica, seja pela conversibilidade, seja por algum princípio de limitação equivalente a ela, e embora, portanto, essa doutrina tenha sido martelada razoavelmente bem na cabeça do público, ainda que somente após as discussões que se prolongaram por muitos anos, não obstante tudo isso, ainda há muitos que discordam dela, e a cada momento surgem especuladores apresentando planos para curar todos os males econômicos da sociedade, mediante emissão ilimitada de papel-moeda inconversível. Em verdade, a ideia tem grande atrativo. Poder pagar a dívida da nação, cobrir as despesas de Governo sem impor novos tributos, e, em suma, promover a opulência de toda a comunidade, é uma perspectiva brilhante, se alguém puder acreditar que tudo isso se consegue simplesmente imprimindo uns poucos caracteres em pedaços de papel. Não se poderia esperar mais do que isso da pedra filosofal. Todavia, já que tais projetos, embora já tenham sido muitas vezes eliminados, ressuscitam sempre de novo, não será desnecessário examinar uma ou duas das falácias de que se valem os intrigantes. Uma das mais comuns é a afirmação de que a emissão de papel-moeda não pode ser considerada excessiva enquanto cada nota emitida representar propriedade ou tiver um fundamento de propriedade efetiva sobre o qual repousa. Estas palavras — representar e repousar — raramente traduzem algum conceito claro ou bem definido; quando o traduzem, não significam mais do que isto: que os emissores do papel-moeda devem ter propriedade, seja pertencente a eles mesmos, seja a eles confiada, no valor de todas as notas que emitirem; embora não seja muito claro com qual finalidade. Com efeito, se o portador não puder ter direito a essa propriedade em troca das citadas notas, é difícil adivinhar de que maneira a mera existência dessa propriedade servirá para sustentar o valor das notas. Presumo, porém, que a tal propriedade seja entendida como uma garantia de que os portadores das cédulas serão ao final reembolsados, no caso de o negócio todo falir, por efeito de algum evento infausto. Com base nessa teoria, têm surgido muitos projetos no sentido de “cunhar toda a terra do país em dinheiro”, e similares. Na medida em que essa ideia tem algo de racional, ela parece originar-se no fato de se confundirem dois males completamente diferentes, aos quais está sujeita uma moeda em papel. Um deles é a insolvência dos emissores, a qual, se o papel se basear no crédito deles — se equivaler a qualquer promessa de pagamento em dinheiro, seja no momento do pedido, seja em qualquer data futura —, naturalmente priva o papel de qualquer valor que ele possa derivar de tal promessa. A esse mal está sujeito igualmente o crédito em papel, por mais moderadamente que ele seja usado; e contra isso, uma cláusula de que todas as emissões devem ser “fundadas em propriedade”, como, por exemplo, que as notas só devem ser emitidas com base no título de alguma coisa de valor expressamente penhorada para o pagamento das mesmas, seria realmente eficaz como uma precaução. Mas a teoria não leva em conta outro mal, que afeta as notas até mesmo da firma, empresa ou governo mais sólidos: o fato de o valor dessas notas depreciar-se por serem emitidas em quantidade excessiva. Os assignats (Títulos de garantia baseados em bens imóveis), durante a Revolução Francesa, constituíram um exemplo de uma moeda baseada nesses princípios. “Representavam” um montante imenso de propriedade de alto valor, isto é, as terras da Coroa, da Igreja, dos mosteiros e dos emigrantes, totalizando possivelmente a metade do território da França. Na verdade, os assignats eram ordens de pagamento ou títulos de transmissão de toda essa massa de terra. O Governo revolucionário teve a ideia de “cunhar” essas terras, transformando-as em dinheiro; mas, para fazer-lhe justiça, temos de dizer que de início não considerou a multiplicação imensa de emissões que eventualmente foi obrigado a fazer, devido ao fracasso de todos os outros recursos financeiros. Imaginou o Governo que os assignats voltariam rapidamente aos emissores, em troca de terra, e que poderia reemiti-los continuamente, até se venderem todas as terras, sem se ter em momento algum mais do que uma quantidade bem modesta desses assignats em circulação. Sua expectativa foi frustrada: a terra não foi vendida tão rapidamente como o Governo esperava; os compradores não mostravam propensão a investir seu dinheiro em posses que provavelmente lhes seriam tomadas sem compensação, se a Revolução fracassasse; os pedaços de papel que representavam terra, pelo fato de se multiplicarem prodigiosamente, não tinham condições de manter seu valor, como não poderia manter seu valor a terra, no caso de ser posta à venda em sua totalidade e de uma só vez; e o resultado foi que, ao final, se necessitava de um assignat de 600 francos para pagar uma libra-peso de manteiga. Tem-se afirmado que o exemplo dos assignats não é concludente, porque o assignat apenas representava terra em geral, e não uma quantidade definida de terra. Afirma-se que para evitar a depreciação desses títulos, a medida acertada teria consistido em fazer uma avaliação de toda a propriedade confiscada, verificando seu valor em moeda metálica, e emitir assignats até apenas esse limite, dando aos portadores direito de exigir qualquer área de terra, em seu valor registrado, em troca de assignats no mesmo montante. Não há como questionar a superioridade desse plano em relação ao que foi efetivamente adotado. Caso se tivesse adotado esse esquema, os assignats nunca poderiam ter-se depreciado no grau exorbitante em que efetivamente se depreciaram, pois — uma vez que teriam mantido todo o seu poder de compra em relação à terra, por mais que pudessem ter caído em relação a outras coisas — provavelmente teriam sido apresentados para serem trocados por terra antes de terem perdido muito de seu valor de mercado. Todavia, cumpre lembrar que a sua não-depreciação pressuporia que não continuasse em circulação um número de assignats superior ao número que teria circulado se os assignats tivessem sido conversíveis em dinheiro. Por isso, por mais conveniente que possa ter sido, em uma época de revolução, esse tipo de papel-moeda, conversível em terra, a pedido, como uma invenção para vender rapidamente grande quantidade de terra com o menor sacrifício possível, é difícil enxergar que vantagem ele teria, como sistema permanente de um país, em relação a uma moeda conversível em moeda metálica. Por outro lado, não há dificuldade alguma em enxergar quais seriam as suas desvantagens, pois o valor da terra varia muito mais que o do ouro e o da prata; além disso, pelo fato de a terra, para a maioria das pessoas, ser antes um incômodo que uma posse desejável — a não ser para ser convertida em dinheiro —, as pessoas estariam sujeitas a uma depreciação muito maior antes de exigirem terra, do que antes de exigirem ouro ou prata. (Entre as artimanhas monetárias às quais, por estranho que pareça, autores inteligentes comprovadamente deram sua aprovação, mencionamos uma: que o Estado receba, em garantia ou hipoteca, qualquer tipo ou montante de propriedade, tal como terra, capital etc., adiantando aos proprietários papel-moeda inconversível, no valor estimado. Tal moeda não teria sequer as vantagens dos assignats imaginários supostos no texto, pois aqueles que recebessem de outras pessoas essas notas não poderiam devolvê-las ao Governo, e exigir em troca terra ou capital, por estarem estes apenas penhorados, e não alienados. Não haveria nenhum retorno de assignats desse gênero, e sua depreciação seria ilimitada). § 4. Outra falácia com a qual argumentam os defensores de um papel-moeda inconversível é a ideia de que um aumento da moeda estimula a trabalhar mais. Essa ideia foi lançada por Hume, em seu Essay sobre o dinheiro, e sempre teve muitos defensores dedicados — testemunha disso é a escola monetária de Birmingham, da qual o sr. Attwood já foi o representante mais ilustre. O sr. Attwood sustentava que um aumento de preços, gerado por um aumento de papel-moeda, estimula todo produtor a trabalhar ao máximo, e faz com que se aplique plenamente todo o capital e toda a mão-de-obra do país; afirmava também que isso aconteceu invariavelmente em todos os períodos de preços altos, quando o aumento ocorria em escala suficientemente grande. Entretanto, presumo que o estímulo que, segundo o sr. Attwood, suscitou esse fervor incomum de todos os engajados na produção, deve ter sido a expectativa de conseguirem mais mercadorias em geral, mais riqueza real, em troca da produção de seu trabalho, e não apenas mais pedaços de papel. Ora, essa expectativa, pelas próprias condições da suposição, deve ter sido frustrada, pois, supondo-se que todos os preços subiram igualmente, na realidade ninguém recebia mais do que antes pelas suas mercadorias. Os que concordam com o sr. Attwood só conseguiriam ganhar adeptos para a sua causa de trabalhar dessa maneira estranha, prolongando aquilo que, na realidade, seria uma ilusão — fazendo as pessoas imaginarem que, com uma alta progressiva dos preços em dinheiro, todo produtor sempre parece estar conseguindo uma remuneração maior, a qual na realidade jamais obtém. É desnecessário advertir para quaisquer outras das objeções que essa ideia suscita, a não ser a sua total impraticabilidade. Segundo essa ideia, o mundo todo persiste para sempre na crença de que mais pedaços de papel equivalem a mais riqueza, sem que as pessoas descubram que, com todo o seu papel-moeda, não podem comprar quantidade maior de nenhuma mercadoria do que anteriormente. Nenhum desses erros foi cometido durante um dos períodos de preços altos, se bem que essa escola dê tanta ênfase à experiência desses períodos. Nos períodos que o sr. Attwood confunde com tempos de prosperidade, e que na realidade foram simplesmente períodos de especulação (como têm de ser necessariamente todos os períodos de preços altos, no regime de um papel-moeda conversível), os especuladores não pensavam que ficariam ricos pelo fato de durarem os altos preços, mas exatamente porque esses altos preços não durariam, e porque toda pessoa que conseguisse ganhar enquanto durassem, após a queda dos preços se encontraria na posse de uma quantidade maior de libras esterlinas, sem que estas tivessem baixado de valor. Se, ao terminar a especulação, se tivesse feito uma emissão de papel-moeda, suficiente para manter os preços no nível que haviam atingido quando subiram ao máximo, ninguém teria sofrido maior decepção do que os especuladores — pois os ganhos que haviam pensado auferir, vendendo em tempo (à custa de seus concorrentes, que compravam quando eles vendiam, e tinham que vender após a reviravolta dos preços), teriam desaparecido de suas mãos, e em seu lugar não teriam outra coisa senão algumas cédulas a mais para contar. A versão dada por Hume a essa doutrina difere levemente da do sr. Attwood. Pensava ele que não há alta de preço de todas as mercadorias simultaneamente, e que por isso algumas pessoas obteriam um ganho real, recebendo mais dinheiro por aquilo que tinham para vender, enquanto as coisas que desejavam comprar poderiam ainda não ter subido de preço. E os que aufeririam esse lucro seriam sempre (assim parece ele pensar) os primeiros a chegar. Entretanto, parece óbvio que, para toda pessoa que dessa maneira ganha mais do que o normal, existe necessariamente alguma outra que ganha menos. Se as coisas acontecessem como supõe Hume, quem perderia seria o que vende as mercadorias que mais demoram para subir de preço — este, nesta suposição, vende suas mercadorias aos preços velhos, a compradores que já se beneficiaram dos preços novos. Esse vendedor conseguiu pela sua mercadoria apenas a quantidade habitual de dinheiro, enquanto já existem no mercado algumas coisas das quais, com esse dinheiro, já não se pode comprar uma quantidade tão grande como antes. Se, portanto, ele souber o que está acontecendo, levantará seu preço, e então o comprador não terá aquele ganho que supostamente estimula a trabalhar mais. Mas se, ao contrário, o vendedor não conhece a situação, e só a descobre quando verifica, ao gastar seu dinheiro, que este não é suficiente, nesse caso ele recebe menos do que a remuneração normal por seu trabalho e por seu capital; e se o trabalho de outros comerciantes é estimulado, parece que o dele deve ser prejudicado, pela razão oposta. § 5. Não há meio de um aumento geral e permanente dos preços, ou, em outras palavras uma depreciação do dinheiro, beneficiar quem quer que seja, a não ser à custa de outrem. A substituição de dinheiro metálico por papel-moeda é um ganho para a nação, mas qualquer aumento de papel-moeda além desse limite não passa de uma forma de roubo. A emissão de notas é um ganho manifesto para os que emitem, os quais, enquanto as notas não forem devolvidas para pagamento, se beneficiam delas como se fossem um capital real; e enquanto as notas não representarem um acréscimo permanente à moeda em circulação, mas apenas substituírem ouro ou prata no mesmo montante, o ganho auferido pelo emissor não representa perda para ninguém; o ganho é obtido economizando para a comunidade o gasto do material mais caro. Mas se não houver ouro ou prata a ser substituído — se as notas forem acrescentadas à moeda corrente, em vez de substituírem a porção de moeda metálica — todos os que possuem moeda saem perdendo, pela depreciação de seu valor, o equivalente exato daquilo que o emissor está ganhando. Cobra-se virtualmente um imposto sobre as notas, para beneficiar o emitente. Alguns objetarão que ganham também os produtores e distribuidores, os quais, devido a esse aumento de emissão, são servidos com empréstimos. Acontece, porém, que o ganho deles não é um ganho adicional, mas uma parte daquilo que é ganho pelo emitente à custa de todos os que possuem dinheiro. Os lucros decorrentes da contribuição cobrada do público, o emitente das notas não o retém só para si, mas divide com seus clientes. Aliás, além do benefício colhido pelos que emitem papel-moeda, ou por outros por intermédio deles, às expensas do público em geral, há outro ganho injusto obtido por uma classe mais numerosa, a saber, os que têm obrigações pecuniárias fixas. Uma depreciação da moeda liberta todas essas pessoas de parte do ônus de suas dívidas ou de outros compromissos: em outras palavras, parte da propriedade de seus credores é transferida gratuitamente a eles. De um ponto de vista superficial, pode-se imaginar que isso represente uma vantagem para o trabalho, já que as classes produtivas são grandes tomadoras de empréstimos, e geralmente devem às classes improdutivas (se incluirmos nestas últimas todas as pessoas não efetivamente engajadas no comércio) mais do que estas devem a elas, sobretudo se incluirmos a dívida nacional. Somente assim um aumento geral de preços pode ser fonte de benefícios para produtores e comerciantes, isto é, diminuindo a pressão de seus ônus fixos. E isso poderia ser computado como uma vantagem, se a integridade e a boa-fé não tivessem nenhuma importância para o mundo, e para a indústria e o comércio em particular. No entanto, não têm sido muitos os que dizem que a moeda deve ser depreciada pelo simples motivo de ser coisa desejável roubar do credor nacional e dos credores particulares parte daquilo que por título lhes pertence. As maquinações que vão nessa linha quase sempre mostraram alguma aparência de justificação especial e circunstancial, tal como a necessidade de compensar uma injustiça anterior, cometida na direção oposta. § 6. Assim, na Inglaterra, por muitos anos depois de 1819, houve quem afirmasse com pertinácia que grande parte da dívida nacional e uma infinidade de dívidas particulares ainda existentes haviam sido contraídas entre 1797 e 1819 quando o Bank of England estava isento da obrigação de trocar suas notas por dinheiro vivo e que é uma grande injustiça obrigar os tomadores de empréstimos (isto é, no caso da dívida nacional, todos os pagadores de impostos) a pagar juros sobre as mesmas somas nominais em uma moeda de valor pleno, que haviam sido tomadas em uma moeda depreciada. Segundo as ideias e os objetivos do depreciador, afirmou-se que a depreciação foi, em média, de 30, 50, ou até mais do que 50%; e a conclusão era de que, ou se deve voltar a essa moeda depreciada, ou então se deve deduzir da dívida nacional, de hipotecas ou de outras dívidas privadas de origem antiga uma percentagem correspondente ao montante estimado da depreciação. A essa doutrina, a resposta que se costumava dar era a que segue. Admitindo-se que, voltando aos pagamentos em dinheiro vivo, sem baixar o padrão monetário, se cometia injustiça com os devedores — considerando-os devedores do mesmo montante de uma moeda de valor superior, moeda essa que haviam tomado enquanto estava depreciada — agora é tarde demais para reparar essa injustiça. Os devedores e os credores de hoje não são os devedores e os credores de 1819: o lapso de anos alterou inteiramente as relações pecuniárias da comunidade, e sendo hoje impossível verificar as pessoas específicas que foram beneficiadas ou prejudicadas, tentar corrigir o passado não seria reparar um erro, mas acrescentar um segundo ato de injustiça generalizada à injustiça já cometida. Esse argumento é certamente concludente no que tange ao problema prático, mas fundamenta essa conclusão honesta em uma base muito estreita e muito fraca. Reconhece-se que a medida de 1819, denominada Peel’s Bill, em virtude da qual se adotaram novamente os pagamentos em moeda, ao padrão original de £ 3 17 s. 10 1/2 d., foi realmente a injustiça que diziam ser. Ora, esse reconhecimento se opõe totalmente à verdade. O Parlamento não tinha alternativa; estava absolutamente obrigado a aderir ao padrão reconhecido, como se pode mostrar com base em três razões distintas, ou seja, duas de fato e uma de princípio. As razões de fato são as seguintes. Em primeiro lugar, não é verdade que as dívidas, privadas ou públicas, incorridas durante a restrição ao Bank of England, foram contraídas em uma moeda de valor inferior ao daquela na qual os juros são hoje pagos. É verdade, sim, que a suspensão da obrigação de pagar em moeda sonante deu a esse banco o poder de depreciar a moeda. É também verdade que o banco realmente exerceu tal poder, embora em extensão bem menor do que muitas vezes se pretende, já que a diferença entre o preço de mercado do ouro e sua avaliação pela Casa da Moeda, durante a maior parte desse intervalo, foi muito insignificante, e quando atingiu o máximo, durante os cinco últimos anos da guerra, não ultrapassou muito os 30%. Na medida dessa diferença, a moeda foi depreciada, isto é, seu valor estava abaixo do padrão ao qual professava aderir. Contudo, a situação da Europa na época era tal, com uma absorção incomum dos metais preciosos, por entesouramento e pelos cofres militares dos grandes exércitos que então desolavam o continente europeu, que o valor do próprio padrão subira muitíssimo, e as maiores autoridades, entre as quais é suficiente mencionar o sr. Tooke, se convenceram, depois de investigação acurada, de que a diferença entre o papel-moeda e o metal em barras não era superior ao aumento do valor do próprio ouro, e de que o papel-moeda, embora depreciado em relação ao que era então o valor do ouro, não desceu abaixo do valor normal, em outras épocas, seja do ouro, seja de um papel conversível. Se isso for verdade (e a evidência do fato está atestada concludentemente na History of Prices do sr. Tooke), está destruído o fundamento de todas as alegações feitas contra o proprietário de fundos e outros credores, com base na depreciação. Em segundo lugar, mesmo que a moeda tivesse realmente baixado de valor em cada período da referida restrição bancária, no mesmo grau em que foi depreciada em relação ao seu padrão, devemos lembrar que somente parte da dívida nacional, ou de outros compromissos permanentes, foi contraída durante a vigência da mencionada restrição. Grande parte havia sido contraída antes de 1797; uma parte ainda maior fora contraída durante os primeiros anos da restrição, quando era ainda pequena a diferença entre o papel-moeda e o ouro. Em relação aos donos da primeira parte, cometeu-se injustiça, pagando os juros por 22 anos em uma moeda depreciada; os da segunda sofreram injustiça durante os anos em que os juros foram pagos em moeda mais depreciada do que aquela na qual os empréstimos haviam sido contraídos. Retomar os pagamentos em moeda sonante, a um padrão mais baixo, equivaleria a perpetuar a injustiça a essas duas categorias de credores, a fim de evitar outorgar um benefício indevido a uma terceira classe, que havia emprestado seu dinheiro durante os poucos anos da depreciação máxima. Assim sendo, houve um pagamento abaixo do devido, a uma categoria de pessoas, e um pagamento acima do devido, a outra. O falecido sr. Mushet deu-se ao trabalho de fazer uma comparação aritmética entre os dois montantes. Mediante cálculos, verificou que, se se tivesse efetuado um cálculo em 1819 do que os donos de fundos haviam ganho e perdido com a variação do papel-moeda em relação a seu padrão, se teria verificado que, no conjunto, saíram perdendo, de sorte que, se alguma compensação era devida, com base na depreciação, ela deveria ter sido prestada não pelos donos de fundos coletivamente, mas em favor deles. Isso quanto aos fatos. Mas essas razões de fato não são as mais fortes. Há uma razão de princípio, ainda mais poderosa. Suponhamos que, não somente parte da dívida, mas toda ela tivesse sido contraída em uma moeda depreciada, e depreciada não somente em comparação com seu padrão, mas também em relação ao seu próprio valor antes e depois; e que estivéssemos hoje pagando os juros sobre essa dívida em uma moeda valendo 50 ou mesmo 100% mais do que aquela na qual a dívida foi contraída. Que diferença faria isso na obrigação de pagá-la, se a condição de a pagar dessa forma fizesse parte do acordo original? Acontece que isso é menos que a verdade. O contrato estipulou para o dono condições melhores do que aquelas que ele recebeu efetivamente. Durante toda a vigência da mencionada restrição bancária, o Parlamento deu uma garantia, pela qual se obrigava, tanto quanto qualquer legislatura é capaz de comprometer-se, a que os pagamentos em moeda sonante recomeçariam, na base original, no máximo dentro de seis meses após a conclusão de uma paz geral. Portanto, isso foi uma condição efetiva de cada empréstimo, e as condições do empréstimo eram mais favoráveis por essa razão. Sem alguma estipulação desse gênero, o Governo não poderia ter esperado tomar empréstimos, a não ser nas condições em que se concedem empréstimos aos príncipes nativos da Índia. Caso se tivesse compreendido e confessado que, depois de tomar emprestado o dinheiro, o padrão ao qual ele seria comutado poderia ser permanentemente baixado, em qualquer medida que pudesse parecer conveniente à “sabedoria coletiva” de um Parlamento composto de tomadores de empréstimos — quem poderia dizer qual taxa de juros teria constituído um estímulo suficiente para pessoas de bom senso arriscarem suas poupanças em tal aventura? Por mais que os donos de fundos tivessem ganho com a retomada dos pagamentos em moeda sonante, as condições do contrato asseguraram que eles pagaram caro essa vantagem. Pagaram mais do que receberam, pois os pagamentos em dinheiro não recomeçaram dentro de seis meses, mas de seis anos, após o advento da paz. Assim sendo, abandonando todos os nossos argumentos, afora o último, e concedendo todos os fatos afirmados do outro lado da questão, os donos de fundos, em vez de serem indevidamente beneficiados, são a parte lesada; e teriam direito à compensação se tais direitos não fossem muito habilmente barrados pela impossibilidade de adjudicação, e pela salutar máxima geral vigente no Direito e na Política: quod interest reipublicae ut sit finis litigium (O interesse da República é o fim das disputas). CAPÍTULO XIV A Oferta Excessiva § 1. Depois da exposição elementar da teoria sobre o dinheiro, contida nos últimos capítulos, voltaremos a uma questão pertinente à teoria geral sobre o valor, que não foi possível analisar satisfatoriamente antes de entendermos até certo ponto a natureza e os efeitos do dinheiro, pois os erros contra os quais temos de lutar se originam sobretudo de um entendimento desses efeitos. Vimos que o valor de cada coisa gravita em direção a determinado ponto médio (que foi denominado valor natural), a saber, aquele pelo qual ela é trocada por qualquer outra coisa, à razão de seus custos de produção. Vimos também que o valor efetivo ou de mercado coincide, ou quase coincide, com o valor natural somente em média de anos, e está continuamente subindo acima dele, ou continuamente descendo abaixo dele, devido a alterações ocorridas na procura, ou flutuações casuais ocorridas na oferta; vimos, porém, que essas variações se autocorrigem devido à tendência que a oferta tem de ajustar-se à procura existente em relação à mercadoria, ao seu valor natural. Assim, temos uma convergência geral, resultante do equilíbrio de divergências opostas. A carestia, ou escassez de um lado, e a oferta excessiva — ou, na linguagem comercial, a saturação — de outro, ocorrem com todas as mercadorias. No primeiro caso, a mercadoria proporciona aos produtores ou vendedores, enquanto a deficiência durar, uma taxa de lucros descomunalmente elevada; no segundo, uma vez que a oferta supera a demanda no nível em que o valor desta proporcionaria o lucro normal, os vendedores têm de contentar-se com menos, e devem, em casos extremos, aceitar uma perda. Já que esse fenômeno da oferta excessiva, e do consequente inconveniente ou perda para o produtor ou distribuidor, pode existir no caso de qualquer mercadoria, muitas pessoas, incluindo alguns economistas políticos conceituados, pensam que ele pode existir em relação a todas as mercadorias, que pode haver uma superprodução generalizada de riqueza, uma oferta de mercadorias que, no conjunto, ultrapassa a procura, e, em consequência, um deterioramento da condição de todas as categorias de produtores. Contra essa doutrina, da qual os principais defensores têm sido, neste país, o sr. Malthus e o dr. Chalmers, e na Europa continental o sr. de Sismondi, já lutei no Livro Primeiro; todavia, naquele estágio de nossa pesquisa não foi possível fazer uma análise completa de um erro (no meu entender) essencialmente baseado em compreensão errônea dos fenômenos do valor e do preço. Parece-me que essa doutrina encerra tanta incoerência em sua própria concepção, que sinto muita dificuldade em fazer qualquer afirmação sobre ela que seja ao mesmo tempo clara e satisfatória para seus defensores. Concordam eles em sustentar que pode haver, e por vezes há, excesso de produtos em geral, que vai além da procura de que são objeto; concordam em que, quando isso acontece, não se consegue encontrar os compradores a preços que compensem o custo de produção com lucro: que em consequência disso ocorre uma queda geral de preços e valores (raramente distinguem com precisão um do outro), de maneira que os produtos, quanto mais produzirem, tanto mais empobrecem, em vez de enriquecerem; e em decorrência disso o dr. Chalmers inculca aos capitalistas a prática de uma limitação moral com referência à busca de ganhos, ao passo que Sismondi conjura as máquinas, bem como as várias invenções que fazem aumentar a força produtiva. Ambos sustentam que a acumulação de capital pode progredir com rapidez excessiva, comprometendo não somente os interesses morais daqueles que produzem e acumulam, mas também os seus interesses materiais; e recomendam aos ricos que se acautelem contra esse mal, encarecendo um amplo consumo improdutivo. § 2. Quando esses autores dizem que a oferta de mercadorias supera a procura, não é claro a qual dos dois elementos da procura se referem: o desejo de possuir, ou os recursos para comprar; não fica claro se o que querem dizer é que há, em tais casos mais produto consumível do que aquilo que o público deseja consumir, ou simplesmente mais do que aquilo que o público tem condições de pagar. Nessa incerteza, impõe-se examinar as duas suposições. Primeiro, suponhamos que a quantidade de mercadorias produzidas não seja superior àquela que a comunidade gostaria de consumir: é possível, nesse caso, haver falta de procura em relação a todas as mercadorias, por falta de recursos para pagar? Os que pensam que sim não podem ter considerado o que constitui os meios de pagamento para mercadorias. Esses meios são as próprias mercadorias. Os meios de pagamento de que cada pessoa dispõe para pagar produtos de outrem consistem nos produtos que ela mesma possui. Todos os vendedores são inevitavelmente compradores, em força do próprio termo. Se pudéssemos subitamente duplicar as forças produtivas do país, dobraríamos a oferta de mercadorias em cada mercado, mas com isso mesmo estaríamos duplicando o poder de compra. Cada pessoa teria procura duplicada, bem como oferta duplicada: cada um teria condições de comprar o dobro, pois cada um teria o dobro a oferecer em troca. Certamente é provável que haveria então excesso de certas coisas. Embora a comunidade como tal gostasse de dobrar seu consumo, no conjunto, ela já pode ter, de certas mercadorias, tanto quanto deseja, e pode preferir mais do que dobrar seu consumo de outras, ou exercer seu maior poder de compra em alguma coisa nova. Se isso acontecer, a oferta se adequará e os valores das coisas continuarão a obedecer ao seu custo de produção. Em qualquer caso, é puro absurdo afirmar que todas as coisas baixariam de valor, e que, consequentemente, todos os produtores teriam remuneração insuficiente. Se os valores permanecerem inalterados, é irrelevante o que acontece com os preços, pois a remuneração dos produtores não depende de quanto dinheiro recebem pelas suas mercadorias, mas da quantidade de artigos de consumo que com elas compram. Além disso, o dinheiro é uma mercadoria; e se supusermos que todas as mercadorias dobram de quantidade, temos de supor que também o dinheiro dobra; nesse caso os preços não cairiam, como não cairiam os valores. § 3. É, portanto, impossível haver oferta excessiva de tudo, ou excesso de todas as mercadorias, além da procura, na medida em que esta consiste em meios de pagamento. Mas talvez se possa supor que o que fica aquém não é a capacidade de compra, mas o desejo de possuir e que a produção do trabalho em geral pode ser superior àquilo que a comunidade deseja consumir — ao menos, aquela parte da comunidade que tem com que pagar. É bastante evidente que a produção gera mercado para a produção, e que há no país riqueza com a qual se pode comprar toda a riqueza do país; mas os que têm os meios podem não ter as necessidades, e os que têm as necessidades podem não ter os meios. Por isso é possível que parte das mercadorias não consiga encontrar mercado, em razão da ausência de meios entre aqueles que têm o desejo de consumir, e em razão da ausência de desejo entre aqueles que têm os meios. Essa é a forma mais plausível da mencionada doutrina; contrariamente à que começamos por examinar, ela não envolve contradição. Facilmente pode haver, de qualquer mercadoria, uma quantidade superior à desejada por aqueles que têm capacidade de comprá-la, sendo também concebível, em abstrato, que isso possa ocorrer com todas as mercadorias. O erro está em não perceber que, embora todos os que têm com que pagar possam já estar de posse de cada artigo de consumo que desejam, o fato de continuarem a aumentar a produção prova que a realidade efetiva não é essa. Suponhamos a hipótese mais favorável para esse fim, a de uma comunidade restrita, em que todos possuem tudo o que desejam em termos de artigos de necessidade e de todos os artigos de luxo conhecidos; e já que não é concebível que pessoas cujas necessidades estão plenamente atendidas trabalhem e economizem para conseguir o que não desejam, suponhamos que chegue um estrangeiro e produza uma quantidade adicional de alguma coisa de que já existia quantidade suficiente. Dir-se-á que aqui temos uma superprodução. Respondo: é verdade; superprodução daquele artigo específico; a comunidade não precisava de quantidade adicional dessa mercadoria, mas precisava de alguma coisa. Sem dúvida, os habitantes antigos não precisavam de nada; mas será que o próprio estrangeiro não precisava de nada? Ao produzir o artigo supérfluo, estava trabalhando sem motivo? Ele produziu, mas a coisa errada, em vez da certa. Ele talvez precisasse de alimentos, e produziu relógios, que todos já possuíam. O recém-chegado trouxe consigo à região uma demanda de mercadorias igual a tudo aquilo que podia produzir com seu trabalho, e era problema dele cuidar que a oferta que trouxe atendesse a essa procura. Se não tinha condições de produzir algo capaz de despertar nova necessidade ou desejo na comunidade, para cujo atendimento alguém cultivasse mais alimentos e lhos desse em troca, tinha a alternativa de cultivar alimentos para si mesmo. Poderia trabalhar em terra nova, se houvesse alguma desocupada, como arrendatário, parceiro ou simples trabalhador de algum ocupante anterior, desejoso de livrar-se de parte do trabalho. Produziu uma coisa de que não havia necessidade, em vez de uma coisa necessária e ele mesmo talvez não seja o produtor de que se precisa. Mas não há superprodução, pois a produção não é excessiva — simplesmente está mal organizada em termos de sortimento. Já vimos que todo aquele que traz novas mercadorias ao mercado, traz novo poder de compra. Agora vemos que traz também novo desejo de consumir, pois, se ele não tivesse esse desejo, não se teria dado ao incômodo de produzir. Portanto, não pode estar faltando nenhum dos componentes da procura, quando há oferta adicional, embora seja perfeitamente possível que a procura seja por uma coisa, e a oferta infelizmente pode consistir em outra. Acuado a esse último refúgio, um objetante pode talvez alegar a existência de pessoas que produzem e acumulam por simples hábito: não porque tenham algum objetivo de enriquecer, ou desejem aumentar sob algum aspecto seu consumo, mas por força da inércia. Continuam a produzir porque a máquina já está pronta para operar, e economizam e reinvestem suas poupanças por não terem nada em que gastá-las. Concedo que isso é possível, e em alguns poucos exemplos provavelmente acontece; mas isso em nada afeta a nossa conclusão. O que fazem essas pessoas com suas poupanças? Investem-nas produtivamente, isto é, gastam-nas para empregar mão-de-obra. Em outros termos, por terem poder de compra próprio — superior àquele com o qual sabem o que fazer — transferem o excedente desse poder de compra para o benefício geral da classe trabalhadora. Pergunto agora: será que também essa classe não sabe o que fazer com isso? Teremos que supor que ela também tem suas necessidades perfeitamente atendidas, e continuam a trabalhar simplesmente por hábito? Enquanto isso não ocorrer, enquanto também as classes trabalhadoras não tiverem atingido o ponto de saciedade, não haverá falta de procura pela produção do capital, por mais rápido que seja a acumulação deste; com efeito, se não houver outra coisa que fazer com ele, sempre o capital pode ser empregado em produzir os artigos de primeira necessidade ou artigos de luxo para a classe trabalhadora. E quando também essa classe já não desejar esses artigos, ela terá o benefício de qualquer ulterior aumento de salários para reduzir seu trabalho; dessa forma, a superprodução que só assim seria pela primeira vez idealmente possível, não ocorreria na realidade, por falta de trabalhadores. Portanto, de qualquer modo que examinemos a questão, mesmo que cheguemos ao limite extremo da possibilidade de inventar uma suposição favorável a ela, a teoria da superprodução geral implica um absurdo. § 4. Por que então homens que refletiram muito sobre os fenômenos econômicos e até contribuíram para projetar nova luz sobre eles, com elaborações originais, foram levados a abraçar uma doutrina tão irracional? Entendo que se deixaram aqui enganar por uma interpretação errônea de certos fatos comerciais. Imaginaram provada pela experiência a possibilidade de uma oferta geral excessiva de mercadorias. Acreditaram observar esse fenômeno em certas condições dos mercados, cuja explicação verdadeira é, porém, totalmente diferente. Já descrevi a situação dos mercados de bens, que acompanha o que se chama de crise comercial. Em tais condições, há realmente excesso de todas as mercadorias, que ultrapassa a demanda de dinheiro: em outras palavras, há oferta excessivamente pequena de dinheiro. Devido à aniquilação repentina de grande massa de crédito, cada um tem medo de desfazer-se do dinheiro disponível, e muitos se ufanam em consegui-lo a qualquer sacrifício. Por isso, quase todos se transformam em vendedores, e dificilmente há compradores; assim sendo, pode realmente haver, ainda que somente enquanto dura a crise, uma baixa extrema dos preços em geral, em razão do que se pode indiscriminadamente chamar de supersaturação de mercadorias ou carestia de dinheiro. Mas constitui grande erro supor, como Sismondi, que uma crise comercial seja o efeito de um excesso geral de produção. É simplesmente a consequência de um excesso de compras, feitas para especular. Não é um advento gradual de preços baixos, mas uma baixa repentina a partir de preços descomunalmente altos; sua causa imediata é uma restrição do crédito, e o remédio consiste não em diminuir a oferta, mas no restabelecimento da confiança. É outrossim evidente que essa perturbação temporária dos mercados é um mal somente por ser temporária. Pelo fato de baixarem apenas os preços em dinheiro, se os preços não subissem novamente, nenhum distribuidor sairia perdendo, pois o preço mais baixo valeria, para ele, tanto quanto anteriormente valia o preço mais alto. De maneira alguma esse fenômeno corresponde à descrição que esses renomados economistas fizeram do mal da superprodução. O declínio permanente da situação dos produtores, por falta de mercados, que esses autores têm em vista é uma concepção que não encontra suporte na natureza de uma crise comercial. O outro fenômeno, no qual parece fundar-se a noção de um excesso geral de riqueza e de um excesso de acúmulo, é de natureza mais permanente, a saber, a queda de lucros e de juros que naturalmente ocorre com o aumento da população e da produção. A causa desse declínio dos lucros está no custo maior da manutenção de mão-de-obra, que resulta de um aumento da população e da procura de alimentos, sobrepujando o progresso dos aperfeiçoamentos agrícolas. Essa característica importante do progresso econômico das nações será plenamente considerada e discutida no Livro Quarto. Trata-se, é óbvio, de uma coisa inteiramente diversa de uma falta de mercado para mercadorias, ainda que muitas vezes seja confundida com ela, nas queixas das classes produtoras e comerciais. A interpretação verdadeira da conjuntura moderna ou atual da economia industrial é a seguinte: dificilmente há algum montante de negócios que não se possa fazer, se as pessoas se contentarem em fazê-lo com lucros pequenos, e isso o sabem perfeitamente todas as pessoas ativas e inteligentes; mas mesmo aqueles que concordam com as necessidades de seu tempo reclamam contra as coisas com as quais concordam, e gostariam que houvesse menos capital, ou, como se exprimem, menos concorrência, para que pudesse haver lucros maiores. Acontece que lucros baixos são uma coisa diferente de falta de procura, e a produção e o acúmulo que apenas reduzem os lucros não podem ser chamados de excesso de oferta ou de produção. Quando tratarmos explicitamente desse tema, veremos em que consiste realmente o fenômeno, bem como seus limites necessários e efeitos. Não conheço quaisquer outros fatos econômicos, exceto os dois que especifiquei, que possam ter dado origem à opinião de que uma superprodução geral de mercadorias tenha ocorrido efetivamente alguma vez. Estou convencido de que não há fato algum no mundo do comércio que, para ser explicado, precise recorrer a essa suposição quimérica. Esse ponto é fundamental. Qualquer diferença de opinião em relação a ele envolve concepções radicalmente diferentes de Economia Política, sobretudo em sua dimensão prática. Adotando-se um ponto de vista, a única coisa que temos de considerar é como se pode combinar uma produção suficiente com a melhor distribuição possível; se, porém, adotarmos o outro ponto de vista, há um terceiro aspecto a ser considerado, a saber, como se pode criar um mercado para a produção, ou como se pode limitar a produção às capacidades do mercado. Além disso, não se pode adotar uma teoria tão basicamente contraditória sem causar confusão no próprio âmago da questão, impossibilitando até mesmo entender com clareza muitos dos mecanismos econômicos mais complexos da sociedade. Em meu entender, esse erro tem sido fatal para os sistemas, como tais, dos três renomados economistas aos quais anteriormente me referi: Malthus, Chalmers e Sismondi. Os três entenderam e explicaram admiravelmente vários dos teoremas elementares da Economia Política, mas esse equívoco fatal se estendeu como um véu entre eles e as partes mais difíceis dessa ciência, não deixando penetrar um único raio de luz. Mais ainda, essa mesma ideia confusa está continuamente interferindo e confundindo as especulações de inteligências inferiores às deles. Não faremos mais do que justiça a dois nomes eminentes, se chamarmos a atenção para o fato de que o mérito de haver colocado esse ponto importantíssimo em sua verdadeira luz pertence sobretudo, na Europa continental, ao criterioso J.-B. Say, e neste país, ao sr. [James] Mill. Este último (além da exposição conclusiva que fez sobre esse assunto em seus Elements of Political Economy) havia formulado a doutrina correta com grande vigor e clareza em um folheto anterior, provocado por uma controvérsia temporária e intitulado Commerce Defended — o primeiro de seus escritos que conseguiu alguma celebridade, e que o autor mais apreciou pelo fato de ter representado o início da amizade com David Ricardo, o amigo mais valioso e mais íntimo de sua vida. CAPÍTULO XV Uma Medida para Aferir o Valor § 1. Há muita discussão entre os economistas políticos em torno de uma medida para aferir o valor. Atribui-se ao assunto importância maior do que a merecida, e o que se tem escrito sobre isso tem contribuído não pouco para a censura de logomaquia, que se tem assacado, com muito exagero mas não totalmente sem motivo, às especulações dos economistas políticos. É necessário, no entanto, tocar no assunto, mesmo que seja apenas para mostrar quão pouco se pode dizer sobre isso. Uma medida do valor, na acepção comum do termo medida, é algo que, mediante comparação, permite determinar o valor de qualquer coisa. Se aprofundarmos o nosso exame, considerando que o próprio valor é relativo, e que para constituí-lo são necessárias duas coisas — independentemente da terceira, que serve para aferi-lo —, podemos definir medida do valor como sendo alguma coisa que, comparando-se com ela quaisquer outras duas coisas, permite determinar o valor recíproco dessas duas coisas. Nesse sentido, qualquer mercadoria servirá como medida de valor em determinado tempo e lugar, pois sempre podemos inferir a proporção em que as coisas são trocáveis uma pela outra, quando conhecemos a proporção em que cada uma das duas é trocável por qualquer terceira coisa. Servir como medida adequada de valor é uma das funções da mercadoria escolhida como instrumento de troca. É em termos dessa mercadoria que normalmente se avaliam os valores de todas as demais coisas. Dizemos que uma coisa vale 2 libras e outra vale 3 libras, e sabemos então, sem afirmarmos expressamente, que uma vale 2/3 do que vale a outra, ou seja, que as duas coisas são trocáveis uma pela outra na proporção de 2 para 3. O dinheiro é uma medida completa do valor dessas coisas. Mas o que os economistas políticos desejam não é uma medida de valor das coisas no mesmo tempo e lugar, mas uma medida do valor de determinada coisa em tempos e lugares diferentes: algo que, por comparação, permita saber se determinada coisa vale mais ou menos do que há um século, ou se vale mais ou menos neste país do que na América ou na China. E também para isso o dinheiro, ou qualquer outra mercadoria, servirá tão bem como se fosse no mesmo tempo e lugar, desde que consigamos obter os mesmos dados, desde que possamos comparar com a medida não apenas uma mercadoria, mas as duas ou mais que são necessárias para a ideia de valor. Se o trigo vale atualmente 40 xelins o quarter, e uma ovelha gorda vale o mesmo, e se no tempo de Henrique II o trigo valia 20 xelins e uma ovelha 10 xelins, sabemos que um quarter de trigo valia então duas ovelhas, e agora só vale uma, e que, portanto, o valor de uma ovelha, avaliado em trigo, é o dobro do que era naquela época. Sabemos isso independentemente do valor do dinheiro nas duas épocas, quer em relação a essas duas mercadorias (supomos que o valor do dinheiro baixou em relação a ambas), quer em relação a outras mercadorias com respeito às quais não precisamos fazer suposição alguma. No entanto, os autores que escrevem sobre o assunto parecem desejar um meio para determinar o valor de uma mercadoria pela simples comparação com a medida, sem colocá-la em referência especial com qualquer outra mercadoria determinada. Partindo do simples fato de que o trigo hoje vale 40 xelins o quarter, e anteriormente valia 20 xelins, esses autores gostariam de decidir se o valor do trigo mudou, e em que grau, e isso sem escolher uma segunda mercadoria, como uma ovelha, para compará-lo com o valor dela. Esses autores não desejam saber quanto mudou o valor do trigo em relação à ovelha, mas em relação às coisas em geral. O primeiro obstáculo provém da indefinição obrigatória da ideia de valor de troca em geral — não o valor em relação a alguma mercadoria específica, mas em relação às mercadorias em geral. Mesmo que soubéssemos exatamente quanto se teria podido comprar, no período anterior, com um quarter de trigo, de cada artigo comerciável considerado isoladamente, e soubéssemos que com esse quarter de trigo atualmente se pode comprar mais de algumas coisas e menos de outras, muitas vezes constataríamos ser impossível dizer se o trigo subiu ou baixou em relação às coisas em geral. Tanto mais impossível será, se soubermos apenas até que ponto variou em relação à medida. Para que, com o preço em dinheiro de uma coisa em duas épocas diferentes, se possa medir a quantidade de coisas em geral pelas quais ela é trocável, a mesma soma de dinheiro deveria corresponder, nas duas épocas, à mesma quantidade de coisas em geral, isto é, o dinheiro deveria ter sempre o mesmo valor de troca, o mesmo poder de compra geral. Ora, não somente isso não é verdade em relação ao dinheiro, ou em relação a qualquer outra mercadoria, mas nem sequer podemos supor alguma situação em que seria verdade. § 2. Sendo, portanto, impossível ter-se um critério para medir o valor de troca, certos autores recorreram a uma ideia — dando-lhe o nome de medida de valor — que seria mais adequado chamar de medida do custo de produção. Imaginaram uma mercadoria produzida invariavelmente com a mesma quantidade de trabalho — suposição à qual é necessário acrescentar que o capital fixo empregado na produção deve ter sempre a mesma proporção em relação aos salários da mão-de-obra imediata, e deve ter sempre a mesma durabilidade: em suma, o mesmo capital deve ser adiantado durante o mesmo período ou duração de tempo, de sorte que o componente do valor que consiste nos lucros, bem como aquele que consiste em salários, possa ser imutável. Teríamos então uma mercadoria produzida sempre com a mesma combinação de todas as circunstâncias que afetam o valor permanente. Tal mercadoria de forma alguma teria um valor de troca constante, pois (mesmo prescindindo das flutuações temporárias, decorrentes da oferta e da procura) seu valor de troca seria alterado por todas as mudanças nas circunstâncias de produção das coisas pelas quais ela fosse trocada. Mas se existisse tal mercadoria, ela nos daria esta vantagem: toda vez que outra coisa mudasse permanentemente de valor em relação a ela, saberíamos que a causa da variação não estaria nela, mas na outra coisa. Seria ela, pois, indicada para servir como medida não certamente do valor de outras coisas, mas de seu custo de produção. Se uma mercadoria adquirisse um poder de compra permanente maior em relação à mercadoria invariável, isso seria sinal de aumento de seu custo de produção. No caso contrário, seu custo de produção deveria ter diminuído. Em geral, é a essa medida do custo que os economistas políticos querem referir-se, ao falarem de uma medida do valor. Ora, uma medida do custo, ainda que perfeitamente concebível, na realidade não pode existir, tanto como não pode existir uma medida do valor de troca. Não há mercadoria cujo custo de produção seja invariável. O ouro e a prata são os menos variáveis, mas mesmo eles estão sujeitos a alterações de seu custo de produção, devido ao esgotamento de fontes de suprimento antigas, à descoberta de novas fontes, e aos aperfeiçoamentos na forma de explorá-las. Se tentarmos determinar as variações do custo de produção de qualquer mercadoria, em razão das variações de seu preço em dinheiro, as conclusões terão de ser corrigidas pela melhor margem que pudermos deixar para as variações intermediárias do custo de produção do próprio dinheiro. Adam Smith imaginou haver duas mercadorias particularmente adequadas para servirem como medida de valor: o trigo e a mão-de-obra. Quanto ao trigo, afirmou que, embora seu valor flutue muito de ano para ano, não varia muito de um século para outro. Sabemos hoje que isso é um erro: o custo de produção do trigo tende a subir com o aumento da população, e a cair a cada aperfeiçoamento aplicado na agricultura, seja no próprio país, seja em qualquer país estrangeiro do qual o país compre parte de seu suprimento. A presumida constância do custo de produção do trigo depende da manutenção de um equilíbrio completo entre essas forças antagônicas — equilíbrio que, se uma vez vier a acontecer, só poderá ser fortuito. Quanto à mão-de-obra como medida de valor, a linguagem de Adam Smith não é uniforme. Por vezes refere-se a ela como sendo uma boa medida somente para períodos curtos, dizendo que o valor da mão-de-obra (os salários) não varia muito de ano para ano, se bem que varie de uma geração para outra. Em outras passagens fala como se a mão-de-obra fosse intrinsecamente a medida mais apropriada de valor, argumentando que o trabalho muscular normal de um homem em um dia pode ser considerado sempre, para ele, como sendo o mesmo montante de esforço ou sacrifício. Mas essa proposição — seja ela admissível ou não, em si mesma — elimina por completo a ideia de valor de troca, introduzindo um conceito totalmente diferente, mais análogo ao valor de uso. Se um dia de trabalho na América compra o dobro de artigos normais de consumo que compra na Inglaterra, parece refinamento inútil insistir em dizer que a mão-de-obra tem o mesmo valor nos dois países, e que o que muda é o valor das outras coisas. Pode-se afirmar corretamente que, nesse caso, a mão-de-obra vale na América o dobro do que vale na Inglaterra, tanto no mercado como para o próprio trabalhador. Se o objetivo fosse obter uma medida aproximativa para avaliar o valor de uso, talvez não se pudesse escolher nada melhor do que o sustento de um dia de uma pessoa média, com base no alimento comum consumido pela classe de trabalhadores não-qualificados. Se em algum país uma libra-peso de farinha de milho sustentar um trabalhador durante um dia, poder-se-ia considerar que uma coisa vale mais ou menos em proporção ao número de libras de farinha de milho pelo qual pudesse ser trocada. Se uma coisa, por si mesma ou por aquilo que com ela se pudesse comprar, pudesse sustentar um trabalhador durante um dia, e outra tivesse condições de mantê-lo durante uma semana, haveria alguma razão para dizer que uma vale para os usos humanos comuns, sete vezes mais do que a outra. Mas isso não mediria o valor dessa coisa para seu dono e para suas próprias finalidades, valor este que poderia ser superior — e não inferior — ao valor do alimento que a coisa teria condições de comprar. A ideia de uma medida do valor não deve ser confundida com a do regulador do valor, isto é, do princípio determinante do valor. Quando Ricardo e outros afirmam que o valor de uma coisa é regulado pela quantidade de mão-de-obra, não se referem à quantidade de trabalho pela qual a coisa pode ser trocada, mas à quantidade requerida para produzi-la. Querem dizer que é isso que determina o valor da coisa, e faz com que ela tenha o valor que tem, e não outro. Ao contrário, quando Adam Smith e Malthus afirmam que o trabalho é uma medida de valor, não se referem ao trabalho que foi ou pode ser necessário para produzi-la, mas à quantidade de trabalho pela qual a coisa pode ser trocada, ou que ela tem condições de comprar. Tampouco querem dizer que isso regula o valor de troca em geral da coisa, ou que tem qualquer efeito para determinar qual deva ser esse valor, mas somente indica qual é esse valor, e se muda e quanto muda, de acordo com o tempo e o lugar. Confundir esses dois conceitos seria o mesmo que ignorar a diferença que existe entre o termômetro e o fogo. CAPÍTULO XVI Alguns Casos Especiais Quanto ao Valor § 1. Investigamos as leis gerais que regem o valor, em todos os casos mais importantes de intercâmbio de mercadorias no mesmo país. Estudamos, primeiro, o caso de monopólio, em que o valor é determinado por uma limitação natural ou artificial da quantidade, isto é, pela procura e oferta. Em segundo lugar, estudamos o caso da livre concorrência, em que o artigo pode ser produzido em quantidade indefinida, pelo mesmo custo — caso em que o valor permanente é determinado pelo custo de produção, e somente as flutuações são determinadas pela oferta e a procura. Em terceiro lugar, vimos um caso misto, o dos artigos que podem ser produzidos em quantidade indefinida, mas não pelo mesmo custo — caso em que o valor permanente é determinado pelo custo máximo que é necessário incorrer para se obter a oferta necessária. Finalmente, constatamos que o próprio dinheiro é uma mercadoria da terceira categoria — que o seu valor, em uma situação em que reina a liberdade, é regido pelas mesmas leis que os valores de outras mercadorias de sua classe; e que os preços, portanto, obedecem às mesmas leis que os valores. Infere-se disso que a procura e a oferta determinam as flutuações dos valores e dos preços em todos os casos, bem como os valores e os preços permanentes de todas as coisas cuja oferta é determinada por qualquer fator que não seja a livre concorrência. E infere-se que, ao contrário, em regime de concorrência, em média as coisas são trocáveis entre si por aqueles valores — e vendidas por aqueles preços — que proporcionam expectativas iguais de vantagem a todas as classes de produtores, o que só pode ocorrer quando o valor de troca das coisas entre si é proporcional ao seu custo de produção. A essa altura é necessário anotar certos casos aos quais, devido à sua natureza especial, não se aplica essa lei que rege o valor de troca. Por vezes acontece que duas mercadorias diferentes têm o que se pode chamar de custo de produção conjunto. As duas são produzidas pela mesma operação ou série de operações, e o gasto é feito em função das duas mercadorias juntas — não parte para uma e parte para outra. O mesmo gasto teria sido necessário para uma das duas, se não houvesse necessidade da outra ou se ela não fosse sequer usada. Não são poucos os exemplos de mercadorias assim associadas em sua produção: por exemplo, o coque e o gás de carvão são ambos produzidos a partir da mesma matéria-prima, e pela mesma operação. Em sentido mais restrito eis outros exemplos: carne e lã de ovelha; carne, couro e sebo de boi; novilhos e produtos derivados do leite; frangos e ovos. O custo de produção nada pode ter a ver com a determinação do valor das mercadorias associadas, uma em relação à outra. Ele apenas determina o valor conjunto delas. O gás e o coque juntos têm de pagar as despesas de sua produção, com um lucro normal. Para que isso aconteça, determinada quantidade de gás, juntamente com o coque, que é o resíduo da manufatura do gás, devem ser trocáveis por outras coisas, na proporção de seu custo conjunto de produção. Nada se diz sobre qual percentagem da remuneração do produtor deve provir do coque, e que percentagem dela deve advir do gás. O custo de produção não determina os preços desses dois artigos, mas a soma de seus preços. Falta um princípio para repartir as despesas de produção entre as duas mercadorias. Uma vez que para isso não serve o custo de produção, temos de voltar a uma lei que determina o valor, antes do custo de produção — uma lei mais fundamental, a lei da procura e da oferta. A lei reza: a procura de uma mercadoria varia de acordo com seu valor, e o valor se ajusta de sorte que a procura seja igual à oferta. Essa lei nos dá o princípio de repartição ou rateio que estamos procurando. Suponhamos que determinada quantidade de gás seja produzida e vendida a determinado preço e o resíduo do coque seja oferecido a um preço que, aliado ao do gás, repõe a despesa, com a taxa de lucro corrente. Suponhamos outrossim que, ao preço estabelecido para o gás e o coque, respectivamente, o gás em sua totalidade encontre um mercado fácil, sem que sobre ou falte, mas que não se consiga encontrar compradores para absorver todo o coque correspondente. O coque será oferecido a preço mais baixo, para forçar o mercado. Mas esse preço mais baixo, juntamente com o preço do gás, não será remunerador: a manufatura, no conjunto, não pagará suas despesas com o lucro normal, e nessas condições ela não continuará em operação. O gás, portanto, precisa ser vendido a preço mais alto, para compensar a falta de venda do coque. Em consequência da diminuição da procura, reduzir-se-á um pouco a produção; e os preços estacionarão quando, pelo efeito conjunto do aumento do gás e da queda do coque, se vender tanto menos do primeiro e tanto mais do segundo, que haja agora um mercado para todo o coque resultante da extensão da manufatura do gás. Ou então, suponhamos o caso inverso: que haja necessidade de mais coque, aos preços atuais, do que a quantidade fornecida pelas operações necessárias para atender à procura existente de gás. Por estar o coque em falta, ele subirá de preço. A operação toda dará um lucro superior à taxa normal de lucro, o que atrairá mais capital para esse tipo de manufatura. O excedente de procura de coque passará a ser atendido; mas isso não pode acontecer sem aumentar também o fornecimento ou a oferta de gás; e como a procura existente já estava plenamente atendida, uma quantidade maior só poderá ser vendida se o preço baixar. O resultado será que as duas mercadorias juntas darão o retorno exigido pelo seu custo de produção conjunto, mas o coque dará uma percentagem de retorno maior do que antes, e o gás dará uma percentagem de retorno menor. Atingir-se-á o equilíbrio quando a procura em relação a cada artigo se ajustar tão bem à procura do outro, que a quantidade que se exige, de cada um, seja exatamente igual à quantidade gerada na produção da quantidade exigida do outro. Se houver algum excedente ou falta em algum dos dois artigos — se houver procura de coque, e não procura em relação a todo o gás produzido juntamente com o coque, ou se acontecer o inverso — os valores e os preços das duas mercadorias se ajustarão de modo que ambas encontrem mercado. Quando, portanto, duas ou mais mercadorias têm um custo de produção conjunto, seus valores naturais, um em relação ao outro, são aqueles que gerarão uma procura dos dois, na proporção das quantidades em que resultarem do processo produtivo. Esse teorema não se reveste de grande importância em si mesmo; mas a explanação que ele fornece da lei da procura, e da maneira como, quando não cabe aplicar o custo de produção, entra o outro princípio para suprir-lhe a falta, é digna de atenção especial, pois no próximo capítulo constataremos que algo de muito semelhante ocorre em casos de importância muito maior. § 2. Outro caso relativo ao valor, e que merece atenção, é o dos diversos tipos de produto agrícola. Trata-se de um problema um tanto mais complexo que o primeiro, exigindo que se preste atenção a um número maior de circunstâncias. O caso não apresentaria nada de especial, se diferentes produtos agrícolas fossem cultivados indiscriminadamente e com vantagem igual nos mesmos solos, ou então em solos diferentes. A complexidade provém de duas coisas: primeiro, do fato de a maioria dos solos ser mais adequada para um tipo de produto do que para outro, sem ser absolutamente inadequada para nenhum dos dois; segundo, da rotação das culturas. Para simplificar, limitaremos nossa suposição a dois tipos de produto agrícola, por exemplo, o trigo e a aveia. Se todos os solos fossem igualmente indicados para trigo e para aveia, os dois produtos seriam cultivados indiscriminadamente em todos os solos, e seu custo relativo de produção, por ser o mesmo em toda parte, determinaria o seu valor relativo. Se com o mesmo trabalho com que se colhem 3 quarters de trigo em determinado solo sempre se colhessem nesse solo 5 quarters de aveia, teriam o mesmo valor os 3 quarters de trigo e os 5 quarters de aveia. Se o trigo e a aveia não pudessem jamais ser cultivados no mesmo solo, o valor de cada um seria determinado pelo seu custo de produção específico no menos desfavorável dos solos próprios para ele, aos quais fosse necessário recorrer, em virtude da procura existente. No entanto, a realidade é que tanto o trigo como a aveia podem ser cultivados em quase todo solo que seja capaz de produzir qualquer um dos dois. Todavia, alguns solos, tais como as terras duras, são mais indicados para o trigo, ao passo que outros (os solos arenosos leves) se prestam mais para o cultivo da aveia. Poderia haver alguns solos que dariam, para a mesma quantidade de trabalho, apenas 4 quarters de aveia para 3 de trigo, e outros, talvez, menos de 3 quarters de trigo para 5 quarters de aveia. Com tais diversidades, o que determina o valor relativo dos dois produtos? É evidente que cada tipo de cereal será cultivado de preferência nos solos que são mais indicados para ele do que para o outro, e se a procura for atendida somente por esses solos, os valores dos dois cereais não terão nenhuma referência um ao outro. Mas quando a procura em relação aos dois for tal, que cada um tem de ser cultivado não apenas nos solos particularmente indicados para ele, mas nos solos de qualidade média (os quais, sem serem especificamente próprios para nenhum dos dois, são mais ou menos igualmente indicados para ambos), o custo de produção nesses solos médios determinará o valor relativo dos dois cereais. E o aluguel dos solos especificamente próprios para cada um será regulado pela força produtiva dos mesmos, considerada com referência apenas àquele cereal para o qual os solos são particularmente indicados. Até aqui, a questão não apresenta dificuldade a ninguém que esteja familiarizado com os princípios gerais que regem o valor. Pode, porém, acontecer que a procura de um dos dois produtos — por exemplo, o trigo — ultrapasse a tal ponto a procura do outro, que não apenas ocupará os solos particularmente indicados para trigo, mas também açambarque por inteiro os igualmente próprios para os dois, e entre até naqueles que são mais adequados para aveia. Para criar um estímulo para essa repartição desigual da lavoura, o trigo deve ser relativamente mais caro, e a aveia mais barata do que de acordo com o custo da produção dos dois em terra média. O valor relativo deles deve ser proporcional ao custo naquela qualidade de terra — qualquer que ela seja — na qual a demanda comparativa em relação aos dois cereais exige que ambos sejam cultivados. Se, em razão da situação da procura, os dois produtos forem conjuntamente cultivados em terra mais favorável a um produto do que ao outro, aquele será mais barato e este mais caro — em relação um ao outro e em relação às coisas em geral — do que se a procura proporcional fosse como imaginamos no início. Aqui temos, pois, uma ilustração, de forma um pouco diferente, do efeito da procura não como fator perturbador ocasional do valor, mas como regulador permanente dele, juntamente com o custo de produção, ou complementando-o. O caso da rotação das culturas não exige análise à parte, por ser um caso de custo conjunto de produção, como o do gás e do coque. Se fosse praxe cultivar verduras e cereais em todas as terras em anos alternados, sendo uma necessária tanto em função da outra como em função dela mesma, o arrendatário auferiria sua remuneração pelas despesas de dois anos de cereais e de verduras, e os preços de ambos se ajustariam de modo a criar uma procura que absorveria quantidade igual de verduras e cereais. Não seria difícil encontrar casos anômalos referentes ao valor que poderia ser um exercício útil resolver; mas não é nem desejável nem possível, em uma obra como a presente, entrar mais em detalhes do que o necessário para elucidar os princípios. Passarei agora, portanto, a explanar a única parte da teoria geral sobre a troca que ainda não foi tratada — a referente às trocas internacionais, ou, para falar de maneira mais geral, as trocas entre lugares distantes entre si. CAPÍTULO XVII O Comércio Internacional § 1. Costuma-se entender de maneira relativamente superficial as causas que fazem com que uma mercadoria seja trazida de longe, em vez de ser produzida, como pareceria indicar a conveniência o mais perto possível do mercado onde tem de ser vendida para o consumo. Certas coisas, é fisicamente impossível produzi-las, a não ser em circunstâncias específicas de calor, solo, água ou atmosfera. Mas há muitas coisas que, conquanto pudessem ser produzidas no país, sem dificuldade e em qualquer quantidade, apesar disso são importadas de longe. A explicação que popularmente se daria para esse fato consistiria em dizer que é mais barato importá-las do que produzi-las; e a razão verdadeira é realmente essa. Mas trata-se de uma razão a ser explicada por outra razão. De duas coisas produzidas no mesmo lugar, se uma for mais barata que a outra, a razão está em que ela pode ser produzida com menos mão-de-obra, trabalho e capital, ou, em uma palavra, com custo mais baixo. Será também esta a razão, em se tratando de coisas produzidas em lugares diferentes? Será que as coisas são sempre importadas somente de lugares em que podem ser produzidas com menos trabalho (ou menos do outro elemento componente do custo, o tempo) do que no lugar para o qual são trazidas? Será que vale a lei de que o valor permanente é proporcional ao custo de produção, em se tratando de mercadorias produzidas em lugares distantes, como vale para as que são produzidas em lugares adjacentes? Constataremos que não é a mesma lei que se aplica nos dois casos. Por vezes uma coisa pode ser vendida ao preço mais baixo, sendo produzida em algum lugar diferente daquele no qual ela pode ser produzida com o montante mínimo de trabalho e de privações. A Inglaterra poderia importar trigo da Polônia e pagar com tecidos, mesmo que tivesse vantagem incontestável sobre a Polônia tanto na produção de trigo como na de tecidos. A Inglaterra poderia enviar algodão a Portugal em troca de vinho, ainda que Portugal tivesse condições de produzir algodão com um montante menor de trabalho e de capital do que a Inglaterra. Isso não poderia acontecer entre lugares adjacentes. Se o lado setentrional do Tâmisa tivesse vantagem sobre o lado meridional na produção de sapatos, não se produziriam sapatos no lado sul; os sapateiros se mudariam com seus capitais para a margem setentrional, ou então já se teriam estabelecido lá desde o começo. Com efeito, por concorrerem no mesmo mercado com os sapateiros estabelecidos no lado norte, não teriam condições de compensar a desvantagem às expensas do consumidor: o montante dessa desvantagem recairia totalmente sobre seus lucros, e não se contentariam por muito tempo com um lucro menor, quando, simplesmente atravessando um rio, poderiam aumentá-lo. No entanto, entre lugares distantes, e sobretudo entre países diferentes, os lucros podem continuar a ser diferentes, porque as pessoas não costumam mudar-se ou transferir seus capitais para um lugar distante, se não houver um motivo muito forte. Se o capital se transferisse para regiões longínquas com a mesma prontidão e a troco de um estímulo tão pequeno quanto se muda para outro bairro da mesma cidade — se as pessoas transportassem suas manufaturas para a América ou China, toda vez que com isso conseguissem economizar uma pequena percentagem de suas despesas —, os lucros seriam semelhantes (ou equivalentes) em todo o mundo, e todas as coisas seriam produzidas nos lugares em que o mesmo trabalho e capital as produzisse na quantidade máxima e da melhor qualidade. Pode-se observar certa tendência a esse estado de coisas, mesmo hoje: o capital está se tornando cada vez mais cosmopolita. Em relação ao passado, é muito maior, hoje, a semelhança de maneiras e instituições, e muito menor a diferença de sentimentos, entre países mais civilizados, a ponto de atualmente não ser necessária uma atração tão grande para a população e para o capital se mudarem de um desses países para outro. Mas ainda persistem diferenças extraordinárias entre as diversas partes do mundo, tanto no que tange aos salários quanto no que concerne aos lucros. Basta um motivo pequeno para transportar capital, ou mesmo pessoas, do Warwickshire para o Yorkshire, mas o motivo precisa ser muito maior para transportá-los para a Índia, Irlanda ou colônias. Para a França, Alemanha ou Suíça, talvez o capital se transfira quase com a mesma prontidão do que para as colônias, pois as diferenças de idioma e de governo dificilmente representam um obstáculo tão grande quanto o clima e a distância. Para países ainda bárbaros, ou para países que apenas começam a civilizar-se — como a Rússia ou a Turquia —, o capital não migrará a não ser movido pelo estímulo de lucro extra muito grande. Portanto, entre todos os lugares distantes entre si, até certo ponto, mas especialmente entre países diferentes (estejam ou não sob o mesmo governo supremo), pode haver grandes desigualdades no tocante ao retorno assegurado à mão-de-obra e ao capital, sem fazer com que estes se transfiram de um lugar para outro em quantidade tal que essas desigualdades desapareçam. O capital pertencente a um país permanecerá, em grande parte, no país, mesmo que não haja nenhuma maneira de empregá-lo ali, que não seja mais produtiva alhures. Todavia, mesmo um país nessas circunstâncias poderia manter comércio com outros países, e provavelmente o faria. Exportaria artigos de algum tipo, mesmo para países que os poderiam produzir com menos trabalho do que ele, porque esses países, na suposição de terem vantagem sobre ele em todos os produtos, teriam vantagem maior em algumas mercadorias do que em outras, e teriam interesse em importar os artigos em que sua vantagem fosse mínima, para que pudessem empregar quantidade maior de sua própria mão-de-obra e de seu capital nas mercadorias em que a vantagem fosse máxima. § 2. Como disse alhures (Essays on some Unsettled Questions of Political Economy. Ensaio I), seguindo Ricardo (o pensador que mais contribuiu para esclarecer este assunto). (Cheguei a pensar que o sr. Ricardo foi o único autor da doutrina hoje universalmente aceita pelos economistas políticos, sobre a natureza e a medida dos benefícios que um país aufere do comércio exterior. Mas o Coronel Torrens, com a republicação de um de seus primeiros escritos, The Economists Refuted, comprovou ser, no mínimo, co-autor dessa doutrina, juntamente com o sr. Ricardo, e autor exclusivo em sua primeira publicação). “não é uma diferença no custo absoluto da produção que determina o intercâmbio, mas uma diferença no custo comparativo. Pode ser vantajoso para nós importar ferro da Suécia em troca de algodão, mesmo que as minas da Inglaterra e as suas manufaturas fossem mais produtivas do que as da Suécia. Se tivermos uma vantagem de 50% no algodão, e uma vantagem de apenas 25% no ferro, e pudermos vender nosso algodão à Suécia ao preço que ela tem de pagar se ela mesma o produzir, conseguiremos obter com uma vantagem de 50% tanto o nosso ferro como o nosso algodão. Muitas vezes, comercializando com países estrangeiros, podemos conseguir suas mercadorias com despesa menor de mão-de-obra e de capital do que custam para esses próprios países. Mesmo assim, o negócio continua a ser vantajoso para o país estrangeiro, porque a mercadoria que recebeu em troca, embora para nós tenha custado menos, para ele teria custado mais”. Para ilustrar os casos em que o intercâmbio de mercadorias não ocorrerá entre dois países, e aqueles em que ocorrerá, o sr. [James] Mill, em seus Elements of Political Economy, formula a hipótese de a Polônia levar vantagem sobre a Inglaterra tanto na produção de tecidos como na de trigo. Primeiro supõe ser a vantagem de montante igual nas duas mercadorias, com o tecido e o trigo — cada um deles — exigindo 100 dias de trabalho na Polônia, e 150 dias na Inglaterra. “Seguiria que o tecido, resultante de 150 dias de trabalho na Inglaterra, se enviado à Polônia, seria igual ao tecido resultante de 100 dias de trabalho na Polônia: se, portanto, fosse trocado por trigo, seria trocado pelo trigo resultante de apenas 100 dias de trabalho. Entretanto, supusemos que a quantidade de trigo resultante de 100 dias de trabalho na Polônia é a mesma que a resultante de 150 dias de trabalho na Inglaterra. Portanto, com 150 dias de trabalho empregados na produção de tecido, a Inglaterra obteria apenas tanto de trigo na Polônia quanto poderia cultivar no próprio país com 150 dias de trabalho; além disso, se o importasse, teria o custo do transporte. Em tais circunstâncias, não se faria o intercâmbio.” Nesse caso, o custo comparativo dos dois artigos, na Inglaterra e na Polônia, era supostamente o mesmo, embora os custos absolutos fossem diferentes — nessa suposição, vemos que nenhum dos dois países economizaria trabalho, se cada um limitasse sua atividade a um dos dois produtos e importasse o outro. O caso é outro quando não somente os custos absolutos dos dois artigos, mas também os comparativos, são diferentes nos dois países. “Se — continua o mesmo autor —, enquanto o tecido produzido com 100 dias de trabalho na Polônia fosse produzido com 150 dias de trabalho na Inglaterra, o trigo produzido na Polônia com 100 dias de trabalho não pudesse ser produzido na Inglaterra com menos do que 200 dias de trabalho, surgiria imediatamente uma motivação adequada para o intercâmbio. Com uma quantidade de tecido produzido na Inglaterra com 150 dias de trabalho, ele teria condições de comprar tanto de trigo na Polônia quanto fosse produzido lá com 100 dias de trabalho; mas a quantidade já produzida com 100 dias de trabalho seria tão grande quanto a quantidade produzida na Inglaterra com 200 dias de trabalho.” Importando trigo da Polônia, portanto, e pagando-o com tecido, a Inglaterra obteria por 150 dias de trabalho aquilo que de outra forma lhe custaria 200. Haveria economia de 50 dias de trabalho toda vez que a transação se repetisse, e não somente economia para a Inglaterra, mas economia em termos absolutos; com efeito, essa economia não é obtida à custa da Polônia, a qual, com o trigo que lhe custa 100 dias de trabalho, comprou tecido que, se produzido lá, lhe teria custado o mesmo. Portanto, a Polônia, nessa suposição, não perde nada; mas também não aufere nenhuma vantagem desse comércio, já que o tecido importado lhe custa tanto quanto se fosse feito lá. Para possibilitar à Polônia ganhar alguma coisa nesse intercâmbio, é preciso reduzir um pouco o ganho da Inglaterra: o trigo produzido na Polônia com 100 dias de trabalho deve ser capaz de comprar da Inglaterra mais tecido do que a Polônia poderia produzir com esse montante de trabalho — portanto, mais do que a Inglaterra poderia produzir com 150 dias de trabalho, obtendo assim a Inglaterra o trigo que lhe custaria 200 dias de trabalho por um custo superior a 150, mas inferior a 200. Por conseguinte, a Inglaterra já não ganha o total do trabalho que é economizado para os dois países conjuntamente, pelo comércio entre as duas nações. § 3. Por essa exposição percebemos em que consiste o benefício do intercâmbio internacional, ou, em outras palavras, do comércio exterior. Prescindindo do fato de ele possibilitar aos países obterem mercadorias que eles mesmos não teriam condições de produzir, a vantagem está no emprego mais eficiente das forças produtivas do mundo. Se dois países que comercializam entre si tentassem, na medida do possível, produzir eles mesmos o que agora importam um do outro, o trabalho e o capital dos dois países não seria tão produtivo; os dois juntos não conseguiriam com sua atividade quantidade tão grande de mercadorias quanto conseguiriam se cada um se empenhasse em produzir, tanto para si mesmo como para o outro, as coisas nas quais seu trabalho é relativamente mais eficiente. O acréscimo assim feito à produção dos dois conjugados é a vantagem desse comércio. É possível que um dos dois países seja totalmente inferior ao outro em capacidade produtiva, e que seu trabalho e capital pudessem ser empregados com vantagem máxima, transferindo-se fisicamente para o outro. O trabalho e o capital empatados para tornar a Holanda habitável teriam produzido retorno muito maior se transportados para a América ou Irlanda. A produção do mundo inteiro seria maior, ou o trabalho seria menor do que é, se cada coisa fosse produzida no lugar em que existe maior facilidade absoluta para sua produção. Mas as nações não emigram em massa, ao menos nos tempos modernos; e enquanto a mão-de-obra e o capital de um país permanecerem no país, o modo mais benéfico de empregá-los é na produção, para mercados estrangeiros e para seu próprio mercado, de coisas nas quais leva menos desvantagem, se não houver nenhuma em que leva vantagem. § 4. Antes de prosseguirmos, assinalemos o contraste entre essa visão dos benefícios do comércio internacional e outras teorias que têm prevalecido nesta matéria, e ainda prevalecem, até certo ponto. Segundo a doutrina que acabamos de enunciar, a única vantagem direta do comércio exterior consiste nas importações. Um país consegue coisas que não poderia produzir de forma alguma, ou que teria produzido com um gasto de capital e de mão-de-obra superior ao custo das coisas que exporta em pagamento. Obtém assim suprimento maior das mercadorias de que necessita pelo mesmo montante de trabalho e de capital, ou o mesmo suprimento, por menos trabalho e capital, deixando o que sobra disponível para produzir outras coisas. A teoria vulgar não leva em conta esse benefício, e considera que a vantagem do comércio reside nas exportações, como supondo que o ganho para o país não consiste no que um país obtém com o comércio exterior, mas naquilo de que se desfaz. As expressões com as quais se tem costumado designar as utilidades e vantagens do comércio com países estrangeiros têm sido estas: mercado mais amplo para a produção do país, consumo abundante para suas mercadorias, uma válvula de saída para seu excedente. Tal ideia é compreensível, quando consideramos que os inspiradores e líderes da opinião pública sobre questões comerciais têm sido sempre, até agora, a classe vendedora. Na verdade, trata-se de uma reminiscência da Teoria Mercantil, segundo a qual, sendo o dinheiro a única riqueza, a venda, ou, em outros termos, a troca de mercadorias por dinheiro, representa (para países destituídos de minas próprias) a única maneira de enriquecer — e a importação de mercadorias, isto é, o desfazer-se de dinheiro, representa uma redução desse benefício. A ideia de que só o dinheiro é riqueza morreu há muito tempo, mas deixou atrás de si muitos filhos, e o próprio destruidor desse conceito, Adam Smith, manteve algumas opiniões, para as quais é impossível encontrar outra origem. A teoria de Adam Smith sobre o benefício do comércio exterior era que ele proporcionava uma saída para o excedente de produção de um país, e possibilitava a uma parte do capital do país reproduzir-se com um lucro. Essas expressões sugerem conceitos inconciliáveis com uma concepção clara dos fenômenos. A expressão “excedente de produção” parece implicar que um país tem uma espécie de necessidade de produzir o trigo ou os tecidos que exporta, de sorte que a porção que ele mesmo não consome, se não for necessária para o consumo alhures, ou seria produzida para puro desperdício, ou, se não fosse produzida, a parte correspondente de capital permaneceria ociosa, e a massa de produtos no país diminuiria no mesmo montante. As duas suposições seriam totalmente errôneas. O país produz um artigo exportável, além de suas próprias necessidades, não por alguma necessidade inerente, mas como a maneira mais barata de se suprir de outras coisas. Se impedido de exportar esse excedente, deixaria de produzi-lo, e não importaria mais nada, por ser incapaz de pagar com uma mercadoria equivalente; em contrapartida, o trabalho e o capital que haviam sido empregados em produzir com vistas na exportação encontrariam emprego na produção dos objetos desejáveis que anteriormente eram importados (ou, se alguns deles não pudessem ser produzidos, encontrariam emprego na produção de sucedâneos para eles). Naturalmente, esses artigos seriam produzidos a um custo superior ao das coisas com as quais eram anteriormente comprados de países estrangeiros. Mas o valor e o preço dos artigos aumentariam proporcionalmente, e o capital seria reposto, com o lucro normal tirado das mercadorias exportadas, da mesma forma como era reposto quando empregado para produzir para o mercado exterior. Os únicos a perder (depois do inconveniente temporário da mudança) seriam os consumidores dos artigos antes importados; essas pessoas teriam de passar sem eles, consumindo em lugar deles alguma coisa de que não gostariam tanto, ou teriam de pagar por eles um preço mais alto do que antes. Há muito equívoco na ideia atualmente em voga sobre o que o comércio representa para um país. Quando se fala do comércio como fonte de riqueza nacional, a imaginação se fixa nas grandes fortunas adquiridas por comerciantes, mais do que na economia de preço para os consumidores. Ora, os ganhos dos comerciantes, quando não desfrutam de nenhum privilégio exclusivo, não são superiores aos lucros obtidos com o emprego do capital no próprio país. Se alguém disser que o capital atualmente empregado no comércio exterior não encontraria emprego no suprimento do mercado interno, eu poderia responder que essa é a falácia da superprodução geral, discutida em um capítulo anterior; mas a coisa, nesse caso específico, é por demais evidente para exigir que se apele a alguma teoria geral. Não somente vemos que o capital do comerciante encontraria aplicação, mas vemos também que aplicação ele encontraria. Criar-se-ia emprego igual àquele que se perderia. Cessando a exportação, cessaria também a importação em valor correspondente, e toda aquela porção da renda do país que havia sido gasta em mercadorias importadas estaria disponível para ser gasta nas mesmas coisas, produzidas no próprio país, ou em outras, em lugar delas. O comércio é virtualmente uma maneira de baratear a produção, e em todos os casos em que isso acontece, a pessoa beneficiada em última análise é o consumidor; o distribuidor, no final, com certeza consegue seu lucro, quer o comprador consiga comprar muito com seu dinheiro, quer só consiga comprar pouco. Digo isso sem negar o efeito (que já mencionei, mas que será plenamente explanado mais adiante) que o barateamento das mercadorias pode exercer sobre o aumento dos lucros. Isso acontece no caso em que a mercadoria barateada, por ser uma daquelas que são consumidas por trabalhadores, entra no custo da mão-de-obra, pelo qual se determina a taxa de lucro. § 5. Essa é, portanto, a vantagem econômica direta do comércio exterior. Mas além disso há efeitos indiretos, que precisam ser considerados como benefícios de ordem superior. Um deles é a tendência a melhorar os processos de produção, apresentada por toda ampliação do mercado. Um país que produz para um mercado mais amplo que o seu próprio pode introduzir uma divisão de trabalho mais ampla, tem condições de fazer mais uso das máquinas, e tem mais probabilidade de realizar invenções e aperfeiçoamentos nos processos de produção. Tudo aquilo que faz com que se produza uma quantidade maior de alguma coisa, no mesmo lugar, promove o aumento geral das forças produtivas do mundo. Há outra consideração, aplicável sobretudo a um estágio inicial de progresso industrial. Um povo pode estar em uma situação estacionária, indolente e inculta, com todos os seus gostos inteiramente satisfeitos ou totalmente subdesenvolvidos, e pode não empregar todas as suas energias produtivas por falta de algum objetivo suficiente de desejo. A abertura de um comércio exterior, por familiarizar esse povo com novos objetos, ou por tentá-lo a adquirir com mais facilidade coisas que anteriormente considerava inatingíveis, por vezes opera uma espécie de revolução industrial em um país cujos recursos estavam anteriormente subdesenvolvidos, por falta de energia e ambição no povo. Esse comércio pode induzir aqueles que estavam satisfeitos com confortos precários e pouco trabalho a trabalhar mais em nome da satisfação de seus gostos, e até mesmo a economizar e acumular capital, em vista de uma satisfação ainda mais plena desses gostos no futuro. Contudo, as vantagens econômicas do comércio são superadas, em termos de importância, por aqueles seus efeitos que são de ordem intelectual e moral. No baixo estágio intelectual e moral em que atualmente nos encontramos, dificilmente é possível superestimar o valor de colocar em contato pessoas diferentes, dotadas de modo de pensar e de agir diferentes daqueles com os quais estão familiarizados. O comércio é hoje o que a guerra foi uma vez: a fonte principal desse contato. Os aventureiros comerciais provenientes de países mais avançados geralmente têm sido os primeiros civilizadores de bárbaros. E o comércio é a finalidade da maior parte da comunicação que ocorre entre nações civilizadas. Tal comunicação sempre foi — e o é de modo especial na época atual — uma das fontes primárias do progresso. Para seres humanos que, como foram educados até agora, dificilmente têm condições de cultivar até mesmo uma boa virtude sem incorrer em alguma falta, é indispensável comparar constantemente suas próprias ideias e costumes com a experiência e o exemplo de pessoas colocadas em circunstâncias diferentes das deles. E não há nação que não precise aprender de outras, não somente técnicas ou práticas específicas, mas também traços essenciais de caráter, nos quais seu próprio tipo é inferior. Finalmente, o comércio foi o primeiro a ensinar as nações a verem com atitude sadia a riqueza umas das outras. Outrora o patriota, a menos que fosse suficientemente evoluído em cultura para sentir que seu país é o mundo, desejava ver todos os países — afora o seu — fracos, pobres e malgovernados; agora ele vê na riqueza e no progresso deles uma fonte direta de riqueza e progresso para seu próprio país. É o comércio que está rapidamente tornando obsoleta a guerra, reforçando e multiplicando os interesses pessoais que se lhe opõem por natureza. Pode-se outrossim dizer, sem exagero, que a ampliação e o rápido incremento do comércio internacional, por serem o esteio principal da paz no mundo, representam a grande permanente garantia para o progresso ininterrupto das ideias, das instituições e do caráter do gênero humano. CAPÍTULO XVIII Os Valores Internacionais § 1. Os valores das mercadorias produzidas no mesmo lugar, ou em lugares suficientemente próximos para o capital se movimentar livremente entre eles — digamos, para simplificar, das mercadorias produzidas no mesmo país — dependem (prescindindo de flutuações temporárias) de seu custo de produção. Mas o valor de uma mercadoria trazida de longe, especialmente de um país estrangeiro, não depende de seu custo de produção no lugar de onde vem. De que depende, então? O valor de uma coisa em qualquer lugar depende do custo de sua aquisição naquele lugar. E esse custo, no caso de um artigo importado, é o custo de produção da coisa que se exporta para pagá-lo. Uma vez que todo comércio é na realidade um escambo (já que o dinheiro é apenas um instrumento para trocar coisas umas pelas outras), para simplificar começaremos por supor que o comércio internacional se faz na forma de troca efetiva de uma mercadoria por outra — o que aliás sempre é, na realidade. Pelo que vimos até aqui, constatamos que todas as leis de intercâmbio são essencialmente iguais, quer se utilize dinheiro ou não, pois o dinheiro nunca rege essas leis gerais, senão que sempre lhes obedece. Se, pois, a Inglaterra importar vinho da Espanha, pagando por uma pipa de vinho um balote de tecido, o valor de troca de uma pipa de vinho na Inglaterra não dependerá do custo de produção do vinho na Espanha, mas do custo de produção do tecido na Inglaterra. Ainda que o vinho possa ter custado na Espanha o equivalente a apenas dez dias de trabalho, se o tecido custar na Inglaterra vinte dias de trabalho, o vinho, quando trazido para a Inglaterra, terá um valor de troca igual ao produto de vinte dias de trabalho inglês, mais o custo do transporte — incluindo o lucro usual sobre o capital do importador, durante o período em que esse capital estiver amarrado e não puder ser empregado em outra aplicação. Portanto, em qualquer país, o valor de uma mercadoria estrangeira depende da quantidade de produto interno que se tem de pagar ao país estrangeiro em troca da mesma. Em outras palavras, os valores das mercadorias estrangeiras dependem das condições de troca internacional. De que dependem estas? O que, no caso suposto, faz com que uma pipa de vinho da Espanha seja trocada com a Inglaterra exatamente por aquela quantidade de tecido? Vimos que não é o custo de produção dessas mercadorias. Se o tecido e o vinho fossem ambos fabricados na Espanha, seriam trocados um pelo outro ao seu custo de produção na Espanha; se ambos fossem feitos na Inglaterra, seriam trocados um pelo outro pelo seu custo de produção na Inglaterra. Mas pelo fato de todo o tecido ser fabricado na Inglaterra, e todo o vinho ser feito na Espanha, essas duas mercadorias se encontram em circunstâncias às quais, como determinamos, não é aplicável essa lei do custo de produção. Precisamos, pois, como já fizemos anteriormente, no caso de uma dificuldade semelhante, retroceder até uma lei antecedente, a da oferta e procura, e nesta encontraremos novamente a solução de nosso problema. Discuti essa questão em um ensaio à parte, ao qual já me referi; a citação de parte da exposição ali feita constituirá a melhor introdução ao meu ponto de vista atual sobre essa matéria. Devo advertir que estamos agora no setor das questões mais complexas que a Economia Política apresenta, que o assunto não permite manter-nos a um nível elementar e que para seguir a série de deduções, é necessário esforço de atenção mais contínuo do que o exigido até agora. Contudo, o fio que estamos por tomar na mão é em si mesmo muito simples e acessível; a única dificuldade está em segui-lo através dos meandros e emaranhados das complexas transações internacionais. § 2. “Quando se estabelece o comércio entre os dois países, as duas mercadorias serão trocadas uma pela outra à mesma taxa de intercâmbio nos dois países — deduzindo o custo do transporte, o qual, de momento, é mais conveniente não levar em conta. Supondo, portanto, para efeito de argumentação, que o transporte das mercadorias de um país para outro pudesse ser efetuado sem mão-de-obra e sem custo, o referido comércio não começaria antes de os valores das duas mercadorias, estimados em termos recíprocos, se tornarem iguais nos dois países. Suponhamos que 10 jardas de tecido fino de lã preta custe, na Inglaterra, tanto trabalho quanto 15 jardas de linho, e na Alemanha, tanto quanto 20.” Seguindo a linha da maioria dos meus predecessores, considero aconselhável, nessas investigações complexas, utilizar exemplos numéricos para tornar a conceituação clara e fixá-la. Por vezes, como no caso presente, esses exemplos têm de ser meramente hipotéticos. Teria preferido exemplos reais, mas é apenas fundamental que os números sejam tais que possam ser facilmente seguidos, através das combinações subsequentes nas quais entrarão. Formulada então a hipótese, haveria para a Inglaterra interesse em importar linho da Alemanha, e para a Alemanha, em importar tecido da Inglaterra. “Quando cada país produzia as duas mercadorias para si mesmo, 10 jardas de tecido tinham valor de troca de 15 jardas de linho na Inglaterra, e de 20 na Alemanha. Agora essas 10 jardas de tecido serão trocadas pelo mesmo número de jardas de linho nos dois países. Por que número de jardas? Se for por 15, a Inglaterra estará na mesma situação que antes, e a Alemanha ganhará tudo. Se for por 20, a Alemanha estará na mesma situação que antes, e todo o benefício ficará com a Inglaterra. Se for por qualquer número de jardas de linho entre 15 e 20, a vantagem será compartilhada pelos dois países. Se, por exemplo, 10 jardas de tecido forem trocadas por 18 de linho, a Inglaterra ganhará uma vantagem de 3 jardas em cada 15, e a Alemanha economizará 2 jardas em cada 20. O problema é o seguinte: quais são as causas que determinam a proporção em que o tecido da Inglaterra e o linho da Alemanha serão trocados um pelo outro? “Uma vez que o valor de troca, nesse caso como em qualquer outro, está proverbialmente flutuando, não importa, ao começarmos, em quanto o fixamos, por hipótese; logo veremos se há algum ponto fixo acima do qual ele oscila, ponto este do qual o valor de troca sempre tende a aproximar-se permanecendo nele. Suponhamos, então, que, por efeito daquilo que Adam Smith denomina de disputa do mercado, 10 jardas de tecido valham, nos dois países, 17 jardas de linho. "A procura de uma mercadoria, isto é, a quantidade dela que consegue encontrar comprador, varia, como anotamos anteriormente, conforme o preço. Na Alemanha, o preço de 10 jardas de tecido é agora 17 jardas de linho, ou qualquer quantidade de dinheiro que equivalha, na Alemanha, a 17 jardas de linho. Sendo esse o preço, há agora determinado número de jardas de tecido que será objeto de procura, ou encontrará compradores, a esse preço. Há determinada quantidade de tecido, e mais do que isso não se poderia vender a esse preço; e menos do que isso, a esse preço, não atenderia inteiramente à procura. Suponhamos que essa quantidade seja de 1000 vezes 10 jardas. "Voltemos agora nossa atenção para a Inglaterra. Lá, o preço de 17 jardas de linho é 10 jardas de tecido, ou qualquer quantidade de dinheiro equivalente, na Inglaterra, a 10 jardas de tecido. Há determinado número de jardas de linho que, a esse preço, atenderá exatamente à procura, e não mais. Suponhamos que esse número seja 1000 vezes 17 jardas. “Assim como 17 jardas de linho estão para 10 jardas de tecido, da mesma forma 1000 vezes 17 jardas estão para 1000 vezes 10 jardas. Ao valor de troca vigente, o linho de que a Inglaterra precisa pagará exatamente a quantidade de tecido de que, nas mesmas condições de intercâmbio, a Alemanha precisa. A procura dos dois lados é exatamente suficiente para absorver a oferta existente no outro. Estão cumpridas as condições exigidas pelo princípio da procura e oferta, e se continuará a intercambiar as duas mercadorias, como supusemos acontecer, à razão de 17 jardas de linho por 10 jardas de tecido. “Entretanto as nossas suposições poderiam ter sido diferentes. Suponhamos que, à suposta taxa de intercâmbio, a Inglaterra tenha chegado à conclusão de não consumir uma quantidade de linho superior a 800 vezes 17 jardas: é evidente que, à taxa suposta, isso não teria sido suficiente para pagar as 1000 vezes 10 jardas de tecido de que, na nossa suposição, a Alemanha precisa, ao valor suposto. A esse preço, a Alemanha não teria condições de obter mais do que 800 vezes 10 jardas. Para conseguir as 200 jardas restantes — o que não teria meios de fazer, a não ser oferecendo preço mais alto por elas — ela ofereceria mais de 17 jardas de linho em troca de 10 jardas de tecido: suponhamos que ela ofereça 18. A esse preço, talvez a Inglaterra estaria propensa a comprar uma quantidade maior de linho. A esse preço, ainda, possivelmente consumiria 900 vezes 10 jardas. Por outro lado, pelo fato de o tecido ter subido de preço, a procura da Alemanha em relação a ele provavelmente teria diminuído. Se, em vez de 1000 vezes 10 jardas, ela agora se contentar com 900 vezes 10 jardas, estas pagarão exatamente as 900 vezes 18 jardas de linho que a Inglaterra está disposta a comprar ao preço alterado: de novo a procura existente nos dois países será exatamente suficiente para absorver a oferta correspondente; e 10 jardas por 18 será a taxa à qual, nos dois países, o tecido será trocado por linho. "Teria acontecido o contrário de tudo isso, se, em vez de 800 vezes 17 jardas, tivéssemos suposto que a Inglaterra, à taxa de 10 para 17, tivesse aceitado comprar 1200 vezes 17 jardas de linho. Nesse caso, é a demanda da Inglaterra que não seria plenamente atendida: é a Inglaterra que, fazendo oferta para adquirir mais linho, alterará a taxa de intercâmbio em desfavor dela; e 10 jardas de tecido cairão, nos dois países, abaixo do valor de 17 jardas de linho. Em virtude dessa queda do preço do tecido, ou, o que é a mesma coisa, em virtude dessa subida do preço do linho, a procura da Alemanha em relação ao tecido aumentará, e a procura da Inglaterra em relação ao linho diminuirá, até que a taxa de intercâmbio se tenha ajustado, de modo que o tecido e o linho paguem exatamente um o outro. E uma vez que se atingir esse ponto, os valores se estabilizarão, sem ulterior alteração. "Pode-se, portanto, considerar como estabelecido que, quando dois países comercializam entre si com duas mercadorias, o valor de troca dessas mercadorias, uma em relação à outra, se ajustará às inclinações e circunstâncias dos consumidores dos dois lados, de maneira tal que as quantidades requeridas por cada país, dos artigos que importa de seu vizinho, sejam exatamente suficientes para pagar uma mercadoria com a outra. Assim como as inclinações e as circunstâncias dos consumidores não podem ser reduzidas a nenhuma regra, da mesma forma não se pode fixar as proporções em que as duas mercadorias serão intercambiadas. Sabemos que os limites dentro dos quais a variação está confinada são a proporção entre seus custos de produção em um país e a proporção entre seus custos de produção no outro. Não podem ser trocadas 10 jardas de tecido por mais do que 20 jardas de linho, nem por menos do que 15. Mas podem ser trocadas por qualquer número intermediário. São, portanto, variadas as proporções nas quais as vantagens do comércio podem ser divididas entre as duas nações. Só se pode dar uma indicação muito genérica sobre as circunstâncias das quais depende mais remotamente a parte proporcional que cabe a cada país. "É até possível conceber um caso extremo, em que toda a vantagem resultante do intercâmbio seria colhida por uma das partes, e a outra parte não ganharia nada. Não há nenhum absurdo na hipótese de que, em se tratando de determinada mercadoria, só se necessite de determinada quantidade, a qualquer preço, e que, uma vez obtida esta quantidade, nenhuma queda do valor de troca induziria outros consumidores, ou aqueles que já estão supridos, a comprarem mais. Suponhamos que esse seja o caso da Alemanha, em relação ao tecido. Antes de iniciar seu comércio com a Inglaterra, quando 10 jardas de tecido lhe custavam tanto trabalho quanto 20 jardas de linho, ela consumia tanto tecido quanto necessitava em quaisquer circunstâncias, e, se pudesse comprá-lo à razão de 10 jardas de tecido por 15 de linho, não consumiria mais. Suponhamos que essa quantidade fixa seja 1000 vezes 10 jardas. Entretanto, à taxa de 10 por 20, a Inglaterra desejaria mais linho do que o equivalente a essa quantidade de tecido. Consequentemente, ofereceria um valor mais alto pelo linho — ou, o que é a mesma coisa, ofereceria seu tecido a uma taxa mais baixa. Mas, já que com nenhuma queda de valor ela conseguiria induzir a Alemanha a comprar uma quantidade maior de tecido, não haveria nenhum limite para a subida do linho ou para a queda do tecido, enquanto a procura da Inglaterra em relação ao linho não fosse reduzida, pelo aumento de seu valor, à quantidade que 1000 vezes 10 jardas de tecido comprariam. Poderia ser que, para produzir essa diminuição da procura, não bastasse uma queda menor do que aquela que faria com que 10 jardas de tecido fossem trocadas por 15 de linho. Nesse caso a Alemanha ficaria com toda a vantagem, e a Inglaterra ficaria exatamente na mesma situação em que estava antes de começar esse comércio. No entanto, a própria Alemanha teria interesse em manter seu linho um pouco abaixo do valor ao qual o produto poderia ser produzido na Inglaterra, a fim de impedir ser ela mesma suplantada pelo produtor interno. Por isso, a Inglaterra sempre se beneficiaria de certa forma com a existência desse comércio, ainda que o benefício pudesse ser muito insignificante." Penso que essas afirmações contêm o primeiro princípio elementar sobre os valores internacionais. Supus, como é indispensável em tais casos abstratos e hipotéticos, serem as circunstâncias muito menos complexas do que na realidade: em primeiro lugar, suprimindo o custo do transporte; depois, supondo que só há dois países comercializando entre si; e, finalmente, que eles só transacionam com duas mercadorias. Para tornar completa a exposição desse princípio, é necessário restabelecer as várias circunstâncias, temporariamente omitidas para simplificar a argumentação. Os que estiverem habituados a qualquer tipo de investigação científica provavelmente verão, sem demonstração formal, que a introdução dessas circunstâncias não pode alterar a teoria sobre o assunto. O comércio entre qualquer número de países, e com qualquer número de mercadorias, deve ocorrer obedecendo aos mesmos princípios essenciais que regem o comércio entre dois países e com apenas duas mercadorias. A introdução de um número maior de fatores exatamente semelhantes não pode alterar a lei de operação dos mesmos, da mesma forma como a colocação de pesos adicionais nos dois pratos de uma balança não altera a lei da gravitação. Nada se altera, exceto os resultados numéricos. Para sermos mais completos em nossa argumentação, porém, entraremos nos casos complexos com o mesmo detalhamento com o qual colocamos o caso mais simples. § 3. Primeiramente, introduzamos o componente do custo do transporte. A diferença principal consistirá então em que o tecido e o linho não serão mais trocados um pelo outro exatamente à mesma razão ou proporção nos dois países. O linho, pelo fato de ter de ser transportado para a Inglaterra, será lá mais caro em virtude de seu custo de transporte, e o tecido será mais caro na Alemanha, por efeito de seu transporte desde a Inglaterra. O linho, avaliado em termos de tecido, será mais caro na Inglaterra do que na Alemanha, devido ao custo de transporte dos dois artigos; e a mesma coisa acontecerá com o tecido na Alemanha, avaliado em termos de linho. Suponhamos que o custo do transporte de cada artigo seja equivalente a uma jarda de linho; e suponhamos que, se os dois artigos tivessem podido ser transportados sem custo, as condições de intercâmbio teriam sido 10 jardas de tecido por 17 de linho. À primeira vista pode parecer que cada país pagará seu próprio custo de transporte, isto é, o custo de transporte do artigo que importa: que, portanto, na Alemanha, 10 jardas de tecido valerão 18 de linho, ou seja, as 17 originais, e uma jarda a mais para cobrir o custo de transporte do tecido; ao passo que na Inglaterra, 10 jardas de tecido só comprarão 16 de linho, deduzindo-se uma jarda para cobrir o custo de transporte de linho. No entanto, não se pode afirmar isso com certeza: só será verdade se o linho que os consumidores ingleses comprarem ao preço de 10 por 16 pagar exatamente o tecido que os consumidores alemães comprarem a 10 por 18. São os valores — quaisquer que sejam que devem determinar esse equilíbrio. Por isso, não se pode estabelecer nenhuma regra absoluta para a divisão desse custo, como nenhuma se pode estabelecer para a divisão da vantagem; e não segue que, qualquer que seja a proporção em que um se divide, o outro seja dividido na mesma proporção. Se o custo de transporte fosse eliminado, é impossível dizer se o país mais beneficiado seria o país produtor ou o país importador. Isso dependeria do jogo da procura internacional. O custo de transporte tem mais um efeito. Se não fosse o custo de transporte, toda mercadoria (se supusermos que o comércio é livre) seria regularmente importada ou regularmente exportada. Um país não produziria nada para si, que não produzisse também para outros países. Mas em consequência do custo de transporte, há muitas coisas, especialmente artigos volumosos, que todo ou quase todo país produz ele mesmo. Depois de exportar as coisas das quais pode tirar o máximo de vantagem, e importar aquelas nas quais leva o máximo de desvantagem, há muitas mercadorias intermediárias cujo custo relativo de produção, naquele e em outros países, difere tão pouco, que o custo de transporte absorveria mais do que toda a economia feita no custo de produção, que se conseguiria importando uma e exportando outra. Tal é o caso de numerosas mercadorias de consumo corrente, incluindo as de qualidade inferior, no setor de alimentação e de manufaturados, cujos produtos superiores são objetos de amplo comércio internacional. § 4. Introduzamos um número de mercadorias superior às duas que supusemos até agora. Continuemos a supor, porém, que o tecido e o linho são os artigos cujo custo comparativo de produção, na Inglaterra e na Alemanha, apresenta maior diferença, de sorte que, se os dois países se limitassem a comercializar entre si apenas duas mercadorias, seria com estas duas que teriam mais interesse em transacionar entre si. Omitiremos novamente o custo de transporte, o qual — pelo fato de, como demonstramos, não afetar o essencial da questão — só atrapalha a colocação do problema. Suponhamos, então, que a procura da Inglaterra por linho é tanto maior do que a da Alemanha por tecido, ou é a tal ponto mais ampla em virtude do baixo preço, que, se a Inglaterra não tivesse outro artigo que a Alemanha comprasse, a não ser tecido, a procura da Inglaterra forçaria as condições de intercâmbio a serem de 10 jardas de tecido por apenas 16 de linho, de forma que a Inglaterra sairia ganhando apenas a diferença entre 15 e 16, e a Alemanha ganharia a diferença entre 16 e 20. Mas suponhamos agora que a Inglaterra tenha também outra mercadoria — ferro, por exemplo — que seja objeto de procura na Alemanha, e que a quantidade de ferro que, na Inglaterra, tem valor igual a 10 jardas de tecido (chamemos essa quantidade de um quintal) custará, se produzida na Alemanha, tanto trabalho quanto 18 jardas de linho, de sorte que, se o produto for oferecido pela Inglaterra por 17, esta venderá a preço mais baixo que o produtor alemão. Nessas circunstâncias, o linho não será forçado a ser intercambiado à taxa de 16 jardas por 10 de tecido, senão que ficará, suponhamos, em 17; com efeito, embora, a essa taxa de intercâmbio, a Alemanha não compre tecido suficiente para pagar todo o linho de que a Inglaterra necessita, comprará ferro pelo restante, e para a Inglaterra é indiferente vender um quintal de ferro ou 10 jardas de tecido, uma vez que os dois têm o mesmo custo de produção. Se agora acrescentarmos carvão ou algodão do lado da Inglaterra, e vinho, trigo ou madeira do lado da Alemanha, não haverá diferença, quanto ao princípio. As exportações de cada país devem exatamente pagar as importações — queremos com isso dizer o total das exportações e importações, e não as de mercadorias específicas, consideradas individualmente. O produto de cinquenta dias de trabalho inglês, seja esse produto tecido, carvão, ferro ou quaisquer outras exportações, será trocado pelo produto de quarenta, cinquenta ou sessenta dias de trabalho alemão, em linho, vinho, trigo ou madeira, de acordo com a procura internacional. Existe uma proporção na qual a procura de um país em relação aos produtos do outro corresponde exatamente à procura do outro país por seus produtos, de sorte que as coisas fornecidas pela Inglaterra à Alemanha sejam inteiramente pagas — e não mais do que isso — por aquelas fornecidas pela Alemanha à Inglaterra. Essa será, portanto, a proporção à qual se efetuará a troca entre os produtos do trabalho inglês e os do trabalho alemão. Se, portanto, perguntarmos que país aufere a maior porção da vantagem de qualquer comércio que efetua, a resposta será esta: aquele cujos produtos forem objeto de maior procura em outros países, com essa procura sendo a mais suscetível de aumentar, em virtude do barateamento adicional. Na medida em que os produtos de algum país possuírem essa propriedade, o país compra todas as mercadorias estrangeiras a custo menor. Suas importações são tanto mais baratas quanto maior for a intensidade da procura que países estrangeiros tiverem em relação aos artigos por ele exportados. Suas importações são também tanto mais baratas quanto menor for a extensão e a intensidade de sua própria procura em relação a esses artigos importados. O mercado é o mais barato para aqueles cuja procura é pequena. Um país que deseja poucos produtos estrangeiros, e somente uma quantidade limitada deles, enquanto suas próprias mercadorias são objeto de grande procura em países estrangeiros, conseguirá suas limitadas importações a um custo extremamente baixo, isto é, em troca do produto de uma quantidade muito pequena de seu trabalho e de seu capital. Finalmente, tendo introduzido na hipótese mais do que as duas mercadorias iniciais, introduzamos agora um número de países maior do que os dois de início. Depois de a procura da Inglaterra em relação ao linho da Alemanha elevar a taxa de intercâmbio, de 10 jardas de tecido por 16 de linho, suponhamos que se abra um comércio entre a Inglaterra e algum outro país que também exporte linho. Suponhamos outrossim que, se a Inglaterra só comercializasse com esse terceiro país, o jogo da procura internacional lhe possibilitasse obter desse país a taxa de 10 jardas de tecido — ou seu equivalente — por 17 jardas de linho. É evidente que ela não continuaria a comprar linho da Alemanha à taxa anterior: a Alemanha estaria cobrando um preço mais alto que o outro país, e teria que consentir em pagar 17 jardas, como esse outro país. Nesse caso, supõe-se que as circunstâncias de produção e de demanda no terceiro país são em si mesmas mais vantajosas para a Inglaterra do que as circunstâncias da Alemanha; mas essa suposição não é necessária: poderíamos supor que, se não existisse o comércio com a Alemanha, a Inglaterra seria obrigada a dar a esse outro país as mesmas condições vantajosas que dá à Alemanha, a saber, 10 jardas de tecido por 16 de linho, ou até por menos de 16. Mesmo assim, a abertura do terceiro país acarreta grande diferença a favor da Inglaterra. Há agora duplo mercado para a exportação inglesa, ao passo que a demanda da Inglaterra de linho não é superior à que existia anteriormente. Isso necessariamente acarreta para a Inglaterra condições de intercâmbio mais vantajosas. Os dois países, pelo fato de necessitarem de muito mais produto inglês do que era necessário para cada um dos dois em separado, são obrigados, para conseguirem esse produto inglês, a forçar uma demanda maior para seus produtos exportados, oferecendo-os a um valor mais baixo. Importa notar que esse efeito a favor da Inglaterra, devido à abertura de outro mercado para suas exportações, será igualmente produzido, mesmo que o país do qual vem a demanda não tivesse para vender nada que a Inglaterra esteja disposta a comprar. Suponhamos que o terceiro país, embora precisando de tecido ou de ferro da Inglaterra, não produza linho, nem nenhum outro artigo que é objeto de procura na Inglaterra. No entanto, esse terceiro país produz artigos exportáveis do contrário não teria com que pagar artigos importados; suas exportações, ainda que não sejam adequadas para o consumidor inglês, podem encontrar mercado em algum lugar. Por estarmos supondo apenas três países, temos de presumir que encontre esse mercado na Alemanha, e que pague o que importa da Inglaterra com ordens de pagamento contra seus clientes alemães. A Alemanha, portanto, além de ter de pagar suas próprias importações, tem agora de pagar à Inglaterra uma dívida, por conta do terceiro país, e os recursos para esses dois pagamentos têm de provir de seus produtos exportáveis. Ela precisa, pois, oferecer esses produtos à Inglaterra em termos suficientemente favoráveis para forçar uma demanda inglesa equivalente a essa dívida dupla. Tudo ocorrerá exatamente como se o terceiro país tivesse comprado produtos alemães com suas próprias mercadorias, e oferecesse tais produtos à Inglaterra, em troca dos produtos ingleses. Há uma demanda maior de mercadorias inglesas, as quais têm de ser pagas com mercadorias alemães — e isso só pode acontecer forçando um aumento de demanda inglesa em relação aos produtos alemães, isto é, fazendo baixar o valor dos mesmos. Assim, um aumento de demanda pelos produtos exportados por um país, em qualquer país estrangeiro, possibilita ao primeiro comprar a preço mais baixo até mesmo aqueles produtos importados que consegue de outros países. E, inversamente, um aumento de sua própria demanda de qualquer mercadoria estrangeira o obriga, coeteris paribus, a pagar mais caro todas as mercadorias estrangeiras. A lei que acabamos de ilustrar pode ser adequadamente denominada equilíbrio da procura internacional. Ela pode ser formulada concisamente da maneira que segue. Os produtos de um país se trocam pelos produtos de outros países, àqueles valores que são necessários para que a totalidade de suas exportações possa pagar exatamente a totalidade de suas importações. Essa lei dos valores internacionais não passa de uma extensão da lei mais geral sobre o valor, que chamamos de equilíbrio entre a oferta e a procura. Vimos que o valor de uma mercadoria sempre se ajusta de tal maneira que a procura equivalha exatamente à oferta. Ora, todo comércio, seja ele entre nações ou entre indivíduos, consiste em intercâmbio de mercadorias, no qual as coisas que cada um tem para vender constituem também seus meios ou recursos para comprar: a oferta produzida por um constitui sua procura em relação ao que é produzido pelo outro. Assim sendo, oferta e procura não são outra coisa senão outra expressão para procura recíproca, e dizer que o valor se ajustará de molde a igualar a procura à oferta, na realidade é dizer que se ajustará de molde a igualar a demanda existente em um lado à demanda existente no outro. § 5. Se quiséssemos indicar as consequências dessa lei dos valores internacionais em todas as suas amplas ramificações teríamos de ocupar espaço superior ao que podemos aqui dedicar a esse fim. Mas há uma de suas aplicações que quero anotar aqui, por ser importante em si mesma, por afetar a questão que nos ocupará no próximo capítulo, e sobretudo por conduzir à compreensão mais plena e mais clara da própria lei que estamos examinando. Vimos que o valor ao qual um país compra uma mercadoria estrangeira não obedece ao custo de produção no país do qual procede a mercadoria. Suponhamos agora que ocorra alteração desse custo de produção: por exemplo, um aperfeiçoamento no processo de manufatura. Será que outros países se beneficiarão plenamente desse aperfeiçoamento? Será que a mercadoria será vendida tão mais barata a estrangeiros, quando sua produção é mais barata no próprio país? Essa questão, bem como as considerações em que temos de entrar para resolvê-la, constitui um bom teste para aferir o valor da teoria. Suponhamos primeiro que o referido aperfeiçoamento seja de natureza a criar um novo setor de exportação: fazer estrangeiros recorrerem ao país para comprar uma mercadoria que antes produziam internamente. Nessa hipótese, aumenta a demanda estrangeira em relação aos produtos do referido país. Isso necessariamente altera os valores internacionais, para vantagem do citado país, e para desvantagem dos países estrangeiros, os quais, portanto, embora participem do benefício do novo produto, têm de comprar esse benefício, pagando todos os outros produtos desse país a uma taxa superior à vigente anteriormente. Superior em quanto? Isso dependerá do grau necessário para restabelecer o equilíbrio da procura internacional, nessas novas condições. Essas consequências decorrem de forma muito evidente da lei dos valores internacionais, e não me deterei em ilustrá-las, senão que passarei ao caso mais frequente, de um aperfeiçoamento que não cria um artigo de exportação, mas faz baixar o custo de produção de alguma coisa que o país já exportava. Por ser vantajoso, em discussões de natureza tão complexa, utilizar somas numéricas definidas, voltaremos ao nosso exemplo inicial. Se produzidas na Alemanha, 10 jardas de tecido demandariam o mesmo montante de trabalho e de capital que 20 jardas de linho; mas, em decorrência do jogo da procura internacional, essas 10 jardas de tecido podem ser compradas da Inglaterra por 17 jardas de linho. Suponhamos agora que, em virtude de um aperfeiçoamento mecânico efetuado na Alemanha, e impossível de ser transferido à Inglaterra, a mesma quantidade de trabalho e de capital que produzia 20 jardas de linho passe a produzir 30. O valor do linho cai de 1/3 no mercado alemão, se comparado a outras mercadorias produzidas na Alemanha. Será que o valor do linho alemão baixará de 1/3 também se comparado ao tecido inglês, fazendo assim com que a Inglaterra, juntamente com a Alemanha, partilhe plenamente do benefício do referido aperfeiçoamento? Ou então (se é que não seria melhor expressar-nos de outra forma), uma vez que, para a Inglaterra, o custo de aquisição do linho não era regulado pelo custo que a Alemanha tem para produzi-lo, e uma vez que, portanto, a Inglaterra não obteria o benefício total, mesmo das 20 jardas que a Alemanha poderia ter pagado por 10 jardas de tecido, mas só 17 — por que razão obteria agora mais, simplesmente pelo fato de esse limite teórico ser deslocado 10 além? É evidente que de início o aperfeiçoamento fará baixar o valor do linho na Alemanha, em relação a todas as outras mercadorias existentes no mercado alemão, incluindo, entre as restantes, até a mercadoria importada — o tecido. Se anteriormente 10 jardas de tecido eram trocadas por 17 de linho, agora serão trocadas por 50% a mais, vale dizer, por 25 1/2 jardas. Isso continuará assim? Dependerá do efeito que esse barateamento do linho produzir sobre a procura internacional. A procura de linho na Inglaterra dificilmente poderia deixar de aumentar. Mas poderia aumentar em proporções diferentes: ou em produção equivalente ao barateamento do linho, ou em proporção superior ao barateamento, ou em proporção menor. Se a procura aumentasse na mesma proporção que o barateamento do linho, a Inglaterra compraria tantas vezes 25 1/2 jardas de linho quanto fosse o número de vezes 17 jardas que comprava anteriormente. Gastaria, para comprar linho, exatamente tanto de tecido — ou do equivalente a tecido —, em suma, tanto da renda coletiva de sua população quanto gastava antes. De sua parte, a Alemanha provavelmente necessitaria, a essa taxa de intercâmbio, da mesma quantidade de tecido que antes, porque na realidade lhe custaria exatamente a mesma coisa, já que, agora, 25 1/2 jardas de linho têm o mesmo valor, em seu mercado, que 17 jardas, anteriormente. Nesse caso, portanto, 10 jardas de tecido por 25 1/2 jardas de linho é a taxa de intercâmbio que, nessas circunstâncias novas, restabeleceria o equilíbrio da procura internacional; e a Inglaterra compraria linho 1/3 mais barato que antes, sendo essa mesma vantagem obtida pela Alemanha. Contudo, poderia acontecer que esse grande barateamento do linho aumentasse a procura de linho na Inglaterra em proporção superior à da baixa do preço, e que, se antes necessitasse de 1000 vezes 17 jardas, agora precisaria mais do que 1000 vezes 25 1/2 jardas, para atender à sua demanda. Se assim for, o equilíbrio da procura internacional não se pode estabelecer a essa taxa de intercâmbio: para pagar o linho, a Inglaterra tem de oferecer tecido a condições mais vantajosas: digamos, por exemplo, a taxa de 10 jardas de tecido por 21 de linho; assim sendo, a Inglaterra não auferirá o benefício pleno do aperfeiçoamento havido na produção do linho, enquanto a Alemanha, além de auferir esse benefício, também pagará menos pelo tecido. Mas é possível que a Inglaterra não deseje aumentar seu consumo de linho, nem sequer em uma proporção tão grande quanto a do barateamento do linho; poderia não desejar uma quantidade 1000 vezes 25 1/2 jardas: nesse caso, a Alemanha tem de forçar uma demanda, oferecendo mais do que 25 1/2 jardas de linho por 10 jardas de tecido; o linho se tornará mais barato na Inglaterra, em grau ainda maior do que na Alemanha, enquanto a Alemanha comprará tecido em condições mais desfavoráveis, a um valor de troca superior ao de antes. Depois do que já dissemos, não há necessidade de detalhar a maneira como esses resultados poderiam ser modificados, introduzindo-se na hipótese outros países e outras mercadorias. Há outra circunstância que também pode modificá-los. No caso suposto, os consumidores da Alemanha, por efeito do barateamento do linho, viram liberada parte de suas rendas, a qual sem dúvida podem gastar aumentando seu consumo desse artigo, mas que podem também gastar em outros artigos, e entre outros, em tecido ou outras mercadorias importadas. Isso representaria um elemento adicional na demanda internacional, e modificaria, em grau maior ou menor, as condições de intercâmbio. Das três variedades possíveis de influência do barateamento do linho sobre a procura, qual é a mais provável? A demanda aumentaria mais do que o barateamento, tanto quanto o barateamento, ou menos do que o barateamento? Isso depende da natureza da mercadoria específica, e dos gostos dos compradores. Quando se trata de uma mercadoria procurada por todos, cuja queda de preço a torna acessível a uma classe muito maior de cidadãos do que antes, a procura muitas vezes aumenta em uma proporção maior do que a queda do preço, e se passa a gastar uma quantia maior de dinheiro no artigo, de modo geral. Foi o que ocorreu com o café, quando seu preço baixou por efeito de reduções sucessivas dos impostos; e esse seria provavelmente também o caso do açúcar, do vinho, e de vasta gama de mercadorias que, se bem que não sejam artigos de primeira necessidade, são amplamente consumidas, e que muitos consumidores se permitem adquirir quando são baratas, e dispensam quando são caras. Todavia, é mais frequente acontecer que, quando cai o preço de uma mercadoria, se gasta menos dinheiro nela do que anteriormente: consome-se quantidade maior, mas não um valor tão grande. O consumidor que economiza dinheiro em razão do baixo preço do artigo provavelmente gastará parte da sua economia para aumentar seu consumo de outras coisas; quanto ao artigo em questão, porém, no geral se gastará uma soma menor, a não ser que o preço baixo atraia vasta categoria de novos consumidores que, ou não eram clientes do artigo, ou só o compravam em pequena quantidade e ocasionalmente. Falando de modo geral, portanto, o terceiro dos nossos três casos é o mais provável, e um aperfeiçoamento ocorrido na produção de um artigo exportável provavelmente beneficiará tanto — se é que não beneficia mais — a países estrangeiros quanto ao país no qual o artigo é produzido. § 6. É até este ponto que havíamos desenvolvido a teoria dos valores internacionais, na primeira e na segunda edição desta obra. Contudo, críticas inteligentes (sobretudo as do meu amigo sr. William Thornton), bem como uma pesquisa subsequente, demonstraram que a doutrina enunciada nas páginas que precedem, ainda que seja correta em si mesma, não representa a teoria completa sobre o assunto. Mostramos que os produtos exportados e importados entre os dois países (ou, se supusermos mais do que dois, entre cada país e o mundo) devem, no conjunto, pagar-se reciprocamente; portanto, devem ser trocados uns pelos outros, a valores que sejam compatíveis com o equilíbrio da procura internacional. Entretanto, da consideração que segue vê-se que isso não representa a lei completa que rege o fenômeno: são várias as taxas de valor internacional que podem igualmente cumprir as condições dessa lei. A hipótese era que a Inglaterra poderia produzir 10 jardas de tecido, com o mesmo trabalho que 15 de linho, e a Alemanha, com o mesmo trabalho que 20 jardas de linho; que se abriu um comércio entre os dois países; que a Inglaterra, a partir daí, restringiu sua produção ao tecido, e a Alemanha ao linho; e que, se a partir daí, 10 jardas de tecido fossem trocadas por 17 de linho, a Inglaterra e a Alemanha haveriam de atender exatamente à demanda uma da outra: que, por exemplo, se a Inglaterra, a esse preço, necessitasse de 17 mil jardas de linho, a Alemanha precisaria exatamente de 10 mil jardas de tecido, as quais, a esse preço, a Inglaterra teria que pagar pelo linho. Nessas suposições, constatou-se que 10 jardas de tecido por 17 de linho seriam, efetivamente, os valores internacionais. Mas é perfeitamente possível que alguma outra taxa, como 10 jardas de tecido por 18 de linho, também pudesse cumprir as condições de equilíbrio da procura internacional. Suponhamos que, a esta última taxa, a Inglaterra precisasse de mais linho do que à taxa de 10 por l7, mas não na proporção do barateamento: que ela não precisasse das 18 mil jardas que poderia agora comprar por 10 mil jardas de tecido, mas se contentasse com 17500, que pagaria (à nova taxa de 10 por 18) com 9722 jardas de tecido. Por sua vez, a Alemanha, tendo de pagar o tecido mais caro do que quando podia comprá-lo à taxa de 10 por 17, provavelmente reduziria seu consumo a uma quantidade inferior a 10 mil jardas, talvez exatamente à mesma quantidade, 9722 jardas. Continuaria a existir, nessas condições, o equilíbrio da procura internacional. Por conseguinte, tanto a taxa de 10 por 17 como a de 10 por 18 atenderiam igualmente ao equilíbrio da procura; e da mesma forma poderiam atendê-lo muitas outras taxas de intercâmbio. É concebível que as condições pudessem ser igualmente atendidas por qualquer taxa numérica suposta. Permanece, portanto, ainda uma parcela de indeterminação na taxa à qual os valores internacionais se ajustariam — o que mostra que podemos não ter levado em conta todas as circunstâncias influenciadoras. § 7. Constatar-se-á, que, para sanar essa falha, temos de levar em consideração não somente — como já fizemos — as quantidades das mercadorias que são objeto de demanda em cada país, mas também o aumento dos meios para atender a essa demanda, que são liberados em cada país, pela mudança na direção de seu trabalho. Para ilustrar esse ponto, será necessário escolher números mais convenientes do que os até agora empregados. Suponhamos que na Inglaterra 100 jardas de tecido, antes de iniciar o comércio, valessem 100 de linho, mas que na Alemanha 100 jardas de tecido valessem 200 de linho. Aberto o comércio entre os dois países, a Inglaterra forneceria tecido à Alemanha, e a Alemanha forneceria linho à Inglaterra, a um valor de troca que dependeria, em parte, do elemento já explicado — a saber, o grau comparativo em que, nos dois países, a baixa de preço tem por efeito aumentar a procura — e, em parte, de algum elemento ainda não levado em conta. Para detectarmos esse elemento desconhecido, será necessário fazer alguma suposição definida e invariável no tocante ao elemento conhecido. Suponhamos pois que a influência do barateamento do preço sobre a procura obedeça a alguma lei simples, comum aos dois países e às duas mercadorias. Por ser a mais simples e a mais conveniente, suponhamos que nos dois países qualquer barateamento do preço produza um aumento de consumo exatamente proporcional — ou, em outros termos, que o valor gasto na mercadoria (o custo que se tem para adquiri-la) seja sempre o mesmo, quer esse custo permita comprar quantidade maior ou menor da mercadoria. Suponhamos agora que a Inglaterra, anteriormente ao comércio, precisasse de 1 milhão de jardas de linho, que valessem, ao custo de produção inglês, 1 milhão de jardas de tecido. Aplicando todo o trabalho e capital com que esse linho era produzido à produção de tecido, ela produziria 1 milhão de jardas de tecido para exportação. Suponhamos que essa seja a quantidade exata que a Alemanha está habituada a consumir. A Inglaterra pode vender todo esse tecido na Alemanha, ao preço alemão; sem dúvida, a Inglaterra tem de consentir em receber um pouco menos, até eliminar o produtor alemão do mercado; mas logo que isso acontecer, ela poderá vender seu milhão de tecido por 2 milhões de linho — sendo esta a quantidade que os fabricantes alemães de tecido têm condições de fazer, transferindo toda a sua mão-de-obra e todo o seu capital do tecido para o linho. Assim sendo, a Inglaterra ganharia todo o benefício desse comércio, e a Alemanha não sairia ganhando nada. Isso conciliar-se-ia perfeitamente com o equilíbrio da procura internacional, pois a Inglaterra (conforme a hipótese do parágrafo precedente) agora precisa de 2 milhões de jardas de linho (por ser capaz de comprá-los ao mesmo custo pelo qual anteriormente comprava apenas 1 milhão), ao passo que, pelo fato de não serem alterados os preços na Alemanha, esta necessita, como antes, exatamente de 1 milhão de jardas de tecido, e pode comprá-las empregando a mão-de-obra e o capital retirados da produção de tecido, para produzir os 2 milhões de jardas de linho de que precisa a Inglaterra. Até aqui, supusemos que o tecido adicional que a Inglaterra poderia manufaturar, transferindo ao tecido todo o capital anteriormente empregado em fazer linho, era exatamente suficiente para atender à demanda total existente na Alemanha. Mas suponhamos agora que seja mais do que suficiente. Suponhamos que, enquanto a Inglaterra poderia, com seu capital liberado, fabricar 1 milhão de jardas de tecido para exportação, o tecido de que a Alemanha necessitava até agora fossem somente 800 mil jardas, equivalente, ao custo de produção alemão, a 1,6 milhão de jardas de linho. Portanto, a Inglaterra não poderia vender na Alemanha a totalidade de 1 milhão de jardas de tecido, aos preços alemães. No entanto, ela precisa, a preço baixo ou alto (pela nossa suposição), de tanto linho quanto possa comprar por 1 milhão de jardas de tecido; e já que este só pode ser obtido da Alemanha, ou pelo processo de produção mais caro no próprio país, os donos do milhão de jardas de tecido serão forçados, pela concorrência recíproca, a oferecê-lo à Alemanha a quaisquer condições (abaixo do custo de produção inglês) que levem a Alemanha a comprar o total. A suposição que fizemos nos possibilita definir exatamente quais seriam essas condições. As 800 mil jardas de tecido que a Alemanha consumiu custaram-lhe o equivalente a 1,6 milhão de jardas de linho, sendo este o custo invariável que está disposta a gastar em tecido, seja maior ou menor a quantidade que obtém por esse custo. A Inglaterra, portanto, para induzir a Alemanha a comprar 1 milhão de jardas de tecido, tem de oferecê-lo por 1,6 milhão de jardas de linho. Assim, os valores internacionais serão 100 jardas de tecido por 160 de linho, valores intermediários entre a taxa dos custos de produção na Inglaterra e a dos custos de produção na Alemanha; e os dois países dividirão entre si o benefício do comércio: a Inglaterra, ganhando no conjunto 600 mil jardas de linho, e a Alemanha, enriquecendo-se de 200 mil jardas adicionais de tecido. Levemos agora a última hipótese ainda mais longe, supondo que o tecido anteriormente consumido pela Alemanha não somente era menos que o milhão de jardas que a Inglaterra pode fornecer-lhe interrompendo sua produção de linho, mas menos, na proporção total da vantagem da Inglaterra nessa produção, isto é, que Alemanha só precisasse de meio milhão de jardas. Nesse caso, deixando totalmente de produzir tecido, a Alemanha pode acrescentar 1 milhão — mas somente 1 milhão — à sua produção de linho; e esse milhão, por ser o equivalente àquilo que anteriormente lhe custava o meio milhão de jardas, é o máximo que se pode levá-la a gastar em tecido, por mais barato que seja. A Inglaterra será forçada por sua própria concorrência a vender 1 milhão de jardas de tecido por esse milhão de jardas de linho, da mesma forma como, no caso anterior, foi forçada a vendê-lo por 1,6 milhão de jardas. Mas a Inglaterra poderia ter produzido, ao mesmo custo, 1 milhão de jardas de linho para si mesma. Nesse caso, portanto, a Inglaterra não aufere nenhuma vantagem desse comércio internacional. É a Alemanha que fica com todo o ganho, obtendo 1 milhão de jardas de tecido, em vez de meio milhão, por aquilo que anteriormente lhe custou o meio milhão. Em suma, a Alemanha, nesse terceiro caso, está exatamente na mesma situação em que se encontrava a Inglaterra no primeiro caso — o que é fácil de verificar, invertendo as cifras. Como resultado geral dos três casos, podemos estabelecer como teorema que, na hipótese que formulamos, de uma demanda exatamente proporcional ao barateamento do preço, a lei dos valores internacionais rezará assim: O total do tecido que a Inglaterra pode fabricar com o capital anteriormente dedicado ao linho será trocável pela totalidade do linho que a Alemanha pode fazer com o capital anteriormente aplicado ao tecido. Ou então, em formulação ainda mais geral: Os totais das mercadorias que os dois países podem respectivamente produzir para exportação, com a mão-de-obra e o capital liberados pela importação, serão trocados um pelo outro. Essa lei, bem como as três possibilidades diferentes que dela decorrem, no tocante à divisão da vantagem, pode ser adequadamente generalizada por meio de símbolos algébricos, como segue: Suponhamos que a quantidade de tecido que a Inglaterra pode fabricar com a mão-de-obra e o capital retirados da produção do linho seja = n. Suponhamos que o tecido anteriormente necessitado pela Alemanha (ao custo de produção alemão) seja = m. Então, n de tecido sempre será trocável por exatamente 2m de linho. Consequentemente, se n = m, toda a vantagem estará ao lado da Inglaterra. Se n = 2m, toda a vantagem estará do lado da Alemanha. Se n for maior que m, mas menor que 2m, os dois países partilharão da vantagem: a Inglaterra, recebendo 2m de linho, quando antes recebia apenas n; e a Alemanha, recebendo n de tecido, quando antes recebia apenas m. É quase supérfluo observar que a cifra 2 figura onde está apenas porque é a cifra que expressa a vantagem da Alemanha sobre a Inglaterra em termos de linho, avaliado em tecido, e (o que é a mesma coisa) da Inglaterra sobre a Alemanha em termos de tecido, avaliado em linho. Se tivéssemos suposto que na Alemanha, antes de se iniciar o comércio, 100 jardas de tecido valessem 1000 de linho, em vez de 200, nesse caso, n (depois de começar o comércio) valeria 10m, em vez de 2m. Se em vez de 1000 ou 200 tivéssemos suposto somente 150, n teria valido apenas 3/2m. Se (em suma) o valor de custo do tecido (avaliado em termos de linho) na Alemanha superar o valor de custo avaliado de maneira similar na Inglaterra, à razão de p para q, então n, depois da abertura do comércio, valerá p/q m. (Poder-se-ia perguntar por que supusemos que o número n tem, como seus limites extremos, m e 2m (ou p/q m); por que n não pode ser menor que m, ou maior do que 2m? E se assim acontecer, qual será o resultado? É o que passaremos a examinar; ao fazê-lo, aparecerá que n está sempre confinado dentro desses limites, na prática. Suponhamos, por exemplo, que n seja menor que m, ou, voltando para as nossas cifras anteriores, que o milhão de jardas de tecido, que a Inglaterra pode fabricar, não atenda ao total da demanda alemã existente anteriormente, sendo essa demanda (suponhamos, por hipótese) de 1,2 milhão de jardas. Pareceria então, à primeira vista, que a Inglaterra forneceria tecido à Alemanha até a extensão de 1 milhão de jardas, que a Alemanha continuaria a suprir-se ela mesma com as restantes 200 mil jardas com sua produção interna, que esta última parte do suprimento regularia o preço do todo, e que, portanto, a Inglaterra teria condições de vender permanentemente seu milhão de jardas de tecido ao custo de produção alemão (isto é, por 2 milhões de jardas de linho) e ficaria em situação melhor do que antes. Logo ficará evidente, porém, que não será esse o resultado prático. A demanda restante da Alemanha, de 200 mil jardas de tecido, oferece à Inglaterra um recurso, para fins de comércio exterior, do qual continua a ter interesse em valer-se. E embora ela não tenham mais mão-de-obra e capital, que possa retirar da produção de linho para a produção dessa quantidade exata de tecido, deve haver outras mercadorias em que a Alemanha tenha vantagem relativa sobre ela (ainda que talvez não tão grande quanto em linho). Essas mercadorias, a Alemanha passará agora a importar, em vez de produzi-las no país, e a mão-de-obra e o capital antes empregados na produção delas serão transferidos à produção de tecido, até atingir o montante de que necessita. Se essa transferência apenas perfizer as 200 mil jardas que faltam, e não passar disso, esse n aumentado será agora igual a m; a Inglaterra venderá o total do 1,2 milhão jardas aos valores alemães, e continuará a ficar com toda a vantagem desse comércio. Mas se a transferência de mão-de-obra e capital perfizer mais de 200 mil jardas de tecido, a Inglaterra terá mais do que esse 1,2 milhão de jardas de tecido a oferecer; n se tornará maior que m, e a Inglaterra terá que abrir mão de parte de sua vantagem, suficiente para induzir a Alemanha a comprar o excedente. Assim, esse caso, que à primeira vista parecia ir além dos limites, vem a transformar-se, na prática, em um caso que, ou coincide com um dos limites, ou é intermediário entre eles. E o mesmo acontecerá com qualquer outro caso que se possa supor). § 8. Chegamos agora àquilo que parece uma lei dos valores internacionais, de grande simplicidade e generalidade. Mas fizemos isso partindo da hipótese puramente arbitrária no tocante à relação entre a procura e o barateamento do preço. Supusemos que a relação entre os dois elementos fosse fixa, embora seja essencialmente variável. Supusemos que todo barateamento produz um aumento exatamente proporcional da procura — em outras palavras, que se gasta o mesmo valor invariável em uma mercadoria, seja ela barata ou cara. E a lei que investigamos só funciona nessa hipótese, ou em alguma outra que praticamente lhe equivalha. Por isso, associemos agora os dois elementos variáveis da questão, pois até aqui consideramos as variações de cada um deles em separado. Suponhamos que varie a relação entre a procura e o barateamento, e que ela se torne tal que impeça que a regra do intercâmbio, estabelecida no último teorema, atenda às condições do equilíbrio da procura internacional. Suponhamos, por exemplo, que a procura da Inglaterra por linho seja exatamente proporcional ao barateamento, mas que não seja proporcional à da Alemanha por tecido. Voltemos ao segundo dos nossos três casos, no qual a Inglaterra, interrompendo a produção de linho, poderia produzir para exportação 1 milhão de jardas de tecido, e a Alemanha, deixando de produzir tecido, poderia produzir 1,6 milhão de jardas adicionais de linho. Se a primeira dessas duas quantidades valesse exatamente a outra, a demanda da Inglaterra seria exatamente atendida, na nossa hipótese atual, pois ela precisa de todo o linho que se pode comprar por 1 milhão de jardas de tecido; mas talvez a Alemanha, embora precisasse de 800 mil jardas de tecido a um custo equivalente a 1,6 milhão de linho (e quando pudesse conseguir 1 milhão de jardas de tecido ao mesmo custo), poderia não precisar do milhão inteiro, ou poderia precisar de mais de 1 milhão. Primeiro, suponhamos que ela não precise de 1 milhão, mas apenas da quantidade que pode agora comprar por 1,5 milhão de jardas de linho. A Inglaterra continuará a oferecer 1 milhão de jardas de tecido por este 1,5 milhão de jardas de linho; mas mesmo isso pode não induzir a Alemanha a comprar 1 milhão de jardas de tecido; e se a Inglaterra continuar a gastar exatamente o mesmo custo global em linho, qualquer que seja o preço, terá que se submeter a aceitar, por seu milhão de jardas de tecido, qualquer quantidade de linho (não menos de 1 milhão de jardas) que possa ser necessária para induzir a Alemanha a comprar 1 milhão de jardas de tecido. Suponhamos que essa quantidade seja 1,4 milhão de jardas. Com isso, a Inglaterra não auferiu do comércio um ganho de 600 mil, mas apenas de 400 mil jardas, enquanto a Alemanha, além de ter conseguido 200 mil jardas extras de tecido, obteve-as com apenas 7/8 do trabalho e do capital que anteriormente gastava para suprir-se de tecido, podendo gastar o resto no aumento de seu próprio consumo de linho, ou de qualquer outra mercadoria. Suponhamos, ao contrário, que a Alemanha, à taxa de 1 milhão de jardas de tecido por 1,6 milhão de linho, precise de mais de 1 milhão de jardas de tecido. Pelo fato de a Inglaterra ter apenas 1 milhão que pode vender sem mexer na quantidade que anteriormente reservou para si mesma, a Alemanha será obrigada a oferecer, pela quantidade extra, uma taxa superior a 160 por 100, até atingir uma taxa (digamos, 170 por 100) que ou reduzirá sua própria demanda de tecido ao limite de 1 milhão de jardas, ou então tentará a Inglaterra a vender um pouco do tecido que esta anteriormente consumia internamente. Suponhamos agora que a proporcionalidade da procura em relação ao barateamento do preço, em vez de funcionar em um país, mas não no outro, não funciona em nenhum dos dois, e que o desvio seja o mesmo nos dois — que, por exemplo, em nenhum dos dois países a demanda aumente em grau equivalente ao barateamento. Nessa hipótese, à taxa de 1 milhão de jardas de tecido por 1,6 milhão de linho, a Inglaterra não precisará de 1,6 milhão de jardas de linho, nem a Alemanha precisará de 1 milhão de jardas de tecido; e se a demanda dos dois países ficar abaixo desse montante, exatamente na mesma percentagem — se a Inglaterra precisar de linho apenas no montante de 9/10 de 1,6 milhão (1,44 milhão), e a Alemanha precisar apenas de 900 mil jardas de tecido —, o intercâmbio comercial continuará a ocorrer à mesma taxa. Assim também acontecerá se a Inglaterra precisar de 1/10 a mais, que 1,6 milhão de jardas, e a Alemanha, de 1/10 a mais de 1 milhão de jardas. É evidente que essa coincidência (a qual, é de se notar, supõe que a procura aumente o barateamento, em grau correspondente, mas não em grau igual (Os aumentos da demanda, de 800 mil para 900 mil, e de 1 milhão para 1,44 milhão, não são iguais em si mesmos, nem mantêm a mesma proporção com o barateamento. A demanda alemã por tecido aumentou 1/8, ao passo que o barateamento aumentou 1/4. A demanda inglesa de linho aumentou 44%, enquanto o barateamento aumentou 60%)) só poderia existir por simples casualidade; e, em qualquer outro caso, o equilíbrio da procura internacional demandaria um ajuste diferente de valores internacionais. Consequentemente, a única lei geral que se pode estabelecer é a seguinte. Os valores aos quais um país troca seus produtos com países estrangeiros dependem de duas coisas: primeiro, do montante e da possibilidade de aumentar a demanda desses países estrangeiros em relação às mercadorias desse país, em comparação com a demanda deste em relação aos produtos dos países estrangeiros; e segundo, do capital que esse país tem de retirar da produção de mercadorias internas destinadas ao seu próprio consumo. Quanto mais a demanda estrangeira pelas mercadorias desse país ultrapassar a demanda deste por mercadorias estrangeiras, e quanto menos capital puder reservar para produzir para mercados estrangeiros, em comparação com o capital que estrangeiros reservam para produzir para os mercados deste, tanto mais favorável a ele serão as condições de intercâmbio, isto é, tanto maior quantidade obterá, de mercadorias estrangeiras, em troca de determinada quantidade de suas próprias. Na realidade, porém, essas duas circunstâncias influenciadoras podem ser reduzidas a uma única, pois o capital que um país tem de retirar da produção de mercadorias internas, destinadas a seu próprio uso, é proporcional à sua própria demanda de mercadorias estrangeiras; qualquer que seja a percentagem da renda coletiva que o país gasta para comprar no exterior, essa mesma percentagem de seu capital é privada de mercado interno para seus produtos. Por conseguinte, o novo elemento que introduzimos na teoria dos valores internacionais, para que ela seja cientificamente correta, não parece acarretar nenhuma diferença substancial no resultado prático. Continua a ser verdade que os países que efetuam seu comércio externo nas condições mais vantajosas são aqueles cujas mercadorias são objeto de maior demanda por parte de países estrangeiros, tendo eles mesmos a menor demanda de mercadorias estrangeiras. Disso segue, entre outras consequências, que os países mais ricos, coeteris paribus, são os que menos ganham com determinado montante de comércio exterior; com efeito, por terem demanda maior de mercadorias em geral, provavelmente têm também demanda maior de mercadorias estrangeiras, e com isso modificam as condições de intercâmbio, com desvantagem para eles próprios. Sem dúvida, seus ganhos totais com o comércio exterior costumam ser maiores que os de países mais pobres, pois efetuam um montante maior desse tipo de comércio, e auferem o benefício de preços baixos por terem consumo maior; entretanto, seu ganho é menor, em se considerando cada artigo individual consumido. § 9. Passaremos agora a outra parte essencial da teoria sobre esta matéria. Um país pode obter mercadorias mais baratas com o comércio exterior, em dois sentidos: no sentido de valor e no sentido de custo. No primeiro, consegue-as a preço mais baixo em virtude de as mercadorias baixarem de valor em relação a outras coisas — pelo fato de a mesma quantidade dessas mercadorias ser trocada, no país, por uma quantidade menor do que antes, dos outros produtos do país. Voltemos às nossas cifras originais. Na Inglaterra, todos os consumidores de linho compravam, depois de se abrir o comércio, 17 jardas — ou algum número maior delas — pela mesma quantidade de todas as outras coisas pelas quais anteriormente compravam apenas 15. O grau de barateamento, nesse sentido do termo, depende das leis da procura internacional, tão copiosamente ilustradas nos parágrafos precedentes. No segundo sentido, porém, de custo, um país compra uma mercadoria mais barato quando obtém quantidade maior da mercadoria com o mesmo gasto de trabalho e de capital. Nessa acepção do termo barato, em grande parte o baixo custo depende de uma causa de natureza diferente: um país consegue importar mais barato, em proporção com a produtividade geral de sua atividade interna, em proporção à eficiência geral de sua mão-de-obra. A mão-de-obra de um país pode ser, no global, muito mais eficiente que a de outro. Todas as mercadorias (ou a maior parte delas) passíveis de serem produzidas nos dois, podem ser produzidas em um país, a um custo absoluto menor do que no outro — o que, como vimos, não impedirá necessariamente os dois países de intercambiarem mercadorias. Naturalmente, as coisas que o país mais favorecido importará de outros são aquelas nas quais sua superioridade é a menor; entretanto, importando essas mercadorias, o país adquire, mesmo nessas mercadorias, a mesma vantagem que possui nos artigos que dá em troca por elas. Consequentemente, os países que conseguem produzir com o custo mais baixo também conseguem importar ao custo mais baixo. Isso se tornará ainda mais evidente se supusermos dois países concorrentes. A Inglaterra envia tecido para a Alemanha, e paga 10 jardas dele por 17 jardas de linho, ou por alguma outra coisa que na Alemanha equivale a essas 17 jardas de linho. Outro país, por exemplo, a França, faz o mesmo. Se um pagar 10 jardas de tecido por determinada quantidade de mercadorias alemãs, o outro tem de fazer o mesmo; se, portanto, na Inglaterra, essas 10 jardas de tecido forem produzidas por apenas a metade do trabalho com o qual são produzidas na França, o linho ou outras mercadorias da Alemanha custarão à Inglaterra apenas a metade do montante de trabalho que custarão à França. Assim, a Inglaterra compraria seus artigos importados a custo mais baixo que a França, à razão da maior eficiência de sua mão-de-obra na produção do tecido — e isso poderia ser considerado, no caso suposto, como uma estimativa aproximada da eficiência de sua mão-de-obra em geral, pois a França, tanto quanto a Inglaterra, optando pelo tecido como seu artigo de exportação, teria mostrado que também nesse país o tecido era a mercadoria na qual sua mão-de-obra era relativamente a mais eficiente. Infere-se, pois, que cada país consegue importar com menos custo, na razão da eficiência geral de sua mão-de-obra. Quem primeiro viu e expôs claramente essa proposição foi o sr. Senior (Three Lectures on the Cost of Obtaining Money), mas apenas com aplicabilidade à importação dos metais preciosos. Acredito ser importante assinalar que ela é verdadeira também em relação a todas as outras mercadorias importadas; além disso, é importante salientar que ela representa apenas parte da verdade. Efetivamente, no caso suposto, o custo, para a Inglaterra, do linho que paga com 10 jardas de tecido não depende somente do custo, para ela mesma, de 10 jardas de tecido, mas em parte também do número de jardas de linho que compra com elas. O que custam para ela os artigos que importa é uma função de duas variáveis: a quantidade de suas próprias mercadorias que paga por eles, e o custo dessas mercadorias. Dessas duas variáveis, somente a segunda depende da eficiência de sua mão-de-obra; a primeira depende da lei dos valores internacionais, isto é, da intensidade e da possibilidade de aumento da demanda estrangeira em relação às mercadorias inglesas, comparada com sua própria demanda de mercadorias estrangeiras. No caso que acabamos de supor, de uma concorrência entre a Inglaterra e a França, a situação dos valores internacionais afetou os dois concorrentes igualmente, pois pela suposição estavam comercializando com o mesmo país, e exportavam e importavam as mesmas mercadorias. Por isso, a diferença de custo de suas importações respectivas dependia exclusivamente da outra causa, a eficiência desigual de sua mão-de-obra. Vendiam as mesmas quantidades, e por isso a diferença só poderia estar no custo de produção. Mas se a Inglaterra vendesse à Alemanha tecido, e a França vendesse ferro, a demanda comparativa existente na Alemanha em relação a essas duas mercadorias teria parte na determinação do custo comparativo, de mão-de-obra e de capital, ao qual a Inglaterra e a França comprariam produtos alemães. Se na Alemanha a demanda de ferro fosse maior do que a demanda de tecido, a França recuperaria, por meio disso, parte de sua desvantagem, e se a demanda de sua mercadoria fosse menor, sua desvantagem aumentaria. Por conseguinte, a eficiência da mão-de-obra de um país não é o único fator que determina até mesmo o custo ao qual esse país consegue suas importações; em contrapartida, o fator eficiência da mão-de-obra não tem nenhuma influência para determinar o valor de troca das mercadorias importadas, nem, como veremos a seguir, o preço delas. CAPÍTULO XIX O Dinheiro, Considerado como Mercadoria Importada § 1. O progresso já feito na teoria do comércio exterior nos capacita agora a completar o que antes faltava em nossa visão sobre a teoria do dinheiro; e essa visão, uma vez completada, nos possibilitará concluir o tema do comércio exterior. O dinheiro, ou o material do qual é feito, é uma mercadoria estrangeira, na Grã-Bretanha e na maioria dos outros países. Portanto, seu valor e sua distribuição têm de ser regulados não pela lei que rege o valor em se tratando de lugares vizinhos, mas por aquela que é aplicável a mercadorias importadas — a lei dos valores internacionais. Na discussão em que agora entraremos, usarei os termos dinheiro e metais preciosos indiscriminadamente. Pode-se fazer isso sem levar a nenhum erro, pois mostramos que o valor do dinheiro, quando este consiste nos metais preciosos, ou de um papel-moeda conversível em metais preciosos sob pedido, é totalmente regido pelo valor dos próprios metais — valor este do qual nunca difere permanentemente, a não ser no montante da despesa de cunhagem, quando esta é paga pelo indivíduo e não pelo Estado. Há duas maneiras diferentes de trazer dinheiro para um país. Ele é importado (sobretudo na forma de metal em barras ou lingotes) como qualquer outra mercadoria, por ser um artigo vantajoso de comércio. Também é importado na qualidade de instrumento de troca, para pagar alguma quantia devida ao país, seja por mercadorias exportadas, seja por qualquer outra razão. Há outras maneiras casuais de introduzir dinheiro, em que ele é recebido no decurso normal dos negócios, e que determinam seu valor. A existência desses dois modos de introduzir dinheiro no país, enquanto outras mercadorias são habitualmente introduzidas apenas da primeira das duas maneiras citadas, gera um pouco mais de complexidade e obscuridade do que há no caso de outras mercadorias, e somente por essa razão se faz necessária uma exposição especial e detalhada. § 2. Na medida em que os metais preciosos são importados pelas vias comerciais normais, seu valor deve depender das mesmas causas e obedecer às mesmas leis que o valor de qualquer produto estrangeiro. É sobretudo dessa maneira que o ouro e a prata se espalham dos países possuidores das minas para todas as partes do mundo comercial. São as mercadorias básicas desses países; ou ao menos estão entre os seus grandes artigos regularmente exportados; e são expedidos com fins especulativos, da mesma forma que outras mercadorias exportáveis. Por isso, a quantidade que um país (digamos a Inglaterra) pagará, de seus próprios produtos, por determinada quantidade de ouro ou prata em barras dependerá, se supusermos apenas dois países e duas mercadorias; da procura que a Inglaterra tem de metal em barras, comparada com a demanda existente no país das minas (que denominaremos Brasil) por aquilo que a Inglaterra tem para vender-lhe. Têm de ser trocáveis em proporções tais que não deixem desatendida nenhuma demanda, nos dois lados, que altere os valores em virtude da concorrência. O metal em barras necessitado pela Inglaterra deve pagar exatamente o algodão ou outras mercadorias inglesas necessitadas pelo Brasil. Se, porém, em lugar desse caso simples introduzirmos o grau de complexidade que existe na realidade, o equilíbrio da procura internacional tem de ser estabelecido não entre o metal em barras necessitado na Inglaterra e o algodão ou o tecido fino de lã preta necessitado no Brasil, mas entre a totalidade das importações da Inglaterra e a totalidade das suas exportações. A demanda existente em países estrangeiros de produtos ingleses deve chegar a um equilíbrio com a demanda existente na Inglaterra de produtos de países estrangeiros; e todas as mercadorias estrangeiras, entre elas o metal em barras, têm de ser trocadas por produtos ingleses, em proporções que estabeleçam esse equilíbrio, pelo efeito que produzem sobre a demanda. Nada existe na natureza ou nos usos especiais dos metais preciosos que faça deles uma exceção aos princípios gerais que regem a procura. Na medida em que se precisa deles para fins de luxo ou para as artes, a demanda aumenta com o baixo preço, da mesma maneira irregular que a procura em relação a qualquer outra mercadoria. Na medida em que deles se precisa para servirem como dinheiro, a procura aumenta com a queda do preço de modo perfeitamente regular, sendo que a quantidade necessitada sempre está na proporção inversa ao valor. Essa é a única diferença real, quanto à procura, entre o dinheiro e outras coisas — e para a finalidade a que aqui visamos, trata-se de uma diferença totalmente irrelevante. Por conseguinte, o dinheiro, se importado exclusivamente como mercadoria, terá, como outras mercadorias importadas, o valor mais baixo naqueles países para cujas exportações existir a maior demanda estrangeira, e nos quais há a menor demanda por mercadorias estrangeiras. A essas duas circunstâncias, porém, é necessário acrescentar duas outras, que produzem seu efeito por meio do custo de transporte. O custo de obtenção de ouro e prata em barras consta de dois elementos: as mercadorias dadas para comprá-los e a despesa de transporte, sendo que desta última, parte (ainda que incerta) recai sobre os países produtores dos metais, no ajuste dos valores internacionais. A despesa de transporte consiste, em parte, no transporte das mercadorias para os países produtores de metal em barras, e em parte em trazer de volta o metal em barras; ambos os itens são influenciados pela distância das minas, e o primeiro é também muito afetado pelo volume das mercadorias. Países cujo produto exportável consiste nos manufaturados mais finos compram metal em barras, bem como todos os outros artigos estrangeiros, coeteris paribus, com despesa menor do que países que só exportam produtos brutos de grande volume. Para sermos exatos, portanto, devemos afirmar: os países cujos produtos exportáveis são objeto de maior demanda no exterior, e cujos produtos contêm maior valor no menor volume, que estiverem mais próximos das minas, e que tiverem menor procura por produtos estrangeiros, serão aqueles em que o dinheiro terá menor valor, ou seja, aqueles nos quais os preços habitualmente serão os mais altos. Se não estivermos falando do valor do dinheiro, mas de seus custos (isto é, da quantidade de trabalho do país que se tem de gastar para consegui-lo), temos de acrescentar a essas quatro condições de barateamento uma quinta, a saber, “cuja atividade produtiva for a mais eficiente”. Todavia, esta última não afeta em nada o valor do dinheiro, avaliado em mercadorias; afeta a abundância e a facilidade em geral com as quais se podem obter todas as coisas, tanto o dinheiro como as mercadorias. Conquanto, pois, o sr. Senior tenha razão em assinalar a grande eficiência da mão-de-obra inglesa como a causa principal por que os metais preciosos são obtidos a menor custo pela Inglaterra do que pela maioria dos outros países, não posso admitir que essa causa tenha alguma responsabilidade no fato de terem menor valor, por ser menor seu poder de compra de mercadorias. Isso, na medida em que é um fato, e não uma ilusão, deve provir da grande procura, existente em países estrangeiros, em relação às mercadorias básicas da Inglaterra, e do fato de em geral essas mercadorias serem pouco volumosas, em comparação com trigo, vinho, madeira, açúcar, lã, couros, sebo, cânhamo, linho, fumo, algodão bruto etc., que constituem as exportações de outros países comerciais. Essas duas causas responderão por uma faixa um pouco mais alta de preços gerais da Inglaterra do que em outras partes, a despeito da influência oposta da grande procura inglesa por mercadorias estrangeiras. Entretanto, penso firmemente que os altos preços das mercadorias, e o baixo poder de compra do dinheiro na Inglaterra, sejam mais aparentes do que reais. Sem dúvida, os alimentos são algo mais caros e representam uma porção tão grande do gasto, quando a renda é pequena e a família é grande, que para essas famílias a Inglaterra é um país caro. Também a maioria dos serviços é mais cara do que em outros países europeus, devido ao padrão de vida menos caro das classes mais pobres da Europa continental. Mas as mercadorias manufaturadas (excetuada a maioria daquelas nas quais se requer bom gosto) são decididamente mais baratas — ou seriam mais baratas, se os compradores se contentassem com a mesma qualidade de material e de serviço. O que se denomina alto custo de vida na Inglaterra é sobretudo uma questão de costume descabido, do que de necessidade — é porque na Inglaterra todas as classes que estão acima da condição de um trabalhador diarista consideram imperativo que as coisas que consomem devem ser da mesma qualidade que as usadas por pessoas muito mais ricas, ou, no mínimo, devem ter a maior semelhança externa possível com as coisas usadas por pessoas muito mais ricas. § 3. Das considerações que precedem, infere-se que laboram em grande erro os que sustentam que o valor do dinheiro, em países onde ele é importado, deve ser inteiramente regulado pelo seu valor nos países que o produzem, e só pode aumentar ou baixar em caráter permanente se tiver ocorrido alguma mudança no custo de produção nas minas. Pelo contrário, qualquer circunstância que perturbe o equilíbrio da procura internacional com respeito a um país específico não somente pode, mas deve afetar o valor do dinheiro naquele país — permanecendo inalterado seu valor nas minas. A abertura de novo setor de comércio de exportação por parte da Inglaterra, aumento da demanda estrangeira por produtos ingleses (seja pelo curso natural dos acontecimentos, seja pela abolição de impostos), restrição à demanda inglesa por produtos estrangeiros (com a imposição de taxas de importação na Inglaterra, ou com a imposição de taxas de exportação alhures) — esses e todos os outros eventos de tendência similar fariam com que as importações da Inglaterra (metal em barras e outras coisas conjuntamente) não mais constituíssem um equivalente para as exportações. Os países que compram os produtos exportados pela Inglaterra seriam obrigados a oferecer suas mercadorias, entre elas o metal em barras, em condições mais baratas, a fim de restabelecer o equilíbrio da procura. Assim, a Inglaterra adquiriria dinheiro mais barato e conseguiria uma faixa de preços em geral mais alta. Eventos opostos a estes produziriam efeitos opostos — reduziriam os preços ou, em outras palavras, aumentariam o valor dos metais preciosos. Importa observar, porém, que o dinheiro aumentaria assim de valor somente em relação às mercadorias internas; em relação a todos os artigos importados, permaneceria como antes, pois seus valores seriam afetados da mesma forma e no mesmo grau que seus próprios produtos. Um país que, em razão de qualquer uma das causas mencionadas, obtém o dinheiro mais barato, também paga mais barato todos os outros artigos que importa. Não é de maneira alguma necessário que o aumento da demanda de mercadorias inglesas, que possibilita à Inglaterra suprir-se com metais preciosos em barras a uma taxa mais barata, ocorra nos países possuidores de minas. A Inglaterra poderia não exportar absolutamente nada para esses países, e, no entanto, poderia ser o país que compraria deles metais em barras aos preços mais baixos, desde que houvesse intensidade suficiente de procura em outros países estrangeiros por produtos ingleses, que seriam pagos indiretamente com ouro e prata procedentes dos países possuidores de minas. O que tem valor de troca igual ao total das importações de um país é o total daquilo que esse país exporta, e não o total das suas exportações e importações, e será a procura estrangeira em geral, pelos produtos desse país, que determinará qual é o equivalente que o país tem de pagar por mercadorias importadas, a fim de estabelecer um equilíbrio entre suas vendas e suas compras em geral — sem levar em conta a manutenção de um equilíbrio semelhante entre esse país e qualquer outro, considerado individualmente. CAPÍTULO XX As Trocas com o Exterior § 1. Estudamos até aqui os metais preciosos como uma mercadoria, importada como outras no decurso do comércio normal, e examinamos as circunstâncias que nesse caso determinam seu valor. Mas esses metais são também importados com outra propriedade, a que advém do fato de serem meio ou instrumento de troca — não, portanto, como um artigo de comércio, vendido em troca de dinheiro, mas sendo eles mesmos dinheiro, usados para pagar uma dívida ou efetuar uma transferência de propriedade. Resta considerar se a possibilidade de o ouro e a prata serem transportados de um país a outro, para tais finalidades, modifica de alguma forma as conclusões às quais já chegamos, ou seja, coloca esses metais sob uma lei diferente no tocante ao valor — diferente da lei à qual, juntamente com todas as outras mercadorias importadas, estariam sujeitos, se o comércio internacional fosse na forma de escambo direto. O dinheiro é enviado de um país a outro por motivos diversos, entre os quais: pagamento de tributos ou subsídios, remessas de receita de colônias para o país do Governo central ou vice-versa, remessa de aluguéis ou outras rendas a seus donos ausentes, emigração ou transferência de capital para investimento no exterior. Entretanto, a finalidade mais comum é a de pagamento por mercadorias. Para mostrarem que circunstâncias o dinheiro passa efetivamente de um país a outro, para essa finalidade ou para qualquer outra das mencionadas, é necessário expor brevemente a natureza do mecanismo pelo qual se efetua o comércio internacional, quando ele se efetua não por escambo, mas por meio de dinheiro. § 2. Na prática, os artigos de exportação e de importação de um país, além de não serem trocados diretamente uns pelos outros, muitas vezes nem sequer passam pelas mesmas mãos. Os artigos exportados e os importados são comprados e pagos separadamente, com dinheiro. Vimos, porém, que até no mesmo país o dinheiro não passa efetivamente de uma mão a outra toda vez que com ele se fazem compras; muito menos isso acontece entre países diferentes. A maneira habitual de pagar e receber pagamento por mercadorias, entre um país e outro, é mediante letras de câmbio. Um comerciante da Inglaterra, A, exportou mercadorias inglesas, consignando-as ao seu correspondente B na França. Outro comerciante na França, C, exportou mercadorias francesas — suponhamos, de valor equivalente — a um comerciante D na Inglaterra. Evidentemente, não é necessário que B, na França, envie dinheiro a A na Inglaterra, e que D na Inglaterra envie quantia igual de dinheiro a C na França. Uma dívida pode ser aplicada para pagar outra, economizando assim o custo duplo e o risco do transporte do dinheiro. A emite uma letra contra B, no montante que B lhe deve; D, por ter montante igual a pagar na França, compra essa letra de A e a envia a C, o qual, ao expirar o número de dias que a letra tem para vencer, a apresenta a B para pagamento. Assim, o montante devido pela França à Inglaterra e o devido pela Inglaterra à França são pagos sem enviar uma onça sequer de ouro ou prata de um país a outro. Nessa hipótese, porém, supõe-se que a soma devida pela França à Inglaterra seja igual ao montante devido pela Inglaterra à França, e que cada país tenha exatamente o mesmo número de onças de ouro ou prata a pagar e a receber. Isso implica (se excluirmos, de momento, quaisquer outros pagamentos internacionais que não sejam os ocorrentes no decurso do comércio) que as exportações e as importações se paguem exatamente umas pelas outras, ou, em outros termos, que reine o equilíbrio da procura internacional. Quando o fato é esse, as transações internacionais são liquidadas sem a transferência de dinheiro de um país a outro. Mas, se a Inglaterra dever à França uma quantia maior do que aquela que esta deve à Inglaterra, ou vice-versa, as dívidas não podem ser simplesmente liquidadas uma pela outra. Depois de uma ser aplicada, na medida em que for suficiente, para cobrir a outra, o saldo tem de ser pago em metais preciosos. Na realidade, porém, o comerciante que tem o montante a pagar, mesmo então efetuará o pagamento por meio de uma letra. Quando uma pessoa tem de enviar dinheiro a um país estrangeiro, não vai ela mesma procurar alguém que tenha dinheiro a receber desse país, pedindo-lhe uma letra de câmbio. Nesse ramo de negócios, como em outros, existe uma categoria de intermediários ou corretores, que reúne compradores e vendedores, ou se fazem de intermediários entre os dois, comprando letras daqueles que têm dinheiro a receber, e vendendo letras àqueles que têm dinheiro a pagar. Quando um cliente aborda um corretor, solicitando dele uma letra de câmbio contra Paris ou Amsterdam, o corretor talvez lhe venda a letra que ele mesmo pode ter comprado naquela manhã de um comerciante, talvez uma letra emitida contra seu próprio correspondente na cidade estrangeira; e para possibilitar ao seu correspondente fazer o pagamento, nos prazos de vencimento, de todas as letras que outorga, lhe manda todas aquelas que comprou e não revendeu. Assim, esses corretores assumem todo o acerto das transações pecuniárias entre lugares distantes, sendo remunerados por uma pequena comissão ou percentagem do montante de cada letra que vendem ou compram. Se os corretores constatam que de um lado se lhes solicitam letras em um montante superior àquele das letras que lhes são oferecidas do outro lado, nem por isso recusam outorgá-las; entretanto, já que, nesse caso, não têm meios de possibilitar aos correspondentes contra os quais suas letras são emitidas, pagá-las no prazo do vencimento, a não ser transferindo parte do montante em forma de ouro ou prata, exigem daqueles a quem vendem letras um preço adicional, suficiente para cobrir o frete e o seguro do ouro e da prata, com lucro suficiente para compensar-lhes o trabalho e ocupação temporária de parte de seu capital. Os compradores estão dispostos a pagar esse ágio (como se denomina), porque do contrário eles mesmos teriam de sujeitar-se ao gasto de enviar os metais preciosos, o que é mais barato se for feito por aqueles que cumprem essa tarefa como parte de seu métier específico. Embora, porém, apenas alguns daqueles que têm uma dívida a pagar teriam efetivamente que enviar dinheiro, todos serão obrigados, em razão da concorrência recíproca, a pagar o ágio, e os corretores, pela mesma razão, são obrigados a pagá-lo àqueles cujas letras compram. Acontece o inverso disso se, comparando as exportações com as importações, o país, em vez de ter um saldo a pagar, tem um saldo a receber. Os corretores recebem uma oferta de letras superior ao número de letras suficiente para cobrir aquelas que outorgam a clientes que lhas solicitam. Por isso, letras contra países estrangeiros sofrem um desconto; e a concorrência reinante entre os corretores, que é excessivamente intensa, os impede de reter esse desconto como um lucro para eles próprios, obrigando-os a dar esse benefício àqueles que compram as letras para fins de remessa. Suponhamos que todos os países tivessem a mesma moeda, coisa que acontecerá um dia, em virtude do aperfeiçoamento político; e suponhamos que essa moeda seja a inglesa, por ser a mais familiar ao leitor, se bem que não seja a melhor. Se a Inglaterra tivesse de pagar à França o mesmo número de libras esterlinas que a França tem de pagar à Inglaterra, um grupo de comerciantes na Inglaterra precisaria de letras, e outro grupo teria letras para vender, exatamente pelo mesmo número de libras esterlinas. Em consequência, uma letra de 100 libras contra a França se venderia exatamente por 100 libras, ou seja, no linguajar dos comerciantes, o câmbio estaria ao par. Como também a França, nessa hipótese, teria um número igual de libras esterlinas a pagar e a receber, as letras contra a Inglaterra estariam ao par na França, sempre que as letras contra a França estivessem ao par na Inglaterra. Todavia, se a Inglaterra tivesse uma quantia maior a pagar do que a receber, em relação à França, haveria pessoas precisando de letras contra a França por um número de libras esterlinas superior ao número de letras emitidas por pessoas a quem se devesse dinheiro. Uma letra de 100 libras contra a França seria então vendida por mais de 100 libras, e se diria que as letras dariam um ágio. Entretanto, o ágio não poderia ultrapassar o custo e o risco de efetuar a remessa em ouro, mais um pequeno lucro, pois se passasse disso o próprio devedor enviaria o ouro, em vez de comprar a letra. Ao contrário, se a Inglaterra tivesse mais dinheiro a receber da França do que a pagar-lhe, haveria em oferta letras por um número de libras superior ao que se precisaria para remessa, e o preço das letras desceria abaixo do par: uma letra de 100 libras poderia ser comprada por pouco menos e se diria que as letras sofreriam um desconto. Quando a Inglaterra tem mais a pagar do que a receber, a França tem mais a receber do que a pagar, e vice-versa. Quando, portanto, na Inglaterra, as letras contra a França dão ágio, na França, então, as letras contra a Inglaterra sofrem desconto; e quando as letras contra a França não sofrem desconto na Inglaterra, então as letras contra a Inglaterra têm ágio na França. E se estão ao par em um dos dois países, estão ao par nos dois, como vimos. É isso que acontece entre países ou lugares que têm a mesma moeda. No entanto, ainda persiste tanto primitivismo nas transações das nações mais civilizadas, que quase todos os países independentes optam por afirmar sua nacionalidade possuindo uma moeda própria especial, aliás em detrimento próprio e em detrimento de seus vizinhos. Para o propósito aqui visado, isso não faz outra diferença senão esta: em vez de falarmos de somas iguais de dinheiro, temos de falar de somas equivalentes. Por somas equivalentes, quando as duas moedas são feitas do mesmo metal, entendem-se somas que contêm exatamente a mesma qualidade do metal, em peso e em quilate. Mas quando, como acontece no caso da França e da Inglaterra, os metais são diferentes, entende-se esta equivalência no sentido de que a quantidade de ouro contida em uma soma e a quantidade de prata contida na outra têm o mesmo valor, no mercado do mundo em geral, já que não há diferença substancial entre um lugar e outro quanto ao valor relativo dos dois metais. Suponhamos que 25 francos sejam equivalentes (como de fato acontece, com uma diferença mínima de fração) a uma libra esterlina. Os débitos e os créditos dos dois países seriam iguais se um devesse tantas vezes 25 francos quanto o outro devesse em libras esterlinas. Se o caso fosse esse, uma letra de 2 500 francos contra a França valeria 100 libras na Inglaterra e uma letra de 100 libras, contra a Inglaterra, valeria 2 500 francos na França. Afirma-se então que o câmbio está ao par, dizendo-se que 25 francos (na realidade, 25 francos mais uma insignificância) (Isso foi escrito antes da mudança havida no valor relativo dos dois metais, produzida pelas descobertas de ouro. Atualmente, a paridade de câmbio entre as moedas de ouro e prata é variável, não havendo quem possa prever em que ponto acabará por fixar-se) representam a paridade de câmbio com a França. Se a Inglaterra devesse à França mais do que o equivalente àquilo que a França deve a ela, uma letra de 2 500 francos teria ágio, isto é, valeria mais do que 100 libras. Se a França devesse à Inglaterra mais do que o equivalente àquilo que a Inglaterra deve a ela, uma letra de 2 500 francos valeria menos do que 100 libras, ou seja, sofreria desconto. Quando as letras emitidas contra países estrangeiros têm ágio, é praxe dizer que os câmbios estão contra o país, ou desfavoráveis a ele. Para entendermos essas expressões, temos de notar o que significa realmente “câmbio” na linguagem dos comerciantes. Significa o poder que o dinheiro do país tem para comprar o dinheiro de outros países. Supondo-se que 25 francos representem a paridade exata de câmbio, então quando se precisa de mais de 100 libras para comprar uma letra de 2 500 francos, 100 libras de dinheiro inglês valem menos que seu equivalente real de dinheiro francês, e a isso se chama de câmbio desfavorável à Inglaterra. Entretanto, as únicas pessoas para as quais, na Inglaterra, ele é realmente desfavorável, são aquelas que têm dinheiro a pagar na França, pois entram no mercado de letras como compradores, e têm de pagar ágio. Em contrapartida, para aqueles que têm dinheiro a receber na França, essa mesma situação é favorável, pois se apresentam como vendedores, e recebem o ágio. Contudo, o prêmio indica que a Inglaterra tem saldo devedor, o qual eventualmente poderia ter de ser liquidado em ouro e prata; e uma vez que, de acordo com a velha teoria, o benefício de um comércio consistia em trazer dinheiro para o país, esse preconceito introduziu a prática de denominar o câmbio favorável quando indicava um saldo a receber, e desfavorável quando indicava um saldo a pagar; e essas expressões, por sua vez, tendiam a consolidar o referido preconceito. § 3. Poder-se-ia supor à primeira vista que, quando o câmbio é desfavorável, isto é, quando as letras dão ágio, este deve sempre ascender a um equivalente pleno do custo de transferência do dinheiro; pois, como há realmente um saldo a pagar, e, portanto, alguns dos que têm remessas a fazer devem arcar com o custo integral, a concorrência deles obrigará todos a se sujeitarem a um sacrifício equivalente. Aconteceria certamente isso, caso sempre fosse necessário que se pagasse imediatamente tudo aquilo que se tem de pagar. Por vezes, a expectativa de pagamentos estrangeiros elevados e imediatos produz efeito altamente surpreendente nos câmbios. (À notícia do desembarque de Bonaparte proveniente do Elba, o preço das letras chegou a aumentar, em um dia, 10%. Obviamente, esse ágio não era um simples equivalente do custo de transporte, pois o frete de um artigo como o ouro, mesmo somado ao seguro de guerra, nunca poderia ter ascendido a tanto. Esse alto preço advinha não da dificuldade de enviar dinheiro, mas da dificuldade anterior de adquirir dinheiro para enviar, pois a expectativa era no sentido de que haveria remessas tão grandes para o continente, na forma de subsídios e para o sustento dos exércitos, que estas exerceriam forte pressão sobre o estoque de metal em barras existente no país (que na época estava inteiramente destituído de moeda metálica), e isso em um prazo mais curto do que aquele que seria necessário para completar esse estoque. Consequentemente, o preço do metal em barras também subiu, da mesma forma repentina. É quase supérfluo dizer que isso ocorreu durante o período de restrição do Bank of England. Em um sistema de papel-moeda conversível, tal coisa não poderia ter acontecido, enquanto o Bank of England não sustasse o pagamento). Mas um pequeno excesso de importações em relação às exportações, ou qualquer outro pequeno montante de dívida a ser pago a países estrangeiros, não costuma afetar os câmbios em toda a extensão do custo e do risco de transportar ouro ou prata em barras. O longo prazo de crédito concedido costuma permitir, da parte de alguns dos devedores, um adiamento do pagamento, e nesse meio tempo a balança pode inverter-se, e restabelecer a igualdade entre os débitos e os créditos sem nenhuma transferência efetiva dos metais preciosos. E isso tem maior probabilidade de acontecer quando há poder de auto ajustamento nas variações do próprio câmbio. As letras dão ágio porque se importou um valor em dinheiro superior ao que se exportou. Mas o ágio é em si mesmo um lucro extra para aqueles que exportam. Além do preço que obtêm por suas mercadorias, eles sacam o montante e ganham o ágio. Por outro lado, o ágio é uma diminuição de lucro para aqueles que importam. Além do preço das mercadorias, têm de pagar um ágio para a remessa. Assim sendo, o que se chama de câmbio desfavorável é um estímulo para exportar, e um desestímulo para importar. E se o saldo devedor for de pequena monta, e for decorrência de alguma perturbação puramente casual do curso normal do comércio, é logo liquidado em mercadorias, e a conta acertada por meio de letras, sem nenhuma transferência de ouro ou prata em barras. Não é isso o que acontece, porém, quando o excesso de importações sobre as exportações, que criou o câmbio desfavorável, deve-se a uma causa permanente. Nesse caso, o que rompeu o equilíbrio deve ter sido a situação dos preços, e este só pode ser restabelecido com uma atuação sobre os preços. É impossível que os preços sejam tais que convidem a um excesso de importações, e apesar disso as exportações se mantenham permanentemente ao nível das importações, em virtude do lucro extra sobre a exportação, decorrente do ágio sobre as letras; pois, se as exportações se mantivessem ao nível das importações, as letras não teriam ágio, e o lucro extra não existiria. É por meio dos preços das mercadorias que se deve administrar a correção. Por conseguinte, as perturbações do equilíbrio entre importações e exportações, e as consequentes perturbações do câmbio, podem ser de duas classes: uma, casual ou acidental, e esta, se não for em escala excessivamente grande, se autocorrige pelo ágio sobre as letras, sem nenhuma transferência dos metais preciosos; a outra, derivante da situação geral dos preços, que não pode ser corrigida sem retirar dinheiro efetivo da circulação de um dos países, ou sem suprimir crédito no montante equivalente a ele, já que a simples transferência de metal em barras (como algo diferente do dinheiro), por não ter efeito algum sobre os preços, não ajuda em nada para minorar a causa geradora da perturbação. Resta ainda observar que as trocas e os câmbios não dependem da balança de débitos e créditos com cada país em separado, mas com todos os países conjuntamente. A Inglaterra pode ter um saldo devedor em relação à França, mas disso não segue que o câmbio com a França seja desfavorável à Inglaterra, e que as letras contra a França tenham ágio, pois a Holanda ou Hamburgo podem ter um saldo devedor com a Inglaterra, e esta pode pagar suas dívidas à França com letras contra estes — o que tecnicamente se chama de arbitragem de câmbio. Há uma pequena despesa adicional, que em parte é comissão e em parte perda de juros, em acertar dívidas dessa maneira indireta, e na medida dessa pequena diferença o câmbio com um país pode divergir daquele com outros países. No essencial, porém, os câmbios com todos os países estrangeiros variam juntos, conforme o país tiver saldo a receber ou a pagar, sobre o resultado geral de suas transações com o exterior. CAPÍTULO XXI A Distribuição dos Metais Preciosos Através do Mundo Comercial § 1. Tendo examinado o mecanismo por meio do qual se fazem efetivamente as transações comerciais entre nações, temos agora a investigar se essa maneira de as efetuar acarreta alguma diferença nas conclusões concernentes aos valores internacionais, às quais chegamos anteriormente na hipótese de as transações se efetuarem por escambo. A analogia mais próxima nos levaria a presumir que a resposta é negativa. Não constatamos que a intervenção do dinheiro e de seus sucedâneos acarrete alguma diferença na lei dos valores, aplicada a lugares vizinhos. Coisas que teriam valor igual, se o modo de troca fosse o escambo, valem quantias iguais de dinheiro. A introdução do dinheiro é simplesmente o acréscimo de uma mercadoria a mais, cujo valor é regulado pelas mesmas leis que o valor de todas as outras mercadorias. Por isso, não nos surpreenderemos se constatarmos que também os valores internacionais são determinados pelas mesmas causas, num sistema que utiliza dinheiro e letras ou num sistema de escambo — e que o dinheiro, no caso, pouco altera, se excetuarmos o fato de ele proporcionar um modo conveniente de comparar valores. Toda troca é, na essência e quanto aos efeitos, um escambo; toda pessoa que vende mercadorias por dinheiro, e com este compra outros bens, realmente compra esses outros bens com suas próprias mercadorias. O mesmo acontece com as nações: seu comércio é uma simples troca de coisas exportadas por coisas importadas; e quer se empregue ou não dinheiro, as coisas só chegam ao seu estado permanente ou de equilíbrio quando as exportações e as importações se pagam reciprocamente. Quando isto ocorre, cada país deve ao outro somas iguais de dinheiro, as dívidas são acertadas com letras, e não há saldo a pagar em metais preciosos. O comércio atinge então um estado igual ao que em mecânica se chama de condição de equilíbrio estável. Contudo, o processo pelo qual as coisas são reconduzidas a esse estado de equilíbrio, quando eventualmente dele se desviam, não é o mesmo — pelo menos, externamente — num sistema de escambo e num sistema que opera com dinheiro. No sistema de escambo, o país que precisa importar mais do que aquilo que suas exportações têm condições de pagar tem de oferecer seus artigos exportados a uma taxa mais baixa, sendo este o único meio de criar uma demanda de tais produtos, suficiente para restabelecer o equilíbrio. Quando se usa dinheiro, o país parece fazer uma coisa totalmente diferente. Compra os artigos adicionais importados ao mesmo preço que antes e, já que não exporta um valor equivalente, a balança de pagamentos se lhe torna desfavorável; o câmbio se lhe torna desfavorável, e a diferença tem de ser paga em dinheiro. Ao menos na aparência, essa operação é bem diferente da que ocorre no caso do escambo. Vejamos agora se a diferença é de essência ou apenas de mecanismo. Suponhamos que o país que tem o saldo devedor seja a Inglaterra, e o que tem o saldo credor seja a França. Com essa transferência dos metais preciosos, a quantidade de moeda corrente diminui na Inglaterra e aumenta na França. Tenho a liberdade de supor isso. Como veremos mais adiante, seria uma suposição muito errônea se fosse feita com respeito a todos os pagamentos de saldos internacionais. Um saldo que só tem de ser pago uma vez, como o pagamento feito por uma importação extra de trigo em uma época de carestia, pode ser pago com dinheiro entesourado, ou com as reservas de bancos, sem influir sobre a circulação. Mas estamos aqui supondo que há um excedente de importações sobre as exportações, proveniente do fato de ainda não se ter estabelecido o equilíbrio da procura internacional; estamos supondo que, aos preços correntes, exista na Inglaterra procura permanente por mais produtos franceses, procura esta que vai além daquilo que pode ser pago com os produtos ingleses, objetos de procura na França, aos preços vigentes. Se esse fosse o caso, se não se fizesse uma alteração nos preços, haveria um saldo constantemente renovado, a ser pago em dinheiro. As importações precisam diminuir em caráter permanente, ou então as exportações têm de aumentar em caráter permanente o que só pode acontecer por meio dos preços — e, portanto, mesmo que os saldos sejam de início pagos com dinheiro entesourado, ou com a exportação de metal em barras, ao final eles atingirão a circulação, pois enquanto isso não acontecer nada poderá fazer parar a saída de dinheiro. Quando, portanto, a situação dos preços for tal que não se tenha condições de estabelecer o equilíbrio da procura internacional, pois o país precisa de mais artigos importados do que aquilo que pode pagar com seus artigos exportados, é sinal de que o país tem em circulação uma quantidade de metais preciosos, ou de seus sucedâneos, superior àquela que pode circular permanentemente, e precisa desfazer-se de parte deles para restabelecer o equilíbrio. Reduz-se, portanto, a quantidade de moeda: os preços caem, e, entre eles, também os preços dos artigos exportáveis. Em consequência, surge nos países estrangeiros uma procura maior por esses artigos, enquanto as mercadorias importadas possivelmente aumentaram de preço — devido ao afluxo de dinheiro nos países estrangeiros — e, em qualquer hipótese, não participaram da baixa geral. Todavia, enquanto o barateamento dos produtos ingleses não induzir países estrangeiros a comprarem maior valor em dinheiro, ou enquanto o fato de as mercadorias estrangeiras, se terem tornado mais caras (em termos absolutos ou relativos) não levar a Inglaterra a comprar delas um valor menor em dinheiro, as exportações inglesas não terão maior capacidade que antes, para pagar suas importações e continuará o fluxo dos metais preciosos que começaram a sair da Inglaterra. Essa saída de dinheiro em moeda continuará, enquanto a queda dos preços na Inglaterra não colocar ao alcance do mercado exterior alguma mercadoria que a Inglaterra anteriormente não exportava — ou enquanto os preços reduzidos das coisas que exportava não tiverem forçado uma demanda no exterior de uma quantidade suficiente para pagar as importações inglesas, talvez com a ajuda de uma redução da procura inglesa por mercadorias estrangeiras devido ao aumento — absoluto ou relativo — do preço destas. Ora, foi exatamente esse o processo que ocorreu na nossa suposição inicial, de escambo. Portanto, empregue-se ou não dinheiro, não somente o comércio entre as nações tende ao mesmo equilíbrio entre as exportações e as importações, senão que também os meios que estabelecem esse equilíbrio são essencialmente os mesmos. O país cujas exportações não forem suficientes para pagar suas importações oferece seus artigos de exportação a preços mais baratos, até conseguir forçar a procura necessária: em outros termos, o equilíbrio da procura internacional, tanto em um sistema monetário como num sistema de escambo, é a lei do comércio internacional. Tanto em um sistema como no outro, cada país exporta e importa exatamente as mesmas coisas, e exatamente na mesma quantidade. Em um sistema de escambo, o comércio gravita em torno de um ponto no qual a soma das importações e a soma das exportações têm exatamente o mesmo valor de troca e em um sistema monetário ele gravita em torno de um ponto em que a soma das importações e a das exportações valem a mesma quantidade de dinheiro. E já que, quando duas ou mais coisas são iguais a uma terceira coisa, são também iguais entre si, as exportações e as importações que se igualarem quanto ao seu preço em dinheiro teriam um valor de troca exatamente igual entre si, caso não se utilizasse a intermediação do dinheiro. (O extrato anexo, tirado do ensaio anteriormente citado, prestará alguma ajuda para seguir o curso dos fenômenos. Ele é adequado para o caso imaginário utilizado para efeito ilustrativo em todo o ensaio, o caso de um comércio entre a Inglaterra e Alemanha, de tecido e linho. "Podemos, primeiro, fazer qualquer suposição que quisermos com respeito ao valor do dinheiro. Suponhamos, pois, que antes da abertura deste comércio, o preço do tecido seja o mesmo nos dois países a saber, 6 xelins por jarda. Uma vez que, na nossa suposição, 10 jardas de tecido valiam na Inglaterra 15 jardas de linho, e na Alemanha, 20, temos de supor que o linho seja vendido, na Inglaterra, por 4 xelins a jarda, e por 3 na Alemanha. Como antes, o custo de transporte e o lucro do importador não são considerados. "Nessa situação de preços, é evidente que o tecido ainda não pode ser exportado pela Inglaterra para a Alemanha, mas o linho pode ser importado da Alemanha pela Inglaterra. Assim será realmente, e no primeiro caso o linho será pago em dinheiro. "A saída de dinheiro da Inglaterra, e a entrada do mesmo na Alemanha fará subir os preços em dinheiro nesse último país, e os fará baixar na Inglaterra. Na Alemanha, o linho subirá acima de 3 xelins a jarda, e o tecido, acima de 6 xelins. Na Inglaterra, o linho, por ser importado da Alemanha, baixará ao mesmo preço (já que o custo do transporte não está computado) que nesse país, enquanto o preço do tecido descerá abaixo de 6 xelins. Tão logo o preço do tecido seja mais baixo na Inglaterra do que na Alemanha, começará a ser exportado, e o preço do tecido na Alemanha descerá, igualando-se ao preço na Inglaterra. Enquanto o tecido exportado não for suficiente para pagar o linho importado, o dinheiro continuará a sair da Inglaterra para a Alemanha, e os preços em geral continuarão a baixar na Inglaterra e a subir na Alemanha. Entretanto, pela queda do preço do tecido na Inglaterra, o mesmo ocorrerá também na Alemanha, e aumentará a demanda em relação a ele. Em virtude do aumento do preço do linho na Alemanha, deverá ocorrer também aumento na Inglaterra, e a demanda do mesmo diminuirá. Já que o preço do tecido baixou e o do linho subiu, haveria um preço específico dos dois artigos, ao qual o tecido exportado e o linho importado se pagariam exatamente um pelo outro. Nesse ponto os preços se estabilizariam, porque o dinheiro cessaria de sair da Inglaterra para a Alemanha. Qual seria esse ponto? Dependeria inteiramente da situação e das inclinações dos compradores dos dois lados. Se a queda do tecido não aumentasse de muito sua demanda na Alemanha, e o aumento do linho não fizesse diminuir muito rapidamente sua demanda na Inglaterra, muito dinheiro teria que passar de um país para o outro, antes de se restabelecer o equilíbrio; o tecido cairia muito, e o linho subiria, até talvez a Inglaterra ter de pagar por ele quase tanto quanto pagava quando ela mesma o produzia para si. Se, ao contrário, a queda do tecido causasse aumento muito rápido de sua demanda na Alemanha, e o aumento do linho na Alemanha reduzisse rapidamente a demanda na Inglaterra, em relação ao que era, devido ao primeiro barateamento produzido pela abertura desse comércio, o tecido logo seria suficiente para pagar o linho, pouco dinheiro passaria de um país para o outro, e a Inglaterra auferiria uma grande porção do benefício desse comércio. Chegamos assim exatamente à mesma conclusão, supondo a utilização de dinheiro, que constatamos ocorrer na hipótese do escambo. "É suficientemente claro de que maneira o benefício desse comércio cabe às duas nações. A Alemanha, antes do início do comércio, pagava 6 xelins a jarda de tecido fino de lã preta: agora ela o consegue por preço mais baixo. Mas não termina aqui a sua vantagem. Já que subiram os preços em dinheiro de todas as suas mercadorias, aumentaram as rendas em dinheiro de todos os seus produtores. Isso não representa para eles vantagem alguma quando compram um do outro, porque o preço do que compram aumentou à mesma razão que seus meios ou recursos de pagamento: mas é uma vantagem, ao comprarem qualquer coisa que não tenha subido, e, ainda mais, qualquer coisa que tenha baixado de preço. Por isso, beneficiam-se como consumidores de tecido, não somente na extensão em que o tecido caiu de preço, mas também na extensão em que subiram outros preços. Suponhamos que esse aumento seja de 1/10. A mesma percentagem que antes, de suas rendas em dinheiro, bastará para atender às outras necessidades deles; e o resto de suas rendas em dinheiro, por aumentarem de 1/10, lhes possibilitará comprar 1/10 a mais de tecido que antes, mesmo se o preço do tecido não tivesse baixado: mas baixou, e assim saem ganhando duplamente. Compram a mesma quantidade com menos dinheiro, e podem gastar mais para suas outras necessidades. "Ao contrário, na Inglaterra, caíram os preços gerais em dinheiro. No entanto, o linho caiu mais que os artigos restantes, por ter baixado de preço por importação de um país onde ele era mais barato, ao passo que os outros produtos caíram apenas devido à consequente saída de dinheiro. Por isso, a despeito da queda geral dos preços em dinheiro, os produtores ingleses estarão exatamente na mesma situação em que estavam, sob todos os outros aspectos, ao passo que sairão ganhando como compradores de linho. "Quanto maior for a saída de dinheiro requerida para restabelecer o equilíbrio, tanto maior será o ganho da Alemanha, tanto pela queda do tecido como pelo aumento de seus preços gerais. Quanto menor for a saída de dinheiro necessária, tanto maior será o ganho da Inglaterra, porque o preço do linho continuará a manter-se mais baixo, e os preços gerais do país não baixarão tanto. Não se deve, porém, imaginar que preços altos em dinheiro sejam um bem, e que preços baixos em dinheiro sejam um mal, em si mesmos. Mas quanto mais altos forem em qualquer país os preços gerais em dinheiro, tanto maiores serão os recursos desse país para comprar aquelas mercadorias que por serem importadas, são independentes das causas que mantêm os preços altos dentro do país." Na prática, o tecido e o linho não teriam, como aqui se supõe, os mesmos preços na Inglaterra e na Alemanha; cada um dos produtos seria mais caro, em dinheiro, no país que o importasse, do que naquele que o produzisse — seria mais caro, no montante do custo de transporte, mais o lucro normal sobre o capital do importador para o prazo médio do que decorresse antes de se poder vender a mercadoria. Mas não segue que cada país pague o custo de transporte da mercadoria que importa, pois o acréscimo desse item ao preço pode acarretar a um dos países, uma redução maior da demanda e com isso pode não ser possível manter-se o equilíbrio da procura internacional, nem o consequente equilíbrio de pagamentos. O dinheiro sairia então de um país para o outro, até que se restabelecesse o equilíbrio, da maneira já explicada; e quando isso ocorresse, um país estaria pagando mais do que o seu próprio custo de transporte e o outro estaria pagando menos). § 2. Vê-se, portanto, que a lei dos valores internacionais e, consequentemente, a divisão das vantagens comerciais entre as nações que dela participam, são, na hipótese de se usar dinheiro, as mesmas que seriam em um sistema de escambo. Nos intercâmbios internacionais, como nos internos, o dinheiro é para o comércio apenas o que o óleo é para as máquinas, ou os trilhos para a locomoção — um meio para diminuir o atrito. Para testar ainda mais essas conclusões, passemos a reexaminar, na hipótese de se utilizar dinheiro, uma questão que já investigamos na hipótese de escambo, a saber, até que ponto o benefício de um aperfeiçoamento na produção de um artigo exportável é compartilhado pelos países que o importam. O aperfeiçoamento pode consistir no barateamento de algum artigo que já era um produto básico do país ou na criação de algum novo ramo de atividade, isto é, na criação de algum processo que torna exportável um artigo que até então não era exportado. Será conveniente começar pelo caso de um novo artigo de exportação, por ser de certo modo o mais simples dos dois. O primeiro efeito é que o artigo cai de preço, e surge uma demanda desse artigo no exterior. Esse novo artigo de exportação perturba o equilíbrio e altera os câmbios; o dinheiro flui para o país (que suporemos ser a Inglaterra) e continua a fluir enquanto os preços não subirem. Essa alta de preços abalará um pouco a demanda em países estrangeiros, em relação ao novo artigo de exportação, e diminuirá a procura que existia no exterior pelas outras coisas que a Inglaterra costumava exportar. Com isso, as exportações diminuirão, ao passo que o público inglês, por ter mais dinheiro, terá poder de compra maior para adquirir mercadorias estrangeiras. Se fizer uso desse maior poder de compra, haverá aumento de importações, e com isso, mais a redução das exportações, se restabelecerá o equilíbrio entre importações e exportações. Para os países estrangeiros, o resultado será este: terão de pagar mais caro do que antes, por outras importações, e obterão a nova mercadoria mais barato do que antes, mas não tão mais barato que a própria Inglaterra. Digo isso por saber bem que o artigo efetivamente teria exatamente o mesmo preço (excetuado o custo do transporte) na Inglaterra e em outros países. Todavia, o preço baixo do artigo não é medido exclusivamente pelo preço em dinheiro, mas por esse preço comparado com as rendas em dinheiro dos consumidores. O preço é o mesmo para os consumidores ingleses e estrangeiros; mas os primeiros pagam esse preço com rendas em dinheiro que aumentaram pela nova distribuição dos metais preciosos, enquanto os consumidores estrangeiros provavelmente tiveram diminuídas suas rendas em dinheiro, pela mesma razão. Esse comércio, portanto, não proporcionou ao consumidor estrangeiro todo o benefício que o consumidor inglês auferiu do aperfeiçoamento citado, mas apenas parte dele, ao passo que a Inglaterra se beneficiou também nos preços de mercadorias estrangeiras. Assim, pois, qualquer aperfeiçoamento industrial que leve à abertura de um novo setor de comércio de exportação, beneficia um país não somente com o barateamento do artigo em que ocorreu o aperfeiçoamento, mas também com o barateamento geral de todos os produtos importados. Mudemos agora a hipótese, supondo que o aperfeiçoamento, em vez de criar exportação por parte da Inglaterra, barateia um artigo anteriormente já em exportação. Quando examinamos esse caso na suposição de escambo, vimos que os consumidores estrangeiros poderiam, em virtude do aperfeiçoamento, conseguir o mesmo benefício que a própria Inglaterra, um benefício menor, ou até um benefício maior, conforme o grau em que se calcula que aumentará o consumo do artigo barateado, na medida em que o artigo baixa de preço. Constataremos que as mesmas conclusões são verdadeiras na hipótese de se utilizar dinheiro. Suponhamos que a mercadoria na qual ocorre um aperfeiçoamento seja o tecido. O primeiro efeito do aperfeiçoamento é a queda do preço do artigo, e um aumento de sua demanda no mercado estrangeiro. Mas o montante dessa demanda é incerto. Suponhamos que os consumidores estrangeiros aumentem suas compras à razão exata do barateamento, ou, em outras palavras, gastem com tecido a mesma soma de dinheiro que antes; os países estrangeiros deverão à Inglaterra o mesmo pagamento que antes no conjunto; o equilíbrio entre exportações e importações permanecerá inalterado, e os estrangeiros obterão toda a vantagem do maior barateamento do tecido. Mas se a demanda estrangeira de tecido for de natureza a aumentar a uma razão maior do que o barateamento do artigo, os países estrangeiros passarão a dever à Inglaterra, pela importação do tecido, uma soma superior à anterior, e quando a soma for paga, subirão os preços ingleses, incluindo o preço do tecido; todavia, esse aumento afetará apenas o comprador externo, já que as rendas dos ingleses aumentam em proporção correspondente; e o consumidor externo auferirá assim, do aperfeiçoamento, vantagem menor que a Inglaterra. Ao contrário, se o barateamento do tecido não aumentar a demanda estrangeira dele em grau proporcional, os países estrangeiros passarão a dever, pela importação do tecido, menos do que antes, enquanto a soma das dívidas da Inglaterra aos países estrangeiros continuará sendo a mesma; a balança comercial passará a desfavorecer à Inglaterra, exportar-se-á dinheiro, os preços (incluindo o do tecido) cairão, e eventualmente o tecido baixará de preço, para o comprador estrangeiro, em proporção ainda maior do que o aperfeiçoamento introduzido o barateou na Inglaterra. Ora, são exatamente essas as conclusões a que chegamos na hipótese de a transação ser efetuada por escambo. A melhor maneira de resumir o resultado da exposição que acabamos de fazer é transcrever as palavras de Ricardo. (Principles of Political Economy and Taxation) “Por ter-se escolhido ouro e prata como meio geral de circulação, esses metais, pela concorrência comercial, são distribuídos entre os diversos países do mundo em proporções tais que se ajustam ao comércio natural que ocorreria se não existissem tais metais, e o comércio entre os países fosse puramente um comércio por escambo.” O sr. Ricardo foi o autor real desse princípio — embora não o tenha seguido em suas ramificações —, tão fértil em consequências, e antes do qual a teoria do comércio exterior era um caos ininteligível. Nenhum autor que o precedeu parece ter tido sequer ideia desse princípio; e mesmo depois dele, poucos são os que conseguiram ter ideia adequada sobre o valor científico do mesmo. § 3. Precisamos agora investigar de que maneira essa lei da distribuição dos metais preciosos, por meio das trocas, afeta o valor de troca do próprio dinheiro, e de que maneira ela se harmoniza com a lei pela qual, segundo vimos, é regulado o valor do dinheiro, quando importado como simples artigo comercial. Com efeito, há aqui uma contradição aparente — sendo esta, segundo acredito, que contribuiu mais do que qualquer outra coisa para levar alguns conceituados economistas políticos a resistirem à evidência das doutrinas que precedem. O dinheiro — pensam eles, com razão — não constitui exceção às leis gerais que comandam o valor; é uma mercadoria como qualquer outra, e seu valor médio ou natural deve depender de seu custo de produção, ou ao menos de seu custo de aquisição. Por isso consideram como doutrina totalmente inadmissível a afirmação de que a distribuição do dinheiro através do mundo e a sua diferença de valor em lugares diferentes sejam passíveis de alteração, não por efeito de causas que afetam o próprio dinheiro, mas por centenas de causas que não se relacionam com ele — enfim, por tudo aquilo que afeta o comércio de outras mercadorias, de maneira a afetar o equilíbrio entre as exportações e as importações. Acontece que a suposta anomalia é apenas aparente. As causas que fazem entrar dinheiro em um país, ou o fazem sair dele, por meio das trocas, com o fim de restabelecer o equilíbrio comercial, e que portanto aumentam o valor do dinheiro em alguns países e o fazem baixar em outros, são exatamente as mesmas causas das quais dependeria o valor local do dinheiro, se este sempre fosse importado como mercadoria, e sempre diretamente das minas. Quando baixa em caráter permanente o valor do dinheiro em um país, por efeito de uma entrada por meio da balança comercial, a causa disso, se não for a diminuição do custo de produção, tem de ser uma daquelas que obrigam a fazer novo ajuste, mais favorável ao país, do equilíbrio da procura internacional; em outras palavras: ou um aumento da demanda estrangeira de mercadorias do país, ou uma diminuição da demanda no país de mercadorias de países estrangeiros. Ora, um aumento da demanda estrangeira de mercadorias de um país ou uma diminuição da demanda no país de mercadorias importadas são exatamente as causas que, segundo os princípios gerais do comércio, possibilitam a um país comprar todos os artigos importados — e consequentemente também os metais preciosos — a um valor mais baixo. Não há, pois, contradição alguma nos resultados dos dois modos diferentes de se adquirir os metais preciosos, senão que há a concordância mais perfeita entre as duas maneiras. Quando o dinheiro flui de um país a outro em consequência de mudanças havidas na procura internacional de mercadorias, alterando com isso o valor local do próprio dinheiro, este não faz outra coisa senão produzir, por processo mais rápido, o efeito que do contrário seria produzido mais lentamente, mediante alteração da abundância relativa das torrentes pelas quais o ouro e a prata fluem para regiões diferentes do mundo, a partir dos países em que estão localizadas as minas. Portanto, assim como vimos anteriormente que o uso do dinheiro como meio de troca não altera o mínimo que seja a lei que rege os valores de outras coisas — seja no mesmo país, seja a nível internacional —, da mesma forma não altera a lei que rege o valor do próprio metal precioso; há, portanto, em toda a doutrina sobre os valores internacionais, tal como acabamos de enunciá-la, unidade e harmonia que representam uma forte presunção a mais, a favor da sua veracidade. § 4. Antes de encerrar essa exposição, convém assinalar de que maneira e em que grau as conclusões precedentes são afetadas pela existência de pagamentos internacionais que não se originam do comércio, e pelos quais não se espera nem se recebe nenhum equivalente, nem em dinheiro, nem em mercadorias — tais como tributo, remessas de aluguel a senhores de terra ausentes, de juros a credores estrangeiros, ou um gasto do Governo no exterior, como, por exemplo, aquele com o qual arca a Inglaterra na administração de alguns de seus domínios coloniais. Comecemos pelo caso do escambo. Pelo fato de as supostas remessas anuais serem feitas em mercadorias, e por se tratar de exportações que não precisam ter nenhum retorno, não se exige mais que as importações e as exportações se paguem umas pelas outras; pelo contrário, deve haver um excedente de exportações sobre as importações, excedente este igual ao valor da remessa. Se, antes de o país dever esse pagamento anual, o comércio exterior estava em seu estado natural de equilíbrio, agora será necessário, para se efetuar a remessa, que países estrangeiros sejam, induzidos a comprar uma quantidade maior do que antes de artigos estrangeiros — o que só pode acontecer se esses artigos de exportação forem oferecidos em condições mais baratas, ou, em outros termos, pagando mais caro por mercadorias estrangeiras. Os valores internacionais se ajustarão de forma tal que, ou por aumentarem as exportações, ou por diminuírem as importações, ou por se recorrer aos dois expedientes, se crie o excedente necessário do lado das exportações — e esse excedente se tornará o estado permanente. O resultado é que um país que efetua pagamentos regulares a países estrangeiros, além de perder o que paga perde também algo mais, em razão das condições menos vantajosas nas quais é obrigado a trocar seus produtos por mercadorias estrangeiras. Se adotarmos a hipótese de se usar dinheiro, os resultados serão os mesmos. Supondo-se que o comércio esteja em estado de equilíbrio quando começam as remessas obrigatórias, a primeira remessa será necessariamente feita em dinheiro. Isso faz baixar os preços no país que remete, aumentando-os no país que recebe. O efeito natural é que se passará a exportar mais mercadorias e a se importar menos, e que, somente em razão do comércio, o país recebedor ficará devendo constantemente um saldo de dinheiro ao país pagante. Quando a soma assim devida anualmente ao país credor se tornar igual ao tributo anual ou a outro pagamento regular devido por esse país credor, já não ocorrerá nenhuma transferência de dinheiro; o equilíbrio entre exportações e importações já não existirá, porém existirá o equilíbrio dos pagamentos; o câmbio estará ao par, as duas dívidas serão liquidadas uma pela outra, e o tributo ou remessa será virtualmente pago com mercadorias. O resultado para os interesses dos dois países será o que já apontamos: o país pagante pagará um preço mais alto por tudo o que compra do país recebedor, ao passo que este, além de receber o tributo, adquire o produto exportável do país pagante por preço mais baixo. CAPÍTULO XXII Influência da Moeda Sobre as Trocas e Sobre o Comércio Exterior § 1. Em nossa pesquisa sobre as leis do comércio internacional, iniciamos pelos princípios que determinam as trocas e os valores internacionais na hipótese do escambo. Depois, mostramos que a introdução do dinheiro como meio de troca não acarreta diferença nas leis que regem as trocas e os valores entre um país e outro, da mesma forma como acontece entre um indivíduo e outro — pois os metais preciosos, sob a influência dessas mesmas leis, se distribuem em proporções tais entre países diversos do mundo que permitem de se efetuem exatamente as mesmas trocas, e aos mesmos valores, como aconteceria em um sistema de escambo. Finalmente, consideramos de que maneira é afetado o valor do próprio dinheiro, em virtude das alterações da situação do comércio, decorrentes de alterações na procura e oferta das mercadorias ou no custo de produção das mesmas. Resta considerarmos as alterações na situação do comércio que se originam não nas mercadorias, mas no dinheiro. O custo de produção do ouro e da prata pode variar, como o de outras coisas, embora com menos probabilidade. Pode variar também sua procura em países estrangeiros. Pode esta aumentar, por se empregar quantidade maior de ouro e prata para fins artísticos e de ornamentação, ou porque o aumento da produção e das transações gera um montante maior de negócios a ser efetuado pelo meio circulante. A procura pode diminuir, pelas razões opostas, ou pelo incremento na utilização de expedientes de economia com os quais se dispensa parcialmente o uso do dinheiro metálico. Essas mudanças afetam o comércio entre outros países e os países que têm as minas, afetando também o valor dos metais preciosos, de acordo com as leis gerais que regem o valor das mercadorias importadas — leis apresentadas nos capítulos anteriores com detalhes suficientes. O que me proponho examinar no presente capítulo não são as circunstâncias que afetam o dinheiro, alteradoras das condições permanentes de seu valor, mas os efeitos produzidos no comércio internacional por variações casuais ou temporárias do valor do dinheiro, variações essas que não têm nenhuma relação com quaisquer causas que afetam o valor permanente do dinheiro. Trata-se de um item de importância, por sua relevância para a regulamentação da moeda, problema prático que despertou tanta discussão durante os sessenta anos passados. § 2. Suponhamos que, em um país em que o meio circulante é composto exclusivamente de metais, ocorra um aumento casual e repentino de dinheiro em moeda: por exemplo, introduzindo na circulação dinheiro acumulado em tesouros, que haviam sido escondidos em um período anterior de invasão estrangeira ou de desordem interna. O efeito natural seria uma subida dos preços. Isso limitaria as exportações e estimularia as importações; as importações ultrapassariam as exportações, os câmbios se tornariam desfavoráveis, e o estoque recém-adquirido de dinheiro-moeda se difundiria por todos os países com os quais o suposto país mantivesse comércio, e destes, progressivamente, se difundiria através de todas as regiões do mundo comercial. Com efeito, o dinheiro continuaria a sair do país, até se equilibrarem novamente as exportações e importações — o que (não se supondo nenhuma mudança nas circunstâncias permanentes da procura internacional) só poderia acontecer quando o dinheiro se tivesse espalhado de maneira tão uniforme que os preços tivessem subido na mesma proporção em todos os países, de sorte que a alteração de preço seria ineficaz para todos os fins práticos, e as exportações e importações, embora feitas a um valor maior em dinheiro, seriam exatamente as mesmas que anteriormente. Essa redução do valor do dinheiro através do mundo geraria (ao menos, se a redução fosse considerável) uma suspensão, ou no mínimo uma diminuição, do fornecimento anual das minas, pois esse metal não mais teria valor equivalente ao seu custo máximo de produção. Por conseguinte, já não se recomporia inteiramente o desgaste anual, e as causas usuais de destruição dos metais preciosos gradualmente fariam diminuir a quantidade total dos metais preciosos ao seu montante anterior — e depois disso, a produção das minas recomeçaria em sua escala anterior. Assim, a descoberta do tesouro produziria apenas efeitos temporários, a saber, breve perturbação do comércio internacional, até que o tesouro se tivesse espalhado pelo mundo e, a seguir, depreciação temporária do valor desse metal, abaixo daquele que corresponde ao custo de sua produção ou de sua aquisição. Essa depreciação seria gradualmente corrigida mediante produção temporariamente menor nos países produtores, e mediante diminuição temporária da importação do mesmo nos países importadores. Os mesmos efeitos que assim adviriam da descoberta de um tesouro acompanham o processo pelo qual o lugar dos metais preciosos é ocupado por notas bancárias, ou por qualquer dos outros sucedâneos do dinheiro. Suponhamos que a Inglaterra possuísse uma moeda inteiramente metálica de 20 milhões de libras esterlinas, e repentinamente se introduzissem na circulação 20 milhões de notas bancárias. Se estas fossem emitidas por banqueiros, seriam empregadas em empréstimos, ou na compra de títulos, e por isso operariam uma queda repentina da taxa de juros, o que provavelmente levaria ao êxodo de grande parte dos 20 milhões de libras esterlinas de ouro para fora do país, como capital à procura de uma taxa superior de juros em outra parte, antes que tivesse havido tempo para agir de alguma forma sobre os preços. Suporemos, porém, que essas notas não são emitidas por banqueiros ou emprestadores de dinheiro, mas por manufatores, para pagar salários e comprar matérias-primas, ou pelo Governo, para cobrir seus gastos comuns, de sorte que todo esse montante de notas bancárias rapidamente entraria nos mercados de compra e venda de mercadorias. A ordem natural das consequências seria a seguinte. Todos os preços subiriam muito. A exportação quase cessaria; a importação seria prodigiosamente estimulada. A Inglaterra passaria a ter um balanço de pagamentos altamente devedor, a balança de exportações, importações passaria a ser desfavorável à Inglaterra, na medida plena do custo da exportação do dinheiro; e o excedente de dinheiro metálico se espalharia rapidamente, pelos vários países do mundo, na ordem de sua proximidade geográfica e comercial à Inglaterra. O êxodo de moeda metálica continuaria até se equilibrarem as moedas de todos os países — com isso não quero dizer até que o dinheiro passasse a ter o mesmo valor em toda parte, mas até que as diferenças fossem apenas aquelas que existiam anteriormente, e que correspondiam às diferenças permanentes do custo de aquisição do dinheiro. Quando o aumento dos preços se tivesse estendido em grau igual a todos os países, as exportações e as importações voltariam em toda parte ao que eram antes, se equilibrariam entre si, e os câmbios voltariam ao par. Se uma quantia de dinheiro de 20 milhões, depois de difundir-se por toda a superfície do mundo comercial, fosse suficiente para elevar o nível geral em grau perceptível, o efeito não teria longa duração. Por não ter ocorrido nenhuma alteração nas condições gerais sob as quais os metais eram produzidos, nem no mundo em geral nem em nenhuma parte dele, o valor reduzido não mais seria remunerador, e o fornecimento das minas cessaria, em parte ou totalmente, até se absorverem os 20 milhões de libras. (Estou aqui supondo uma situação em que a exploração de minas de ouro e prata constitui um setor permanente de atividade, sendo esta executada em condições conhecidas — e não no estado atual de incerteza, em que juntar ouro é um jogo de azar, empreendido (atualmente) com espírito de aventura, e não com espírito de uma ocupação profissional regular) Depois dessa absorção, as moedas de todos os países estariam mais ou menos em seu nível original, em quantidade e em valor. Digo mais ou menos, pois a rigor haveria uma leve diferença. Exigir-se-ia agora um fornecimento anual um pouco menor dos metais preciosos, por haver no mundo 20 milhões a menos de dinheiro metálico sujeito ao desgaste. Consequentemente, o equilíbrio de pagamentos entre os países produtores de ouro e prata e o resto do mundo exigiria, a partir daqui, que aqueles países exportassem quantidade maior de alguma outra mercadoria ou importassem quantidade menor de mercadorias estrangeiras — o que implica, naqueles países, uma faixa um pouco mais baixa de preços do que anteriormente, e, nos demais, uma faixa um pouco mais alta —, uma moeda mais fraca nos primeiros, e moedas mais fortes nestes últimos. Esse efeito, que seria insignificante demais para merecer outra menção a não ser para ilustração de um princípio, é a única mudança permanente que seria produzida no comércio internacional, ou no valor ou na quantidade da moeda de qualquer país. Todavia, o processo terá produzido efeitos de outro gênero. Vinte milhões, que anteriormente existiam na forma improdutiva de dinheiro metálico, foram convertidos em capital produtivo, ou naquilo que pode ser transformado em capital produtivo. Inicialmente, esse ganho cabe à Inglaterra, à custa de outros países, que lhe tiraram a sobra que tinha desse artigo precioso e improdutivo, pagando por ele um valor equivalente em outras mercadorias. Gradualmente, essa perda é compensada a esses países, devido à entrada menor de ouro e prata das minas, e ao final o mundo terá ganho um acréscimo virtual de 20 milhões aos seus recursos produtivos. O exemplo citado por Adam Smith, ainda que tão conhecido, merece ser repetido mais uma vez, por ser extremamente adequado. Ele compara a substituição dos metais preciosos por papel-moeda à construção de uma rodovia aérea em virtude da qual o solo atualmente ocupado por estradas se tornaria disponível para a agricultura. Como aconteceria naquele caso, com uma porção do solo, da mesma forma, no caso presente, parte da riqueza acumulada do país seria liberada de uma função em que era empregada apenas para tornar produtivos outros solos e outros capitais, e se tornaria ela mesma aplicável à produção, já que as funções que ela cumpria passam agora a ser igualmente bem cumpridas por um meio ou instrumento que não custa nada. O valor economizado para a comunidade, pelo fato de se dispensar assim o dinheiro metálico, representa um ganho manifesto para aqueles que emitiram o papel-moeda em substituição ao dinheiro metálico. Têm agora o uso de 20 milhões de meio circulante, que lhes custaram apenas a despesa da chapa de um gravador. Se empregarem esse acréscimo às suas fortunas como capital produtivo, a produção do país aumenta e a comunidade é beneficiada, tanto quanto por qualquer outro capital de montante igual. Se esse acréscimo será ou não empregado dessa forma, depende, até certo ponto, da maneira de emiti-lo. Se for emitido pelo governo, e for empregado para liquidar dívidas, provavelmente se transformará em capital produtivo. Todavia, o governo pode preferir empregar esse recurso extraordinário para cobrir suas despesas normais, pode dilapidá-lo inutilmente, ou fazer dele simplesmente um substituto temporário de impostos em um montante equivalente — caso esse em que o montante será economizado pelos pagadores de impostos em geral, os quais acrescentam essa poupança ao seu capital, ou então a gastam como renda. Quando o papel-moeda é emitido, como em nosso próprio país, por banqueiros ou estabelecimentos bancários, o montante é quase inteiramente convertido em capital produtivo, pois os emissores, pelo fato de a cada momento poderem ser chamados a restituir o valor respectivo, têm os estímulos máximos para não dilapidá-lo, e os únicos casos em que isso não ocorre são casos de fraude ou de má administração. Sendo a profissão de um banqueiro a de emprestar dinheiro, o fato de ele emitir notas bancárias não passa de uma simples extensão de sua ocupação normal. Ele empresta o montante a arrendatários de terras, manufatores ou distribuidores, os quais o aplicam em seus negócios. Assim empregado, esse papel-moeda proporciona, como qualquer outro capital, salários de mão-de-obra e lucros de capital. O lucro é partilhado entre o banqueiro, que recebe juros, e uma série de tomadores — na maioria das vezes por períodos breves —, os quais, após pagarem os juros, ainda ganham um lucro ou alguma vantagem equivalente a lucro. O próprio capital, a longo prazo, se transforma inteiramente em salários, e quando reposto pela venda dos produtos, se transforma novamente em salários, gerando destarte um fundo perpétuo, no valor de 20 milhões para a manutenção de mão-de-obra produtiva, e aumentando a produção anual do país, no montante igual a tudo o que se pode produzir com um capital desse valor. A esse ganho deve-se acrescentar uma ulterior economia para o país, a saber, o suprimento anual dos metais preciosos que é necessário para reparar o desgaste e outros desperdícios de uma moeda metálica. Por isso, a substituição dos metais preciosos por papel-moeda deve ser feita sempre, na medida em que não se comprometer a segurança, não se devendo manter um montante de moeda metálica superior ao que é necessário para salvaguardar a conversibilidade do papel-moeda, tanto de fato como na fé pública. Um país com as relações comerciais do porte da Inglaterra está sujeito a ser repentinamente chamado a fazer grandes pagamentos ao exterior, por vezes na forma de empréstimos ou de outros investimentos de capital no exterior, por vezes como preço de alguma importação não usual de mercadorias, sendo que o caso mais frequente é o de grandes importações de alimentos, devido a uma colheita precária. Para atender a tais demandas, é necessário que haja, em circulação ou nos cofres dos bancos, moeda ou ouro e prata em barras em um montante elevadíssimo, e que esse montante, quando tiver que sair do país por alguma emergência, possa retornar ao país depois de passar a emergência. Entretanto, uma vez que o ouro necessitado para exportação quase sempre é tirado das reservas dos bancos, e nunca tem probabilidade de ser tirado da circulação enquanto os bancos forem solventes, a única vantagem que pode haver em manter parcialmente uma moeda metálica para finalidades diárias consiste em os bancos poderem ocasionalmente completar com elas as suas reservas. § 3. Quando o dinheiro metálico foi inteiramente substituído e retirado de circulação, entrando em seu lugar um montante igual de notas bancárias, toda tentativa de manter em circulação uma quantidade ainda maior de papel-moeda, se as notas forem conversíveis, representa necessariamente um erro total. A nova emissão de papel-moeda haveria de deslanchar novamente a mesma série de consequências que levou à retirada anterior da moeda em ouro. Como anteriormente, os metais seriam necessários para exportação, e para essa finalidade seriam procurados pelos bancos, na extensão plena das notas bancárias restantes — sendo impossível, portanto, mantê-las em circulação. Sem dúvida, se as notas fossem inconversíveis, não haveria esse tipo de obstáculo para aumentar a quantidade delas. Um papel-moeda inconversível age da mesma forma que um papel-moeda conversível, enquanto restar alguma moeda metálica a ser por ele substituída; a diferença entre o papel-moeda inconversível e o conversível começa a manifestar-se quando toda a moeda metálica é retirada de circulação (excetuando aquilo que possivelmente é conservado para a conveniência de troco), e as emissões continuarem a aumentar. Quando o papel-moeda começa a superar em quantidade a moeda metálica que passou a substituir, é evidente que os preços sobem; coisas que valiam 5 libras em moeda metálica, passam a valer 6 libras em papel inconversível, ou até mais, conforme o caso. Mas esse aumento de preço não estimulará a importação nem desestimulará a exportação, como nos casos anteriormente estudados. As importações e as exportações são determinadas pelos preços das coisas em moeda metálica, e não pelos preços em papel-moeda; apenas quando o papel é trocável à vontade pelos metais preciosos, os preços em papel-moeda e em moeda metálica são necessariamente iguais. Suponhamos que o país que tem o papel-moeda depreciado seja a Inglaterra. Suponhamos que algum produto inglês pudesse ser comprado, enquanto a moeda fosse metálica, por 5 libras, e vendido na França por £ 5 10 s., sendo que essa diferença cobriria o gasto e o risco, e um lucro para o comerciante. Em razão da depreciação, essa mercadoria custará agora na Inglaterra 6 libras e na França não pode ser vendida por mais de £ 5 10 s. — e no entanto continuará a ser exportada como antes. Por quê? Porque as £ 5 10 s. que o exportador consegue obter por ela na França não é papel-moeda depreciado, mas ouro ou prata; e já que na Inglaterra o ouro ou a prata em barras subiu na mesma proporção que outras coisas, se o comerciante trouxer o ouro e a prata à Inglaterra, conseguirá vender suas £ 5 10 s. por £ 6 12 s., e obter, como antes, 10%, como lucro e para cobrir as despesas. É, pois, manifesto que a depreciação da moeda não afeta o comércio exterior do país; este continua a funcionar, exatamente como se a moeda mantivesse seu valor. Mas embora não seja afetado o comércio, são afetados os câmbios. Quando as importações e as exportações se equilibram, o câmbio, em uma moeda metálica, estaria ao par; uma letra contra a França, equivalente a 6 soberanos, valeria efetivamente 5 soberanos. Entretanto, pelo fato de 5 soberanos, ou a quantidade de ouro contida neles, terem passado a valer, na Inglaterra, 6 libras, segue-se que uma letra contra a França, de 5 libras, valerá 6. Quando, portanto, o câmbio real estiver ao par, haverá um câmbio nominal desfavorável ao país, equivalente a tantos por cento quanto for o montante da depreciação. Se a moeda estiver depreciada de 10, 15 ou 20%, nesse caso, qualquer que seja a variação do câmbio real, decorrente das variações das dívidas e créditos internacionais, o câmbio cotado sempre divergirá dele em 10, 15 ou 20%. Por mais alto que possa ser esse ágio nominal, não tem ele nenhuma tendência a fazer o ouro sair do país, para o fim de emitir uma letra contra ele e tirar lucro de um ágio, pois o ouro assim enviado para fora do país tem de ser comprado não dos bancos e ao par — como no caso de um papel-moeda conversível — mas no mercado, a preço maior, igual ao ágio. Em tais casos, em vez de dizer que o câmbio é desfavorável, seria mais correto dizer que a paridade se alterou, pois agora se requer uma quantidade maior de moeda inglesa para ser equivalente à mesma quantidade de moeda estrangeira. Entretanto, os câmbios continuam a ser computados na base da paridade metálica. Por isso, os câmbios cotados, quando a moeda está depreciada, se compõem de dois elementos ou fatores: o câmbio real, que segue as variações dos pagamentos internacionais, e o câmbio nominal, que varia com a depreciação da moeda, mas que, enquanto houver alguma depreciação, sempre deve ser desfavorável. Já que o montante de depreciação é medido exatamente pelo grau em que o preço de mercado do metal em barras ultrapassa o valor da Casa da Moeda, temos um critério seguro para determinar que porção do câmbio cotado, por prender-se à depreciação, pode ser eliminada como nominal, sendo que o resultado assim corrigido expressa o câmbio real. A mesma perturbação dos câmbios e do comércio internacional que é produzida por um aumento de emissão de notas bancárias conversíveis é igualmente produzida por aqueles aumentos do crédito que, como mostramos com tantos detalhes em um capítulo anterior, têm o mesmo efeito sobre os preços que um aumento da moeda. Toda vez que as circunstâncias tiverem dado tal impulso ao espírito de especulação, que aumentem muito as compras a crédito, aumentam os preços em dinheiro, exatamente tanto quanto teriam aumentado se cada pessoa que compra a crédito tivesse comprado a dinheiro. Por isso, todos os efeitos são necessariamente semelhantes. Em consequência dos preços altos, limita-se a exportação e estimula-se a importação — se bem que, na realidade, o aumento da importação raramente espere pelo aumento dos preços, decorrente da especulação, na medida em que alguns dos grandes artigos de importação costumam estar entre as coisas nas quais primeiro se revela o comércio de estocagem excessiva, além das necessidades do mercado. Por isso, em tais períodos costuma haver grande excesso de importações sobre exportações, e quando chega o momento em que estas precisam ser pagas, o câmbio se torna desfavorável, e há egresso de ouro do país. De que maneira exata esse êxodo de ouro afeta os preços depende de circunstâncias das quais logo falaremos com mais detalhes; mas é certo e evidente que seu efeito seja fazer os preços recuarem. O recuo dos preços, uma vez iniciado, geralmente se transforma em confusão total, e o aumento descomunal do crédito dá rapidamente lugar a uma restrição descomunal do mesmo. Por conseguinte, quando se abusou imprudentemente do crédito, e quando o espírito de especulação foi excessivo, a causa próxima dessa catástrofe costuma ser a reviravolta dos câmbios, e a consequente pressão sobre os bancos, para obtenção de ouro para exportação. Contudo, embora esses fenômenos costumem acompanhar aquele colapso do crédito que se chama crise comercial, não constituem um elemento essencial dessa crise comercial; esta última, como mostramos anteriormente, poderia acontecer em uma extensão igual — e tem exatamente a mesma probabilidade de ocorrer — em um país que não tivesse nenhum comércio exterior, se tal país existisse. CAPÍTULO XXIII A Taxa de Juros § 1. Parece ser este o lugar mais adequado para estudar as circunstâncias que determinam a taxa de juros. Os juros pagos por empréstimos, por serem realmente uma questão de valor de troca, encaixam naturalmente neste capítulo da nossa matéria; e os itens moeda e empréstimos, embora distintos em si mesmos, unem-se tão intimamente aos fenômenos do assim chamado mercado financeiro, que é impossível entender um sem o outro, sendo que muitos misturam os dois itens na mais inextricável das confusões. No Livro Segundo definimos a relação que os juros têm com o lucro. Constatamos que o lucro bruto do capital poderia ser distinguido em três componentes, a saber, remuneração pelo risco assumido, remuneração pelo trabalho ou incômodo, e remuneração pelo próprio capital, podendo-se denominar os três, respectivamente: seguro, salários pela supervisão e juros. Após compensar o risco, ou seja, após cobrir as perdas médias às quais está exposto o capital — ou em decorrência das circunstâncias gerais da sociedade ou dos riscos do emprego ou aplicação específica — resta uma sobra, que em parte se destina a remunerar o dono do capital por sua abstenção, e em parte a pagar o tempo e o trabalho de quem emprega o referido capital. Quanto vai para um e quanto para o outro, mostra-o o montante da remuneração que, quando as duas funções são exercidas por pessoas diferentes, o dono do capital pode obter do aplicador do capital pelo uso deste. É evidentemente uma questão de procura e oferta, que não têm nesse caso, sentido ou efeito diferente do que têm em todos os outros. A taxa de juros será aquela que igualará a procura de empréstimos à oferta dos mesmos. Ela será tal que, quanto for a soma que algumas pessoas desejarem tomar emprestada, à respectiva taxa, exatamente tanto será a soma que outras pessoas estarão dispostas a emprestar. Se a oferta de empréstimos for maior do que a procura, os juros cairão; se a procura for maior que a oferta, os juros subirão, sendo que nos dois casos os juros cairão ou subirão até o ponto em que se restabelecer o equilíbrio entre a oferta e a procura. Tanto a procura como a oferta de empréstimos flutuam mais incessantemente do que qualquer outra procura ou oferta. As flutuações da procura e oferta em outras coisas dependem de um número limitado de fatores, ao passo que o desejo de tomar empréstimos e também a disposição de os conceder são influenciados em grau maior ou menor por toda circunstância que afete a situação ou as perspectivas da indústria ou do comércio, seja de modo geral, seja em qualquer de seus setores. Por isso, é raro que a taxa de juros com boas garantias (pois só este caso nos cabe aqui estudar, já que os juros nos quais entra o fator risco podem subir a qualquer montante) seja exatamente a mesma em dois dias sucessivos nos grandes centros de transações financeiras, como revelam as variações incessantes dos preços cotados dos fundos e de outros títulos negociáveis. Não obstante isso, deve haver, como em outros casos referentes ao valor, alguma taxa que (na linguagem de Adam Smith e de Ricardo) pode chamar-se de taxa natural — alguma taxa em torno da qual oscila a taxa de mercado, e à qual sempre tende a voltar. Essa taxa depende, em parte, do montante de acúmulo que se encontra nas mãos de pessoas que não podem cuidar pessoalmente da aplicação de suas poupanças, e em parte, do gosto comparativo, existente na comunidade, em relação aos objetivos do trabalho, ou à folga, tranquilidade e independência de um beneficiário de anuidade. § 2. Para excluir flutuações fortuitas, suporemos que o comércio esteja em condição de repouso, sem que haja uma profissão ou emprego descomunalmente próspero ou particularmente em baixa. Em tais circunstâncias, os produtores e comerciantes mais prósperos têm seu capital plenamente aplicado, e muitos têm condições de fazer negócios em uma extensão bem maior do que o capital de que dispõem. Estes são naturalmente tomadores de empréstimos; e o montante que desejam tomar emprestado, e para o qual têm condições de obter crédito, constitui a procura ou demanda de empréstimos para fins de emprego produtivo. A estes têm-se que acrescentar os empréstimos necessitados pelo governo, pelos senhores de terra, ou outros consumidores improdutivos com boas garantias a oferecer. É isso que constitui a massa de empréstimos para a qual há procura ou demanda habitual. Ora, é concebível que possa existir nas mãos de pessoas não propensas a se engajarem pessoalmente em negócios — ou desprovidas de qualidades para isso — um montante de capital igual a essa demanda, e até superior a ela. Nesse caso, haveria um excesso habitual de concorrência da parte dos prestamistas, e a taxa de juros apresentaria uma proporção baixa em relação à taxa de lucro. Os juros seriam obrigados a baixar até aquele ponto em que, ou tentariam prestatários a tomar uma soma superior àquela que poderiam empregar racionalmente e em sua atividade, ou então desencorajariam tanto parte dos prestamistas, que os levariam ou a desistirem de acumular ou então a se empenharem em aumentar sua renda entrando nos negócios por conta própria, arcando com os riscos, se não com os trabalhos, da aplicação direta na atividade. Pode acontecer, ao contrário, que o capital de pessoas que preferem colocá-lo emprestado a juros, ou cujas ocupações os impedem de supervisionar pessoalmente sua aplicação, seja inferior à procura ou demanda habitual de empréstimos. Esse capital pode ser em grande parte absorvido pelos investimentos proporcionados pela dívida pública e por hipotecas, e o restante pode não ser suficiente para atender às necessidades do comércio. Se isso ocorrer, a taxa de juros subirá ao ponto de restabelecer de alguma forma o equilíbrio. Quando há apenas uma diferença pequena entre os juros e o lucro, muitos tomadores de empréstimos podem perder a vontade de aumentar suas responsabilidades e comprometer seu crédito por uma remuneração tão reduzida; ou então, alguns, que do contrário se teriam engajado em negócios, podem preferir o lazer, e transformar-se em prestamistas em vez de prestatários; ou então, outros, estimulados por juros altos e investimento fácil para seu capital, podem retirar-se dos negócios mais cedo, e com fortunas menores, do que teriam feito em circunstâncias diferentes. Ou então, finalmente, há outro processo pelo qual, na Inglaterra e em outros países comerciais, se consegue grande parte da oferta necessária de empréstimos. Em vez de essa oferta ser suprida por pessoas não engajadas nos negócios, o próprio fornecimento de empréstimos pode transformar-se em um negócio. Parte do capital aplicado no comércio pode ser fornecida por uma categoria de prestamistas profissionais de dinheiro. Estes, porém, têm de receber mais do que os simples juros: têm de auferir a taxa normal de lucro sobre seu capital, por assumirem o risco e todas as outras circunstâncias a que se submetem. Entretanto, nunca pode interessar a ninguém que toma empréstimo para as finalidades de seu negócio pagar um lucro pleno por capital do qual auferirá apenas um lucro pleno; por isso, o emprestar dinheiro a outros, como profissão, para suprir regularmente o comércio, só pode ser uma atividade de pessoas que, além de seu próprio capital, podem emprestar seu crédito, ou, em outros termos, o capital de outras pessoas: isto é, banqueiros e pessoas (tais como os corretores de títulos) que são virtualmente banqueiros, pois recebem dinheiro em depósito. Um banco que empresta suas notas, empresta capital que toma emprestado da comunidade, e pelo qual não paga juros. Um banco de depósitos empresta capital que recolhe da comunidade em pequenas parcelas, por vezes sem pagar juros, como no caso dos banqueiros privados de Londres; e se, como no caso dos bancos escoceses, dos bancos em sociedade anônima e da maioria dos bancos do país, pagar juros, mesmo assim paga muito menos do que recebe — pois os depositantes, que de qualquer outra forma não conseguiriam, na maioria dos casos, obter por tais pequenos saldos juros que paguem o trabalho, se satisfazem até mesmo com juros baixos. Dispondo desse recurso subsidiário, os banqueiros têm possibilidade de obter a taxa normal de lucro sobre seu próprio capital, emprestando a juros. De nenhuma outra forma o empréstimo de dinheiro poderia constituir uma atividade regular rentável, a não ser em condições em que ninguém consentiria em tomar empréstimos, a não ser pessoas que contam com lucros extraordinários ou estão em necessidade urgente, a saber, consumidores improdutivos que ultrapassaram o limite de seus recursos, ou comerciantes que receiam a falência. O fundo geral para empréstimos, disponível no país, consta da somatória dos seguintes recursos: o capital disponível depositado nos bancos, o capital representado por notas bancárias, o capital dos próprios banqueiros, e o capital do qual o crédito destes, qualquer que seja a forma em que o utilizem, lhes permite dispor, e mais os fundos pertencentes àqueles que, por necessidade ou por preferência, vivem dos juros de sua propriedade; e o montante desse fundo total, quando comparado com as demandas habituais dos produtores e distribuidores, bem como com as demandas do governo e de consumidores improdutivos, determina a taxa permanente ou média de juros — a qual sempre tem de ser tal, que estabeleça um equilíbrio entre esses dois montantes. (Não incluo no fundo geral do país para empréstimos os capitais — por maiores que às vezes sejam — que são habitualmente empregados para comprar e vender especulativamente os fundos públicos e outros títulos. Verdade é que todos aqueles que compram títulos aumentam, de momento, o montante geral de dinheiro passível de empréstimo, e nessa proporção fazem baixar a taxa de juros. Contudo, já que as pessoas de que falo só compram para vender de novo a um preço mais alto, estão alternadamente na posição de prestamistas e prestatários, e portanto suas operações fazem subir a taxa de juros em um momento, exatamente tanto quanto a fazem baixar em outro. Como todas as pessoas que compram e vendem para especular, sua função é de equalizar o valor dessa mercadoria, e não fazê-lo subir ou baixar. Quando especulam com prudência, abrandam as flutuações de preço; quando o fazem com imprudência, muitas vezes as agravam). Mas enquanto a totalidade dessa massa de capital emprestado influencia apenas a taxa permanente de juros, as flutuações dependem em sua quase totalidade da porção que está nas mãos dos banqueiros, pois é quase exclusivamente essa porção que, por ser emprestada apenas por curto prazo, está continuamente no mercado à procura de investimento. O capital daqueles que vivem dos juros de suas próprias fortunas em geral procurou e encontrou algum investimento fixo, como os fundos públicos, hipotecas, ou os títulos de empresas públicas, investimento este que não muda, a não ser quando ocorrem tentações ou necessidades especiais. § 3. As flutuações da taxa de juros provêm de variações ocorrentes na demanda de empréstimos ou na oferta dos mesmos. A oferta está sujeita a variação, embora menos do que a procura. A vontade de conceder empréstimos é maior do que de costume no início de um período de especulação, e muito menor do que de costume durante a reviravolta que segue. Em períodos de especulação, os prestamistas de dinheiro e outras pessoas estão propensos a ampliar seus negócios, abusando de seu crédito; emprestam, mais do que de costume, capital que não lhes pertence (exatamente como outras classes de comerciantes e produtores empregam mais, desse tipo de capital, do que de costume). Consequentemente, são essas as ocasiões em que a taxa de juros é baixa, embora para isso haja também outras causas, como veremos mais adiante. Ao contrário, durante a reviravolta, os juros sempre sobem de forma desordenada, porque, enquanto muitas pessoas têm a máxima urgência em tomar empréstimos, há uma aversão geral a conceder empréstimos. Essa aversão, quando atinge o ápice, se denomina pânico. Ocorre quando, por efeito de uma sucessão inesperada de fracassos, se criou, entre os comerciantes e às vezes também entre os não comerciantes, desconfiança recíproca geral na solvência uns dos outros, o que leva cada um não somente a recusar crédito novo — a não ser em condições muito onerosas — mas também a revogar, se for possível, todo o crédito que já havia sido concedido. Os depósitos são retirados dos bancos, as notas são devolvidas aos seus emissores para serem trocadas por moeda, os banqueiros aumentam sua taxa de desconto e seguram os empréstimos que costumam conceder; os comerciantes recusam renovar títulos comerciais. Em tais períodos, antigamente se experimentavam as consequências mais calamitosas, devido à tentativa, por parte da lei, de impedir que se concedesse ou se aceitasse uma taxa de juros acima de um montante limitado. Pessoas que não tinham condições de tomar empréstimos a 5% tinham que pagar não 6 ou 7%, mas 10 ou 15%, para compensar ao prestamista o risco das penalidades da lei, ou tinham que vender títulos ou bens por dinheiro vivo, com sacrifício ainda maior. Nos intervalos entre crises comerciais, costuma haver tendência de a taxa de juros declinar progressivamente, devido ao processo gradual de acúmulo; esse processo, nos grandes países comerciais, é suficientemente rápido para gerar a ocorrência quase periódica desses acessos de especulação — pois, depois de passarem alguns anos sem crise, e se nesse meio tempo não se tiver aberto nenhuma possibilidade nova e tentadora de investimento, sempre se constatará que nesses poucos anos houve um aumento tão grande de capital à procura de investimento, que baixou consideravelmente a taxa de juros, seja isso indicado pelos preços dos títulos ou pela taxa de desconto de letras; e essa diminuição dos juros tenta o dono a incorrer riscos, na expectativa de um retorno maior. Por vezes, a taxa de juros é afetada, de maneira mais ou menos permanente, por circunstâncias que, embora não ocorram com frequência, ocorrem ocasionalmente, e que tendem a alterar a proporção existente entre a classe dos capitalistas que recebem juros e a dos que recebem lucros. Duas causas desse gênero, gerando efeitos opostos, têm-se manifestado nos últimos anos, e estão atualmente produzindo efeitos consideráveis na Inglaterra. Uma delas são as descobertas de ouro. Pode-se afirmar com segurança que grandes volumes dos metais preciosos que estão constantemente chegando dos países produtores de ouro são inteiramente acrescentados aos fundos que suprem o mercado de empréstimos. Um acréscimo tão grande de capital adicional, não dividido entre as duas classes de capitalistas, mas totalmente acrescentado ao capital da classe que recebe juros, perturba a proporção anteriormente existente entre as duas categorias e tende a fazer os juros baixarem em relação ao capital. Outra circunstância, ainda mais recente, mas que tende a produzir o efeito contrário, é a legalização de sociedades por ações com responsabilidade limitada. Os sócios dessas empresas, que atualmente se multiplicam com tanta rapidez, provêm quase exclusivamente da categoria das pessoas que concedem empréstimos — daquelas que deixaram em depósito seus fundos disponíveis, para serem emprestados por banqueiros, ou os investiram em títulos públicos ou privados, e receberam os respectivos juros. Em função das ações que possuíam em qualquer dessas companhias (com a única exceção dos empreendimentos bancários), passaram a comercializar com seu próprio capital; deixaram de dar empréstimos, e até, na maioria dos casos, passaram para a categoria dos tomadores de empréstimos. O dinheiro com que subscreveram capital nessas companhias foi retirado dos fundos que alimentam o mercado financeiro, e eles mesmos passaram a competir por uma participação no que resta desses fundos; o efeito natural de tudo isso é uma subida dos juros. E não seria de estranhar se, por um período considerável de tempo, no futuro, a taxa normal de juros, na Inglaterra, vier a apresentar proporção maior, em relação à taxa comum de lucro comercial, do que apresentada em qualquer época desde que começou a entrada de ouro novo no país. (À causa de aumento da taxa de juros mencionada no texto, deve-se acrescentar outra, na qual insiste vigorosamente o autor de um bom artigo publicado na Edinburgh Review de janeiro de 1865: a vontade — que aumentou e continua a aumentar — de enviar dinheiro ao exterior, para investimento. Em razão das grandes facilidades de acesso a países estrangeiros, e devido à informação abundante que constantemente se recebe sobre eles, os investimentos no exterior deixaram de inspirar o pavor inerente ao desconhecido; o capital aflui, sem apreensão, a qualquer lugar que proporcione expectativa de alto lucro; por outro lado, rapidamente vai-se unificando o mercado financeiro de todo o mundo comercial. Por isso, a taxa de juros naquela região do mundo da qual for mais raro sair capital já não pode permanecer tão abaixo da taxa vigente alhures, como tem acontecido até agora). A procura de empréstimos varia muito mais do que a oferta, e suas variações abarcam ciclos mais longos de anos. Por exemplo, uma época de guerra é um período em que se fazem saques descomunais no mercado financeiro. Em tais períodos, o Governo costuma contrair novos empréstimos, e uma vez que estes em geral se sucedem rapidamente enquanto dura a guerra, a taxa de juros tende a manter-se mais alta em tempo de guerra do que em tempo de paz, sem referência à taxa de lucro, e a atividade produtiva fica privada de seus suprimentos costumeiros. Durante parte da última guerra com a França, o Governo não tinha condições de tomar empréstimos a menos de 6% e, naturalmente, todos os outros tomadores tinham que pagar no mínimo essa taxa. E a influência desses empréstimos, no conjunto, não para quando o Governo cessa de contrair outros empréstimos; com efeito, os empréstimos já contraídos continuam a proporcionar investimento para um montante muito maior do capital disponível do país, o qual, se a dívida nacional fosse liquidada, seria acrescentado à massa de capital que procura investimento, e (independentemente de uma perturbação temporária) só poderia, até certo ponto, fazer baixar em caráter permanente a taxa de juros. O mesmo efeito sobre os juros, produzido por empréstimos tomados pelo Governo para fins bélicos, é produzido pela abertura repentina de qualquer forma de investimento permanente que seja nova e atraente para o público. O único exemplo desse gênero, na história recente, em escala comparável à dos empréstimos para fins bélicos, é a absorção de capital na construção de ferrovias. Esse capital deve ter sido tirado sobretudo dos depósitos em bancos, ou de poupanças que teriam sido depositadas nos bancos e que foram ao final destinadas à compra de títulos de pessoas que teriam utilizado o dinheiro em descontos ou em outros empréstimos a juros; nos dois casos, sacou-se dinheiro do fundo geral destinado a empréstimos. Com efeito, é evidente que, a menos que se tivessem feito poupanças expressamente para serem empregadas no empreendimento ferroviário, o montante assim empregado deve ter sido tirado do capital efetivo de pessoas engajadas em negócios, ou do capital que teria sido emprestado a pessoas engajadas em negócios. No primeiro caso, a subtração, por reduzir os recursos de negociantes, obriga-os a tomarem empréstimos maiores; no segundo, diminui a soma que podem tomar emprestada; e, nos dois casos, tende igualmente a aumentar a taxa de juros. § 4. Até aqui considerei os empréstimos, bem como a taxa de juros, como algo que diz respeito ao capital em geral, em oposição direta à noção popular, segundo a qual dizem respeito somente ao dinheiro. Nos empréstimos, como em todas as outras transações monetárias, considerei o dinheiro que passa de mão em mão apenas como meio ou instrumento, levando em conta que a coisa realmente transferida, o objeto real da transação, consiste nas mercadorias. E isso é correto, no essencial, pois a finalidade para a qual, no curso normal dos negócios, se toma dinheiro emprestado, é adquirir poder de compra de mercadorias. Em um país ativo e comercial, a intenção ulterior costuma ser o emprego de mercadorias como capital. Mas mesmo no caso de empréstimos tomados para consumo improdutivo, como os feitos por perdulários, ou os do Governo, o montante emprestado é tirado de uma acumulação anterior, que do contrário teria sido emprestado para movimentar atividades produtivas. Portanto, ele é, nessa medida, subtraído daquilo que corretamente se pode denominar o montante do capital destinado a empréstimos. Há, porém, um caso relativamente comum em que a finalidade do tomador é diferente da que aqui supus. Ele pode tomar dinheiro emprestado não para empregá-lo com capital, nem para gastá-lo improdutivamente, mas para pagar uma dívida anterior. Nesse caso, o que ele necessita não é de poder de compra, mas, de moeda legal, ou algo que um credor aceitará como equivalente a ela. Ele necessita especificamente de dinheiro, não de mercadorias ou de capital. É a demanda proveniente dessa causa que produz quase todas as variações grandes e repentinas da taxa de juros. Tal demanda representa um dos primeiros aspectos indicadores de uma crise comercial. Em tal período, muitas pessoas envolvidas em negócios, as quais assumiram compromissos, viram-se impedidas, por uma mudança de circunstâncias, de obter em tempo os recursos com os quais contavam para atender a eles. Esses recursos, precisam obtê-los a qualquer sacrifício sob pena de irem à falência; e o que necessitam é de dinheiro. Outro tipo de capital, por mais que possuam, não tem condição de cumprir essa finalidade, a menos que antes se possa com ele obter dinheiro; ao contrário, sem nenhum aumento do capital do país, um simples aumento de instrumentos de crédito circulantes (mesmo que tenham tão pouco valor, para qualquer outra finalidade, quanto a caixa de notas de 1 libra, descoberta nas caixas-fortes do Bank of England durante o pânico de 1825) servirá eficazmente para esse fim, desde que se permita aos interessados fazer uso deles. Uma emissão maior de notas, na forma de empréstimos, basta para atender a essa demanda e pôr fim ao pânico que a acompanha. Embora, porém, nesse caso, não seja de capital, ou de poder de compra, que o tomador necessita, mas de dinheiro mesmo, o que se transfere a ele não é só dinheiro. O dinheiro leva consigo, aonde for, seu poder de compra; e o dinheiro jogado no mercado financeiro, por meio de seu poder de compra, encaminha uma porção maior do capital do país para a direção dos empréstimos. Embora se necessitasse apenas de dinheiro, o que se transfere é capital; e ainda se pode dizer com verdade que é mediante um acréscimo ao capital destinado a empréstimos que se corrige o aumento da taxa de juros. Independentemente disso, porém, existe uma relação real entre empréstimos e dinheiro, que é indispensável reconhecer. Todo capital passível de empréstimo tem forma de dinheiro. O capital destinado diretamente à produção existe em muitas formas, ao passo que o capital destinado a empréstimos normalmente só existe na forma de dinheiro. Devido a essa circunstância, temos de esperar com naturalidade que, entre as causas que afetam, em grau maior ou menor, a taxa de juros, se encontrem não somente causas que agem por meio do capital, mas também algumas que agem, ao menos diretamente, só por meio do dinheiro. A taxa de juros não tem relação necessária com a quantidade ou o valor do dinheiro em circulação. O montante permanente de meio circulante, seja ele grande ou pequeno, afeta somente os preços, não a taxa de juros. Uma depreciação da moeda, depois de se ter tornado fato consumado, não afeta em nada a taxa de juros. Diminui, certamente, o poder do dinheiro para comprar mercadorias, mas não o poder do dinheiro para comprar dinheiro. Se por 100 libras se compra uma anuidade perpétua de 4 libras por ano, uma depreciação que faz as 100 libras valerem apenas a metade do que valiam antes tem exatamente o mesmo efeito sobre as 4 libras, e por isso não pode alterar a relação entre os dois valores. O número maior ou menor de moedas que se tem de usar para expressar determinado montante de riqueza não acarreta nenhuma diferença na posição ou nos interesses dos prestamistas ou dos prestatários, por isso não faz nenhuma diferença para a procura e a oferta de empréstimos. Continua a haver o mesmo montante de capital real emprestado; e se o capital nas mãos dos prestamistas for representado por um número maior de libras esterlinas, o mesmo número maior de libras esterlinas será agora necessário, em consequência do aumento dos preços, para as finalidades para as quais os tomadores tencionam aplicá-las. Contudo, embora a quantidade maior ou menor do dinheiro não acarrete, em si mesma, diferença para a taxa de juros, uma mudança de quantidade menor para quantidade maior, ou de quantidade maior para quantidade menor, pode acarretar tal diferença, e realmente a acarreta. Suponhamos que o dinheiro esteja em fase de depreciação, devido a uma moeda inconversível emitida por um Governo para cobrir seus gastos. Esse fato não diminuirá em nada a demanda de capital real para empréstimos, mas diminuirá o capital real disponível para empréstimos, pois, pelo fato de tal capital só existir na forma de dinheiro, o aumento da quantidade lhe deprecia o valor. Avaliada em capital, a quantidade oferecida é menor, ao passo que a quantidade necessária é a mesma que antes. Avaliada em moeda corrente, a quantidade oferecida agora é apenas a mesma que antes, ao passo que a quantidade necessária é maior, devido ao aumento dos preços. Pelos dois fatos, a taxa de juros tem de aumentar. Assim sendo, nesse caso, o aumento da quantidade de dinheiro afeta realmente a taxa de juros, mas da forma contrária àquela que geralmente se supõe: fazendo-a subir e não a fazendo baixar. Acontecerá o inverso, no caso de se recolher uma moeda depreciada, ou de diminuir a sua quantidade. O dinheiro que está nas mãos dos prestamistas, juntamente com todo o outro dinheiro, aumentará de valor, isto é, haverá uma quantidade maior de capital real em busca de tomadores, mas o capital real necessitado por estes será apenas o mesmo que antes, e o montante de dinheiro disponível para empréstimos será menor: por isso, a taxa de juros tenderá a cair. Vemos, portanto, que a depreciação, considerada simplesmente em si mesma, e enquanto se estiver processando, tende a elevar a taxa de juros. E a expectativa de ulterior depreciação aumenta esse efeito, porque prestamistas que esperam que seus juros lhes sejam pagos e o principal talvez seja resgatado em uma moeda de valor inferior ao daquela em que emprestaram, naturalmente exigem uma taxa de juros suficiente para cobrir essa perda contingente. Todavia, esse efeito é mais do que neutralizado por um efeito contrário, quando o dinheiro adicional é jogado na circulação não por compras, mas por empréstimos. Na Inglaterra e na maioria dos outros países comerciais, o papel-moeda de uso corrente, por ser uma moeda fornecida por banqueiros, é todo ele emitido na forma de empréstimos, excetuada a parte utilizada na compra de ouro e prata. Por isso, a mesma operação que aumenta a quantidade de dinheiro aumenta também a dos empréstimos: o aumento total de dinheiro inflaciona o mercado financeiro. Considerado como um aumento dos empréstimos, o aumento da quantidade de dinheiro tende a fazer baixar os juros, mais do que tende a elevá-los, na sua propriedade de depreciação, pois o primeiro efeito depende da razão ou percentagem que a nova moeda apresenta em relação ao dinheiro emprestado ao passo que o segundo depende da sua razão ou percentagem em relação a todo o dinheiro em circulação. Por isso, um aumento da quantidade de moeda emitida por bancos tende, enquanto continuar esse processo, a fazer baixar a taxa de juros, ou a mantê-la baixa. Efeito similar é produzido pelo aumento da quantidade de moeda decorrente das descobertas de ouro, sendo que, como já observamos, quase a totalidade dessa moeda, quando trazida à Europa, é acrescentada aos depósitos bancários, e consequentemente ao montante de empréstimos. Quando esse ouro é retirado e investido em títulos, libera uma soma equivalente de outro capital disponível para empréstimos. O ouro recém-chegado só consegue encontrar investimento, em qualquer situação de comércio, baixando a taxa de juros; enquanto continuar a entrada de ouro, ele não pode deixar de manter os juros mais baixos do que teria ocorrido no caso contrário, supondo-se que permaneçam inalteradas todas as outras circunstâncias. Assim como a introdução de mais ouro e prata no país, que vão para o mercado financeiro, tende a manter baixa a taxa de juros, da mesma forma, qualquer retirada notável deles invariavelmente a faz subir, mesmo que ocorra no decurso do comércio, como no pagamento de importações extras em razão de uma colheita precária, ou para pagamento do algodão caro que, sob a influência da guerra civil norte-americana, era importado de diversos países. O dinheiro necessário para esse pagamento é tirado inicialmente dos depósitos que se encontram nas mãos dos banqueiros, e nessa medida definha o fundo destinado a suprir o mercado financeiro. A taxa de juros depende, pois, essencialmente e permanentemente, do montante relativo de capital real oferecido e procurado na forma de empréstimos: todavia, ela está sujeita a distúrbios temporários de vários tipos, devido ao aumento e à diminuição do meio circulante, e esses distúrbios são um tanto complexos, e às vezes geram efeitos diretamente opostos aos esperados com base nas primeiras aparências. Todas essas distinções são disfarçadas e confundidas por esse infeliz equívoco de linguagem que designa a taxa de juros com um termo ("valor do dinheiro") que expressa propriamente o poder de compra do meio circulante. O público, mesmo o comercial, costuma imaginar que a facilidade do mercado financeiro, isto é, a facilidade de tomar empréstimos a juros baixos, é proporcional à quantidade de dinheiro em circulação. Por isso, não somente se supõe que as notas bancárias produzam, como dinheiro, efeitos que só produzem como empréstimos senão que também se costuma desviar a atenção de efeitos de tipo semelhante e de importância muito maior, quando produzidos por uma ação sobre os empréstimos que eventualmente não vem acompanhada de alguma ação sobre o dinheiro. Por exemplo, ao se considerar o efeito produzido pelos procedimentos dos bancos em estimular os excessos da especulação, costuma-se atribuir efeito imenso às suas emissões de notas, ao passo que, até recentemente, dificilmente se prestava alguma atenção à administração dos depósitos bancários — ainda que nada haja de mais certo do que seus abusos imprudentes do crédito ocorrerem com mais frequência por meio dos seus depósitos, do que por meio das suas emissões. “Não há dúvida alguma,” afirma o sr. Tooke (Inquiry into the Currency Principle), “de que os bancos, sejam eles privados ou sociedades anônimas, podem colocar-se a serviço de uma ampliação indevida do crédito para fins de especulação, seja em mercadorias, seja exagerando nas exportações ou nas importações, ou em operações de construção ou de mineração; não há dúvida de que efetivamente prestaram esse mau serviço com frequência, e em alguns casos em medida prejudicial para eles mesmos, e sem benefício, ao final, para as partes a cujos serviços colocaram seus recursos.” Ora, “na hipótese de todos os depósitos recebidos por um banqueiro serem em moeda metálica, não estará ele, tanto quanto o banqueiro que emite, exposto às importunações de clientes — solicitando empréstimos ou descontos — às quais pode ser impolítico recusar, ou tentado por juros altos? E porventura não pode ele ser induzido a mexer tanto em seus depósitos, que venha a encontrar-se, em circunstâncias não improváveis, na impossibilidade de atender às demandas de seus depositantes? Com efeito, sob que aspecto o caso de um banqueiro, no sistema de circulação de moeda totalmente metálica, diferiria do caso de um banqueiro inglês nos dias de hoje? Ele não cria dinheiro, ele não pode valer-se de seu privilégio de emissor de notas bancárias para ajudar seu outro negócio; e, no entanto, tem havido casos lamentáveis de banqueiros londrinos emitindo dinheiro em excesso.” Além disso, nas discussões havidas durante tantos anos, em torno das operações do Bank of England, e em torno dos efeitos produzidos por essas operações sobre a conjuntura creditícia, embora durante quase meio século nunca tenha havido uma crise comercial em que esse banco não tenha sido fortemente acusado de tê-la produzido ou ao menos de tê-la agravado, tem sido quase geral a crença de que a influência de seus atos foi sentida somente por meio do montante de suas notas em circulação, e de que, caso se pudesse impedi-lo de agir arbitrariamente nessa qualidade, não teria mais nenhum poder do qual poderia abusar. Ao menos esse é um erro que, depois da experiência do ano de 1847, podemos esperar ter sido cometido pela última vez. Durante aquele ano, o Bank of England teve as mãos absolutamente amarradas, quanto às emissões; entretanto, por meio de suas operações como banco de depósito, exerceu influência tão grande — ou influência aparente — sobre a taxa de juros e a conjuntura creditícia, quanto em qualquer período anterior; o banco foi alvo de acusações de abusar dessa influência, acusações essas que tinham a mesma veemência que anteriormente; ocorreu uma crise cuja intensidade poucas das crises anteriores igualaram, e talvez nenhuma delas tenha ultrapassado. § 5. Antes de encerrar o tema geral deste capítulo, quero fazer a seguinte observação óbvia: a taxa de juros determina o valor e o preço de todos aqueles artigos vendáveis que são desejados e comprados, não em razão deles mesmos, mas pela renda que são capazes de proporcionar. Os fundos públicos, as ações de sociedades anônimas e todos os tipos de títulos mantêm um preço alto, na proporção em que for baixa a taxa de juros. São vendidos ao preço que paga a taxa de juros de mercado sobre o dinheiro de compra, com margem para todas as diferenças no risco ocorrido, ou em quaisquer circunstâncias de conveniência. Por exemplo, as letras do Tesouro costumam ser vendidas a preço mais alto que os títulos da dívida pública consolidada, proporcionalmente aos juros que rendem — isso porque, embora a garantia seja a mesma, apesar de as primeiras serem pagas anualmente ao par, a menos que sejam renovadas pelo portador, o comprador (a não ser que tenha de vendê-la em um momento de emergência geral) não incorre em nenhum perigo de perder alguma coisa na revenda, excetuado o ágio que pode ter pago. Da taxa de juros depende também o preço da terra, das minas e de todas as outras fontes fixas de renda. A terra geralmente tem preço mais alto, na proporção da renda que proporciona, do que os fundos públicos — isso não somente porque se pensa, mesmo na Inglaterra, que ela é um pouco mais segura, mas também porque à posse da mesma se associam ideias de poder e de dignidade. Essas diferenças são constantes, ou quase constantes, e nas variações de preço a terra acompanha, coeteris paribus, as variações permanentes (ainda que não as diárias, evidentemente) da taxa de juros. Quando os juros são baixos, é natural que a terra seja cara; quando os juros são altos, a terra será barata. A última guerra de longa duração foi uma exceção flagrante a essa regra, pois naquela ocasião foram notavelmente altos tanto o preço da terra como a taxa de juros. Para isso havia, porém, uma causa especial. A vigência prolongada de um preço médio altíssimo do trigo durante muitos anos havia feito subir a renda da terra até mais do que em proporção à taxa de juros e à queda do preço de venda de rendas fixas. Não fora esse incidente, que dependeu sobretudo das estações, a terra deveria ter sofrido uma depreciação tão grande de valor quanto os fundos públicos, e isso provavelmente teria acontecido, se depois disso estourasse uma guerra semelhante — aliás, para grande decepção daqueles senhores de terra e arrendatários que, fazendo generalizações a partir das circunstâncias casuais de um período notável, durante tanto tempo se persuadiram de que um estado de guerra era particularmente vantajoso, e um estado de paz desvantajoso, para aquilo que quiseram denominar os interesses da agricultura. CAPÍTULO XXIV A Regulamentação de um Papel-Moeda Conversível § 1. A ocorrência frequente, durante a segunda metade do século, da penosa série de fenômenos denominada crise comercial tem dirigido grande parte da atenção, tanto de economistas como de políticos, à procura de expedientes para impedir tais males, ou ao menos para mitigá-los. Por outro lado, o hábito — que se criou durante a época da restrição ao Bank of England — de atribuir todas as alterações de preços altos e baixos às emissões bancárias levou os pesquisadores em geral a fixarem suas esperanças de sucessos no sentido de moderar tais vicissitudes, em programas destinados a regulamentar as notas bancárias. Um programa dessa natureza, depois de obter a sanção de altas autoridades, se consolidou a tal ponto na opinião pública, que, com aprovação geral, foi convertido em uma lei, por ocasião de renovação da carta-patente do Bank of England, em 1844; e essa regulamentação continua em vigor, ainda que tenha perdido muito de sua popularidade, e que seu prestígio tenha sido prejudicado por três suspensões temporárias, de responsabilidades do Executivo, tendo sido a primeira delas promulgada pouco mais de três anos após a promulgação da citada lei. É conveniente considerar aqui os méritos desse esquema de regulamentação de uma moeda que consiste em notas bancárias conversíveis. Antes de abordar as medidas práticas da lei de Sir Robert Peel, de 1844, exporei brevemente a natureza da teoria na qual essa lei se baseia e examinarei os fundamentos dessa teoria. Acreditam muitos que os bancos emissores de papel-moeda, em geral, ou o Bank of England em particular, têm o poder de jogar arbitrariamente suas notas bancárias na circulação, e com isso elevar os preços; acreditam que esse poder é limitado apenas pelo grau de moderação que os próprios bancos possam considerar oportuno exercer; que quando aumentam suas emissões além do montante costumeiro, o aumento de preços, assim produzido, gera um espírito de especulação em mercadorias, o qual faz os preços aumentarem ainda mais, e ao final causa uma reação e uma reversão dos preços, chegando em casos extremos a produzir uma crise comercial; acreditam ainda que toda crise desse gênero, que tenha ocorrido neste país e da qual a memória comercial guarde lembrança, ou foi originalmente produzida por essa causa, ou ao menos foi seriamente agravada por ela. A teoria monetária não foi levada a esse extremo pelos eminentes economistas políticos que subscreveram uma versão mais moderada da mesma teoria. Entretanto, não exagerei o disparate da versão popular; esta constitui, aliás, um exemplo notável dos extremos aos quais uma teoria favorita pode conduzir rapidamente não os estudiosos de gabinete, cuja competência em tais questões é muitas vezes tratada com tanto desprezo, mas pessoas do mundo dos negócios, que se vangloriam do conhecimento prático que tiveram, no mínimo, amplas oportunidades de adquirir. Não somente essa ideia fixa da moeda como agente primário nas flutuações de preço os fez fechar os olhos à infinidade de circunstâncias que, por influenciarem a expectativa da oferta, são as verdadeiras causas de quase todas as especulações e de quase todas as flutuações de preço, senão que também, a fim de estabelecer a concordância cronológica, exigida pela sua teoria, entre as variações das emissões bancárias às dos preços, essas pessoas arquitetaram tais manipulações fantásticas de fatos e dados, que se pensaria inacreditáveis, se uma eminente autoridade no campo prático não se tivesse dado ao trabalho de analisá-los do ponto de vista da história pura, em uma exposição esmerada. Refiro-me, como devem saber todos os versados na matéria, a History of Prices, do sr. Tooke. O resultado das pesquisas do sr. Tooke foi assim formulado por ele mesmo, no exame feito em 1832 perante o Comitê da Câmara dos Comuns, sobre o problema da carta-patente bancária; e esse depoimento está registrado em seu livro: “Do ponto de vista dos fatos, e sob o prisma histórico, no período abarcado pelas minhas pesquisas, devo atestar que em todos os casos notáveis em que houve aumento ou queda de preços, esse aumento ou essa queda foi anterior a um aumento ou a uma diminuição da circulação bancária e portanto não pode ter sido efeito desse aumento ou diminuição”. O disparate dos teóricos da moeda, que atribuíram quase todos os aumentos ou baixas de preços a um aumento ou a uma redução das emissões de notas bancárias, fez surgir, por reação, uma teoria que é o extremo oposto da primeira, sendo os representantes mais destacados dela, ao nível da discussão científica, os srs. Tooke e Fullarton. Essa contrateoria nega às notas bancárias, enquanto se mantiver a sua conversibilidade, qualquer poder de aumentar preços, e aos bancos qualquer poder de aumentar a circulação das mesmas, a não ser como consequência de um aumento dos negócios a serem feitos, e em proporção a eles. Essa última afirmação é sufragada pela convicção unânime de todos os banqueiros do país que depuseram perante sucessivas comissões parlamentares sobre o assunto. Todos eles testemunham (nas palavras do sr. Fullarton (Regulation of Currencies)) que “o montante de suas emissões é regulado exclusivamente pela extensão das transações e dos gastos locais em seus respectivos distritos, flutuando esse montante com as flutuações da produção e do preço, e que nunca [os bancos] têm condições de aumentar suas emissões além dos limites prescritos pelo âmbito dessas transações e gastos, sob pena de suas notas lhes serem com certeza devolvidas imediatamente; tampouco têm condições de diminuir esse montante de emissões, sob pena de, quase com a mesma certeza, a lacuna ser preenchida por alguma outra fonte”. Partindo dessas premissas, os srs. Tooke e Fullarton argumentam que as emissões bancárias, pelo fato de seu montante só poder aumentar se houver um aumento de demanda, não têm possibilidade de gerar aumento de preços, não têm condições de estimular a especulação nem de gerar uma crise comercial; e, portanto, a tentativa de precaver-se contra esse mal, regulamentando artificialmente a emissão de notas bancárias, não surte efeito algum para a finalidade visada, podendo produzir outras consequências extremamente calamitosas. § 2. Parece-me incontestável tudo aquilo que, nessa teoria, se baseia sobre o testemunho histórico e não sobre conclusões tiradas. Subscrevo inteiramente a asserção dos banqueiros do país, resumida com muita clareza e correção na frase que acabo de citar do sr. Fullarton. Estou convencido de que os bancos não têm condições de aumentar suas emissões de notas, a não ser nas circunstâncias ali estabelecidas. Acredito também que a teoria, fundada pelo sr. Fullarton sobre esse fato, encerra grande parte de verdade, estando muito mais próxima da verdade total do que qualquer outra versão da teoria monetária. Duas são as situações possíveis dos mercados: a primeira pode ser chamada de estado de calma, a outra de estado de expectativa, ou de especulação. O estado de calma é aquele em que nada há que tenda a engendrar, em alguma porção considerável do público comercial, desejo de ampliar suas operações. Os produtores e os distribuidores produzem e compram, respectivamente, apenas seus estoques costumeiros, por não terem nenhuma expectativa de saída dos mesmos que ultrapasse a rapidez costumeira. Cada um movimenta o seu montante normal de negócios, e não mais, ou aumenta esse volume somente em conformidade com o aumento de seu capital ou clientela, ou conforme o crescimento gradual da demanda de sua mercadoria, gerado pela prosperidade pública. Por não pensarem em nenhuma ampliação anormal de suas próprias operações, os produtores e os distribuidores só precisam da ajuda costumeira dos banqueiros e de outros prestamistas de dinheiro; e já que os bancos só aumentam suas emissões quando aumentam os empréstimos, nessas circunstâncias só é possível um aumento momentâneo de emissões. Se, em determinado período do ano, parte do público tem de fazer pagamentos maiores do que em outros períodos, ou se um indivíduo, em face de alguma necessidade especial, precisar de um empréstimo extra, podem solicitar mais notas bancárias, e as obtêm. Mas essas notas não permanecerão em circulação como não permanece a quantidade extra de notas emitidas pelo Bank of England, que são emitidas a cada três meses para o pagamento de dividendos. A pessoa a quem se pagam essas notas, depois de terem sido emprestadas, não tem pagamentos extras a fazer, não tem uma necessidade especial, e portanto guarda essas notas sem utilizá-las, ou as deposita em banco, ou então paga com elas um empréstimo anterior, que lhe foi concedido por algum banco; em qualquer hipótese, não compra mercadorias com elas, já que, na hipótese que analisamos, não há nada que o induza a estocar mais mercadorias do que antes. Mesmo se supusermos como podemos fazer — que os bancos criem um aumento artificial da demanda de empréstimos, oferecendo-os abaixo da taxa de juros do mercado, as notas que emitirem não permanecerão em circulação. Com efeito, quando o tomador, tendo completado a transação para a qual recorreu a elas, as tiver pago, o credor ou distribuidor que recebeu essas notas as deposita em banco, por não haver demanda para o uso imediato de uma quantidade extra de notas. Nesse caso, portanto, os bancos não podem aumentar arbitrariamente o meio circulante geral; quaisquer novas emissões de notas voltam aos bancos ou permanecem ociosas nas mãos do público, não havendo condições para um aumento de preços. Há, porém, outra situação dos mercados, abertamente contrastante com a descrita até aqui, não sendo tão óbvio que a teoria dos srs. Tooke e Fullarton seja aplicável nesse caso: é quando prevalece uma impressão — fundada ou infundada — de que a oferta de um ou mais artigos importantes de comércio tem probabilidades de ficar aquém do consumo normal. Nessas circunstâncias, todas as pessoas que lidam com esses artigos desejam ampliar suas operações. Os produtores ou importadores desejam então produzir ou importar uma quantidade maior, os especuladores desejam acumular um estoque para tirarem lucro do esperado aumento do preço, e os detentores da mercadoria desejam empréstimos adicionais, para poderem continuar a segurá-la. Todas essas categorias de pessoas estão propensas a fazer utilização de seu crédito acima do normal, e não se nega que muitas vezes os bancos concorrem para reforçar indevidamente esse desejo. Efeitos do mesmo gênero podem ser produzidos por qualquer coisa que, por despertar expectativas de lucro acima do normal, imprima maior vigor ao negócio: por exemplo, uma demanda estrangeira repentina de mercadorias em larga escala, ou a expectativa de que isto aconteça — como ocorreu por ocasião da abertura da América espanhola ao comércio com a Inglaterra, e em várias ocasiões no comércio com os Estados Unidos. Tais ocorrências produzem uma tendência a subir os preços de artigos exportáveis, e geram especulações, por vezes do tipo racional, e (enquanto grande parte dos homens de negócios preferirem o alvoroço à segurança) frequentemente de um tipo irracional ou imoderado. Em tais casos, as classes comerciais, ou alguma parte delas, desejam utilizar seu crédito como poder de compra com intensidade acima do normal. Temos aqui uma conjuntura comercial que, se levada ao extremo, provoca essa reviravolta que se chama de crise comercial; e é um fato conhecido que tais épocas de especulação dificilmente chegam ao fim sem terem acarretado, durante algum período de seu desenvolvimento, notável aumento de notas bancárias. A isso, porém, os srs. Tooke e Fullarton respondem que o aumento de circulação sempre vem depois do aumento dos preços, e não antes, sendo, portanto, efeito desse aumento, e não causa dele. Respondem que, primeiramente, as compras especulativas que fazem os preços subir não são geradas pelas notas bancárias, mas por cheques, ou, mais comumente ainda, com base em um simples crédito contábil; em segundo lugar, que, mesmo que essas compras especulativas fossem feitas com notas bancárias, emprestadas por bancos para essa finalidade expressa, essas notas, depois de serem utilizadas para esse fim, seriam redepositadas em banco pelas pessoas que as recebem, se não houver necessidade delas para transações correntes. Concordo plenamente com isso, e considero demonstrado, tanto do ponto de vista científico como do histórico, que durante o período ascendente da especulação, e enquanto a especulação estiver limitada a transações entre distribuidores, é raro aumentar substancialmente as emissões de notas bancárias, e em nada contribuem para o aumento especulativo dos preços. Parece-me, porém, que isto não mais se pode afirmar quando a especulação avançou até o ponto de atingir os produtores. As encomendas especulativas, feitas pelos comerciantes aos manufatores, induzem estes últimos a ampliar suas operações, e a solicitar dos bancos empréstimos maiores, os quais, se feitos em notas, não são pagos às pessoas que os redepositam, mas em parte são utilizadas para pagar salários, e transitam pelos vários canais do comércio varejista, onde passam a produzir diretamente ulterior aumento dos preços. Não posso deixar de pensar que essa utilização de notas bancárias deve ter agido poderosamente sobre os preços na época em que a lei permitiu a circulação de notas no valor de 1 e de 2 libras. Todavia, mesmo admitindo que a proibição de notas abaixo de 5 libras tenha tornado essa parte de sua operação relativamente insignificante, limitando muito a aplicabilidade delas para o pagamento de salários, há outra forma de sua instrumentabilidade, que entra em jogo nos últimos estágios da especulação e constitui o argumento principal dos defensores mais moderados da teoria monetária. Embora seja raro procurarem-se empréstimos bancários para o fim de fazer compras especulativas, eles são amplamente procurados por especuladores sem êxito, para segurar as mercadorias. E a concorrência desse tipo de especulador, para obter uma parcela do capital disponível para empréstimos, faz com que mesmo aqueles que não especularam dependam mais do que antes dos bancos, para os empréstimos de que carecem. Entre o período ascendente da especulação e a reviravolta, há um intervalo, que é de luta contra a queda dos preços, intervalo este que se estende por semanas, e às vezes por meses. Uma vez que a maré dá sinais de inverter-se, os especuladores que seguram as mercadorias resistem a vender em um mercado declinante, e nesse meio tempo precisam de fundos para poderem cumprir até mesmo seus compromissos normais. É esse estágio que costuma ser marcado por um aumento considerável do montante de notas bancárias em circulação. Que tal aumento ocorra normalmente ninguém nega. E penso dever-se admitir que esse aumento de notas bancárias em circulação tende a prolongar a duração das especulações e possibilita manter os preços especulativos por algum tempo além daquele em que, de outra forma, teriam caído; por isso, tal aumento de notas bancárias prolonga e aumenta a drenagem dos metais preciosos para exportação, fenômeno que constitui a característica dominante desse estágio da evolução de uma crise comercial; por sua vez, a continuação dessa drenagem de moeda metálica, por acabar colocando em perigo a capacidade dos bancos de cumprirem com seu compromisso de pagar suas notas aos clientes que o solicitaram, os obriga a reduzir seu crédito mais repentina e rigorosamente do que teria sido necessário se tivessem sido impedidos de reforçar a especulação aumentando os empréstimos, depois de o recuo dos preços ter-se tornado inevitável. § 3. Evitar esse retardamento do recuo dos preços e o agravamento último de seu rigor, eis o objetivo do esquema de regulamentação monetária, da qual os primeiros propagadores foram Lorde Overstone, o sr. Norman e o Coronel Torrens, esquema esse que foi transformado em lei, em uma versão levemente modificada. (Penso ter motivos para afirmar que a mitigação de reviravoltas comerciais é o objetivo real da lei de 1844, o seu único propósito sério. Sei perfeitamente que seus defensores insistem (sobretudo desde 1847) em sua eficácia suprema no sentido de “manter a conversibilidade das notas do Bank of England”. Todavia, não admito ser censurado por não reconhecer nenhuma importância séria nesse mérito que se atribui à citada lei. A conversibilidade das notas do Bank of England era assegurada no velho sistema, e teria continuado a existir a qualquer custo. Como bem disse o Lorde Overstone em seu depoimento, o Bank of England sempre tem condições de salvar-se à custa do público comercial, agindo com energia suficiente sobre o crédito. O fato de a lei de 1844 mitigar a violência desse procedimento é o que basta apresentar em defesa dela. Além disso, se supusermos tal grau de abuso de administração por parte do banco, que, não fora a referida lei, poria em risco a continuidade da conversibilidade, o mesmo grau de abuso de administração (ou um grau menor de abuso), praticado na vigência da mencionada lei, seria suficiente para produzir uma suspensão de pagamentos por parte do departamento bancário — evento este que a separação compulsória dos dois departamentos torna muito mais possível do que antes, e que, pelo fato de envolver a provável paralisação de todos os estabelecimentos bancários privados de Londres, e talvez também o não pagamento dos dividendos ao credor nacional, constituiria uma calamidade imediata muito maior do que uma breve interrupção da conversibilidade da nota, pois, para possibilitar ao banco retomar os pagamentos de seus depósitos, nenhum governo hesitaria por um momento em suspender o pagamento das notas, caso se demonstrasse insuficiente a suspensão da lei de 1844). Segundo o esquema em sua pureza original, a emissão de notas promissórias para circulação devia ser limitada a um único organismo. Na forma adotada pelo Parlamento, permitiu-se que todos os emissores existentes mantivessem esse privilégio, mas ninguém mais podia ser admitido a ele a partir dali, nem mesmo em lugar daqueles que eventualmente viessem a suspender suas emissões; além disso, prescreveu-se para todos — excetuado o Bank of England — um máximo de emissões propositadamente baixo. Para o Bank of England, não se fixou nenhum máximo para o montante total de suas notas, mas apenas para a parte emitida em títulos ou, em outros termos, na forma de empréstimos. Essas notas nunca poderiam ultrapassar determinado limite, fixado inicialmente em 14 milhões de libras esterlinas. (Permite-se um aumento condicional desse máximo, mas somente quando, por acordo com qualquer banco do país, se interromperem as emissões por parte desse banco, e elas foram substituídas pelas notas do Bank of England; e mesmo assim o aumento é limitado a 2/3 do montante das notas do país a serem substituídas dessa forma. Sob essa condição, o montante de notas que o Bank of England está atualmente autorizado a emitir contra títulos consiste em cerca de 15 milhões de libras esterlinas). Todas as emissões que ultrapassassem esse montante teriam que ser em troca de metal em barras, sendo que o Bank of England é obrigado a comprar, a um valor levemente abaixo do da Casa da Moeda, qualquer quantidade de metal em barras que lhe seja oferecida, dando em troca suas notas. Portanto, em relação a qualquer emissão de notas além do limite de 14 milhões, o Bank of England é puramente passivo, cabendo-lhe apenas a função compulsória de vender suas notas por ouro, a £ 3 17 s. 9 d., e de vender ouro por suas notas, a £ 3 17 s. 10 1/2 d., toda vez que qualquer pessoa o solicitar. A finalidade para a qual foi projetado esse mecanismo é que o montante de moeda em notas bancárias possa variar naqueles momentos exatos, e naquele grau exato em que variaria uma moeda puramente metálica. E já que os metais preciosos são as mercadorias que até agora mais se aproximam dessa invariabilidade, em todas as circunstâncias que influem sobre o valor — o que faz com que uma mercadoria seja indicada para ser adotada como meio ou instrumento de troca — acredita-se que a excelência da lei de 1844 está plenamente assegurada se, sob o efeito dela, as emissões obedeceram, em todas as suas quantidades, e portanto assim se conclui — em todas as suas variações de valor, às variações que ocorreriam em uma moeda inteiramente metálica. Ora, todos os contestadores razoáveis da referida lei, concordando com seus defensores, reconhecem como requisito essencial de qualquer sucedâneo dos metais preciosos que o valor permanente dessa outra moeda concorde exatamente com um padrão metálico. Afirmam também que, enquanto essa moeda for conversível em moeda metálica a pedido, ela concorda efetivamente com esse padrão, e tem de concordar. Entretanto, quando se fala do valor de uma moeda metálica ou de qualquer outra moeda, há dois pontos a considerar: o seu valor permanente ou médio, e as flutuações. É com o valor permanente de uma moeda metálica que deve concordar o valor de um papel-moeda. Não há, porém, nenhuma razão óbvia por que se deva exigir que ela concorde também com as flutuações. O único objetivo visado pela concordância é a constância de valor, e com respeito às flutuações, a única coisa desejável é que elas sejam as menores possíveis. Ora, as flutuações do valor da moeda são determinadas não pela quantidade desta — trate-se de moeda em ouro ou de moeda em papel —, mas pelos aumentos e pelas restrições do crédito. Portanto, para descobrir que moeda concordará mais de perto com o valor permanente dos metais preciosos, temos de verificar com qual moeda são menos frequentes e menos extremas as variações de crédito. Ora, o problema a resolver é precisamente se o objetivo é mais bem atingido com uma moeda metálica (e portanto por um papel-moeda que concorda exatamente com ela, em quantidade). Caso se provasse que um papel-moeda que acompanha todas as flutuações de quantidade de uma moeda metálica leva a reviravoltas mais violentas de crédito do que uma moeda que não está obrigada a seguir essa concordância rígida, seguiria que a moeda que concorda mais exatamente em quantidade com uma moeda metálica não é aquela que concorda de perto com o valor dela — isto é, com seu valor permanente, o único com o qual é desejável que concorde. Examinaremos agora se isso ocorre ou não, na realidade. Em primeiro lugar, vejamos se a lei atinge o objetivo prático primordial afirmado pelos seus defensores mais sensatos, a saber, o de coibir aumentos especulativos de crédito em um primeiro período, com uma saída menor de ouro, e consequentemente por um processo mais suave e mais gradual. Penso dever-se admitir que a referida lei atinge esse objetivo, até certo ponto. Estou consciente das objeções que se podem levantar — e com razão — contra essa opinião. Pode-se alegar que, quando chega o momento em que os bancos são pressionados a aumentar seus empréstimos para possibilitar aos especuladores cumprirem com seus compromissos, uma limitação da emissão de notas não impedirá os bancos — mesmo que a isso estivessem dispostos — de concederem tais empréstimos; que os bancos dispõem ainda de seus depósitos, como uma fonte da qual se podem conceder empréstimos além do ponto que se coaduna com a prudência bancária; e que, mesmo que os bancos se recusassem a isso, o único efeito seria que os próprios depósitos seriam sacados, para atender às necessidades dos depositantes — o que representaria um acréscimo tão grande de notas bancárias e de dinheiro metálico nas mãos do público, quanto se aumentasse a quantidade das próprias notas bancárias. Isso é verdade, sendo essa também uma resposta suficiente àqueles que pensam que os empréstimos bancários para especulações fracassadas são objetáveis sobretudo por aumentarem a quantidade de moeda. Contudo, se tais empréstimos são realmente objetáveis, é porque constituem um aumento do crédito. Se em vez de aumentarem seus descontos, os bancos permitirem o saque de seus depósitos, há o mesmo aumento de moeda (ao menos por um período breve), mas não há aumento de empréstimos, em um momento em que deveria haver diminuição. Se os bancos aumentarem efetivamente seus descontos não por meio de notas, mas somente à custa dos depósitos, esses depósitos (os assim chamados com propriedade) tornam-se limitados e exauríveis, ao passo que as notas podem ser aumentadas em qualquer montante, ou, depois de serem devolvidas, podem ser novamente emitidas sem limite. É verdade que um banco, se quiser aumentar indefinidamente suas disponibilidades, tem o poder de fazer de seus depósitos nominais um fundo tão ilimitado quanto poderiam sê-lo suas emissões; a única coisa necessária é fazer seus empréstimos em forma de crédito contábil, o que significa criar depósitos com suas próprias disponibilidades, já que o dinheiro pelo qual o banco assumiu responsabilidade se torna um depósito nas suas mãos a ser sacado por cheques — e os cheques, quando emitidos, podem ser liquidados (seja no mesmo banco, seja na Câmara de Compensação) sem o auxílio de notas, mediante simples transferência de crédito, de uma conta para outra. Creio que é sobretudo dessa forma que se costuma aumentar indevidamente o crédito, em períodos de especulação. Mas os bancos provavelmente não persistirão nesse curso quando a maré começar a mudar. Não é quando seus depósitos já começaram a ser sacados que provavelmente criam contas de depósito que representam não fundos colocados em suas mãos, mas novas disponibilidades deles mesmos. Mas a experiência demonstra que o aumento de crédito, quando na forma de notas, continua ainda por muito tempo depois de começar a baixa dos preços altos gerados pela superespeculação. Quando se torna impossível essa maneira de resistir à reviravolta dos preços, e as únicas fontes que sobram para empréstimos indevidos são os depósitos e os créditos contábeis, não se impede com tanta frequência ou por tanto tempo, a subida da taxa de juros, depois de se começar a sentir as dificuldades decorrentes do excesso de especulação. Pelo contrário, a necessidade que os bancos sentem de diminuir seus empréstimos para salvaguardar sua solvência, quando constatam que seus depósitos estão sendo sacados, e não podem preencher essa lacuna com suas próprias notas, acelera a subida da taxa de juros. Por isso, os que seguram as mercadorias para especular são obrigados a se submeterem antes àquela perda — revendendo suas mercadorias — o que ao final lhes adviria, inevitavelmente; o recuo dos preços e o colapso do crédito em geral ocorrem antes. Para avaliarmos os efeitos que essa aceleração da crise tem para mitigar sua intensidade, analisemos mais detalhadamente a natureza e os efeitos dessa característica dominante do período que antecede imediatamente o colapso, a saber, a saída de ouro do país. Um aumento de preços produzido por uma ampliação especulativa do crédito, mesmo quando o instrumento utilizado para isso não foram notas bancárias, nem por isso (se o aumento durar por tempo suficiente) deixa de alterar os câmbios; e quando os câmbios viraram por essa razão, eles só podem voltar ao que eram — e o êxodo de ouro só pode parar — por uma queda dos preços ou por um aumento da taxa de juros. Uma queda dos preços paralisará a saída de ouro, ao eliminar a causa que a produziu e fazer com que as mercadorias sejam uma remessa mais vantajosa do que o ouro, mesmo para pagar dívidas já existentes. Um aumento da taxa de juros, e a consequente queda dos preços de títulos, atingirá esse objetivo ainda mais rapidamente, por induzir estrangeiros não a retirarem o ouro que lhes é devido, mas a deixá-lo no país, para investimento, e até mesmo a enviarem dinheiro para o país, para tirar proveito da subida da taxa de juros. O ano de 1847 forneceu exemplos insignes dessa última forma de sustar o êxodo de ouro do país. Todavia, enquanto não ocorrer uma destas duas coisas — enquanto os preços não caírem ou não subir a taxa de juros — não há nada que possa coibir, ou ao menos moderar, a saída de ouro. Ora, os preços não cairão nem os juros subirão enquanto durar a expansão indevida do crédito, em razão dos contínuos empréstimos concedidos pelos bancos. É notório que, uma vez que começou o êxodo do ouro, mesmo que não tenha aumentado a quantidade de notas bancárias, é sobre elas que primeiro recai a restrição, já que o ouro de que se necessita para exportação sempre é obtido do Bank of England em troca de suas notas. Ora, no sistema anterior a 1844, o Bank of England, por estar sujeito, como outros bancos, às importunações solicitando novos empréstimos, que caracterizam tal época, podia — e muitas vezes o fez — reemitir imediatamente as notas que lhe haviam sido devolvidas em troca de ouro em barras. Certamente, é um grande erro supor que o mal dessa reemissão consistia sobretudo em impedir uma limitação da moeda. No entanto, era tão altamente prejudicial quanto jamais se supôs ser. Enquanto durou essa reemissão, não podia cessar o êxodo de ouro, pois nem os preços cairiam nem os juros subiriam enquanto continuassem esses empréstimos. Os preços, aumentando sem nenhum aumento das notas bancárias, bem poderiam ter caído sem uma diminuição das mesmas; mas, tendo eles subido em consequência de uma expansão do crédito, não poderiam cair sem uma restrição do mesmo. Por isso, enquanto o Bank of England e os outros bancos perseveraram nessa prática, o ouro continuou a sair do país, até restar tão pouco, que o Bank of England, por estar em perigo de suspender os pagamentos, foi obrigado, ao final, a limitar seus descontos a tal ponto e tão subitamente, que gerou uma variação muito mais extrema da taxa de juros, infligiu muito mais perda e angústia a indivíduos, e destruiu um montante de crédito normal do país muito maior do que o exigido por qualquer necessidade real. Reconheço (e a experiência de 1847 o provou àqueles que anteriormente não o levaram em consideração) que o dano que acabei de descrever pôde ser causado, e em grande extensão, pelo Bank of England, somente por meio de seus depósitos. Ele pode continuar seus descontos e empréstimos, ou até aumentá-los quando teria que restringi-los, tendo como efeito último tornar a restrição muito mais dura e repentina do que o necessário. Todavia, só posso pensar que os bancos que cometem esse erro com seus depósitos o cometeriam ainda mais se tivessem a liberdade de conceder mais empréstimos em virtude de suas emissões e de seus depósitos. Vejo-me obrigado a pensar que a proibição de aumentarem suas emissões constitui um impedimento real para eles concederem aqueles empréstimos que sustam a inversão da maré, e depois fazem-na precipitar-se como uma torrente; e se a citada lei é censurada por colocar obstáculos em um momento em que se precisa de facilidades, e não de obstáculos, é justo reconhecer-lhe o mérito de colocar obstáculos quando estes constituem de fato um benefício. Nesse particular, portanto, penso que não se pode negar que o novo sistema é uma melhoria real em relação ao antigo. § 4. De qualquer forma, porém, parece-me certo que essas vantagens, seja qual for o valor que se lhes dê, custam o preço de desvantagens ainda maiores. Em primeiro lugar, uma grande expansão do crédito pelos bancos, embora seja altamente prejudicial quando, por já haver uma inflação de crédito, a expansão só pode servir para retardar e agravar o colapso, é altamente salutar quando adveio o colapso, e quando o crédito não é excessivo, mas faz grande falta, e o aumento de empréstimos bancários não constitui um acréscimo ao montante normal de crédito flutuante, se não que serve para repor grande volume de outros créditos que foram subitamente suprimidos. Antes de 1844, se o Bank of England ocasionalmente agravava a dureza de uma reviravolta comercial por retardar o colapso do crédito e torná-lo mais violento do que o necessário, em contrapartida prestava serviços notáveis durante a própria reviravolta, oferecendo empréstimos para sustentar firmas solventes, em um momento em que todos os outros papéis e quase todo o crédito comercial estavam relativamente desvalorizados. Esse serviço foi de altíssima valia na crise de 1825/26, a mais dura que provavelmente jamais existiu. Durante essa crise, o Bank of England aumentou de muitos milhões o que se chama de circulação, na forma de empréstimos àquelas firmas comerciais de cuja solvência definitiva não tinha dúvida — empréstimos sem os quais, se o banco tivesse sido obrigado a negar, a dureza da crise teria sido muito maior do que foi. Como observa corretamente o sr. Fullarton, se o Bank of England atender a tais solicitações de empréstimos, “tem de atendê-las com emissão de notas, pois estas constituem o único instrumento por meio do qual o Banco costuma emprestar seu crédito. Mas essas notas não se destinam à circulação nem circulam na realidade. Não há mais necessidade de circulação do que antes. Pelo contrário, o declínio rápido dos preços, que o caso em hipótese supõe, necessariamente limitaria a demanda de circulação. Essas notas ou retornariam ao Bank of England logo que fossem emitidas, na forma de depósitos, ou então seriam trancadas nas gavetas dos banqueiros privados de Londres, ou seriam por eles distribuídas a seus correspondentes no país, ou seriam interceptadas por outros capitalistas, os quais, durante o fervor do alvoroço anterior, haviam contraído compromissos que poderiam não ter condições plenas de cumprir de um momento para outro. Em tais emergências, toda pessoa que exerce comércio, que está habituada a trabalhar com recursos que não são seus, é colocada na defensiva, e seu grande objetivo é fortalecer-se o máximo possível, sendo que a melhor maneira de atingi-lo é guardar a máxima reserva possível de papel que por lei é reconhecido como moeda legal. As próprias notas bancárias nunca entram no mercado de produtos; e se por acaso contribuírem para retardar” (ou, melhor, diria eu, para mitigar) “a queda dos preços, não é por aumentarem, o mínimo que seja, a demanda efetiva de mercadorias, nem por possibilitarem aos consumidores comprar mais para consumir, e dessa forma intensificar o comércio, mas por fazerem exatamente o inverso, isto é, por possibilitarem aos detentores das mercadorias segurá-las, obstruindo a comercialização e reprimindo o consumo”. O alívio oportuno assim proporcionado ao crédito, durante o período da restrição excessiva que vem depois de uma expansão creditícia indevida, compagina-se com o princípio do novo sistema, pois uma restrição extraordinária do crédito e uma queda de preços inevitavelmente atraem ouro para o país, e o princípio do sistema é que se deve permitir que a quantidade de moedas em notas bancárias aumente — e isso inclusive deve ser forçado — em todos os casos em que o mesmo aconteceria com uma moeda metálica. Entretanto, exatamente aquilo que seria estimulado pelo princípio da lei fica impedido pelas medidas da própria lei, que não admitem, nesse caso, o aumento de emissões enquanto o ouro não tiver chegado efetivamente — o que nunca ocorre enquanto não tenha passado a fase pior da crise, e enquanto não se consumam quase todas as perdas e fracassos inerentes a essa fase. O mecanismo do sistema retarda exatamente a aplicação do remédio até este chegar tarde demais, para muitas finalidades — que a teoria do sistema prescreve como a solução apropriada. (Sem dúvida, o Bank of England não está impedido de conceder maiores empréstimos de seus depósitos — que, é provável, representam um montante extraordinariamente grande —, pois, nesses períodos, cada um deixa seu dinheiro depositado, para poder dispor dele sob solicitação. Contudo, que os depósitos nem sempre são suficientes, demonstrou-se conclusivamente em 1847, quando o Bank of England utilizou ao máximo possível seus depósitos para aliviar o comércio, sem conseguir suavizar o pânico: este, porém, cessou imediatamente, no momento em que o Governo decidiu suspender a referida lei). Essa função dos bancos, de preencher a lacuna criada no crédito comercial em consequência de uma especulação indevida e da reviravolta da mesma, é tão indispensável que, se a lei de 1844 continuar em vigência, não é difícil prever que seus dispositivos terão de ser suspensos, como o foram em 1847, em todo período de grande dificuldade comercial, tão logo a crise tenha começado realmente e em intensidade plena. (Essa previsão verificou-se já na primeira ocasião em que ocorreu uma crise comercial, em 1857 — ano em que mais uma vez o Governo se viu obrigado a suspender os dispositivos da referida lei, sob sua própria responsabilidade) Se o único problema fosse esse, não haveria nenhuma incongruência absoluta em manter a restrição como meio para evitar uma crise, e em suavizá-la no intuito de aliviar a crise. Mas há outra objeção ao novo sistema, objeção essa de natureza ainda mais radical e mais abrangente. O novo sistema, professando a exigência de que o montante de um papel-moeda varie em conformidade com as variações de uma moeda metálica, faz com que, de fato, em cada caso de saída de ouro do país ocorra redução correspondente da quantidade de notas bancárias; em outras palavras, que toda exportação dos metais preciosos se faça com ouro e prata virtualmente retirados da circulação, supondo-se que este seria o caso se a moeda fosse inteiramente metálica. Essa teoria e esses dispositivos práticos são adequados para o caso em que o êxodo de ouro provém de uma subida de preços, produzida por uma expansão indevida da moeda ou do crédito; mas não são adequados para nenhum outro caso. Quando o êxodo de ouro é o último estágio de uma série de efeitos decorrentes de um aumento quantitativo da moeda, ou de uma expansão do crédito que, em seus efeitos sobre os preços, é igual a um aumento quantitativo da moeda, nesse caso é uma suposição correta que, em um sistema puramente metálico, o ouro exportado seria retirado da própria moeda, pois tal êxodo, sendo ilimitado por sua natureza, necessariamente continuará enquanto não diminuir a moeda e o crédito. Todavia, uma exportação dos metais preciosos muitas vezes não provém de causas que afetam a moeda ou o crédito, mas simplesmente de um aumento incomum de pagamentos ao exterior, em razão da situação dos mercados de produtos, ou então em razão de alguma circunstância não comercial. Entre essa categoria de causas incluem-se quatro, de grande efeito, sendo que de cada uma delas os últimos cinquenta anos da história inglesa fornecem exemplos repetidos. A primeira dessas causas é um gasto extraordinário, político ou militar, feito pelo governo no exterior, como aconteceu na guerra revolucionária e durante a guerra da Criméia, enquanto ela durou. A segunda é o caso de uma grande exportação de capital para investimento no exterior, tal como os empréstimos e as operações de mineração que em parte contribuíram para a crise de 1825, bem como o caso das especulações americanas, que constituíram a causa principal da crise de 1839. A terceira é o fracasso das colheitas nos países que fornecem a matéria-prima bruta para manufaturas importantes — tal como o fracasso do algodão na América, que obrigou a Inglaterra, em 1847, a assumir dívidas extraordinárias para comprar essa mercadoria a preço mais alto. A quarta causa é uma má colheita no próprio país e, em consequência, uma importação de alimentos em grande escala — fenômeno do qual os anos de 1846 e 1847 apresentaram um exemplo que ultrapassou todos os casos anteriores. Em nenhum desses casos, se a moeda fosse metálica, o ouro ou a prata exportados para as finalidades em questão seriam necessariamente — ou mesmo provavelmente — retirados de circulação. O ouro e a prata seriam retirados das moedas metálicas entesouradas, que sempre existem em quantidade ingente em um sistema de moeda metálica; em países incivilizados, nas mãos de todos aqueles que podem permitir-se isto, e nos países civilizados, sobretudo na forma de reservas bancárias. O sr. Tooke, em seu Inquiry into the Currency Principle, dá testemunho desse fato, mas é ao sr. Fullarton que o público deve a exposição mais clara e mais satisfatória sobre ele. Como não conheço nenhum outro autor que tenha exposto essa parte da teoria monetária de forma tão completa quanto ele, farei citações um tanto extensas dessa obra abalizada. “Ninguém que jamais tenha residido em um país asiático — onde se entesoura dinheiro em escala muito maior do que em proporção ao estoque existente de riqueza, e onde essa prática se consolidou muito mais nos hábitos da população do que em qualquer comunidade europeia, devido aos receios tradicionais de insegurança e de dificuldade de encontrar investimentos seguros e compensadores —, ninguém que tenha tido experiência pessoal dessa conjuntura social pode sentir dificuldade em lembrar-se de inúmeros exemplos de grandes tesouros de metais preciosos, que foram extraídos, em tempo de dificuldade pecuniária, dos cofres de indivíduos, pela tentação de uma alta taxa de juros, e colocados à disposição para ajudar nas necessidades públicas; nem, por outro lado, em lembrar-se da facilidade com a qual esses tesouros foram novamente absorvidos, quando cessaram os estímulos que levaram à descoberta deles. Em países mais civilizados e mais ricos que os principados asiáticos, e em que ninguém tem medo de atrair a cupidez do poder ostentando riqueza, mas onde o intercâmbio de mercadorias é ainda feito, quase na totalidade, por meio de circulação de moeda metálica, como ocorre na maioria dos países comerciais da Europa continental, as motivações para acumular os metais preciosos podem ser menos poderosas do que na maioria dos principados asiáticos; mas pelo fato de a capacidade de acumular ser mais difundida, constatar-se-á provavelmente que a quantidade absoluta acumulada apresenta uma proporção consideravelmente maior em relação à população (É sabido, com base em fatos inquestionáveis, que os acúmulos de dinheiro que sempre existiram nas mãos dos camponeses franceses, muitas vezes provenientes de data remota, ultrapassam qualquer soma que se teria podido imaginar possível; e mesmo em um país tão pobre como a Irlanda, recentemente se constatou que os pequenos arrendatários de terra às vezes possuem tesouros totalmente desproporcionais aos meios de subsistência que mostram). Naqueles países que estão expostos a invasões hostis, ou cuja condição social é instável e ameaçadora, certamente a motivação para isso deve ser ainda muito forte; e em uma nação dotada de grande comércio — tanto externo como interno — e destituída de qualquer grande ajuda de instrumentos bancários que substituam o dinheiro, as reservas de ouro e prata indispensavelmente exigidas para garantir a regularidade dos pagamentos devem necessariamente abarcar parte da moeda circulante que não seria fácil avaliar. “Na Inglaterra, onde o sistema bancário chegou a uma extensão e perfeição desconhecidas em qualquer outra parte da Europa, podendo-se dizer que ele substituiu inteiramente o uso da moeda metálica, excetuado o caso de operações no varejo e no comércio exterior, já não existem os incentivos para as pessoas privadas entesourarem dinheiro, e os tesouros existentes foram todos transferidos para os bancos, ou melhor, para o Bank of England. Na França, porém, onde a circulação de notas bancárias continua a ser relativamente limitada, constato que, segundo cálculos atuais, a quantidade de moeda em ouro e prata existente — como foi descrito pelas autoridades mais recentes — ascende à enorme soma de 120 milhões de libras esterlinas, e essa estimativa não se afasta em absoluto das possibilidades razoáveis do caso. Há todas as razões para presumir que uma percentagem muito grande desse enorme tesouro — provavelmente a maior parte dele — seja absorvida pelo Tesouro. Se apresentarmos para pagamento, a um banco francês uma letra de 1000 francos, ele nos traz a prata em uma sacola de moedas pesada na balança, e retirada de sua caixa-forte. O banqueiro e todo comerciante e todo distribuidor, de acordo com os meios de que dispõem, têm de guardar em caixa um estoque de moeda suficiente para seus desembolsos normais e para atender a quaisquer demandas inesperadas. Tivemos algumas provas notáveis de que a quantidade de dinheiro em moeda, acumulada nesses inúmeros depósitos — não apenas na França, mas em toda a Europa continental, onde as instituições bancárias ainda estão muito mal organizadas ou não existem —, além de ser em si mesma imensa, também pode ser sacada em grande escala e transferida, mesmo em grande volume, de um país para outro, afetando muito pouco — ou nada — os preços, e não causando outras perturbações relevantes." Entre outros exemplos, temos “o grande sucesso que tiveram os esforços simultâneos de algumas das principais potências da Europa (Rússia, Áustria, Prússia, Suécia e Dinamarca) no sentido de reabastecerem seus tesouros, e no sentido de substituírem por moeda metálica parte considerável do papel-moeda depreciado que as necessidades da guerra lhes haviam impingido — e isso, exatamente na época em que o estoque dos metais preciosos disponíveis no mundo havia sido reduzido pelo empenho da Inglaterra no sentido de recuperar sua moeda metálica (...). Não pode haver dúvida alguma de que essas operações associadas ocorreram em uma escala de grandeza extraordinariamente alta, de que foram efetuadas sem causar nenhum prejuízo sensível ao comércio ou à prosperidade pública, ou qualquer outro efeito além de algum distúrbio temporário dos câmbios, e de que os tesouros privados, acumulados em toda a Europa durante a guerra, devem ter sido a fonte principal da qual se recolhem todo esse ouro e essa prata. Penso, outrossim, que ninguém pode contemplar com objetividade esse vasto acervo de riqueza metálica — comprovadamente existente, sempre, embora em estado dormente e inerte, e sempre pronto a entrar em atividade ao primeiro indício de uma demanda suficientemente intensa — sem sentir-se obrigado a admitir a possibilidade de um dia as minas serem fechadas por anos seguidos, e se suspender totalmente a produção desses metais, enquanto houvesse a possibilidade de uma alteração perceptível no valor de troca desses metais”. Aplicando isso à doutrina monetária e aos seus defensores, prossegue o sr. Fullarton: “Poder-se-ia imaginar que, na suposição deles, o ouro, para fins de exportação, retirado de um país que usa uma moeda exclusivamente metálica, fosse coletado aos poucos nas feiras e nos mercados, ou tirado das gavetas dos merceeiros e dos negociantes de tecidos. Nunca aludem sequer à existência do grande acúmulo entesourado de metais preciosos, ainda que da ação desses tesouros dependa toda a economia dos pagamentos internacionais entre comunidades que fazem circular moeda metálica, ao passo que é totalmente impossível qualquer efeito do dinheiro tirado dos tesouros sobre os preços, mesmo segundo a hipótese da teoria monetária. Sabemos, por experiência, como são enormes os pagamentos que às vezes são capazes de efetuar, em ouro e prata, os países que fazem circular moeda metálica, sem afetar o mínimo que seja sua prosperidade interna; ora, de que fonte se supõe provirem esses pagamentos, senão dos tesouros? Consideremos de que maneira o mercado financeiro de um país que efetua todas as suas trocas somente por meio de moeda metálica seria provavelmente afetado pela necessidade de fazer um pagamento de vários milhões ao exterior. Evidentemente, essa necessidade só poderia ser atendida transferindo capital; e será que a concorrência pela posse de capital a transferir — concorrência que essa ocasião suscitaria — não obrigaria a elevar a taxa de juros de mercado? Se o pagamento tivesse que ser feito pelo governo, não teria o governo, com toda probabilidade, que abrir novo empréstimo, em condições mais favoráveis para o prestamista do que o normal?” Se o pagamento fosse feito por comerciantes, não seria ele tirado dos depósitos bancários, ou das reservas que os comerciantes guardam consigo no caso de não haver bancos, ou não seriam eles obrigados a conseguir o montante necessário de moeda metálica tomando empréstimos no mercado financeiro? “E será que tudo isso não agiria inevitavelmente sobre os tesouros, e não poria em ação parte do ouro e da prata que os comerciantes de dinheiro tinham acumulado, alguns deles com a intenção expressa de aguardar tais oportunidades para tirar vantagens de seus tesouros?... “Vamos agora à época atual [1844). O balanço de pagamentos com quase toda a Europa, no decurso mais ou menos dos quatro últimos anos, tem sido favorável à Inglaterra, e tem entrado ouro em abundância no país, até a injeção de ouro ascender à inaudita soma de aproximadamente 14 milhões de libras esterlinas. E no entanto, durante todo esse tempo, alguém por acaso ouviu uma queixa de que a população da Europa continental tenha sofrido seriamente com isso? Porventura os preços na Europa continental baixaram muito em relação à faixa dos mesmos na Inglaterra? Por acaso os salários baixaram, ou muitos comerciantes se arruinaram, em razão da depreciação geral de seu capital? Nada disso aconteceu. Em toda parte, manteve-se e permaneceu tranquilo o volume de transações comerciais e monetárias; na França, em particular, um aumento de receita e uma ampliação do comércio testemunham um progresso contínuo da prosperidade interna. Sem dúvida, pode-se duvidar se esse grande êxodo de ouro retirou um único napoleão daquela porção de riqueza metálica da nação que realmente está em circulação. Por outra parte, foi igualmente óbvio, com base na conjuntura inalterada do crédito, que não somente, durante todo esse tempo, não foi interrompido o fornecimento de moeda metálica indispensável para efetuar os negócios no mercado varejista, mas também que os tesouros continuaram a fornecer toda facilidade necessária para a regularidade dos pagamentos comerciais. É da própria essência do sistema de moeda metálica que os tesouros, em todos os casos de ocorrência provável, tenham condição de atender a estes dois objetivos: primeiro, que forneçam o metal em barras necessário para exportação, e, segundo, que mantenham a circulação interna para sua legítima complementação. Toda pessoa que comercializa nesse sistema e que, no decurso de seus negócios, pode com frequência ter de remeter ao exterior grandes somas em moeda metálica tem de guardar consigo um tesouro suficiente próprio ou então tem de ter a possibilidade de tomar empréstimos suficientes de seus vizinhos, não somente para repor o montante remetido, quando necessário, mas também para ter a possibilidade de efetuar suas transações correntes no país, sem solução de continuidade.” Em um país em que, como na Inglaterra, o crédito é praticado em escala tão grande, uma única grande reserva, guardada em um único estabelecimento, o Bank of England, faz as vezes das múltiplas reservas existentes em outros países, no que concerne aos metais preciosos. Por isso, o princípio teórico da doutrina monetária exigiria que todas aquelas saídas do metal que, se a moeda fosse exclusivamente metálica, seriam tiradas dos tesouros pudessem operar livremente sobre a reserva existente nos cofres do Bank of England, sem nenhuma tentativa de sustar essa reserva, seja por diminuição quantitativa da moeda, seja por restrição do crédito. E contra isso não haveria nenhuma objeção fundada, a menos que a saída de moeda metálica fosse tão grande que ameaçasse esgotar a citada reserva, provocando a paralisação dos pagamentos — perigo contra o qual é possível tomar precauções adequadas, pois nos casos que estamos considerando a drenagem se destina a pagamentos ao exterior de montante definido, e cessa por si mesma no momento em que esses pagamentos forem efetuados. E, em todos os sistemas, admite-se que a reserva habitual do Bank of England deve ultrapassar o montante máximo que, por experiência, seja garantidamente suficiente para cobrir a mencionada evasão — limite este que, na afirmação do sr. Fullarton, é de 7 milhões, ao passo que o sr. Tooke recomenda uma reserva média de 10 milhões, e na sua última publicação, de 12 milhões. Nessas circunstâncias, a reserva habitual, que nunca seria empregada para descontos, mas que mantida para ser paga exclusivamente em troca de cheques ou notas bancárias, seria suficiente para uma crise desse gênero — e esta, portanto, passaria, sem que tivesse suas dificuldades acrescidas por uma redução do crédito ou da circulação. Ora, os decantadores desse sistema afirmam ter ele o grande mérito de impedir esse desenrolar da crise, o mais favorável que o caso admite, e este desenrolar, segundo eles, não somente se coaduna com o professado princípio do sistema, senão que é exigido por ele. Vangloriam-se de que, ao primeiro sinal de retirada de ouro para exportação — qualquer que seja a sua causa, e quer ela envolva ou não redução do crédito, no sistema de moeda metálica —, o Bank of England é imediatamente obrigado a reduzir seus empréstimos. E isso — importa lembrar — quando não houve nenhum aumento especulativo de preços que seja indispensável corrigir, e nenhum aumento incomum do crédito que necessite ser reduzido; a demanda de ouro é exclusivamente ocasionada por pagamentos ao exterior por conta do governo, ou por grandes importações de trigo, decorrentes de uma colheita precária. Mesmo supondo-se que a reserva seja insuficiente para atender aos pagamentos ao exterior, e que os recursos para efetuar tais pagamentos tenham que ser tirados do capital do país destinado a empréstimos — sendo a consequência disso um aumento da taxa de juros —, em tais circunstâncias é inevitável alguma pressão sobre o mercado financeiro, porém a dureza dessa pressão é muito agravada pela separação do departamento bancário em relação ao departamento de emissões. O caso em geral é apresentado como se a lei só operasse de uma forma, isto é, impedindo o Bank of England, quando trocou (suponhamos) 3 milhões de ouro em barras por 3 milhões de suas notas, de emprestar novamente essas notas, na forma de descontos ou de outros empréstimos. Mas a lei na realidade faz muito mais do que isso. Sabe-se muito bem que o primeiro efeito de uma saída de ouro do país atinge sempre o departamento bancário. Os depósitos bancários constituem o grosso do capital não aplicado e disponível do país, e o capital necessitado para pagamentos ao exterior quase sempre é obtido sobretudo sacando depósitos. Supondo-se que o montante de que se necessita seja de 3 milhões, sacam-se 3 milhões de notas do departamento bancário (seja diretamente, seja por meio dos bancos privados, que mantêm o grosso de suas reservas com o Bank of England), e os 3 milhões de notas, assim obtidos, são apresentados no departamento de emissões, e trocados por ouro destinado à exportação. Assim, uma saída de ouro do país, de apenas 3 milhões, é virtualmente um saque contra o Bank of England, de 6 milhões. Os depósitos perderam 3 milhões, e a reserva do departamento de emissões perdeu montante igual. Já que os dois departamentos não podem, enquanto a citada lei permanecer em vigência, ajudar-se um ao outro, nem mesmo na maior necessidade, cada um deles tem de tomar suas precauções separadas para a sua própria segurança. Portanto, quaisquer medidas que teriam sido necessárias, no sistema antigo, em decorrência da saída de 6 milhões são agora necessárias em virtude da saída de apenas 3 milhões. O departamento de emissões protege-se da maneira prescrita pela lei, não reemitindo os 3 milhões de notas que lhe foram devolvidos. Mas o departamento bancário tem de adotar medidas para completar sua reserva, que foi reduzida de 3 milhões. Uma vez que suas disponibilidades também diminuíram de 3 milhões, pela perda desse montante de depósitos, a reserva, com base no princípio bancário normal de 1/3 das obrigações, apresentará redução de 1 milhão. Quanto aos outros 2 milhões, ele tem de consegui-los deixando expirar esse montante de empréstimos, e deixando de renová-los. Não somente ele tem de elevar sua taxa de juros, senão que precisa também efetuar, por quaisquer meios que seja, uma redução de 2 milhões no montante total de seus descontos; ou então, tem de vender títulos em um montante igual. Essa ação violenta sobre o mercado financeiro, para completar a reserva bancária, é totalmente produzida pela lei de 1844. Se não existissem as restrições dessa lei, o Bank of England, em vez de reduzir seus descontos, simplesmente transferiria 2 milhões, ou em ouro ou em notas, do departamento de emissões para o departamento bancário: não para emprestá-los ao público, mas para garantir a solvência do departamento bancário na eventualidade de mais demandas inesperadas por parte dos depositantes. E a menos que a saída de ouro continuasse, e atingisse um montante tão elevado que parecesse haver probabilidade de ultrapassar o total do ouro nas reservas dos dois departamentos, o Bank of England não precisaria, enquanto perdurasse a pressão, retirar do comércio seu montante costumeiro de empréstimos, a uma taxa de juros correspondente à demanda acrescida. (Curiosamente, houve quem entendesse isso — o que chamei de “ação dupla das saídas de ouro” — como se eu tivesse afirmado que o Bank of England é obrigado a desfazer-se da propriedade no valor de 6 milhões, quando montante que sai do país é de 3 milhões. Tal afirmação seria por demais absurda para exigir refutação. As saídas de ouro têm dupla ação, não sobre a posição pecuniária do próprio banco, mas sobre as medidas que ele é obrigado a adotar para sustá-la. Embora o próprio banco não se tone mais pobre, suas duas reservas — a reserva existente no departamento bancário e a existente no departamento de emissões — foram, cada uma delas, reduzidas de 3 milhões, por efeito de uma saída de apenas 3 milhões. E já que a separação dos dois departamentos faz com que seja necessário que cada um deles em separado se mantenha tão forte quanto teriam que ser os dois juntos, se pudessem ajudar-se entre si, a ação do Bank of England sobre o mercado financeiro tem de ser tão forte, havendo uma saída de 3 milhões, quanto o teria sido necessariamente, no sistema antigo, para uma saída de 6 milhões. Pelo fato de a reserva existente no departamento bancário ser inferior àquilo que de outra forma seria — no montante total do metal em barras existente no departamento de emissões — e pelo fato de o montante integral do ouro saído do país recair, de início, sobre essa reserva diminuída, a pressão causada por todo o ouro saído do país, sobre a metade da reserva restante, é tão ressentida e demanda medidas tão fortes para sustar a saída ulterior quanto a pressão que seria exercida pelo dobro do montante sobre a reserva inteira. Como afirmei alhures (Depoimento ante o Comitê da Câmara dos Comuns sobre as leis bancárias, em 1857), “é como se uma pessoa que tem de levantar um peso, fosse impedida de usar as duas mãos para isso, e só lhe permitissem usar uma das duas mãos de uma só vez; nesse caso, seria necessário que cada mão fosse tão forte como as duas mãos juntas). Sei que se dirá o seguinte: ao permitir que drenagens desse tipo ajam livremente sobre a reserva do banco até essas drenagens cessarem por si mesmas, não se evitaria, mas apenas se adiaria uma redução quantitativa da moeda e do crédito; com efeito, se não se recorresse a uma limitação de emissões, para impedir a drenagem no seu início, a mesma limitação, ou até uma ainda maior, teria que ocorrer depois, a fim de, agindo sobre os preços, trazer de volta essa grande quantidade de ouro, para a finalidade indispensável de completar a reserva do banco. Mas essa argumentação deixa de levar em conta várias coisas. Primeiramente poder-se-ia trazer de volta o ouro não por meio de uma queda de preços, mas por meio do recurso muito mais rápido e conveniente de um aumento da taxa de juros, não envolvendo a queda de nenhum preço, a não ser o dos títulos. Ou os títulos ingleses seriam comprados por conta de estrangeiros, ou então títulos estrangeiros mantidos na Inglaterra seriam enviados ao exterior para venda — operações que ocorreram em larga escala durante as dificuldades comerciais de 1847, e não somente impediram a saída de ouro, senão que também inverteram a maré e reconduziram o ouro ao país. Por conseguinte, o ouro não foi trazido de volta mediante uma redução do crédito, se bem que, nesse caso, isso tenha ocorrido mediante uma redução dos empréstimos. Mas nem sequer isso é indispensável. Com efeito — e essa é a segunda observação que queremos fazer — não é necessário que o ouro retorne ao país com a mesma rapidez com que saiu. Grande parte dele provavelmente retornaria pelas vias normais do comércio, como pagamento de mercadorias exportadas. Há muita probabilidade de os ganhos extras, auferidos por distribuidores e produtores em países estrangeiros, por meio de pagamentos extras que recebem da Inglaterra, serem em parte gastos em compras maiores de mercadorias inglesas, seja para consumo ou para especulação, embora esse efeito possa não se manifestar com rapidez suficiente para se poder dispensar a transferência de ouro, no início. Essas compras extras fariam com que o balanço de pagamentos se tornasse favorável à Inglaterra, e gradualmente haveriam de recuperar parte do ouro exportado — e quanto ao restante, provavelmente seria reconduzido ao país, sem nenhum aumento notável da taxa de juros na Inglaterra, pela queda da taxa de juros nos países estrangeiros, gerada pelo acréscimo de alguns milhões de ouro ao capital que, nesses países, está destinado a empréstimos. Efetivamente, na conjuntura decorrente das descobertas de ouro, quando a enorme quantidade de ouro anualmente produzido na Austrália, e muito do ouro produzido na Califórnia, é distribuído a outros países através da Inglaterra, e raramente passa um único mês sem que chegue grande quantidade, as reservas do Bank of England podem completar-se sem nenhuma reimportação do ouro que saíra do país. A única coisa necessária é uma suspensão da exportação — bastando, aliás, uma suspensão muito breve. Por essas razões, parece-me que, a despeito do efeito benéfico da lei de 1844 nos primeiros estágios de determinado tipo de crise comercial (aquela produzida por excesso de especulação), ela agrava substancialmente, no conjunto, a dureza das reviravoltas comerciais. A lei não apenas torna mais severas as restrições ao crédito, mas também as torna muito mais frequentes. O sr. George Walker, em uma série de artigos claros, imparciais e conclusivos, publicados no Aberdeen Herald, e que constituem uma das melhores exposições existentes sobre esse assunto, afirma: “Suponhamos que, de 18 milhões de libras esterlinas de ouro, 10 estejam no departamento de emissões, e 8 no bancário. O resultado é o mesmo que seria, com uma moeda metálica, se houvesse apenas 8 milhões de reserva, em vez de 18 (...). O efeito da lei bancária é que, se houver uma saída de ouro, os procedimentos do Bank of England não são determinados pelo montante de ouro existente em suas caixas-fortes, mas são determinados — ou deveriam sê-lo — pela porção de ouro pertencente ao departamento bancário. Tendo à sua disposição todo o ouro, o banco pode achar desnecessário mexer no crédito ou forçar a baixa dos preços, se depois da saída do ouro ainda permanecer boa reserva. Tendo apenas a reserva bancária à sua disposição, o banco, com a margem estreita dentro da qual deve operar, tem de neutralizar todas as saídas de ouro com medidas contrárias mais ou menos fortes, em detrimento do mundo comercial; e se por acaso o banco falhar nisso — pode acontecer — a consequência será a destruição. Daí as variações extraordinárias e frequentes da taxa de juros, a partir da vigência da referida lei bancária. Desde 1844, quando o Bank of England descobriu sua verdadeira posição, considerou necessário, como medida preventiva, que toda variação da reserva fosse acompanhada de uma alteração da taxa de juros”. Por conseguinte, para tornar a lei inofensiva, seria necessário que o banco, além de todo o ouro contido no departamento de emissões, mantivesse, exclusivamente no departamento bancário, uma reserva de ouro ou de notas tão grande que bastasse, no sistema antigo, para a segurança tanto das emissões quanto dos depósitos. § 5. Resta analisar, com respeito a uma moeda em notas bancárias, duas questões que foram também alvo de muita discussão nos últimos anos: se o privilégio da emissão deve ser limitado a um único estabelecimento bancário, tal como o Bank of England, ou se deve ser permitida uma pluralidade de emissores; e nesta última hipótese, se é necessária ou aconselhável alguma precaução especial, para proteger o portador das notas contra perdas ocasionadas pela insolvência dos emissores. O andamento da investigação feita até aqui nos levou a atribuir às notas bancárias bem menos importância especial do que a importância que é corrente atribuir-lhes, em comparação com outras formas de crédito. Assim sendo, poderia parecer que, para nós, as questões relativas à regulamentação de uma porção tão reduzida do crédito não têm aquela importância que por vezes se lhes atribui. Entretanto, as notas bancárias apresentam uma peculiaridade real, por serem a única forma de crédito suficientemente conveniente para todas as finalidades da circulação, podendo, portanto, substituir por inteiro o uso de moeda metálica para fins internos. Embora a ampliação do uso de cheques tenda mais e mais a diminuir o número de notas bancárias, como haveria de diminuir o número de soberanos ou de outras moedas metálicas, se as notas bancárias fossem abolidas, certamente ainda haverá, por muito tempo, grande fornecimento de notas bancárias, onde quer que haja o necessário grau de confiança comercial, e for permitido o livre uso das mesmas. Por isso, o privilégio exclusivo de emissão de notas bancárias, se for reservado ao governo ou a alguma outra entidade única, é uma fonte de grande ganho pecuniário. É exequível e desejável que esse ganho seja obtido pela nação como um todo; e se a administração da moeda consistente em notas bancárias fosse perfeitamente mecânica, uma coisa tão perfeitamente fixa como o é pela lei de 1844, não pareceria haver motivo algum para se temer que esse mecanismo seria utilizado para lucro de algum emissor particular, em vez de para ganho do erário público. Se, porém, se preferir um esquema que deixa as variações do montante de emissões, em qualquer grau que seja, à discrição dos emissores, não é desejável que às atribuições sempre crescentes do governo se acrescente ainda uma função tão delicada como essa; não seria desejável que os chefes de Estado tivessem que desviar sua atenção de objetivos de maior importância, para serem assediados pelas solicitações e se tornarem alvo de todos os ataques, que nunca se poupam àqueles que o público considera responsáveis por quaisquer atos, por mais insignificantes que sejam, relacionados com a regulamentação da moeda. Seria melhor emitir, em um montante fixo, letras do Tesouro, cambiáveis por ouro disponível, montante esse que não deveria exceder o mínimo de uma moeda bancária; quanto ao restante das letras, que porventura sejam necessárias, poder-se-ia permitir que elas fossem emitidas por um único estabelecimento bancário privado, ou por vários. Ou então, um estabelecimento como o Bank of England poderia emitir para todo o país, sob a condição de emprestar 15 ou 20 milhões de suas notas ao Governo, sem juros; isso daria ao Estado a mesma vantagem pecuniária como se emitisse esse montante de suas próprias notas. A razão que se costuma alegar para condenar o sistema da pluralidade de emissores, que existia na Inglaterra antes da lei de 1844, e continua a existir, com certas limitações, é que a concorrência entre esses diversos emissores os leva a aumentar a quantidade de suas notas até um número prejudicial. Todavia, vimos que o poder que os bancos têm de aumentar suas emissões e o grau do dano que com isso podem produzir são bem insignificantes em comparação com a estimativa exagerada que se costuma fazer. Como observa o sr. Fullarton, o aumento extraordinário da concorrência bancária, gerado pela fundação de bancos em forma de sociedades anônimas — uma concorrência muitas vezes das mais temerárias — se tem demonstrado totalmente impotente para aumentar o volume global da circulação de notas bancárias; pelo contrário, essa circulação, no conjunto, tem diminuído. Na ausência de uma razão especial que justifique alguma exceção à liberdade de iniciativa, deve prevalecer a regra geral. Entretanto, parece desejável manter um único estabelecimento como o Bank of England, que se distinga dos outros bancos emissores pelo fato de só ele ser obrigado a pagar em ouro, tendo os demais bancos emissores a liberdade de pagar suas notas com as emitidas pelo estabelecimento central. O objetivo dessa medida é que haja uma única entidade responsável por manter uma reserva dos metais preciosos, suficiente para suprir toda saída que se esperar que ocorra. Se essa responsabilidade for distribuída a uma série de bancos, tem-se o inconveniente de não poder cobrá-la eficazmente de nenhum deles, ou então, mesmo que a responsabilidade seja cobrada de apenas um, as reservas dos metais retidas por todos os demais constituem capital que se mantém ocioso e desperdiçado, o que se pode evitar deixando-lhes a liberdade de pagarem com notas do Bank of England. § 6. Resta analisar a questão se, em caso de uma pluralidade de emissores, há necessidade de precauções especiais para proteger os portadores contra as consequências de falta de pagamento. Antes de 1826, a insolvência de bancos emissores era um mal frequente e muito sério, que muitas vezes espalhava angústia em toda uma região, e de um só golpe privava a iniciativa previdente dos resultados de poupança longa e penosa. Foi essa uma das razões principais que induziram o Parlamento, naquele ano, a proibir a emissão de notas bancárias de denominação abaixo de 5 libras esterlinas, a fim de que ao menos as classes trabalhadoras ficassem expostas o mínimo possível a esse sofrimento. Como precaução adicional, sugeriu-se dar aos portadores de notas prioridade sobre outros credores, ou exigir que os banqueiros depositassem capital ou outros títulos públicos como garantia por todo o montante de suas emissões. A insegurança da antiga moeda em notas bancárias em parte se devia à lei que, a fim de conceder ao Bank of England monopólio condicional das atividades bancárias, havia na realidade disposto que a formação de estabelecimentos bancários seguros constituísse uma infração punível, por proibir a existência de quaisquer bancos, na cidade ou no campo, quer fossem bancos emissores quer fossem de depósitos, com um número de sócios além de seis. Esse espécime verdadeiramente característico do velho sistema de monopólio e de restrição foi abolido em 1826, tanto no tocante a emissões quanto a depósitos, em toda parte, excetuado um distrito de 65 milhas de raio ao redor de Londres, e em 1833 também nesse distrito, no que concerne a depósitos. Esperava-se que os bancos constituídos em sociedades anônimas, fundados nessa época, fornecessem uma moeda mais confiável, e que, sob a influência desses novos estabelecimentos, o sistema bancário da Inglaterra se tornasse quase tão seguro para o público quanto o da Escócia (onde o sistema bancário sempre foi livre) tem sido no decorrer dos últimos dois séculos. Todavia, os exemplos quase incríveis de administração precária e fraudulenta que essas instituições têm dado recentemente (se bem que, em alguns dos casos mais notórios, os estabelecimentos delinquentes não tenham sido do bancos emissores) mostraram da maneira mais evidente que, ao menos ao sul do rio Tweed, o princípio das sociedades anônimas, aplicado ao sistema bancário, não representa aquela salvaguarda adequada que com tanta confiança se supunha ser; eis por que, atualmente, é difícil resistir à convicção de que caso for permitida a pluralidade de bancos emissores, é necessário exigir como condição imperativa algum tipo de garantia especial em defesa dos portadores das notas bancárias. CAPÍTULO XXV A Concorrência de Países Diferentes no Mesmo Mercado § 1. Na fraseologia do Sistema Mercantil — cuja linguagem e doutrinas continuam a constituir a base daquilo que se pode chamar Economia Política das classes vendedoras, na medida em que se distinguem dos compradores e dos consumidores —, não há palavra que ocorra com mais frequência e que tenha sentido mais perigoso do que o termo underselling (vender abaixo do preço do concorrente). Falava-se, e continua-se ainda muitas vezes a falar, de vender a preço abaixo do de outros países — não permitir que outros países vendam mais barato do que nós —, como se estas fossem as únicas finalidades em função das quais existem a produção e as mercadorias. Os sentimentos comerciais de rivalidade, por prevalecerem entre as nações, durante séculos dominaram todo o senso da comunidade em geral no tocante à vantagem que um país comercial aufere da prosperidade do outro; e aquele espírito comercial, que atualmente constitui um dos obstáculos mais fortes para evitar as guerras, foi durante certo período da história europeia a causa principal delas. Mesmo na visão mais esclarecida que hoje se pode atingir sobre a natureza e as consequências do comércio internacional, ainda é preciso deixar algum espaço, se bem que relativamente pequeno, para a realidade da rivalidade comercial. As nações, como os comerciantes individuais, podem competir entre si, com interesses opostos nos mercados de alguns produtos, ao passo que, em se tratando de outros, podem estar na relação mais feliz de clientes recíprocos. O benefício do comércio não consiste, como outrora se pensava, nas mercadorias vendidas, mas, já que as mercadorias vendidas são meios para se adquirir as mercadorias compradas, uma nação ficaria privada da vantagem real do comércio — os artigos importados — se não tivesse condições para induzir outras nações a aceitarem em troca alguma de suas mercadorias; e na medida em que a concorrência de outros países obriga essa nação a oferecer suas mercadorias a preços mais baixos, sob pena de não as vender de maneira alguma, os artigos importados que obtém com seu comércio exterior acabam custando mais. Esses pontos foram adequadamente esclarecidos — embora incidentalmente — em alguns dos capítulos anteriores. Mas o grande espaço que esse tópico ocupou, e continua a ocupar, na pesquisa econômica e nas preocupações práticas, tanto dos políticos como dos comerciantes e dos manufatores, faz com que seja desejável, antes de encerrarmos o tema do intercâmbio internacional, acrescentar algumas observações sobre os fatores que possibilitam ou não aos países venderem entre si um mais barato que o outro. Somente sob duas condições um país pode vender mais barato que outro em determinado mercado, ao ponto de eliminá-lo completamente desse mercado. Em primeiro lugar, deve possuir uma vantagem maior que o segundo país na produção do artigo exportado pelos dois — sendo que (como já foi tão amplamente explicado) essa vantagem maior não se entende no sentido absoluto, mas em comparação com outras mercadorias; em segundo lugar, a relação do país com o país cliente deve ser tal, no tocante à demanda de um em relação aos produtos do outro, e tal deve ser a situação dos valores internacionais, que ceda ao país cliente mais do que toda a vantagem possuída pelo país rival: do contrário, o rival continuará a ter condições de manter seu pé no mercado. Retornemos à hipótese imaginária de um comércio entre a Inglaterra e a Alemanha, em tecido e linho, sendo a Inglaterra capaz de produzir 10 jardas de tecido ao mesmo custo que 15 jardas de linho, e a Alemanha, ao mesmo custo que 20 e sendo as duas mercadorias trocadas entre os dois países (prescindindo do custo de transporte) a alguma taxa intermediária, digamos, 10 por 17. Só poderia vender mais barato que a Alemanha, em caráter permanente, no mercado inglês, um país que oferecesse por 10 jardas de tecido não somente mais do que 17 jardas de linho, mas mais do que 20. Abaixo disso, a concorrência apenas obrigaria a Alemanha a pagar mais caro pelo tecido, mas não a desqualificaria para exportar linho. Por isso, o país que tivesse condições de vender mais barato que a Alemanha deveria, em primeiro lugar, ser capaz de produzir linho a um custo menor, em comparação com o preço do tecido, do que a própria Alemanha; em segundo lugar, esse país teria que ter uma demanda tal de tecido, ou de outras mercadorias inglesas, que o obrigasse, mesmo que se tornasse o único ocupante desse mercado, a dar à Inglaterra uma vantagem maior do que a que lhe poderia dar a Alemanha, renunciando a toda a sua vantagem — vendendo, por exemplo, 21 jardas de linho por 10 de tecido. Com efeito, se assim não for — se, por exemplo, o equilíbrio da demanda internacional, depois de a Alemanha ser excluída, desse uma razão de 18 para 10, a Alemanha teria novamente condições de entrar na concorrência: a Alemanha seria agora a nação que venderia mais barato; e haveria um ponto, talvez 19 para 10, no qual ambos os países concorrentes seriam capazes de manter seu pé no mercado, e de vender na Inglaterra linho suficiente para pagar o tecido ou outras mercadorias inglesas em relação às quais tivessem uma demanda, nessas novas condições de intercâmbio. De maneira análoga, a Inglaterra como exportadora de tecido, só poderia ser eliminada do mercado alemão por algum rival que, por suas vantagens maiores na produção de tecido, pudesse — e a isso fosse obrigado pela intensidade de sua demanda de produtos alemães — oferecer 10 jardas de tecido não somente por menos de 17 de linho, mas por menos de 15. Nesse caso, a Inglaterra só poderia continuar a manter esse comércio com perda; mas em qualquer caso abaixo disso, a Inglaterra seria apenas obrigada a pagar à Alemanha mais tecido por menos linho do que pagava anteriormente. Vê-se, pois, que o medo de outros venderem mais barato que nós, em caráter permanente, pode ocorrer cedo demais, sobrevindo quando a coisa a ser realmente prevista não é a perda do comércio, mas o inconveniente menor, de efetuar tal comércio com vantagem menor — inconveniente este que recai sobretudo sobre os consumidores de mercadorias estrangeiras, e sobre os produtores ou vendedores do artigo exportado. Para os produtores ingleses, não é motivo suficiente de apreensão constatar que algum outro país tem condições de vender tecido em mercados estrangeiros, em determinado momento, um pouquinho mais barato do que o podem fazer eles, na conjuntura de preços vigente na Inglaterra. Suponhamos que algum país venda temporariamente mais barato, e que as exportações inglesas diminuam; as importações superarão as exportações, haverá nova distribuição dos metais preciosos, os preços cairão, e já que diminuirão todas as despesas em dinheiro dos produtores ingleses, terão eles novamente condições (se o caso ficar abaixo do colocado no parágrafo precedente) de competir com seus rivais. A perda que a Inglaterra terá não recairá sobre os exportadores, mas sobre aqueles que consomem mercadorias importadas, os quais, pelo fato de haverem diminuído suas rendas em dinheiro, terão de pagar, por todas as mercadorias produzidas no exterior, o mesmo preço, ou até um preço maior. § 2. Entendo que esta seja a verdadeira teoria, ou o verdadeiro fundamento lógico, do vender a preço mais baixo que outros. Observar-se-á que essa teoria não leva em conta algumas coisas das quais ouvimos falar — talvez mais do que quaisquer outras — como sendo causas que expõem um país ao perigo de ser suplantado por preços mais baixos. Segundo a doutrina que precede, um país só pode ser suplantado quanto à vantagem do preço de alguma mercadoria se o país rival tiver um estímulo maior que ele para dedicar sua mão-de-obra e seu capital à produção da respectiva mercadoria. Esse estímulo vem do fato de, fazendo isso o país rival economizar mais mão-de-obra e capital, com a economia sendo partilhada entre o país rival e seus clientes — um aumento maior da produção total do mundo. Portanto, o fato de um país ser suplantado por outro quanto à vantagem do preço, embora represente uma perda para o país em desvantagem, representa uma vantagem para o mundo em geral, pois o novo comércio, que substitui o anterior, economiza trabalho e capital e aumenta a riqueza coletiva da humanidade, em proporções maiores do que o comércio anterior. Naturalmente, a vantagem consiste em se poder produzir a mercadoria com qualidade melhor, ou com menos trabalho (em comparação com outras coisas) — ou, talvez, não com menos trabalho, mas em menos tempo, com uma retenção menos prolongada do capital empregado. Isso pode decorrer de maiores vantagens naturais (tais como solo, clima, riqueza das minas), da capacitação maior — natural ou adquirida — dos trabalhadores, de melhor divisão das tarefas e de ferramentas ou máquinas mais aperfeiçoadas. Não há, porém, nessa teoria, nenhum lugar para o caso de salários mais baixos. No entanto, essa é, nas teorias comuns em voga, uma causa favorita invocada para explicar o fato de se vender a preço mais baixo que outros. Ouvimos continuamente falar da desvantagem que levaria o produtor britânico, tanto nos mercados estrangeiros como no próprio país, devido aos salários mais baixos pagos pelos rivais estrangeiros. Afirma-se que esses salários mais baixos possibilitam a estes últimos — ou estão sempre prestes a possibilitar-lhes — vender a preços mais baixos, e desalojar o manufator inglês de todos os mercados em que ele não for artificialmente protegido. Antes de examinarmos essa opinião com razões de princípio, vale a pena dispensar-lhe um pouco de consideração como uma questão de fato. Será verdade que os salários da mão-de-obra manufatureira são mais baixos em países estrangeiros do que na Inglaterra em algum sentido em que os salários baixos constituem uma vantagem para o capitalista? O artesão de Ghent ou de Lyon pode receber um salário diário mais baixo, mas porventura será que ele não executa menos serviço? Levando-se em conta os graus de eficiência, será que o trabalho dele custa menos ao seu empregador? Conquanto os salários possam ser mais baixos na Europa continental, será que o custo da mão-de-obra — que é o elemento que conta efetivamente na concorrência — não é praticamente o mesmo? Que assim é, eis a opinião de juízes competentes, sendo o fato confirmado pela diferença muito pequena da taxa de lucro entre a Inglaterra e os países do continente. Mas se assim for, é absurda a opinião de que os produtores ingleses podem ser suplantados, quanto à vantagem do preço, pelos seus rivais do continente, por esse motivo. Somente na América essa suposição é à primeira vista admissível. Lá, os salários são muito mais altos que na Inglaterra, se por salários entendermos os ganhos diários do trabalhador; acontece, porém, que a força produtiva do trabalho americano é tão grande — sua eficiência, associada às circunstâncias favoráveis em que é exercido, faz com que ele valha tanto para empregador —, que o custo de mão-de-obra é mais baixo na América do que na Inglaterra, como indica o fato de a taxa geral de lucro e de juros ser mais alta. § 3. Mas será verdade que os salários baixos, mesmo no sentido de baixo custo de mão-de-obra, possibilitam a um país vender mais barato no mercado estrangeiro? Naturalmente, entendo por salários baixos os que são comuns a toda a atividade produtiva do país. Se os salários, em algum dos setores de atividade que fornecem artigos de exportação, forem mantidos — artificialmente, ou por meio de alguma causa acidental — abaixo da taxa geral de salários vigente no país, isso constitui uma vantagem real no mercado exterior. Isso reduz o custo comparativo da produção desses artigos, em relação a outros, e tem o mesmo efeito como se a produção dos mesmos demandasse tanto menos de trabalho. Tomemos por exemplo, o caso dos Estados Unidos, em relação a certas mercadorias, antes da guerra civil. O fumo e o algodão, dois grandes artigos de exportação, eram produzidos por mão-de-obra escrava, enquanto alimentos e manufaturas geralmente eram produzidos por trabalhadores livres, seja trabalhando por conta própria, seja como assalariados. Apesar da eficiência menor da mão-de-obra escrava, não se pode duvidar de que, em um país em que os salários da mão-de-obra livre eram tão elevados, o trabalho executado por escravos constituía negócio melhor para o capitalista. Em qualquer grau que isso se verificasse, esse custo menor da mão-de-obra, por não ser geral, mas limitado àquelas ocupações, representava uma causa do baixo preço dos respectivos produtos — tanto no mercado interno como no externo —, tanto quanto se os produtos tivessem sido produzidos com quantidade menor de trabalho ou mão-de-obra. Se, quando os escravos foram emancipados nos Estados do Sul, seus salários atingissem o nível geral dos ganhos da mão-de-obra livre na América, o país poderia ter sido obrigado a cancelar do catálogo de suas exportações alguns dos artigos produzidos por escravos, e certamente não teria condições de vender nenhum deles, no mercado exterior, ao preço costumeiro. Consequentemente, o algodão americano costuma agora ser vendido a um preço muito mais alto que antes da guerra. Seu baixo preço era em parte um preço artificial, que pode ser comparado com o preço gerado por um subsídio concedido à produção ou à exportação; ou então, considerando os recursos com os quais era comprado, uma comparação mais adequada seria com o preço baixo de mercadorias roubadas. Uma vantagem de caráter econômico similar — ainda que seja de caráter moral bem diferente — é a de manufaturas domésticas — refiro-me a manufaturados produzidos nas horas vagas por famílias parcialmente ocupadas em outras atividades, as quais, pelo fato de sua subsistência não depender do produto dessa manufatura doméstica, podem permitir-se vender o manufaturado a qualquer preço — por mais baixo que seja — pelo qual considerem valer a pena assumir o incômodo de produzir. Em um relato sobre o Cantão de Zurique, ao qual já tive ocasião de referir-me ao tratar de outro tema, lemos o seguinte (Historisch-geographisch-statistisches Gemaelde der Schweiz): “O operário de Zurique é hoje um manufator, amanhã, um agricultor, mudando suas ocupações conforme as estações, em rodízio contínuo. A atividade manufatureira e a cultura agrária avançam de mãos dadas, em aliança inseparável, sendo nessa união entre as duas ocupações que se pode encontrar o segredo que explica por que o manufator suíço simples e pouco instruído sempre pode continuar a competir, e a aumentar sua prosperidade, em face desses grandes estabelecimentos munidos de grandes recursos econômicos e (o que é ainda muito mais importante) intelectuais. Mesmo naquelas regiões do Cantão em que as manufaturas mais se estenderam, somente 1/7 das famílias trabalha exclusivamente em manufaturas, sendo que 4/7 associam essa ocupação com a agricultura. A vantagem dessa manufatura doméstica ou familiar consiste sobretudo no fato de ela ser compatível com todas as outras ocupações, ou melhor, no fato de ela em parte poder ser considerada apenas como ocupação suplementar. No inverno, nas moradias dos operários, a família toda se ocupa na manufatura; mas assim que desponta a primavera, aqueles que são responsáveis pelos primeiros trabalhos de preparo dos campos abandonam o serviço dentro de casa; muitas lançadeiras permanecem inativas; gradualmente, à medida que aumenta o trabalho nos campos, um membro da família segue o outro, até que ao final, na época da safra, e durante os assim chamados ‘grandes trabalhos’, todos põem as mãos nos implementos agrícolas; contudo, quando o tempo é mau, e em todas as horas vagas, retoma-se o trabalho dentro de casa, e quando retorna o inverno, as pessoas voltam na mesma ordem gradual à sua ocupação dentro de casa, até todos a terem reassumido”. No caso desses manufaturados domésticos, o custo comparativo de produção, do qual depende o intercâmbio entre os países, é muito mais baixo do que em proporção à quantidade de trabalho empregado. Os trabalhadores, pelo fato de buscarem nos ganhos de seu tear apenas parte de seu sustento efetivo — se é que precisam —, podem permitir-se trabalhar por uma compensação inferior à taxa salarial mínima que pode existir em caráter permanente em ocupações nas quais o trabalhador tem de ganhar tudo que tem de gastar com sua família. Por trabalharem — como é o caso deles — não para um empregador, mas para si mesmos, pode-se dizer que operam a manufatura sem nenhum custo, excetuada a reduzida despesa de um tear e da matéria-prima; e o limite mínimo de preço não é a necessidade de viverem dessa ocupação, mas a de ganharem com esse trabalho o suficiente para que não seja desagradável esse emprego social de suas horas vagas. § 4. Esses dois casos, da mão-de-obra escrava e das manufaturas domésticas, exemplificam as condições nas quais salários baixos permitem a um país vender suas mercadorias a preço mais baixo em mercados estrangeiros, e consequentemente vender mais barato que seus rivais, ou evitar que estes vendam mais barato que eles. No entanto, se os salários baixos forem comuns a todos os setores de atividade, de forma alguma eles proporcionarão tal vantagem. Nunca os salários baixos em geral permitiram a nenhum país vender mais barato que seus rivais, da mesma forma que nunca salários altos em geral impediram algum país de vender mais barato que seus rivais. Para demonstrar isso, temos de voltar a um princípio elementar exposto em um capítulo anterior. Salários baixos, quando gerais, não geram preços baixos, nem salários altos geram preços altos, dentro do próprio país. Os preços gerais não aumentam por efeito de um aumento de salários, da mesma forma como não subiriam por efeito de um aumento da quantidade de trabalho exigida em todos os tipos de produção. Despesas que afetam de maneira igual todas as mercadorias não têm influência sobre os preços. Se somente o fabricante de tecido fino de lã preta ou de cutelaria, e ninguém mais, tivesse que pagar salários mais altos, o preço de sua mercadoria subiria, da mesma forma como subiria se tivesse que empregar mais trabalho — pois do contrário ele auferiria menos lucro que outros produtores, e ninguém trabalharia nessa profissão. Mas se todos têm de pagar salários mais altos, ou se todos têm de empregar mais trabalho, não há como subtrair-se a essa perda. Pelo fato de ela afetar a todos da mesma forma, ninguém pode alimentar a esperança de livrar-se dela mudando de ocupação, e, portanto, cada um se resigna a uma diminuição de lucros, e os preços permanecem como estavam. Analogamente, salários baixos, se gerais, ou um aumento geral da produtividade do trabalho não fazem os preços baixarem, mas fazem os lucros subirem. Se os salários caírem (entendendo aqui por salários o custo da mão-de-obra), por que motivo o produtor haveria de baixar seu preço, em razão disso? Dir-se-á que ele será forçado a fazê-lo, pela concorrência de outros capitalistas que procurarão avidamente essa aplicação de capital. Acontece que outros capitalistas também estão pagando salários mais baixos, e, portanto, se entrarem em concorrência com ele, não ganhariam mais do que já estão ganhando. Por conseguinte, a taxa de remuneração de sua mão-de-obra, bem como a quantidade de mão-de-obra que empregam, não afeta nem o valor nem o preço da mercadoria produzida, a não ser na medida em que for peculiar a essa mercadoria, e não for comum às mercadorias em geral. Uma vez que os salários baixos não são uma causa de preços baixos no próprio país, da mesma forma não é isso que leva o país a oferecer suas mercadorias em mercados estrangeiros a preço mais baixo. É perfeitamente verdade que, se o custo da mão-de-obra for mais baixo na América do que na Inglaterra, a América terá condições de vender seu algodão à Cuba a um preço mais baixo que à Inglaterra, e mesmo assim auferir um lucro tão alto quanto o manufator inglês. Acontece que o fiandeiro americano de algodão não fará sua comparação com o lucro do manufator inglês, mas com os lucros de outros capitalistas americanos. Estes desfrutam, da mesma forma que ele, do benefício de um baixo custo de mão-de-obra, e consequentemente têm alta taxa de lucro. Esse alto lucro, também o fiandeiro de algodão deve tê-lo: ele não se contentará com o lucro inglês. É verdade que ele pode, por algum tempo, continuar com aquela taxa mais baixa de lucro, antes que mudar de ocupação; pode-se manter uma ocupação, às vezes por muito tempo, auferindo um lucro muito menor do que aquele pelo qual a pessoa teria começado. Se certos países têm baixo custo de mão-de-obra e lucros altos, não é por isso que vendem mais barato que outros; entretanto, opõem uma resistência mais obstinada a que outros vendam mais barato que eles, porque os produtores muitas vezes podem aceitar uma redução dos lucros, sem com isso perderem a possibilidade de viver de seu negócio, ou até de prosperar. Esse é, porém, o único benefício que auferem de sua vantagem; aliás, não conseguirão perseverar por muito tempo nessa resistência, quando manifestamente perecer qualquer esperança de uma mudança que possa assegurar-lhes lucros iguais aos de seus patrícios. § 5. Há uma categoria de comunidades comerciais e exportadoras que parece exigir algumas palavras de explicação. Dificilmente se pode considerá-las como países que efetuam intercâmbio de mercadorias com outros países, mas antes, com mais propriedade, como estabelecimentos agrícolas e manufatureiros longínquos, pertencentes a uma comunidade maior. As nossas colônias nas Índias Ocidentais, por exemplo, não podem ser consideradas como países, com capital produtivo próprio. Se Manchester, em vez de estar localizada onde está, estivesse localizada em uma rocha do mar do Norte (porém continuando com sua atividade atual), mesmo assim continuaria a ser apenas uma cidade da Inglaterra, e não um país que comercializaria com a Inglaterra; seria apenas, como é atualmente, um lugar onde a Inglaterra considera conveniente manter sua indústria manufatureira. Da mesma forma as Índias Ocidentais são o lugar onde a Inglaterra considera conveniente manter a produção de açúcar, café e algumas outras mercadorias tropicais. Todo o capital lá empregado é capital inglês; quase todo o trabalho é feito para utilização da Inglaterra; pouco se produz, lá, a não ser mercadorias básicas, e estas são enviadas para a Inglaterra, não em troca de coisas exportadas para a colônia e consumidas por seus habitantes, mas para aí serem vendidas, em benefício dos proprietários lá estabelecidos. Por isso, dificilmente se pode considerar o comércio com as Índias Ocidentais como um comércio exterior; ele se parece mais com o comércio entre cidade e campo, podendo aplicar-se-lhe os princípios do comércio interno. A taxa de lucro nas colônias será regulada pelos lucros vigentes na Inglaterra; a expectativa de lucro deve ser mais ou menos a mesma que na Inglaterra, somando-se a compensação pelas desvantagens inerentes à aplicação mais longínqua e mais sujeita a riscos; e, deixada essa margem para essas desvantagens, o valor e o preço dos produtos das Índias Ocidentais no mercado inglês devem ser regulados (ou melhor, deveriam ter sido regulados, anteriormente) pelo custo de produção, como o de qualquer mercadoria inglesa. Durante os últimos doze ou quinze anos, esse princípio tem sido suspenso em caráter temporário; de início o preço foi mantido acima da taxa do custo de produção, por falta de fornecimento, o qual não podia aumentar devido à deficiência de mão-de-obra; mais recentemente, a admissão de concorrência estrangeira tem introduzido um novo elemento, sendo que algumas ilhas das Índias Ocidentais são suplantadas na vantagem dos preços, não tanto porque os salários lá são mais altos do que em Cuba e no Brasil, mas antes porque são mais altos do que na Inglaterra; com efeito, se assim não fora, a Jamaica poderia vender seu açúcar a preços de Cuba, e mesmo assim ter uma taxa de lucro igual à inglesa, embora não igual à cubana. Também vale a pena anotar outra categoria de pequenas comunidades, mas neste caso altamente independentes, que se mantiveram e se enriqueceram quase sem nenhuma produção própria (a não ser navios e equipamentos marítimos), simplesmente com um comércio de transporte de mercadorias, e comércio de entrepôt — comprando os produtos de um país, para revendê-los com lucro em outro. Tais foram Veneza e as cidades da Hansa. É muito simples o caso dessas comunidades. Fizeram de si e de seu capital instrumentos não de produção, mas para efetuar intercâmbio de produtos de outros países. Tais trocas acarretam uma vantagem para esses países — um aumento dos retornos globais do trabalho —, sendo que parte dessa vantagem se destinava a indenizar aos agentes as necessárias despesas de transporte, e outra parte era para remunerar a utilização de seu capital e de sua perícia comercial. Os próprios países não dispunham de capital para essa operação. Quando os venezianos se tornaram os agentes do comércio geral da Europa meridional, quase não tinham concorrentes: sem eles, esse comércio não se teria sequer efetuado, e na realidade não havia limite para os lucros deles, a não ser aquele que a ignorante nobreza feudal de então podia e queria pagar pelos artigos de luxo desconhecidos que lhes eram apresentados pela primeira vez. Mais tarde, sobreveio a concorrência e o lucro dessa operação como o de outras, passou a obedecer às leis naturais. O comércio de transporte de mercadorias foi assumido pela Holanda, um país com produção própria, além de grande capital acumulado. Também as outras nações europeias tinham agora capital a dedicar a essa atividade, sendo capaz de efetuar elas mesmas seu comércio exterior: todavia, a Holanda, por ter, em virtude de uma série de circunstâncias, uma taxa interna de lucro mais baixa, tinha condições de transportar, para outros países, por um adiantamento, sobre o custo original das mercadorias, menor do que aquele que teriam exigido os capitalistas dos respectivos países; por isso, a Holanda açambarcou a maior parte do comércio de transporte de todos aqueles países que não o reservaram a si mediante leis de navegação, elaboradas, como as da Inglaterra, para esse propósito explícito. CAPÍTULO XXVI A Distribuição, na Medida em que É Afetada pelo Intercâmbio § 1. Completamos agora, na medida em que é compatível com os nossos propósitos e limites, a exposição do mecanismo por meio do qual a produção de um país é repartida entre as diversas categorias de sua população — mecanismo esse que não é outro senão o de intercâmbio de mercadorias, e tem como expoentes de sua operação as leis que regem o valor e o preço. Aproveitaremos agora a luz assim adquirida para lançar um olhar retrospectivo sobre o tema da distribuição. Vimos que a divisão da produção entre as três categorias — trabalhadores, capitalistas, e donos de terra —, quando considerada sem nenhuma referência ao intercâmbio, depende de certas leis gerais. Convém agora analisar se essas mesmas leis operam quando a distribuição se efetua por meio do complexo mecanismo das trocas e do dinheiro, ou se as propriedades desses mecanismos afetam e modificam os princípios diretivos. A divisão primária do produto do trabalho humano e da frugalidade é feita, como vimos, em três partes: salários, lucros e aluguel: essas porções são repartidas às pessoas que têm direito a elas, na forma de dinheiro, e por um processo de troca. Ou seja, o capitalista, com o qual, segundo os dispositivos correntes da sociedade, fica o produto, paga, em dinheiro, aos outros dois participantes o valor de mercado de seu trabalho e de sua terra, respectivamente. Se examinarmos de que dependem o valor pecuniário do trabalho e o valor pecuniário do uso da terra, veremos que dependem exatamente das mesmas causas que segundo constatamos determinariam os salários e o aluguel, caso não houvesse dinheiro nem troca de mercadorias. Primeiramente, é manifesto que a lei dos salários não é afetada pela existência ou não da troca ou do dinheiro. Os salários dependem da proporção existente entre população e capital; e isso permaneceria de pé, se todo o capital existente no mundo fosse propriedade de uma única associação, ou se os capitalistas entre os quais ele está repartido mantivessem, cada um deles, um estabelecimento para a produção de cada artigo consumido na comunidade, não havendo nenhum intercâmbio de mercadorias. Já que a proporção entre capital e população, em todos os países velhos, depende da força dos obstáculos que restringem o aumento excessivamente rápido da população, pode-se dizer, em linguagem simples, que os salários dependem dos obstáculos colocados ao aumento da população; que quando o obstáculo não é a morte, em virtude da fome ou da doença, os salários dependem da prudência da classe trabalhadora; e que, em qualquer país, os salários estarão habitualmente naquela taxa mínima, à qual, naquele país, o trabalhador suportará que os salários desçam, antes de se colocar um limite à multiplicação populacional. Entretanto, o que aqui se entende por salários é o padrão real de conforto do trabalhador: a quantidade que ele consegue das coisas que por natureza ou por hábito lhe são necessárias ou agradáveis, isto é, salários no sentido em que são de importância para quem os recebe. No sentido em que os salários são importantes para quem os paga, eles não dependem exclusivamente desses princípios simples. O salário, na primeira acepção, ou seja, o salário do qual depende o conforto do trabalhador, denominá-lo-emos salário real, ou salário em espécie. Quanto ao salário na segunda acepção, permita-se-nos chamá-lo, por ora, de salário em dinheiro, supondo, como é permitido fazer, que o dinheiro permaneça por enquanto, um padrão invariável, não havendo nenhuma alteração nas condições nas quais o próprio meio circulante é produzido ou adquirido. Se o custo do próprio dinheiro não sofre alteração, o preço do trabalho em dinheiro representa uma medida exata do custo do trabalho, podendo-se utilizá-lo como um símbolo conveniente para expressá-lo. O salário do trabalho em dinheiro é um resultado conjunto de dois elementos: primeiro, o salário real, ou salário em espécie, ou seja, a quantidade de artigos comuns de consumo que o trabalhador adquire; segundo, os preços desses artigos em dinheiro. Em todos os países velhos — todos aqueles nos quais o aumento da população é em qualquer grau restringido pela dificuldade de conseguir subsistência — o preço habitual do trabalho em dinheiro é aquele que precisamente possibilitará aos trabalhadores, no conjunto, comprarem as mercadorias sem as quais ou não podem ou não querem manter a população à sua taxa de aumento costumeira. Dado o padrão de conforto dos trabalhadores (e por padrão de conforto, nesse caso, entende-se aquele em que, antes que abrir mão dele, os trabalhadores se absterão de multiplicar-se), o salário em dinheiro depende do preço em dinheiro, e, portanto, do custo de produção dos vários artigos que os trabalhadores habitualmente consomem: pois se os salários não têm condição de proporcionar-lhes determinada quantidade desses artigos, o aumento deles diminuirá, e seus salários subirão. Dentre esses artigos, os alimentos e outros produtos agrícolas constituem os principais, a ponto de pouca influência terem quaisquer outros fatores. É a esta altura que podemos socorrer-nos dos princípios que estabelecemos nesta Terceira Parte. O custo de produção de alimentos e da produção agrícola foi analisado em um capítulo anterior. Ele depende da produtividade da terra menos fértil, ou da porção de capital empregada menos produtivamente que as necessidades da sociedade exigiram até agora utilizar para fins agrícolas. Como vimos, o custo de produção dos alimentos cultivados nessas circunstâncias menos vantajosas determina o valor de troca e o preço em dinheiro de tudo. Por isso, em dada condição dos hábitos dos trabalhadores, seus salários em dinheiro dependem da produtividade da terra menos fértil, ou do capital agrícola menos produtivo: do ponto que o cultivo agrícola atingiu em seu avanço para terras inferiores — em sua tentativa de aproveitar as terras estéreis, e em sua solicitação cada vez maior das forças das terras mais férteis. Ora, a força que impulsiona a lavoura nesse curso para baixo é o aumento populacional, ao passo que a força contrária que dificulta a descida é o aperfeiçoamento da ciência e da prática agrícola, que possibilita ao mesmo solo proporcionar maiores retornos ao mesmo trabalho. O custo da porção mais dispendiosa da produção agrícola é uma expressão exata, em determinado momento, da corrida que a população e a perícia agrícola estão sempre empreendendo uma contra a outra. § 2. O dr. Chalmers diz muito bem que muitas das mais importantes lições de Economia Política precisam ser aprendidas na margem extrema da lavoura, o último ponto que a cultura do solo atingiu em sua luta com os fatores espontâneos da natureza. O grau de produtividade dessa margem extrema é um índice para aferir a condição existente da distribuição da produção entre as três classes: trabalhadores, capitalistas e donos de terra. Quando a procura de uma população crescente por mais alimento não tem condições de ser atendida sem estender a lavoura a uma terra menos fértil, ou então sem incorrer em despesas adicionais, com um retorno proporcional menor, em uma terra já em cultivo, uma condição necessária para se conseguir esse aumento da produção agrícola é que o valor e o preço dessa produção devem primeiro subir. Mas, assim que o preço tiver subido o suficiente para proporcionar ao gasto adicional de capital o lucro normal, o aumento não continuará ainda mais, com o fim de possibilitar à nova terra, ou ao novo gasto na terra velha, render aluguel e lucro. A terra ou o capital que foram utilizados por último, e que ocupam aquilo que o dr. Chalmers denomina a margem da lavoura, continuará a não proporcionar aluguel. Mas se essa terra não rende aluguel, o aluguel proporcionado por todas as outras terras ou capitais agrícolas será exatamente tanto quanto for o montante a mais que tais terras e capitais produzem. Em média, o preço dos alimentos sempre será tal, que a pior terra e a parcela menos produtiva de capital empregado nas terras melhores reponham exatamente as despesas, mais o lucro normal. Se a terra e o capital menos favorecidos proporcionam só isso, todas as outras terras e capitais darão um lucro extra, igual à receita da produção extra devida à sua maior produtividade; e esse lucro extra, em virtude da concorrência, passa a ser a recompensa dos donos de terra. Por conseguinte, a troca de mercadorias, bem como o dinheiro, não acarreta nenhuma diferença na lei que rege o aluguel: esta permanece inalterada, em relação ao que era na origem. O aluguel é o retorno extra dado pelo capital agrícola, quando empregado com vantagens especiais: o equivalente exato daquilo que essas vantagens permitem aos produtores economizar no custo de produção; quanto ao valor e ao preço dos produtos, eles são regulados pelo custo de produção para aqueles produtores que não têm vantagens — pelo retorno obtido pela porção de capital agrícola cujas circunstâncias são as menos favoráveis. § 3. Do fato de os salários e o aluguel serem regulados pelos mesmos princípios, quer sejam pagos em dinheiro, quer o sejam em espécie, segue-se que a mesma coisa acontece com os lucros. Pois o lucro é constituído por aquilo que sobra, depois de repor os salários e pagar o aluguel. Constatamos no último capítulo do Livro Segundo que os adiantamentos feitos pelo capitalista, quando analisados em seus elementos últimos, consistem ou na compra ou sustento de mão-de-obra, ou nos lucros de capitalistas anteriores, e que, portanto, os lucros, em última análise, dependem do custo da mão-de-obra, caindo quando este sobe, e subindo quando este cai. Procuremos descrever mais detalhadamente o funcionamento dessa lei. O custo da mão-de-obra, que é corretamente representado (supondo-se que o dinheiro permaneça invariável) pelos salários do trabalhador em dinheiro, pode aumentar de duas maneiras. O trabalhador pode conseguir maior conforto: os salários em espécie — os salários reais — podem aumentar. Ou então, o aumento da população pode forçar a lavoura estender-se a solos inferiores, e a adotar processos agrícolas dispendiosos, elevando assim o custo de produção, o valor e o preço dos principais artigos de consumo do trabalhador. Em ambas as suposições, cairá a taxa de lucro. Se o trabalhador consegue comprar mais mercadorias, somente em razão do preço mais baixo delas, se consegue comprar uma quantidade maior, mas sem aumentar para ele o custo, no conjunto, os salários reais aumentarão, mas não os salários em dinheiro, e nada haverá, no caso, que afete a taxa de lucro. Entretanto, se o trabalhador consegue uma quantidade maior de mercadorias cujo custo de produção não baixa, ele tem um custo maior, seus salários em dinheiro aumentam. A despesa desse aumento dos salários em dinheiro recai inteiramente sobre o capitalista. Não há como imaginar algum meio de ele livrar-se dessa despesa. Poder-se-ia alegar — e se alega efetivamente, com certa frequência — que o capitalista se livrará dessa despesa aumentando seu preço. Mas já refutamos plenamente essa opinião, e mais de uma vez. Com efeito, a doutrina de que um aumento dos salários gera um aumento equivalente de preços é contraditória em si mesma, como observamos anteriormente, pois se assim fosse, não seria um aumento de salários — o trabalhador não compraria quantidade maior do que antes de nenhuma mercadoria, por mais que subam seus salários em dinheiro; um aumento dos salários reais seria uma impossibilidade. Por isso contradizer igualmente à razão e aos fatos, é evidente que um aumento dos salários em dinheiro não gera aumento de preços, que salários altos não são causa de preços altos. Um aumento dos salários em geral afeta o lucro. Não existe uma alternativa possível. Tendo resolvido o caso em que o aumento dos salários em dinheiro e do custo da mão-de-obra provém do fato de o trabalhador obter salários mais altos em espécie, suponhamos agora que ele provenha do aumento do custo de produção das coisas que o trabalhador consome, devido a um crescimento populacional, não acompanhado de um aumento equivalente da habilidade agrícola. O aumento de produtos exigido pela população só se obteria se o preço dos alimentos subisse o suficiente para remunerar o arrendatário pelo maior custo de produção. Nesse caso, porém, o arrendatário arca com duas desvantagens. Ele tem de cultivar em condições de produtividade menos favoráveis do que antes. Por essa desvantagem, por ser ela uma desvantagem que só afeta a ele como arrendatário, e não atinge outros empregadores, ele será compensado — com base nos princípios gerais sobre o valor — por um aumento do preço de sua mercadoria: efetivamente, enquanto não ocorrer esse aumento, ele não comercializará o excedente de produção exigido. Mas exatamente esse aumento do preço o envolve em outra desvantagem, pela qual não recebe compensação. Uma vez que, por suposição, os salários reais da mão-de-obra permanecem inalterados, ele tem de pagar a seus trabalhadores salários mais altos em dinheiro. Essa desvantagem, por afetar tanto a ele como a todos os outros capitalistas, não constitui base para um aumento do preço. O preço subirá, até que tenha colocado o arrendatário em uma situação tão boa, no tocante aos lucros, quanto a de outros empregadores de mão-de-obra: o preço subirá de maneira a indenizá-lo pelo maior contingente de mão-de-obra que precisa agora empregar para produzir determinada quantidade de alimentos: quanto aos salários acrescidos da mão-de-obra, são um ônus comum a todos, peso este pelo qual ninguém pode ser indenizado. Esse ônus recairá totalmente sobre os lucros. Vemos, pois, que os aumentos de salários, quando forem comuns a todos os tipos de trabalhadores produtivos, e quando representarem realmente maior custo da mão-de-obra, ocorrem sempre e necessariamente à custa do lucro. Invertendo os casos, veríamos, de maneira análoga, que reduções de salários, quando representam uma redução real do custo da mão-de-obra, equivalem a um aumento dos lucros. Entretanto, em grande parte é apenas aparente essa oposição entre os interesses pecuniários da categoria dos capitalistas e os dos trabalhadores. Salários reais são uma coisa muito diferente do custo da mão-de-obra, e geralmente são mais altos nos momentos e lugares em que (devido às condições fáceis em que a terra proporciona toda a produção até agora exigida dela, sendo baixos o valor e o preço dos alimentos) o custo da mão-de-obra para o empregador, não obstante a boa remuneração desta, é relativamente baixo, e portanto é alta a taxa de lucro. Temos assim uma confirmação plena do nosso teorema inicial, de que os lucros dependem do custo da mão-de-obra, ou, para expressar o que queremos dizer, com exatidão ainda maior, a taxa de lucro e o custo da mão-de-obra variam inversamente entre si, sendo efeitos conjuntos dos mesmos fatores ou causas. Entretanto, será que essa proposição não precisa ser levemente modificada, deixando margem para aquela porção (ainda que relativamente pequena) das despesas do capitalista que não consiste em salários pagos por ele mesmo ou reembolsados a capitalistas anteriores, mas nos lucros daqueles capitalistas anteriores? Suponhamos, por exemplo, que se faça uma invenção na manufatura do couro, cuja vantagem consistisse em evitar a necessidade de os couros permanecerem por tanto tempo no tanque de curtir. Sapateiros, seleiros e outros trabalhadores em couro economizariam parte daquela parcela do custo de sua matéria-prima que consiste nos lucros do curtidor durante o tempo em que seu capital está amarrado; e essa economia — pode-se alegar — é uma fonte da qual poderiam auferir um aumento de lucro, mesmo permanecendo exatamente iguais os salários e o custo da mão-de-obra. Todavia, no caso aqui suposto, somente o consumidor se beneficiaria, pois cairiam os preços dos sapatos, dos arreios e de todos os outros artigos em que entra o couro, até os lucros dos produtores se reduzirem ao nível geral. Para responder a essa objeção, suponhamos que uma economia similar de despesas ocorra em todos os setores da produção, de uma só vez. Nesse caso, já que não seriam afetados os valores nem os preços, provavelmente aumentariam: mas, se atentarmos melhor para o caso, veremos que é porque baixaria o custo da mão-de-obra. Nesse, como em qualquer outro caso de aumento da produtividade em geral da mão-de-obra, se o trabalhador ganhasse apenas o mesmo salário real, os lucros aumentariam; mas o mesmo salário real implicaria um custo menor da mão-de-obra, uma vez que, pela suposição, diminui o custo de produção de todas as coisas. Por outro lado, se o salário real da mão-de-obra subisse proporcionalmente, e o custo da mão-de-obra para o empregador permanecesse o mesmo, os adiantamentos do capitalista manteriam a mesma proporção que antes em relação aos seus retornos, e a taxa de lucro permaneceria inalterada. O leitor que desejar um exame mais minucioso deste ponto, poderá encontrá-lo no volume de Ensaios a que já me referi. O problema é por demais complexo, em comparação com a sua importância, para que nos adentremos mais nele, em uma obra como esta; limitar-me-ei a dizer que, das considerações aduzidas no referido Ensaio, parece resultar que não há nada, no caso em questão, que afete a integridade da teoria que afirma uma correspondência exata, em direção inversa, entre a taxa de lucro e o custo da mão-de-obra. LIVRO QUARTO INFLUÊNCIA DO PROGRESSO DA SOCIEDADE SOBRE A PRODUÇÃO E A DISTRIBUIÇÃO CAPÍTULO I Características Gerais de uma Condição de Progresso da Riqueza § 1. As três partes precedentes englobam uma visão, tão detalhada quanto o permitem os nossos limites, daquilo que, por uma generalização feliz de uma expressão matemática, se tem chamado de Estática da Economia Política. Examinamos o campo dos fatos econômicos, e estudamos de que maneira se relacionam uns com os outros, como causas e efeitos, que circunstâncias determinam o montante da produção, do emprego para a mão-de-obra, do capital e da população; além disso vimos quais são as leis que regulam a renda da terra, os lucros e os salários, e em que condições e em que proporções as mercadorias são trocadas entre indivíduos e entre países. Adquirimos assim uma visão de conjunto dos fenômenos econômicos da sociedade, considerados na sua existência simultânea. Determinamos, até certo ponto, os princípios da interdependência reinante entre esses fenômenos, de sorte que, conhecendo-se a situação de alguns dos elementos, deveríamos agora ser capazes de inferir, de maneira geral, o estado contemporâneo da maioria dos demais. Tudo isso, porém, colocou em nossas mãos apenas as leis econômicas de uma sociedade estacionária e que não muda. Temos ainda a considerar a condição econômica da humanidade enquanto sujeita a mudança, e enquanto de fato passa sempre por mudanças progressivas (nas parcelas mais adiantadas da humanidade, e em todas as regiões atingidas pela influência delas). Temos de estudar quais são essas mudanças, quais as leis que as regem, e quais suas tendências últimas; dessa forma, acrescentaremos à nossa teoria sobre o equilíbrio uma teoria do movimento — acrescentaremos a Dinâmica da Economia Política à sua Estática. Nesta pesquisa, é natural começarmos por traçar o efeito de fatores conhecidos e reconhecidos. Quaisquer que sejam as outras mudanças pelas quais a economia da sociedade está destinada a passar, uma está atualmente em progresso, e em torno desta não pode haver discussão. Nos países que lideram o mundo, e em todos os outros, à medida que entram no raio de influência deles, existe no mínimo um movimento progressivo que continua com pouca interrupção, de um ano para o outro, de uma geração para a outra: um progresso na riqueza, um avanço naquilo que se denomina prosperidade material. Todas as nações que estamos habituados a qualificar de civilizadas aumentam gradualmente em produção e em população; e não há razão alguma para duvidar de que não somente essas nações continuarão por algum tempo a crescer dessa forma, mas que também a maioria das demais nações do mundo, incluindo algumas ainda não consolidadas, entrarão sucessivamente na mesma corrida. Por isso, nosso primeiro objetivo será examinar a natureza e as consequências dessa mudança progressiva: os elementos que a constituem, e os efeitos que ela produz sobre os vários fatos econômicos cujas leis esboçamos, especialmente sobre os salários, as rendas, os valores e os preços. § 2. Dentre os traços que caracterizam esse movimento econômico progressivo das nações civilizadas, o que primeiro suscita a atenção, devido ao seu nexo íntimo com os fenômenos da produção, é o crescimento perpétuo e, na medida em que a previsão humana é capaz de abarcar, ilimitado do poder do homem sobre a Natureza. Nosso conhecimento sobre as propriedades e as leis dos objetos físicos não apresenta nenhum indício de estar-se aproximando de seus limites últimos: ele está avançando com rapidez maior, e em um número maior de direções, de uma só vez, do que em qualquer idade ou geração anterior, proporcionando tais intuições frequentes de campos ainda inexplorados, que justificam a crença de que o conhecimento que hoje temos da Natureza ainda está praticamente em sua infância. Esse maior conhecimento físico está agora sendo convertido em poder físico, pelo engenho prático, e mais rapidamente do que em qualquer época anterior. A mais maravilhosa das invenções modernas, que realiza os feitos imaginários do mágico, não metaforicamente, mas literalmente — o telégrafo eletromagnético —, nasceu apenas alguns anos depois de se estabelecer a teoria científica que ele encarna e exemplifica. Por fim, a parte manual dessas grandes operações científicas atualmente nada fica devendo à intelectual: não há dificuldade alguma em encontrar ou desenvolver em um número suficiente de mãos produtivas da comunidade a habilidade necessária para executar os processos mais delicados da aplicação da ciência a usos práticos. Partindo dessa união de condições, é impossível não esperar ampla multiplicação e longa sucessão de invenções para economizar trabalho e aumentar a produção do mesmo, bem como uma difusão sempre mais ampla do uso e do benefício dessas invenções. Outra mudança que até agora tem caracterizado, e certamente continuará a marcar o progresso da sociedade civilizada, é um aumento contínuo da segurança da pessoa e da propriedade. Em todos os países da Europa, tanto nos mais atrasados como nos mais avançados, as pessoas estão, em cada geração, mais bem protegidas contra a violência e a rapacidade recíprocas, seja por uma justiça e uma política mais eficientes para eliminarem o crime privado, seja pela decadência e supressão daqueles privilégios danosos que possibilitavam a certas classes saquear impunemente as demais. As pessoas estão outrossim mais bem protegidas, em cada geração, contra os exercícios arbitrários do poder do governo, proteção essa que se deve ou às instituições, ou aos costumes, ou à opinião pública. Mesmo na Rússia semibárbara, não se supõe serem atualmente tão frequentes que possam afetar seriamente os sentimentos e a segurança de quem quer que seja atos de espoliação dirigidos contra indivíduos que não se tenham tornado réus políticos. A tributação, em todos os países europeus, se torna menos arbitrária e menos opressiva, tanto em si mesma como nas maneiras de cobrar. As guerras e a destruição que causam estão hoje habitualmente confinadas, em quase todos os países, àqueles domínios distantes e afastados em que se entra em contato com selvagens. Até mesmo os acidentes que afetam a fortuna, decorrentes de calamidades naturais inevitáveis, estão sendo cada vez mais suavizados para os atingidos, devido à ampliação contínua da prática salutar do seguro. Um dos efeitos mais infalíveis desse aumento de segurança é um grande aumento da produção e do acúmulo. A iniciativa e a frugalidade não podem existir onde não existe probabilidade preponderante de que aqueles que trabalham e poupam se darão condições de desfrutar dos resultados obtidos. E quanto mais essa probabilidade se aproxima da certeza, tanto mais a iniciativa e a frugalidade se tornam qualidades de que um povo se imbui. A experiência tem mostrado que grande parte dos resultados do trabalho e da abstenção pode ser devorada por impostos fixos, sem prejudicar — por vezes até com o efeito de estimular — as qualidades das quais nascem uma grande produção e um capital abundante. Entretanto, essas qualidades não constituem prova da inexistência de um alto grau de incerteza. O governo pode devorar uma parte; mas deve haver garantia de que não mexerá no restante, nem permitirá que outros o façam. Uma das mudanças que com mais certeza acompanham o progresso da sociedade moderna é o aperfeiçoamento das capacidades comerciais da humanidade em geral. Não pretendo com isso afirmar que a sagacidade de um ser humano em particular seja maior do que antes. Estou até inclinado a crer que o progresso econômico até agora produziu efeito oposto. Uma pessoa bem-dotada por natureza, em uma condição social primitiva, é capaz de executar razoavelmente bem um número muito grande de coisas, tem maior capacidade de adaptar os meios aos objetivos, tem mais capacidade para superar e fazer outros superarem uma dificuldade imprevista, do que 99% daqueles que só conheceram aquilo que se chama padrão de vida civilizado. Até onde esses pontos de inferioridade de faculdades são compensados, e de que maneira poderiam ser compensados ainda mais plenamente, para o homem civilizado, como ser individual, é uma questão que se enquadra em uma pesquisa diferente da que nos ocupa. Se, porém, considerarmos os seres humanos coletivamente, a compensação é ampla. O que se perde na eficiência individual de cada um é muito mais do que compensado pela maior capacidade de ação em conjunto. Na medida em que os indivíduos abandonam as características do selvagem, tornam-se sensíveis à disciplina; são capazes de aderir a planos combinados de antemão, e sobre os quais possivelmente não foram consultados; tornam-se capazes de subordinar seu capricho individual a uma determinação tomada anteriormente, cumprindo cada um a função a ele atribuída, em um empreendimento conjunto. Trabalhos de todos os tipos, impraticáveis para o selvagem ou o semicivilizado, são diariamente executados por nações civilizadas, não porque os agentes efetivos sejam dotados de faculdades superiores, mas pelo fato de cada um ser capaz de confiar nos demais, naquela parte do serviço que cada um executa. Em suma, a característica peculiar dos seres humanos é a sua capacidade de cooperação; e esta, como outras faculdades tende a melhorar com a prática, sendo capaz de abranger uma esfera de ação cada vez mais ampla. Não há, pois, nenhum fato mais evidente da mudança progressiva que está ocorrendo na sociedade do que o crescimento contínuo do princípio e da prática da cooperação. Associações de indivíduos que voluntariamente juntam suas pequenas contribuições executam hoje trabalhos, tanto de natureza profissional como de muitos outros tipos, que nenhuma pessoa, ou número reduzido de pessoas, é suficientemente rica para executar, ou por cuja execução as poucas pessoas capazes podiam anteriormente cobrar a remuneração mais exorbitante. À medida que aumenta a riqueza e se aperfeiçoa a capacidade comercial podemos esperar grande aumento do número de estabelecimentos, tanto para fins industriais como para outros, constituídos pelas contribuições coletivas de grandes grupos — estabelecimentos como os tecnicamente denominados sociedades anônimas, ou as associações menos formais, tão numerosas na Inglaterra, para levantar fundos destinados a objetivos públicos ou filantrópicos, ou, finalmente, as associações de operários, seja para fins de produção, seja para a compra de bens para seu consumo comum, que são hoje particularmente conhecidas sob o nome de sociedades cooperativas. O progresso que se pode esperar nas ciências e técnicas físicas associado à maior segurança da propriedade e à maior liberdade de dispor dela, que representam características óbvias das nações modernas, juntamente com a utilização mais ampla e mais habilidosa do princípio do capital conjunto propiciam espaço e campo para um aumento indefinido de capital e de produção, e para o aumento da população que costuma acompanhá-lo. Não há muita razão para temer que o crescimento populacional ultrapasse o aumento da produção; mesmo o temor de que a população aumente no mesmo grau que a produção não se concilia com a suposição de qualquer aperfeiçoamento real das classes mais pobres da população. No entanto, é perfeitamente possível que haja grande progresso do aperfeiçoamento industrial e dos sinais daquilo que se costuma chamar de prosperidade nacional; grande aumento da riqueza em geral, e até mesmo, sob certos aspectos, melhor distribuição da mesma; que não somente os ricos enriqueçam ainda mais, mas que muitos pobres se tornem ricos, que as classes intermediárias se tornem mais numerosas e mais poderosas, e que se difundam mais e mais os recursos para levar uma vida digna de ser vivida, enquanto a grande classe que está na base da sociedade poderia aumentar apenas em número, mas não em conforto e em cultura. Por isso, ao considerarmos os efeitos do progresso da indústria, temos de admitir, como suposição — por mais que o lamentemos como um fato —, um crescimento populacional de duração tão longa, tão indefinido, e possivelmente até tão rápido quanto o aumento da produção e da acumulação. Feitas essas observações preliminares sobre as causas de mudança operantes em uma sociedade que está em fase de progresso econômico, passo agora a um exame mais detalhado das mudanças como tais. CAPÍTULO II A Influência do Progresso da Indústria e do Crescimento Populacional Sobre os Valores e os Preços § 1. As mudanças que o progresso da iniciativa gera ou pressupõe nas circunstâncias da produção necessariamente vêm acompanhadas de mudanças no tocante aos valores das mercadorias. Como vimos, os valores permanentes de todas as coisas que não estão sob monopólio natural nem sob monopólio artificial dependem do custo de produção das mesmas. Mas o poder crescente que a humanidade está adquirindo constantemente sobre a Natureza aumenta cada vez mais a eficiência do trabalho humano, ou seja, em outros termos, reduz o custo de produção. Todas as invenções que permitem produzir uma quantidade maior de qualquer mercadoria, com o mesmo trabalho, ou a mesma quantidade com menos trabalho, ou que abreviam o processo, de sorte que o capital aplicado não precisa ser adiantado durante tanto tempo, fazem com que baixe o custo de produção da respectiva mercadoria. Entretanto, já que o valor é relativo, se as invenções e os aperfeiçoamentos fossem feitos em todas as mercadorias, e em todas no mesmo grau, nenhuma alteração haveria nos valores. As coisas continuariam a ser intercambiadas umas pelas outras às mesmas taxas que antes, e a humanidade conseguiria uma quantidade maior de tudo, em troca de seu trabalho e de sua abstenção, sem que essa maior abundância fosse medida e declarada (como acontece quando ela afeta somente uma mercadoria) pelo valor de troca reduzido da mercadoria. Quanto aos preços, em tais circunstâncias eles seriam ou não afetados, conforme os aperfeiçoamentos efetuados na produção se estendessem ou não aos metais preciosos. Se as matérias-primas do dinheiro ficassem alheias à redução geral do custo de produção, baixariam os valores de todas as outras coisas em relação ao dinheiro, isto é, haveria uma queda dos preços em geral, no mundo todo. Se, porém, se conseguisse adquirir dinheiro, bem como outras coisas, em maior abundância e mais barato, e no mesmo grau que outras coisas, os preços não seriam mais afetados que os valores, e não haveria, na situação dos mercados, nenhum sinal visível de qualquer uma das mudanças que tivessem ocorrido; haveria apenas (se as pessoas continuassem a trabalhar tanto quanto antes) uma quantidade maior de todos os tipos de mercadorias, que seriam postas em circulação aos mesmos preços, por uma quantidade maior de dinheiro. Os aperfeiçoamentos na produção não constituem a única circunstância que acompanha o progresso da iniciativa que tende a diminuir o custo de produção das mercadorias, ou ao menos o custo de aquisição das mesmas. Outra circunstância é o aumento do intercâmbio entre partes diferentes do mundo. À medida que se amplia o comércio, e se tornam obsoletas as tentativas ignorantes de restringi-lo por tarifas, sempre mais se tende a produzir as mercadorias nos lugares em que sua produção pode ocorrer com o mínimo de trabalho e de capital para a humanidade. À medida que a civilização se difunde, e se consolida a segurança da pessoa e da propriedade, em regiões do mundo que até agora não desfrutavam dessa vantagem, passam a atuar em maior plenitude as capacidades produtivas dessas regiões, em benefício tanto de seus próprios habitantes como dos países estrangeiros. Provavelmente, a ignorância e o mau governo de que continuam a ser vítimas muitas das regiões mais favorecidas pela Natureza demandam trabalho, provavelmente durante muitas gerações, antes que essas regiões atinjam o nível atual dos países mais civilizados da Europa. Muito dependerá também da migração crescente de mão-de-obra e capital para regiões desocupadas do mundo, cujo solo, clima e localização prometem, em razão dos amplos meios de exploração que atualmente possuem, não somente grande retorno ao trabalho, mas também grandes facilidades para a produção de mercadorias indicadas para os mercados de países velhos. Por mais que a atividade coletiva do mundo tenha probabilidade de aumentar de eficiência em virtude da extensão da ciência e das técnicas profissionais, um recurso ainda mais rico para aumentar o barateamento da produção será encontrado, provavelmente, por algum tempo futuro, nas consequências do livre comércio que se forem gradualmente desdobrando, e na escala crescente em que ocorrerá a emigração e a colonização. Em razão das causas que acabamos de enumerar, se não forem neutralizadas por outras, o progresso possibilita a um país conseguir um custo real cada vez menor, não somente para seus próprios produtos, mas também para os de países do exterior. Efetivamente, tudo aquilo que diminui o custo de seus próprios produtos, quando forem de natureza exportável, possibilita ao país obter suas importações a um custo real mais baixo. § 2. Será, porém, um fato que essas tendências não são neutralizadas? Será que o progresso da riqueza e do trabalho não tem, em relação ao custo de produção, outro efeito senão o de reduzi-lo? Será que o mesmo progresso não faz operarem causas de natureza oposta, suficientes em alguns casos não somente para neutralizar, mas também para superar as primeiras, e para converter o movimento descendente do custo de produção em movimento ascendente? Já sabemos que tais causas existem, e que, no caso dos tipos mais importantes de mercadoria — alimentos e matérias-primas —, existe uma tendência diametralmente oposta àquela da qual vimos falando. O custo de produção dessas mercadorias tende a crescer. Não se trata de uma propriedade inerente às próprias mercadorias. Se a população permanecesse estacionária, e nunca houvesse necessidade de aumentar a produção do globo, não haveria razão para o custo de produção aumentar. Pelo contrário, a humanidade auferiria o benefício pleno de todas as melhorias agrícolas ou das efetuadas nas técnicas subsidiárias da agricultura, e não haveria nenhuma diferença, sob esse prisma, entre os produtos agrícolas e os manufaturados. Os únicos produtos do trabalho que, se a população não aumentasse, estariam sujeitos a um aumento real do custo de produção são aqueles que, por dependerem de matéria-prima que não é renovada, são no todo ou em parte exauríveis, tais como o carvão e a maioria dos metais, senão todos — pois mesmo o ferro. o mais abundante e o mais útil dos produtos metálicos, que constitui um ingrediente da maioria dos minerais e de quase todas as rochas, é suscetível de esgotar-se, no que concerne aos seus minérios mais ricos e mais maleáveis. Quando, porém, a população aumenta, como nunca até hoje deixou de acontecer quando o aumento do trabalho e dos meios de subsistência criaram espaço para isso, a demanda da maior parte dos produtos da terra, e particularmente de alimentos, aumenta em uma proporção correspondente. Entra então em operação aquela lei fundamental da produção do solo, sobre a qual tivemos tantas ocasiões de discorrer: a lei segundo a qual um aumento de trabalho, qualquer que seja o estágio de perícia agrícola, vem acompanhado de um aumento de produção menos do que proporcional. O custo de produção dos frutos da terra, coeteris paribus, aumenta com cada aumento da demanda. Com respeito aos artigos manufaturados, não existe tendência similar. A tendência é oposta. Quanto maior for a escala em que se efetuam as operações manufatureiras, tanto menor será geralmente o seu custo. O sr. Senior chegou ao ponto de enunciar como uma lei inerente à atividade manufatureira que nela o aumento de produção se efetua com custo mais baixo, ao passo que na atividade agrícola o aumento de produção ocorre com custo maior. Entretanto, não consigo pensar que, mesmo nas manufaturas, o barateamento do produto decorra do aumento da produção, em virtude de algo que se pudesse equiparar a uma lei. É uma consequência provável, mas não necessária. Como, porém, as manufaturas dependem, para suas matérias-primas, da agricultura, da mineração ou dos produtos espontâneos da terra, a atividade manufatureira está sujeita, no tocante a um de seus elementos essenciais, à mesma lei que a agricultura. Acontece que a matéria bruta geralmente constitui parte tão pequena do custo total, que qualquer tendência que possa existir no sentido de um aumento progressivo desse único item é de muito superada pela diminuição que ocorre continuamente em todos os demais elementos — diminuição essa para a qual é impossível, hoje, colocar qualquer limite. Sendo que, portanto, a força produtiva do trabalho nas manufaturas tende a aumentar constantemente, ao passo que na agricultura e na mineração há um conflito entre duas tendências — uma, tendendo a aumentar a força produtiva, e outra tendendo a diminuí-la —, e sendo que o custo de produção é reduzido por todo aperfeiçoamento efetuado nos processos, e aumentado por todo aumento populacional, segue-se que os valores de troca dos artigos manufaturados, comparados com os produtos da agricultura e das minas, têm tendência certa e decidida a cair à medida que aumentam a população e o trabalho. Por ser também o dinheiro um produto das minas, pode-se estabelecer como regra que tende a cair o preço em dinheiro dos artigos manufaturados à medida que a sociedade progride. A história industrial das nações modernas, especialmente durante os últimos cem anos, dá pleno testemunho dessa afirmação. § 3. Se aumenta ou não o custo absoluto e o custo relativo de produção dos produtos agrícolas, isso depende do conflito dos dois fatores antagônicos, o aumento da população e o aperfeiçoamento da habilidade agrícola. Em alguns estágios sociais, talvez na maioria deles (considerando toda a superfície do globo), tanto a habilidade agrícola como a população ou estão estacionárias, ou então aumentam muito lentamente, e por isso o custo de produção dos alimentos é quase estacionário. Em uma sociedade cuja riqueza está aumentando, a população em geral aumenta com mais rapidez do que a habilidade agrícola, e consequentemente os alimentos tendem a ficar mais caros; mas há épocas em que o aperfeiçoamento agrícola toma forte impulso. Tal ocorreu na Grã-Bretanha durante os últimos vinte ou trinta anos. Na Inglaterra e na Escócia, ultimamente a habilidade agrícola tem aumentado bem mais rapidamente do que a população, tanto que os alimentos e outros produtos agrícolas, apesar do aumento da população, podem ser cultivados com menos custo do que há trinta anos, e a abolição das leis do trigo deu estímulo adicional ao espírito de aperfeiçoamento. Em alguns outros países, e particularmente na França, o aperfeiçoamento da agricultura conquista terreno ainda mais decididamente sobre a população, porque, embora a agricultura, excetuadas algumas províncias, avance lentamente, a população aumenta com lentidão ainda maior, não por pobreza — a qual está diminuindo —, mas por prudência. Qual dos dois fatores conflitantes está vencendo, em algum momento específico, pode ser conjecturado com precisão razoável a partir do preço em dinheiro dos produtos agrícolas (na hipótese de que o metal em barras não mude substancialmente de valor), desde que se possa avaliar um número suficiente de anos, para se tirar uma média independente das flutuações das estações. Acontece que isso dificilmente é exequível, pois o sr. Tooke mostrou que mesmo um período tão longo como meio século pode incluir uma percentagem muito maior de estações abundantes e uma percentagem menor de estações precárias do que o propriamente devido. Por isso, uma simples média poderia levar a conclusões que são tanto mais enganadoras por apresentarem uma aparência ilusória de precisão. Haveria menos perigo de erro em se tomando a média de apenas uns poucos anos, corrigindo-a por uma margem conjectural em razão da natureza das estações, do que em confiar em uma média de mais anos sem alguma correção desse gênero. É quase supérfluo acrescentar que, ao basear conclusões em preços cotados, é necessário deixar também margem, na medida do possível, para quaisquer alterações do valor de troca em geral dos metais preciosos. (Talvez um critério ainda melhor que o sugerido no texto seria o aumento ou a diminuição do montante dos salários do trabalhador, avaliado em produtos agrícolas). § 4. Tratamos até aqui do efeito do progresso da sociedade sobre os valores e preços permanentes ou médios das mercadorias. Resta considerar como esse mesmo progresso afeta as flutuações dos valores e dos preços. Não pode haver dúvida quanto à resposta a essa questão. O progresso da sociedade tende em grau altíssimo a reduzi-las. Em sociedades pobres e atrasadas, como no Oriente, e na Europa durante a Idade Média, podiam existir diferenças extraordinárias no preço da mesma mercadoria, em lugares não muito distantes entre si, porque a falta de estradas e de canais, a imperfeição da navegação marítima e a insegurança das comunicações em geral impediam transportar coisas dos lugares em que eram baratas para os lugares em que eram caras. As coisas mais sujeitas às flutuações de valor, as diretamente influenciadas pelas estações, sobretudo os alimentos, raramente eram transportadas para grandes distâncias. Como regra geral, cada localidade dependia de sua própria produção e da de sua redondeza imediata. Por isso, na maior parte dos anos, havia, em uma ou outra parte de um país extenso, uma carestia real. Quase todas as estações são necessariamente impróprias para alguns dentre os muitos solos e climas que se encontram em uma faixa extensa de terra do país; mas já que a mesma estação é também, em geral, mais do que normalmente favorável a outros solos e climas, só ocasionalmente acontece que a produção global do país seja deficiente e, mesmo assim, em grau menor do que o de muitas regiões separadas; por outro lado, uma deficiência considerável, que abranja o mundo inteiro, é coisa mais ou menos desconhecida. Por isso, nos tempos modernos, só há carestia onde antigamente teria havido fome generalizada, e há o suficiente em toda parte, quando antigamente teria havido escassez em alguns lugares e sobra em outros. A mesma mudança operou-se em todos os outros artigos de comércio. A segurança e o baixo custo das comunicações, que fazem com que seja possível atender à falta em um lugar com a sobra existente em um outro, com um aumento razoável ou mesmo pequeno do preço normal, tornam as flutuações dos preços muito menos extremas do que antigamente. Esse efeito é muito favorecido pela existência de capitais ingentes, pertencentes aos chamados comerciantes especuladores, cujo negócio consiste em comprar mercadorias para revendê-las com lucro. Pelo fato de esses distribuidores naturalmente comprarem as coisas quando estão em seu preço mais baixo, e as estocarem para comercializá-las novamente quando o preço se tornou descomunalmente alto, a tendência de sua operação é de igualar o preço, ou pelo menos moderar suas desigualdades. Os preços das coisas não baixam tanto, em um momento, nem sobem tanto, em outro, quanto o fariam se não existissem os distribuidores que especulam. Eis por que os especuladores desempenham função altamente útil na economia da sociedade; e (contrariamente à opinião comum) a parcela mais útil dessa categoria de pessoas é constituída por aqueles que especulam com mercadorias afetadas pelas vicissitudes das estações. Se não houvesse distribuidores de trigo, não somente o preço do trigo estaria sujeito a variações muito mais extremas do que atualmente, mas, em uma estação de escassez, os suprimentos necessários não poderiam sequer aparecer. Se não houvesse quem especulasse com trigo, ou seja, se faltassem os distribuidores, os arrendatários começariam a especular, e o preço em uma estação de abundância cairia sem nenhum limite ou obstáculo, a não ser o consumo de desperdício inútil que se lhe seguiria invariavelmente. Se alguma parte do excedente de um ano sobra para suprir a deficiência de outro ano, isso se deve ou aos arrendatários que seguraram o trigo e não o comercializaram, ou aos distribuidores, que o compram quando os preços são os mais baixos e o estocam. § 5. Entre pessoas que não estudaram a fundo a matéria, há uma ideia de que os especuladores auferem seu lucro provocando uma escassez artificial; que criam um preço alto com as suas compras, e depois tiram lucro disso. É fácil mostrar que a verdade não é essa. Se um distribuidor de trigo faz compras especulativas, e com isso provoca aumento de preço, quando não há, nem naquele momento nem depois, nenhuma causa capaz de gerar tal aumento, afora o procedimento dele, não há dúvida de que ele parecerá enriquecer enquanto continuar a comprar, por estar de posse de um artigo que é cotado a preço cada vez mais alto; mas esse ganho aparente só parece estar ao alcance dele enquanto não tentar auferi-lo. Se, por exemplo, ele comprou 1 milhão de quarters e, por segurá-lo e não comercializá-lo, aumentou o preço, de 10 xelins o quarter, da mesma forma como o preço aumentou por ele reter 1 milhão de quarters, assim também o preço baixará pelo fato de ele comercializá-lo, e o melhor que pode esperar é não perder outra coisa além dos juros e das despesas que teve. Se, por uma venda gradual e cuidadosa, ele obter por uma parte de seus estoques um preço maior, da mesma forma, sem dúvida, teve que pagar parte desse preço por alguma parcela de suas compras. Ele corre grande risco de arcar com uma perda ainda maior, pois o preço alto, por ser temporário, com muita probabilidade tentou outros, que não tiveram nenhuma participação nessa alta do preço, e que de outra forma poderiam não ter encontrado sequer o caminho para seu mercado, levar para lá seu trigo e interceptar uma parcela dessa vantagem. Assim, em vez de tirar lucro de uma escassez causada por ele mesmo, o distribuidor especulativo de forma alguma está isento da possibilidade de, após comprar em um mercado médio, ser forçado a vender em um mercado de superabundância. Assim como um especulador individual não tem condições de obter lucro em decorrência de um aumento de preço provocado exclusivamente por ele, da mesma forma, não tem condições de ganhar um grupo de especuladores coletivamente, em virtude de um aumento de preço produzido artificialmente por eles. Alguns dentre um grupo de especuladores podem sair ganhando, por terem mais critério e mais sorte na escolha do momento para auferir lucros, porém auferem esse ganho não à custa do consumidor, mas dos outros especuladores que têm menos critério. Na realidade, esses poucos convertem em benefício próprio o alto preço gerado pelas especulações dos demais, deixando a estes a perda resultante do recuo dos preços. Por isso, não há como negar que os especuladores podem enriquecer-se com a perda de outras pessoas. Mas é com as perdas de outros especuladores. O mesmo montante que foi perdido por um grupo de distribuidores é ganho por outro grupo deles. Quando uma especulação em uma mercadoria se demonstra rentável para os especuladores como um todo, é porque, no intervalo entre a compra que fizeram e a revenda, o preço sobe por alguma causa independente deles, sendo que seu único nexo com essa causa consiste em tê-la previsto. Nesse caso, as compras deles fazem o preço começar a subir mais cedo do que, aliás, o fariam, distribuindo assim a privação dos consumidores por um período mais longo, mas mitigando-a no momento de seu ápice, evidentemente para vantagem geral; nisso, porém, presume-se que eles não superestimaram o aumento pelo qual esperavam, pois muitas vezes acontece que as compras especulativas são feitas na expectativa de algum aumento da demanda ou da falta de suprimento, que ao final deixam de ocorrer, ou então não ocorrem na medida esperada pelo especulador. Nesse caso, a especulação, em vez de moderar a flutuação, causou uma flutuação do preço que de outra forma não teria ocorrido, ou agravou uma que teria acontecido. Mas, nesse caso, a especulação é uma perda para os especuladores considerados coletivamente, por mais que alguns indivíduos possam ganhar com ela. Toda aquela parte do aumento de preço, pela qual este supera o nível para o qual há motivos independentes, não pode render aos especuladores, como um todo, benefício algum, pois o preço baixa em virtude das vendas deles, tanto quanto subiu em virtude de suas compras; e enquanto nada ganham com isso, saem perdendo não somente as preocupações e as despesas que tiveram, mas, quase sempre, muito mais, por meio dos efeitos decorrentes do aumento artificial de preço na redução do consumo e em fazer aparecer suprimentos de procedências imprevistas. Por isso, as operações dos distribuidores especulativos são úteis para o público, toda vez que forem rentáveis para eles mesmos; e conquanto às vezes sejam prejudiciais para o público, por aumentarem as flutuações que mais comumente teriam a função de aliviar, não obstante isso, toda vez que o fato acontece, os que mais perdem são os próprios especuladores. Em suma, o interesse dos especuladores, como um todo, coincide com o interesse do público; e já que eles podem deixar de servir ao interesse público quando deixam de atender a seu próprio, o melhor meio para promover o interesse público é deixá-los buscar seu interesse próprio com toda liberdade. Não nego que os especuladores podem agravar uma escassez local. Ao recolherem trigo das aldeias para suprir as cidades, fazem a carestia penetrar em lugares e recantos que de outra forma poderiam escapar de partilhar dessa sorte. Comprar e revender no mesmo lugar tende a aliviar a escassez; comprar em um lugar e revender em outro pode aumentar a escassez no primeiro dos dois lugares, mas aliviá-la no segundo, onde o preço é mais alto, e o qual, portanto, pela própria suposição, provavelmente sofrerá mais. E esses sofrimentos sempre atingem mais duramente os consumidores mais pobres, pois os ricos, por terem condição de oferecer mais, podem adquirir seu suprimento usual sem redução, se o quiserem. Por isso para ninguém as operações dos distribuidores de trigo, no conjunto, são mais benéficas do que para os pobres. Acidentalmente, e excepcionalmente, os pobres podem sofrer por causa delas; às vezes poderia ser mais vantajoso para o pobre que vive no campo ter trigo mais barato no inverno, quando dependem inteiramente dele, mesmo se a consequência fosse uma carestia na primavera, quando talvez possam conseguir produtos que em parte o substituem. Mas não há sucedâneos acessíveis nessa estação, que sirvam bem para substituir o trigo para pão como artigo principal da alimentação; se os houvesse, seu preço cairia na primavera, em vez de continuar a aumentar até aproximar-se a colheita, como sempre acontece. No momento da venda, existe uma oposição de interesse imediato, entre o distribuidor de trigo e o consumidor, como sempre há entre o vendedor e o comprador; e já que um tempo de escassez é aquele no qual o especulador aufere seus maiores lucros, ele se torna alvo de aversão e ciúme nesse momento, por parte daqueles que estão sofrendo enquanto ele está ganhando. Todavia, é um erro supor que a atividade do distribuidor de trigo lhe proporciona algum lucro extra: ele aufere seus ganhos não constantemente, mas em momentos específicos, e por isso ocasionalmente esses ganhos devem ser grandes; de qualquer forma, as chances de lucro, em um negócio em que há tanta concorrência, no conjunto não podem ser maiores do que em outras ocupações. Um ano de escassez, no qual os distribuidores de trigo ganham muito, raramente termina sem um recuo de preços que coloca muitos deles na lista dos que vão à falência. Houve poucas estações mais alvissareiras para os distribuidores de trigo de que o ano de 1847, e raramente houve uma quebra maior entre os especuladores do que no outono daquele ano. As chances de fracassar, nessa profissão altamente precária, são um contrapeso para grandes lucros ocasionais. Se o distribuidor de trigo fosse vender seus estoques, durante uma carestia, a um preço inferior àquele que a concorrência dos consumidores lhe reconhece, estaria sacrificando, à caridade ou à filantropia, os lucros honestos de sua profissão, sacrifício este que exatamente com a mesma razão pode ser exigido de qualquer outra pessoa dotada dos mesmos recursos. Por ser a profissão deles uma ocupação útil, é de interesse do público que existam as motivações normais para exercê-la, e que nem a lei nem a opinião pública impeçam uma operação, benéfica para o público, de auferir tanta vantagem privada quanto for compatível com a concorrência plena e livre. É, pois, manifesto que se pode esperar que as flutuações dos valores e dos preços, decorrentes das variações da oferta, ou de alterações da demanda real (que se contrapõe à demanda especulativa), se tornem mais moderadas à medida que a sociedade progride. Não se pode afirmar com igual confiança a mesma coisa com respeito a flutuações decorrentes de erros de cálculo e previsão e especialmente das alternâncias entre a expansão indevida e a restrição excessiva do crédito que ocupam um lugar tão importante entre os fenômenos comerciais. Tais vicissitudes, que começam por especulações irracionais e desembocam em uma crise comercial, até agora não se tornaram menos frequentes nem menos violentas com o aumento do capital e do trabalho. Pode-se até dizer que se tornaram mais frequentes e mais violentas; afirma-se muitas vezes que isso se deve ao aumento da concorrência: pessoalmente, prefiro dizer que é em razão de uma baixa taxa de lucro e de juros, que faz os donos de capital ficarem insatisfeitos com o andamento normal dos ganhos comerciais seguros. O nexo existente entre essa baixa taxa de lucro e o aumento da população e da acumulação é um dos pontos a serem explanados nos capítulos que seguem. CAPÍTULO III A Influência do Progresso da Indústria e do Crescimento Populacional Sobre Rendas da Terra, Lucros e Salários § 1. Prosseguindo no estudo da natureza das mudanças econômicas ocorrentes em uma sociedade que está em estado de progresso industrial, consideraremos primeiro qual é o efeito desse progresso sobre a distribuição da produção entre as várias categorias que dela partilham. Podemos limitar nossa atenção ao sistema de distribuição, que é o mais complexo, e que virtualmente inclui todos os outros — aquele no qual a produção das manufaturas é repartida entre duas categorias, a saber, trabalhadores e capitalistas, e a produção agrícola entre três, isto é, trabalhadores, capitalistas e donos da terra. Os traços característicos do que se costuma entender por progresso industrial reduzem-se a três: aumento de capital, aumento da população e aperfeiçoamento na produção, sendo essa última expressão entendida em sua acepção mais ampla, para incluir o processo de adquirir mercadorias de lugares distantes, bem como o de produzi-las. As outras mudanças que ocorrem são sobretudo consequências destas: como, por exemplo, a tendência a um aumento progressivo do custo de produção de alimentos, oriunda de um aumento de demanda, o qual, por sua vez pode ser ocasionado por aumento populacional ou por um aumento do capital e dos salários, possibilitando às classes mais pobres aumentarem seu consumo. Será conveniente começar considerando cada uma dessas três causas, operando em separado; depois disso, podemos supô-las associadas de qualquer maneira que acharmos oportuno. Suponhamos primeiro que a população aumente, permanecendo estacionários o capital e as técnicas de produção. É suficientemente óbvio que essa mudança de circunstâncias acarretará um efeito: os salários baixarão, e a classe trabalhadora será reduzida a uma condição inferior. Ao contrário, a situação do capitalista melhorará. Com o mesmo capital, poderá comprar mais mão-de-obra, e obter mais produção. Sua taxa de lucro aumenta. Verifica-se aqui a dependência da taxa de lucro em relação ao custo da mão-de-obra, pois, obtendo o trabalhador uma quantidade menor de mercadorias, e não se supondo nenhuma alteração nas circunstâncias de produção das mesmas, a quantidade menor representa um custo menor. O trabalhador obtém não somente uma remuneração real menor, mas também o produto de uma quantidade menor de trabalho. A primeira circunstância é importante para o trabalhador, a segunda o é para seu empregador. Até agora, nada aconteceu que afete de qualquer modo o valor de alguma mercadoria, e portanto não apareceu ainda nenhuma razão para aumentar ou baixar a renda da terra. Mas, se atentarmos para outro estágio na série de efeitos, podemos ver nosso caminho em direção a essa consequência. Os trabalhadores aumentaram de número; sua condição piorou na mesma proporção; o número maior de trabalhadores divide entre si apenas a produção do mesmo montante de trabalho que antes. Todavia, pode ser que eles economizem em seus outros confortos, mas não em sua alimentação: pode ser que cada um consuma tanto alimento quanto antes, e de qualidade tão cara quanto antes; ou então pode ser que se submetam a uma redução de alimentos, mas não em proporção ao aumento do número deles. Nessa hipótese, apesar da redução dos salários reais, a população aumentada necessitará de uma quantidade maior de alimentos. Mas, já que por hipótese a habilidade e o conhecimento profissional permaneceram estacionários, só se pode conseguir colher mais alimento recorrendo a terra pior, ou a métodos de lavoura que são menos produtivos em proporção ao gasto. Não faltará capital para essa ampliação da agricultura, pois, ainda que, pela hipótese, o capital existente não sofra aumento, pode-se retirar um montante suficiente de capital da atividade que antes atendia às outras necessidades, menos prementes, que os trabalhadores foram obrigados a cortar. Produzir-se-á, portanto, o suprimento adicional de alimentos, mas a um custo maior, e o valor de troca dos produtos agrícolas tem de subir. Poder-se-ia objetar que, pelo fato de os lucros terem aumentado, o custo extra para produzir alimentos pode ser coberto tirando dos lucros, sem aumentar o preço dos alimentos. Sem dúvida, assim poderia ser; mas não será, porque, se isso acontecesse, o agricultor seria colocado em uma posição inferior à de outros capitalistas. Por ser efeito da redução de salários, o aumento dos lucros é comum a todos os empregadores de mão-de-obra. O aumento de despesas, derivante da necessidade de um cultivo mais dispendioso, afeta apenas o agricultor. Ele precisa ser especialmente compensado por esse ônus especial, seja a taxa geral de lucro alta ou baixa. Ele não aceitará por tempo indefinido uma dedução de seu lucro, dedução esta à qual não estão sujeitos outros capitalistas. Ele só ampliará o cultivo agrícola, empatando novo capital, em troca de um retorno suficiente para proporcionar-lhe um lucro tão alto quanto se poderia obter com o mesmo capital em outros investimentos. Por isso, o valor de sua mercadoria aumentará, e aumentará proporcionalmente ao aumento do custo. Assim, o arrendatário será indenizado pelo ônus que é peculiar a ele, e participará também ele da taxa maior de lucro que é comum a todos os capitalistas. Com base em princípios que já nos são familiares, segue que, nessas circunstâncias, a renda da terra subirá. Toda terra tem condições de pagar, e no regime de livre concorrência pagará efetivamente, uma renda igual ao excedente de sua produção que ultrapassa o retorno obtido por um capital igual na terra pior, ou nas condições menos favoráveis. Por isso, sempre que a agricultura é obrigada a descer à terra pior, ou a processos mais onerosos, a renda aumenta. Esse aumento será duplo, pois, primeiramente, aumentará a renda em espécie, isto é, a renda em trigo: e em segundo lugar, já que o valor dos produtos agrícolas também aumentou, a renda, avaliada em mercadorias manufaturadas ou estrangeiras (a qual, coeteris paribus, é representada por renda em dinheiro) aumentará ainda mais. As etapas desse processo (se ainda for necessário traçá-las, depois do que já foi dito) são as seguintes. O trigo aumenta de preço, para compensar com o lucro normal o capital necessário para produzir mais trigo em terra pior, ou com processos mais caros. No que concerne a esse montante adicional de trigo, o preço maior não passa de um equivalente para a despesa adicional; mas o aumento do preço por estender-se a todo o montante de trigo produzido, proporciona um lucro extra para a totalidade do trigo produzido, excetuado o montante que foi produzido por último. Se o arrendatário está acostumado a produzir 100 quarters de trigo a 40 xelins, e agora se requerem 120 quarters, dos quais os últimos 20 não podem ser produzidos por menos de 45 xelins, ele obtém 5 xelins extras em todos os 120 quarters, e não somente sobre os últimos vinte. Portanto, ele tem 25 libras extras, além do lucro normal, e esse montante, em uma situação de livre concorrência, ele não terá condições de reter para si. Mas tampouco pode ser obrigado a entregar esse ganho extra ao consumidor, pois um preço inferior a 45 xelins seria incompatível com a produção dos últimos 20 quarters. Portanto, o preço permanecerá a 45 xelins, e as 25 libras serão transferidas, devido à concorrência, não ao consumidor, mas ao dono da terra. Por isso, um aumento das rendas da terra é uma consequência inevitável de um aumento da demanda dos produtos agrícolas, quando essa demanda não vier acompanhada de maiores facilidades para a produção dos mesmos. Eis uma verdade que podemos considerar como assegurada, depois dessa ilustração final. O novo elemento agora introduzido — maior demanda de alimentos —, além de ocasionar um aumento da renda, perturba ainda mais a distribuição da produção entre os capitalistas e os trabalhadores. O aumento da população diminuirá a remuneração da mão-de-obra, e se o custo desta diminuir tanto quanto sua remuneração real, os lucros aumentarão nesse montante integral. Se, porém, o aumento da população levar a um aumento da produção de alimentos, o qual não pode ser conseguido a não ser com um custo de produção mais elevado, o custo da mão-de-obra não diminuirá tanto quanto a remuneração real dela, e, portanto, os lucros não aumentarão tanto. É até possível que não aumentem em nada. Pode ser que os trabalhadores estivessem antes tão bem abastecidos, que tudo que perdem agora possa ser cortado de seus confortos, e pode ser que, nem por necessidade nem por opção, não sofram nenhuma redução da quantidade ou da qualidade de sua alimentação. Produzir o alimento para a população aumentada pode acarretar tal aumento de despesa que os salários, embora reduzidos quantitativamente, podem representar um custo tão elevado, podem ser o produto de tanto trabalho quanto anteriormente, e o capitalista pode não receber benefício algum. Nessa hipótese, a perda que incide sobre o trabalhador é em parte absorvida pela mão-de-obra adicional exigida para a última parte da produção agrícola; e o resto é ganho pelo dono da terra, o único que sempre se beneficia com um aumento da população. § 2. Invertamos agora a nossa hipótese: em vez de supormos que o capital permaneça estacionário e a população aumente, digamos que o capital aumente e a população permaneça estacionária, ficando inalteradas, como antes, as facilidades de produção, tanto naturais como adquiridas. Os salários reais da mão-de-obra; em vez de caírem, subirão; e já que o custo de produção das coisas consumidas pelo trabalhador não diminui, esse aumento dos salários implica aumento equivalente do custo da mão-de-obra e equivalente diminuição dos lucros. Formulando a mesma dedução em termos, diferentes: pelo fato de não ter aumentado o número de trabalhadores, e sendo a força produtiva de seu trabalho a mesma que antes, não há aumento de produção; por isso, o aumento dos salários tem de ocorrer às expensas do capitalista. Não é impossível que o custo da mão-de-obra aumente até uma razão maior do que a remuneração real dela. A melhoria da condição dos trabalhadores pode fazer aumentar a demanda de alimentos. Os trabalhadores podem ter estado anteriormente em uma situação tão precária, que não tinham alimentos suficientes, e agora podem vir a consumir mais: ou então podem optar por gastar seus recursos aumentados, em parte ou no todo, em tipos de alimento mais caros, que exijam mais trabalho e mais terra: podem, por exemplo, passar a consumir trigo, em lugar de aveia ou de batatas. Como de costume, essa ampliação do cultivo agrícola implica custo de produção maior e preço mais alto, de sorte que, além do aumento do custo de mão-de-obra, decorrente do aumento de sua remuneração, haverá outro aumento (e uma queda adicional dos lucros), devido ao custo mais alto das mercadorias em que consiste aquela remuneração. As mesmas causas gerarão um aumento da renda da terra. O que os capitalistas perdem, acima daquilo que os trabalhadores saem ganhando, é em parte transferido ao dono da terra, e em parte diluído no custo necessário para cultivar alimentos em terra pior ou com um processo menos produtivo. § 3. Tendo resolvido os dois casos simples — aumento da população, com capital estacionário, e aumento de capital, com população estacionária — estamos aparelhados para estudar o caso misto, no qual se associam os dois elementos de expansão, aumentando tanto a população quanto o capital. Se um dos dois elementos aumentar mais rapidamente que o outro, o caso se assemelha a um ou outro dos dois casos precedentes; suporemos, portanto, que os dois aumentem com a mesma rapidez, consistindo o teste de igualdade no fato de que cada trabalhador obtém as mesmas mercadorias que antes, e a mesma quantidade delas. Examinemos qual será o efeito desse duplo aumento sobre a renda e os lucros. Tendo a população aumentado sem nenhum deterioramento da condição do trabalhador, há evidentemente demanda maior de alimentos. Permanecendo, por hipótese, estacionárias as técnicas de produção, esse alimento tem de ser produzido a um custo maior. Para compensar esse custo maior dos alimentos adicionais, o preço dos produtos agrícolas tem de subir. Pelo fato de o aumento se estender ao montante total dos alimentos produzidos — ainda que o aumento da despesa incida somente sobre uma parte —, teremos um lucro extra muito maior, o qual, em virtude da concorrência, é transferido para o dono da terra. A renda aumentará, tanto em termos de quantidade de produtos quanto em termos de custo, enquanto os salários, por se supor que permaneçam quantitativamente inalterados, terão um custo maior. Pelo fato de o trabalhador obter o mesmo montante de gêneros de primeira necessidade, os salários em dinheiro aumentaram; e uma vez que o aumento é comum a todos os setores de produção, o capitalista não tem condições de ressarcir-se mudando de aplicação, e a perda tem de ser coberta pelos lucros. Vê-se, portanto, que a tendência de um aumento de capital e de população atribuída à renda da terra e às expensas dos próprios lucros, não libera todos os lucros, sendo uma parte absorvida por maiores despesas de produção, isto é, para contratar ou alimentar um número maior de trabalhadores, a fim de se obter determinado montante de produtos agrícolas. Naturalmente, por lucro deve-se entender a taxa de lucro, pois uma taxa de lucro mais baixa sobre um capital maior pode dar um lucro bruto maior, no sentido absoluto, embora menor em proporção à produção total. Essa tendência à queda dos lucros é de vez em quando neutralizada por aperfeiçoamentos na produção, provenham eles do aumento do conhecimento ou maior utilização do conhecimento que já se possui. Esse é o terceiro dos três elementos, cujos efeitos sobre a distribuição da produção intentamos investigar; e essa investigação será facilitada supondo, como no caso dos dois outros elementos que ele opera sozinho, de início. § 4. Suponhamos, pois, que o capital e a população permaneçam estacionários, e que ocorra um aperfeiçoamento repentino nas técnicas de produção: pela invenção de máquinas mais eficientes, ou de processos menos dispendiosos, ou se obter acesso a mercadorias mais baratas por meio do comércio exterior. O aperfeiçoamento pode ocorrer ou em artigos de primeira necessidade ou de comodidade que fazem parte do consumo habitual da classe trabalhadora, ou pode ser aplicável apenas a artigos de luxo consumidos exclusivamente por pessoas mais ricas. Contudo, são muito poucos os grandes aperfeiçoamentos industriais que se enquadram exclusivamente nesse último gênero. Os aperfeiçoamentos agrícolas, excetuados aqueles que se referem especialmente a algum dos produtos mais raros e mais peculiares, agem diretamente sobre os artigos principais comprados pelo trabalhador. A máquina a vapor e qualquer outra invenção que proporcione força manejável são aplicáveis a todas as coisas, e naturalmente àquelas consumidas pelo trabalhador. Mesmo o tear movido a energia e a fiandeira mecânica, ainda que aplicados aos tecidos mais delicados, são utilizáveis, em escala não menor, para os algodões e lãs grosseiros, usados pela classe trabalhadora. Todos os aperfeiçoamentos feitos nos meios de locomoção barateiam o transporte de artigos de primeira necessidade e também o de artigos de luxo. Raramente se abre um novo setor de comércio sem que, diretamente ou de alguma forma indireta, alguns dos artigos consumidos pela massa da população sejam produzidos ou importados com menos custo. Por isso, pode-se afirmar com segurança que os aperfeiçoamentos na produção geralmente tendem a baratear as mercadorias nas quais a classe trabalhadora gasta seus salários. Na medida em que as mercadorias afetadas por um aperfeiçoamento são aquelas que os trabalhadores não costumam consumir, o aperfeiçoamento não tem nenhum efeito no sentido de alterar a distribuição da produção. Sem dúvida, essas mercadorias específicas se tornam mais baratas; por serem produzidas com menor custo, baixam de valor e de preço, e todos os que as consomem — sejam eles donos de terra, capitalistas, ou trabalhadores qualificados e privilegiados — adquirem maior quantidade de bens a desfrutar. Mas a taxa de lucro não aumenta. Há um lucro bruto maior, computado em quantidade de mercadorias. Mas também o capital, se avaliado em termos dessas mercadorias, aumentou de valor. O lucro representa a mesma percentagem sobre o capital que existia anteriormente. Os capitalistas não são beneficiados como capitalistas, mas como consumidores. Os donos de terra e as classes privilegiadas de trabalhadores, se forem consumidores das mesmas mercadorias, partilham desse mesmo benefício. Diferente é o caso dos aperfeiçoamentos que reduzem o custo de produção dos artigos de primeira necessidade, ou de mercadorias que fazem habitualmente parte do consumo da grande massa dos trabalhadores. Por ser aqui um tanto complexo o jogo das diferentes forças, é necessário analisar esse caso com algum detalhamento. Como já observamos, há duas categorias de aperfeiçoamentos agrícolas. Alguns consistem em uma simples economia de mão-de-obra, possibilitando produzir determinada quantidade de alimentos com menos custo, mas não em uma área menor do que antes. Outros possibilitam a determinada área não somente a mesma produção com menos trabalho, mas uma produção maior, de maneira que, se não for necessária uma produção maior, pode-se dispensar parte da terra que era cultivada. Como a parte abandonada será a porção menos produtiva, o mercado será a partir daí regulado por um tipo de terra melhor do que aquela que anteriormente era a pior já cultivada. Para esclarecer com clareza o efeito do aperfeiçoamento, temos de supor que ele ocorra repentinamente, de modo a não deixar tempo, durante a introdução do mesmo, para qualquer aumento de capital ou de população. Seu primeiro efeito será uma queda do valor e do preço dos produtos agrícolas. Isso é uma consequência natural dos dois tipos de aperfeiçoamento, mas especialmente do segundo. Um aperfeiçoamento do primeiro tipo, que não faz aumentar a produção, não dispensa o uso de nenhuma porção da terra; a margem ou limite do cultivo (como o denomina o dr. Chalmers), permanece onde estava; a agricultura não retrocede, nem quanto à extensão de terra cultivada, nem quanto à qualidade do método, e o preço continua a ser regulado pela mesma terra e pelo mesmo capital que antes. Mas já que essa terra ou capital e todas as outras terras ou capitais que produzem alimentos agora passam a produzir com custo mais baixo, o preço dos alimentos cairá proporcionalmente. Se o aperfeiçoamento acarreta a economia de 1/10 das despesas de produção, o preço dos produtos cairá 1/10. Suponhamos, porém, que o aperfeiçoamento em questão seja do segundo tipo, possibilitando à terra produzir não somente a mesma quantidade de trigo com 1/10 a menos de trabalho, mas 1/10 a mais de trigo, com o mesmo trabalho. Aqui o efeito é ainda mais decisivo. Pode-se agora limitar o cultivo, podendo o mercado ser suprido por uma quantidade menor de terra. Mesmo que essa área menor tivesse a mesma qualidade média que a área maior, o preço cairia de 1/10, porque a mesma produção seria obtida com 1/10 a menos de trabalho. Mas já que a porção de terra abandonada será a porção menos fértil, o preço dos produtos, a partir daqui, será regulado por uma qualidade melhor de terra do que antes. Por isso, além da diminuição original de 1/10 no custo de produção, haverá outra diminuição. correspondente ao recuo da “margem” da agricultura a terras de fertilidade maior. Haverá, portanto, dupla queda do preço. Examinemos agora o efeito dos aperfeiçoamentos, repentinamente assim introduzidos, sobre a divisão da produção; em primeiro lugar, sobre a renda da terra. O primeiro dos dois tipos de aperfeiçoamento faria diminuir a renda, e o segundo a faria diminuir ainda mais. Suponhamos que a demanda de alimentos exija que se cultivem três qualidades de terra, que proporcionam, em área igual, e com gasto igual, 100, 80, e 60 alqueires de trigo. Em média, o preço do trigo será o estritamente suficiente para se poder cultivar a terceira qualidade de terra com o lucro normal. A primeira qualidade de terra, portanto, dará um lucro extra de 40 alqueires, e a segunda, de 20, sendo que esse lucro extra constitui a renda que vai para o dono da terra. Primeiro, digamos que se introduza um aperfeiçoamento que, sem possibilitar produzir mais trigo, possibilite produzir a mesma quantidade de trigo com 1/4 a menos de trabalho. O preço do trigo cairá de 1/4, e 80 alqueires de trigo serão vendidos pelo preço ao qual antes se vendiam 60. Mas continua a ser necessária a produção da terra que produz 60 alqueires, e pelo fato de as despesas sofrerem a mesma redução que o preço, essa terra continuará a ser cultivada com o lucro normal. Portanto, a primeira e a segunda qualidade de terra continuarão a dar um excedente de 40 e 20 alqueires, respectivamente, e a renda em trigo continuará a ser a mesma que antes. Entretanto, pelo fato de o preço do trigo ter baixado de 1/4, a mesma renda em trigo é equivalente a 1/4 a menos de dinheiro e de todas as outras mercadorias. Portanto, na medida em que o dono da terra gastar sua renda com produtos manufaturados ou estrangeiros, sua situação piorará de 1/4, em relação ao que era antes. Sua renda como dono da terra fica reduzida a 3/4 do montante desta; somente na qualidade de consumidor de trigo ele ficará na mesma situação que antes. Se o aperfeiçoamento for do segundo tipo, a renda da terra cairá em proporção ainda maior. Suponhamos que o montante de produção que o mercado exige possa ser produzido não somente com 1/4 a menos de trabalho, mas em uma área 1/4 menor. Se toda a terra já cultivada continuasse a ser cultivada, ela daria uma produção muito maior do que o necessário. Tem-se agora que abandonar uma quantidade de terra equivalente a 1/4 da produção; e já que a terceira qualidade de terra dava exatamente 1/4 (isto é, 60, de 240), esse tipo de terra deixará de ser cultivado. Os 240 alqueires podem agora ser produzidos apenas em terra de primeira e de segunda qualidade; a terra de primeira qualidade produzirá 100 alqueires mais 1/3, ou seja, 133 1/3 alqueires, e a de segunda, 80 alqueires mais 1/3, ou seja, 106 2/3 alqueires — no total, 240 alqueires. A segunda qualidade de terra, e não mais a terceira, passa a ser a pior, sendo ela que regulará o preço. Em vez de 60, é agora suficiente se 106 2/3 alqueires pagarem o capital, com o lucro normal. Em consequência, cairá o preço do trigo não à razão de 60 para 80, como no outro caso, mas à razão de 60 para 106 2/3. Mesmo isso é insuficiente para dar uma ideia do grau em que a renda será afetada. Será agora necessária toda a produção da segunda qualidade de terra para pagar as despesas da produção. Essa terra, por ser a pior que está sendo cultivada, não pagará renda. E a primeira qualidade de terra produzirá apenas a diferença entre 133 1/3 alqueires e 106 2/3, que são 26 2/3 alqueires, em vez de 40. Os donos de terra, coletivamente, terão perdido 33 1/3, de 60 alqueires, apenas com a renda para trigo, enquanto o valor e o preço do que sobra terá diminuído à razão de 60 para 106 2/3. É, pois, manifesto que o interesse do dono da terra é decididamente hostil à introdução repentina e generalizada de aperfeiçoamentos agrícolas. Essa afirmação tem sido qualificada de paradoxo; dando motivo para acusar seu primeiro propagador, Ricardo, de grande contumácia intelectual, para não dizer coisa pior. Não consigo ver em que consistiria o paradoxo: parece-me que a aberração está do lado dos que o atacam. Somente uma formulação tendenciosa da opinião de Ricardo a faz parecer absurda. Se a afirmação fosse que um dono de terra sai prejudicado com o aperfeiçoamento de sua propriedade, a tese certamente seria indefensável; o que se afirma é que ele sai prejudicado com o aperfeiçoamento das propriedades de outros, ainda que a dele próprio esteja incluída entre elas. Ninguém duvida de que ele ganharia muito com o aperfeiçoamento ou melhoria, se conseguisse reservá-la para si próprio, e juntar os dois benefícios, a saber, um aumento da produção da sua terra e um preço tão alto como antes. Mas se o aumento da produção ocorresse simultaneamente em todas as terras, o preço não seria tão alto como antes, e não há nada de irracional em supor que os donos de terra seriam prejudicados, e não beneficiados. Admite-se que tudo aquilo que reduz permanentemente o preço dos produtos diminui a renda; por outro lado, concorda inteiramente com os conceitos comuns supor que se, em virtude de se aumentar a produtividade da terra, fosse necessário cultivar menos terra, seu valor diminuiria, como aconteceria com o valor de outros artigos cuja procura tivesse diminuído. Não tenho nenhuma dificuldade em admitir que as rendas, na realidade, não baixaram, em virtude do progresso do aperfeiçoamento agrícola; mas por quê? Porque o aperfeiçoamento nunca foi na realidade repentino, mas sempre lento; nunca ele superou em muito — muitas vezes ficou até bem abaixo — o aumento do capital e da população — o qual tende tanto a aumentar a renda da terra, quanto o aperfeiçoamento tende a fazê-la baixar, e pode, como logo veremos, aumentá-la muito mais, mediante a margem adicional proporcionada por aprimoramentos na agricultura. Primeiro. porém, precisamos examinar de que maneira o barateamento repentino dos produtos agrícolas afetaria os lucros e os salários. No início, provavelmente os salários em dinheiro permaneceriam os mesmos que antes, e os trabalhadores aufeririam o benefício pleno do barateamento. Teriam condições de aumentar seu consumo, de alimentos ou de outros artigos, tendo o mesmo custo e uma quantidade maior. Até aqui, os lucros não seriam afetados. Mas a remuneração permanente dos trabalhadores depende essencialmente daquilo que denominamos padrão habitual deles — o conjunto das exigências às quais, como classe, insistem em satisfazer, antes de optarem por ter filhos. Se os gostos e as exigências deles forem marcados de forma persistente pela melhoria repentina de sua condição, o benefício para a classe será permanente. Mas a mesma causa que lhes possibilita comprar confortos e comodidades maiores com os mesmos salários lhes possibilitaria comprar o mesmo montante de confortos e comodidades com salários mais baixos; e agora pode existir uma população maior, sem reduzir os trabalhadores abaixo da condição à qual estão habituados. Até agora, este, e não outro, tem sido o uso que os trabalhadores comumente fazem de qualquer aumento de seus meios de subsistência: têm-no tratado simplesmente como conversível em alimentos para um número maior de filhos. É, portanto, provável que a população seria estimulada, e que, após o decurso de uma geração, os salários reais da mão-de-obra não seriam mais altos que antes do aperfeiçoamento, sendo a redução em parte causada por uma queda dos salários em dinheiro, e em parte pelo preço dos alimentos, cujo custo aumentaria, devido à demanda gerada pelo aumento da população. Na medida em que os salários em dinheiro caíssem, os lucros aumentariam, pois o capitalista obteria quantidade maior de mão-de-obra de eficiência igual, com o mesmo capital. Vemos, pois, que uma diminuição do custo de vida, provenha ela de aperfeiçoamentos agrícolas ou da importação de produtos estrangeiros, se não se melhorarem os hábitos e as exigências dos trabalhadores, costuma fazer baixar os salários e a renda em dinheiro, e faz aumentar a taxa geral de lucro. O que é verdade com relação a aperfeiçoamentos que barateiam a produção de alimentos é verdade também em relação à substituição de um tipo mais caro de alimento por um mais barato. A mesma terra proporciona à mesma mão-de-obra uma quantidade muito maior de alimento humano na forma de milho ou batatas, do que na forma de trigo. Se os trabalhadores abandonassem o pão, e só se alimentassem daqueles produtos mais baratos, adotando como sua compensação não uma quantidade maior de outros gêneros de consumo, mas casamentos mais cedo e famílias mais numerosas, o custo da mão-de-obra diminuiria muito, e se a mão-de-obra continuasse a manter a mesma eficiência, os lucros aumentariam, ao passo que a renda da terra baixaria muito, já que se poderia cultivar alimento para toda a população na metade ou em 1/3 da terra em que agora se semeia trigo. Ao mesmo tempo, sendo evidente que terra por demais estéril para ser cultivada para trigo poderia, em caso de necessidade, dar batatas em quantidade suficiente para sustentar a pouca mão-de-obra necessária para produzi-las, a lavoura poderia ao final descer mais, e a renda eventualmente poderia subir mais, em um sistema baseado em batatas e milho, do que em um sistema baseado em trigo — porque a terra seria capaz de alimentar uma população muito mais numerosa, antes de atingir o limite de sua capacidade. Se o aperfeiçoamento que supomos não ocorre na produção de alimentos, mas na de algum artigo manufaturado, e consumido pela classe trabalhadora, de início será o mesmo o efeito sobre os salários e o lucro; mas o efeito sobre a renda da terra será muito diferente. Ela não baixará; se o efeito último do aperfeiçoamento for um aumento da população, a renda até subirá — sendo que nesse último caso os lucros diminuirão. As razões são por demais evidentes para exigirem explicação. § 5. Consideramos, de um lado, a maneira como a distribuição da produção, em renda, lucros e salários, é afetada pelo aumento normal da população e do capital, e de outro lado consideramos como ela é afetada por aperfeiçoamentos na produção, e mais especialmente na agricultura. Constatamos que a primeira causa faz os lucros baixarem, fazendo subir a renda da terra e o custo da mão-de-obra, ao passo que a tendência dos aperfeiçoamentos agrícolas é fazer diminuir a renda da terra; e todos os aperfeiçoamentos que barateiam qualquer artigo de consumo do trabalhador tendem a diminuir o custo da mão-de-obra e a aumentar os lucros. Tendo assim determinado a tendência de cada causa em separado, é fácil determinar a tendência do curso efetivo das coisas, no qual os dois movimentos continuam simultaneamente, aumentando o capital e a população com constância razoável, enquanto os aperfeiçoamentos agrícolas são efetuados de tempos em tempos, e o conhecimento e a prática de métodos melhores se difundem gradualmente através da comunidade. Dados os hábitos e as exigências das classes trabalhadoras (que determinam seus salários reais), as rendas da terra, os lucros, e os salários em dinheiro, em determinado momento, são o resultado da composição dessas forças rivais. Se, durante algum período, o aperfeiçoamento avança mais rapidamente do que a população, a renda e os salários em dinheiro, durante esse período, tenderão a baixar, e os lucros tenderão a subir. Se a população aumentar mais rapidamente do que os aperfeiçoamentos agrícolas, os trabalhadores terão de aceitar uma redução da quantidade ou da qualidade de seus alimentos ou, se isso não acontecer, a renda e os salários em dinheiro aumentarão, progressivamente, e os lucros diminuirão. A habilidade e o conhecimento agrícolas aumentam de forma lenta, e sua difusão é ainda mais lenta. Além disso, invenções e descobertas ocorrem apenas ocasionalmente, enquanto o aumento da população e do capital são fatores contínuos. Por isso, raramente acontece que um aperfeiçoamento, mesmo durante um período curto, supere tanto a população e o capital, que de fato faça baixar a renda, ou faça aumentar a taxa de lucro. Há muitos países em que o crescimento da população e do capital não é rápido, mas nestes o aperfeiçoamento agrícola é ainda menos intenso. Quase em toda parte, a população acompanha de perto o aperfeiçoamento agrícola, e apaga seus efeitos com a mesma rapidez com que estes são produzidos. A razão pela qual o aperfeiçoamento agrícola raramente faz baixar a renda da terra é que ele raramente faz baixar o preço dos alimentos, impedindo apenas que estes se tornem mais caros, e raramente — se alguma vez acontece — um aperfeiçoamento agrícola leva a abandonar terras até ali cultivadas, senão que apenas possibilita o aproveitamento de terras cada vez piores para o atendimento de uma demanda crescente. Aquilo que às vezes se chama o estado natural de um país que é apenas cultivado pela metade, isto é, que a terra é altamente produtiva e os alimentos se obtêm em grande abundância com pouco trabalho, só é verdade com relação a regiões desocupadas, colonizadas por um povo civilizado. Nos Estados Unidos, a pior terra cultivada é de alta qualidade (com exceção, por vezes, da vizinhança imediata de mercados ou meios de transporte, onde uma má qualidade é compensada por uma boa localização), e mesmo que não se introduzissem outros aperfeiçoamentos na agricultura ou nos meios de transporte, a lavoura teria ainda muitos degraus para descer, antes de parar o aumento da população e do capital: todavia, há quinhentos anos, na Europa, embora tão pouco povoada em comparação à população atual, é provável que a pior terra cultivada, devido ao estágio primitivo da agricultura, fosse exatamente tão improdutiva quanto a pior terra hoje cultivada, e que a lavoura naquele tempo estivesse tão próxima do limite último da cultura rentável quanto hoje. O que os aperfeiçoamentos agrícolas realmente fizeram, a partir de então, foi isto: aumentando a capacidade de produção da terra em geral, possibilitaram à lavoura descer a uma qualidade natural muito inferior de terra do que a pior terra que, naquela época, poderia ter sido cultivada por um capitalista que visasse lucro; com isso, os aperfeiçoamentos agrícolas tornaram possível um aumento muito maior do capital e da população, fazendo recuar cada vez mais a barreira que impede o crescimento do capital e da população; nesse meio tempo, a população sempre exerce tanta pressão contra essa barreira, que nunca resta nenhuma margem visível para ela ocupar, já que cada polegada de terreno que os aperfeiçoamentos liberam para ela é imediatamente ocupada por suas colunas que avançam. Assim sendo, pode-se considerar que o aperfeiçoamento agrícola não é tanto uma força contrária que impede o aumento da população, mas antes um afrouxamento parcial das amarras que limitam o aumento populacional. Os efeitos produzidos sobre a divisão da produção, por um aumento da produção, sob a influência conjunta do aumento populacional e do capital, e dos aperfeiçoamentos na agricultura, são muito diferentes dos deduzidos dos casos hipotéticos anteriormente apresentados. Em particular, é mais substancialmente diferente o efeito sobre a renda da terra. Observamos que — embora um grande aperfeiçoamento agrícola, introduzido repentina e generalizadamente, de início inevitavelmente faça baixar a renda da terra de forma inevitável —, tais aperfeiçoamentos possibilitam à renda, no progresso da sociedade, subir gradualmente a um limite muito mais alto do que aquele que poderia de outra forma atingir, por possibilitarem cultivar em última análise uma qualidade de terra muito inferior. Mas no caso que estamos agora supondo, que corresponde mais ou menos ao curso normal das coisas, esse efeito último se torna um efeito imediato. Suponhamos que a lavoura tenha atingido, ou quase atingido, o limite máximo permitido pela condição das técnicas profissionais, e que, portanto, a renda da terra tenha atingido mais ou menos o ponto mais alto ao qual pode chegar em razão do aumento da população e do capital, com o montante de habilidade e conhecimento existente. Caso se introduzisse repentinamente um grande aperfeiçoamento agrícola, ele poderia fazer a renda retroceder muito, deixando-a recuperar seu terreno perdido em razão do aumento da população e do capital, e depois disso continuar a subir. Entretanto, pelo fato de tal aperfeiçoamento ocorrer muito gradualmente — como sempre acontece — ele não ocasiona nenhum retrocesso, nem da renda nem do cultivo; ele simplesmente possibilita à renda continuar a subir, e possibilita à lavoura continuar a estender-se a outras terras, muito depois que as duas de outra forma deveriam ter estacionado. O aperfeiçoamento levaria a isso, mesmo sem a necessidade de recorrer a uma qualidade pior de terra, simplesmente por possibilitar tirar uma produção maior das terras já em cultivo, sem aumento algum do custo proporcional. Se, mediante aperfeiçoamentos agrícolas, se pudesse tirar de todas as terras em cultivo, mesmo com o dobro de trabalho e de capital, uma produção dobrada (supondo que nesse meio tempo a população aumentasse de modo a exigir essa dupla quantidade), todas as rendas dobrariam. Para ilustrar esse ponto, retornemos ao exemplo numérico anteriormente citado. Três qualidades diferentes de terra produziam 100, 80 e 60 alqueires, respectivamente, com o mesmo gasto e sendo a área cultivada de extensão igual. Caso se conseguisse que a terra nº 1 produzisse 200 alqueires, a nº 2, 160, e a nº 3, 120, apenas dobrando o gasto, e portanto sem qualquer aumento do custo de produção, e se a população, por ter duplicado, exigisse toda essa quantidade acrescida de alimentos, a renda da terra nº 1 seria de 80 alqueires, em vez de 40, a da terra nº 2, de 40, em vez de 20, enquanto o preço e o valor por alqueire de produto seriam os mesmos que antes, de sorte que dobraria tanto a renda em trigo quanto a renda em dinheiro. É supérfluo destacar a diferença entre esse resultado e aquele que demonstramos ocorrer, se houvesse um aperfeiçoamento na produção que não fosse acompanhado de um aumento da demanda de alimentos. Por conseguinte, o aperfeiçoamento agrícola é sempre benéfico para o dono da terra, em última análise — e o é também de imediato, pela forma como esse aperfeiçoamento costuma ocorrer. Podemos acrescentar que, quando o aperfeiçoamento ocorre dessa forma, o dono da terra é o único que se beneficia. Quando a demanda de produtos acompanha plenamente o aumento de capacidade de produção, os alimentos não se tornam mais baratos, os trabalhadores não são beneficiados — nem mesmo temporariamente —, o custo da mão-de-obra não diminui nem os lucros aumentam. O que ocorre é uma produção global maior, uma quantidade maior de produtos dividida entre os trabalhadores, e um lucro bruto maior; entretanto, pelo fato de os salários serem repartidos entre uma população maior, e os lucros se distribuírem por um capital maior, nenhum trabalhador fica em condição melhor, nem capitalista algum aufere do mesmo montante de capital uma renda maior. O resultado dessa longa investigação pode ser resumido como segue. O progresso econômico de uma sociedade constituída de donos de terra, capitalistas e trabalhadores tende ao enriquecimento progressivo da classe dos proprietários de terra, enquanto o custo dos artigos de subsistência do trabalhador tende a crescer, no conjunto, e os lucros tendem a declinar. Os aperfeiçoamentos agrícolas representam uma força neutralizante dos dois últimos efeitos; mas o primeiro efeito, ainda que se possa conceber um caso em que ele seria temporariamente obstaculizado, em última análise é promovido em alto grau por esses aperfeiçoamentos: por outro lado, o aumento da população tende a transferir todos os benefícios decorrentes de um aperfeiçoamento agrícola exclusivamente aos donos de terra. No capítulo que segue, procurarei mostrar que outras consequências além destas, ou modificando estas, derivam do progresso industrial de uma sociedade assim constituída. CAPÍTULO IV A Tendência dos Lucros em Direção a um Mínimo § 1. A tendência dos lucros a diminuírem à medida que a sociedade progride, que foi apontada no capítulo precedente, foi cedo reconhecida por autores que escreveram sobre a indústria e o comércio; entretanto, por não se compreender, na época, a lei que rege os lucros, esse fenômeno foi atribuído a uma causa errada. Segundo Adam Smith, os lucros são determinados por aquilo que ele chamou concorrência do capital; concluiu ele que, quando o capital aumenta, também essa concorrência deve aumentar, e os lucros devem diminuir. Não é totalmente certo que tipo de concorrência Adam Smith tinha aqui em vista. Suas palavras, no capítulo sobre os lucros do capital (Wealth of Nations. Livro Primeiro), são as seguintes: “Quando os capitais de muitos comerciantes ricos são aplicados na mesma ocupação, a sua concorrência mútua tende naturalmente a reduzir seus lucros; e quando existe um aumento similar de capital em todas as diversas ocupações exercidas na mesma sociedade, a mesma concorrência tem de produzir o mesmo efeito em todos eles”. Essa passagem nos levaria a concluir que, na opinião de Adam Smith, a maneira como a concorrência do capital faz os lucros baixarem, é gerando uma redução dos preços, por ser geralmente essa a maneira como um maior investimento do capital, em qualquer ocupação específica, faz os lucros dessa ocupação bailarem. Mas se é isso que ele quis dizer, não levou em conta a circunstância de que a queda de preço, se bem que faça realmente baixar o lucro do produtor, se for limitada a uma só mercadoria, deixa de ter esse efeito assim que se estender a todas elas, já que, quando cai o preço de todas as coisas, nada baixou de preço, a não ser nominalmente, e mesmo se computadas em dinheiro, as despesas de cada produtor diminuíram tanto quanto seus retornos. Com efeito, a menos que a mão-de-obra seja a única mercadoria cujo preço em dinheiro não baixou, quando todas as demais baixaram, se assim for, o que na realidade ocorreu foi um aumento dos salários; e é isso, e não a queda dos preços, que fez baixarem os lucros do capital. Há outra coisa que escapou à atenção de Adam Smith: é que a suposta queda geral de preços, em razão do aumento da concorrência dos capitais, é algo impossível de acontecer. Os preços não são determinados somente pela concorrência dos vendedores, mas também pela dos compradores: pela procura e pela oferta. A procura que afeta os preços em dinheiro consiste em todo o dinheiro possuído pela comunidade e destinado a ser gasto em mercadorias, e enquanto não diminuir a proporção desse montante de dinheiro em relação às mercadorias, não existirá queda generalizada dos preços. Ora, por mais que possa crescer o capital, e dar origem a um aumento da produção de mercadorias, uma porção plena do capital será canalizada para a atividade de produzir e de importar dinheiro, e a quantidade de dinheiro aumentará em uma proporção igual à quantidade de mercadorias. Pois se não acontecesse isso, e se o dinheiro, portanto, estivesse constantemente adquirindo maior poder de compra — como supõe a teoria — os que o produzissem ou importassem obteriam lucros sempre maiores, e isso não poderia acontecer sem atrair mão-de-obra e capital para essa ocupação, desviando-os de outros empregos. Se realmente ocorresse uma queda geral de preços, e um aumento do valor do dinheiro, isso só poderia acontecer em consequência do aumento do custo de produção, em razão do esgotamento gradual das minas. Por isso, não há como sustentar, em teoria, que o aumento do capital produza ou tenda a produzir um declínio geral dos preços em dinheiro. Tampouco é verdade que se tenha manifestado de fato algum declínio geral de preços, em decorrência do aumento do capital. As únicas coisas que, com o progresso da sociedade, se constatou baixarem de preço são aquelas em que houve aperfeiçoamentos na produção maiores do que os que ocorreram na produção dos metais preciosos, como, por exemplo, todos os artigos que passam pelo processo de fiação e tecelagem. Outras coisas, em vez de caírem de preço, subiram, porque aumentou seu custo de produção, comparado com o do ouro e o da prata. Entre estas figuram todos os tipos de alimentos, comparando-se com um período muito mais longínquo da História. Portanto, a doutrina de que a concorrência do capital faz os lucros baixarem, por baixarem os preços, é incorreta de fato, bem como falsa em princípio. No entanto, não é certo que Adam Smith tenha realmente defendido a citada doutrina, pois seu modo de discorrer sobre o assunto é hesitante e indeciso, denotando a ausência de uma opinião definida e bem assimilada. Ocasionalmente, parece pensar que a maneira de a concorrência do capital fazer os lucros baixarem é pelo aumento dos salários. Por outro lado, quando fala da taxa de lucro nas colônias novas, parece estar bem perto de entender a teoria completa sobre a matéria. “A medida que a colônia cresce, os lucros do capital diminuem gradualmente. No momento em que as terras mais férteis e mais bem localizadas estiverem todas ocupadas, os cultivadores auferirão menos lucro das terras inferiores quanto ao solo e quanto à localização.” Se Adam Smith tivesse refletido por mais tempo sobre o assunto, e se tivesse sistematizado sua opinião, harmonizando entre si as várias intuições que colheu de pontos diversos sobre o assunto, teria percebido que é esta última a verdadeira causa da queda dos lucros que costuma seguir ao aumento do capital. § 2. O sr. Wakefield, em seu Comentário Sobre Adam Smith, e em seus importantes escritos sobre a colonização, consegue uma visão muito mais clara sobre o assunto, e chega, por meio de uma série substancialmente correta de deduções, a conclusões práticas que me parecem justas e importantes; mas não é igualmente feliz ao incorporar suas pesquisas valiosas aos resultados da pesquisa anterior, e ao conciliá-las com outras verdades. Algumas das teorias do dr. Chalmers, em seu capítulo “O Aumento e os Limites do Capital” e nos dois capítulos que seguem, coincidem, quanto à tendência e ao espírito, com as do sr. Wakefield; acontece que as ideias do dr. Chalmers, embora se apresentem com a mais atraente aparência de clareza — como é seu costume — na realidade, em se tratando deste assunto, são muito mais confusas do que as do próprio Adam Smith, e muito mais decididamente viciadas pelo conceito, muitas vezes refutado, de que a concorrência do capital faz baixar os preços em geral — pois o tema do dinheiro visivelmente não figura entre as partes da Economia Política que esse autor perspicaz e vigoroso estudou com cuidado. Em resumo, a explicação do sr. Wakefield sobre a queda dos lucros é a seguinte. A produção é limitada não somente pela quantidade do capital e da mão-de-obra, mas também pela extensão do “campo de aplicação”. O campo de aplicação para o capital é duplo: a terra do país e a capacidade, da parte de mercados estrangeiros, de comprar suas mercadorias manufaturadas. Em uma extensão limitada de terra, só se pode empregar com lucro uma quantidade limitada de capital. Quando a quantidade de capital se aproxima desse limite, o lucro cai, e quando esse limite é atingido, o lucro desaparece, só podendo haver novamente lucro se houver uma ampliação do campo de aplicação, seja pela aquisição de terra fértil, seja abrindo novos mercados em países estrangeiros, dos quais se possam comprar alimentos e matérias-primas, com os produtos do capital do país. Em minha opinião, essas proposições são substancialmente verdadeiras; nada tenho a objetar nem mesmo à fraseologia com que elas são expressas, considerada como apta para usos populares e práticos mais do que científicos. O erro que, em meu entender, parece poder-se imputar ao sr. Wakefield é o de ele supor que suas doutrinas contradizem os princípios da melhor escola de economistas políticos anteriores, quando na realidade são corolários daqueles princípios — embora se trate de corolários que talvez nem sempre fossem admitidos por esses próprios economistas políticos. A abordagem mais científica que encontrei sobre esse assunto é um ensaio sobre os efeitos das máquinas, publicado na Westminster Review de janeiro de 1826, pelo sr. William Ellis (Atualmente, tanto mais conhecido pelas suas atividades apostólicas, exercidas por meio da pena, do dinheiro e da sua pessoa, visando ao aperfeiçoamento da educação popular, e especialmente à introdução, nessa educação popular, dos elementos da Economia Política prática) — tratado este que sem dúvida era desconhecido do sr. Wakefield, mas que o havia precedido em várias de suas conclusões básicas, ainda que por um caminho diferente. Esse ensaio despertou pouca atenção, em parte por ter sido publicado anonimamente em um periódico, e em parte porque o conteúdo era muito avançado em relação ao estágio da Economia Política naquele tempo. Na visão apresentada pelo sr. Ellis sobre a matéria, as questões e dificuldades levantadas pelas pesquisas do sr. Wakefield e pelas do dr. Chalmers encontram uma solução em consonância com os princípios de Economia Política estabelecidos neste nosso tratado. § 3. Em cada tempo e lugar há alguma taxa específica de lucro, que é a mínima que induzirá as pessoas daquele país e tempo a acumular em poupanças, e a empregarem essas poupanças de maneira produtiva. Essa taxa mínima de lucro varia de acordo com as circunstâncias. Ela depende de dois elementos. Um deles é a força do desejo eficaz de acumular: a avaliação comparativa, feita pelas pessoas daquele lugar e tempo, sobre os juros futuros, quando comparados com os vigentes hoje. Esse elemento afeta sobretudo a propensão a poupar. O outro elemento, que afeta não tanto a propensão a poupar, quanto a propensão a empregar as poupanças produtivamente, é o grau de segurança do capital empatado em operações industriais. Sem dúvida, uma situação de insegurança geral afeta também a disposição de poupar. Um tesouro pode ser uma fonte de perigo adicional para seu presumido dono. Mas como ele pode também ser um meio poderoso para afastar perigos, os efeitos, sob esse aspecto, talvez possam ser considerados como contrabalançados. Entretanto, o fato de empregar como capital, e por conta própria, fundos que uma pessoa possa possuir, ou o de emprestá-los a outros para que os empreguem como capital, encerra sempre algum risco adicional, que vai além do incorrido quando se guardam esses fundos em custódia própria. Esse risco extra é grande na mesma proporção em que é insegura a condição geral da sociedade: ele pode ser equivalente a 20, 30 ou 50%, ou a não mais do que 1 ou 2%; em qualquer hipótese, porém, alguma percentagem de risco sempre deve existir; e a expectativa de lucro deve ser suficiente para compensar essa percentagem de risco. Haveria motivações adequadas para certo montante de poupança, mesmo que o capital não desse nenhum lucro. Haveria um estímulo para guardar, em tempos favoráveis, uma provisão para tempos precários; para se reservar alguma coisa para casos de doença e invalidez, ou como meio de lazer e autonomia na última quadra da vida, ou como uma ajuda para os filhos que iniciam na vida. Mas as poupanças que visam apenas a esses objetivos não têm muita tendência a aumentar o montante de capital permanentemente existente. Essas motivações só dispõem as pessoas a economizarem da vida aquilo que se propõem consumir em outro, ou aquilo que será consumido por seus filhos antes de poderem cuidar de si mesmos. As poupanças que geram um acréscimo do capital nacional costumam provir do desejo das pessoas, de melhorarem o que se chama sua condição de vida, ou de fazer uma provisão para os filhos ou para outras pessoas, independentemente da iniciativa destes. Ora, para a força dessas inclinações, faz uma diferença muito grande quanto do objetivo desejado se pode conseguir com determinado montante e por um período de auto renúncia, o que por sua vez depende da taxa de lucro. E em todo país existe alguma taxa de lucro abaixo da qual as pessoas em geral não acharão motivação suficiente para pouparem com o simples objetivo de se tornarem mais ricas, ou de deixarem outros em condições melhores do que elas mesmas. Por isso, qualquer acumulação que faça aumentar o capital geral exige como sua condição necessária determinada taxa de lucro — uma taxa que uma pessoa média considerará ser um equivalente pela abstenção, com o acréscimo de uma segurança suficiente contra o risco. Sempre há algumas pessoas nas quais o desejo eficaz de acumular está acima da média, e para as quais basta menos do que essa taxa de lucro para induzi-las a poupar; mas estas apenas suprem o lugar de outras, cujo gosto por gastos e comodidades vai além da média, e as quais em vez de pouparem talvez até dissipem o que receberam. Já observei que essa taxa mínima de lucro, abaixo da qual não pode haver aumento do capital, é mais baixa em alguns estágios sociais do que em outros, posso acrescentar, a esta altura, que o tipo de progresso social, característico da nossa civilização atual, tende a diminuir essa taxa. Em primeiro lugar, um dos efeitos conhecidos desse progresso é um aumento da segurança geral. Há cada vez menos motivos de se temer a destruição por guerras, e a espoliação por violência privada ou pública; por outro lado, os aperfeiçoamentos que se podem esperar no setor da educação e da administração da justiça, ou, na falta destes, uma consideração maior pela opinião pública, proporcionam proteção crescente contra a fraude e a má administração. Por isso, os riscos que acompanham o investimento de poupanças em aplicações produtivas exigem uma taxa menor de lucro para compensá-los, do que exigia há um século. e futuramente exigirá ainda menos do que hoje. Em segundo lugar, outra das consequências da civilização consiste em a humanidade ficar menos escravizada ao momento presente, e a direcionar seus desejos e objetivos para frente, para um futuro distante. Esse aumento de previdência é um resultado natural da maior segurança com a qual se pode olhar para o futuro, sendo, além disso, favorecido pela maior parte das influências que uma vida industrial exerce sobre as emoções e as inclinações da natureza humana. Na proporção em que a vida encerra menos vicissitudes, os hábitos se tornam mais fixos, e na proporção em que são cada vez menores as vantagens que se pode esperar conseguir a não ser pela longa perseverança, a humanidade cresce em sua disposição de sacrificar a comodidade presente em função de objetivos futuros. Essa maior capacidade de previdência e de autocontrole certamente pode encontrar outras coisas nas quais pode ser exercida, afora o aumento da riqueza, e logo mais faremos algumas considerações relacionadas a esse ponto. Todavia, o tipo atual de progresso social tende decididamente, ainda que talvez não a aumentar o desejo de acumular, em todo caso a enfraquecer os obstáculos que o impedem, e a diminuir o montante de lucro que as pessoas exigem absolutamente como um estímulo para poupar e acumular. Por essas duas razões — a diminuição do risco e o aumento da previdência — um lucro ou juros de 3 ou 4% é uma motivação tão suficiente para o aumento de capital na Inglaterra nos dias atuais quanto 30 ou 40% no Império da Birmânia, ou na própria Inglaterra, no tempo do rei João. Na Holanda, durante o século passado, um retorno de 2%, com a garantia do Governo, era compatível com uma não redução do capital, se não com um aumento dele. Contudo, embora a taxa mínima de lucro esteja assim sujeita a variações, e embora seja em qualquer momento impossível especificar exatamente qual é ela, essa taxa mínima sempre existe; e seja ela alta ou baixa, uma vez que for atingida, não pode ocorrer ulterior aumento de capital, enquanto ela persistir. Nesse ponto o país atingiu aquilo que os economistas políticos chamam de condição estacionária. § 4. Chegamos agora à proposição fundamental que este capítulo tenciona inculcar. Quando um país durante muito tempo possui uma produção grande, e uma renda líquida grande da qual pode fazer poupanças, e quando, por conseguinte, durante muito tempo existiram os recursos para aumentar anualmente muito o capital (na hipótese de o país não dispor, como a América, de uma grande reserva de terra fértil ainda não utilizada), uma das características de tal país é a taxa de lucro situada a uma distância muito pequena do mínimo, e portanto o país está a poucos passos da condição estacionária. Com isso não tenciono dizer que, em qualquer um dos países da Europa, esse estado será provavelmente atingido logo, de forma efetiva, ou que o capital já não proporciona um lucro consideravelmente maior do que aquele que é suficiente para induzir o povo desses países a economizar e a acumular. O que quero dizer é que faltaria ainda pouco tempo para reduzir os lucros ao mínimo, se o capital continuasse a aumentar à sua taxa atual, e nesse ínterim não ocorressem circunstâncias tendentes a elevar a taxa de lucro. A expansão do capital logo alcançaria o seu limite último, se o próprio limite não abrisse continuamente mais espaço e não o deixasse aberto. Na Inglaterra, a taxa normal de juros sobre títulos do Governo, nos quais o risco é quase nulo, pode ser estimada em pouco mais de 3%; consequentemente; em todos os outros investimentos, os juros ou o lucro com os quais se conta (excluindo aquilo que é propriamente uma remuneração por talento ou iniciativa) devem ser superiores a esse valor, no montante equivalente ao grau de risco ao qual se acredita estar exposto o capital. Digamos que, na Inglaterra, mesmo um lucro líquido tão baixo como 1% — excluindo o seguro contra risco — constituísse estímulo suficiente para poupar, mas que abaixo dessa taxa não houvesse estímulo suficiente para isso. O que afirmo é que o simples fato de continuar o atual aumento anual do capital, se não ocorresse nenhuma circunstância para neutralizar o seu efeito, bastaria, em poucos anos, para reduzir a taxa de lucro líquido a 1%. Para preencher as condições dessa hipótese, temos de supor uma cessação total da exportação de capital para investimentos no exterior. Já não se enviaria capital para o exterior, para ferrovias ou para empréstimos; os emigrantes já não levariam capital consigo, nem para as colônias nem para outros países; os banqueiros ou os comerciantes já não fariam novos empréstimos nem concederiam novos créditos a seus correspondentes no exterior. Temos de supor também que já não haja empréstimos novos para gastos improdutivos, nem da parte do governo, nem sob hipoteca, nem de outra forma; temos igualmente que supor que já não haja nada desse desperdício de capital que atualmente ocorre, pelo fracasso de empreendimentos que as pessoas são tentadas a fazer, na expectativa de uma renda maior do que aquela que se pode conseguir, por caminhos seguros, com a atual taxa de lucro, habitualmente baixa. Temos de supor que todas as poupanças da comunidade sejam anualmente investidas em aplicações realmente produtivas, dentro do próprio país, e que não se abram novas possibilidades, com invenções industriais, ou com uma substituição mais ampla de processos inferiores pelos melhores processos conhecidos. Poucos hesitariam em dizer que haveria grande dificuldade em encontrar aplicação remunerativa, cada ano, para tanto capital novo, e a maioria concluiria que ocorreria o que se costumava chamar de saturação geral: que as mercadorias seriam produzidas e permaneceriam estocadas, ou só seriam vendidas com perda. No entanto, o estudo completo que já fizemos da questão demonstrou que não seria assim que se experimentaria esse inconveniente. A dificuldade não consistiria em alguma falta de mercado. Se o novo capital fosse devidamente distribuído entre muitos tipos de aplicação ele suscitaria uma demanda das mercadorias que produzisse, e não haveria razão para alguma parte dessa produção permanecer estocada por mais tempo do que anteriormente. Uma coisa, porém, seria não somente difícil, mas impossível: empregar esse capital sem resignar-se a uma rápida redução da taxa de lucro. Ao aumentar o capital, ou a população também aumentaria, ou então não aumentaria. Se não aumentasse, os salários subiriam, e entre o mesmo número de trabalhadores se passaria a distribuir um capital maior em salários. Por não aumentar o quantitativo da mão-de-obra, em relação ao que era, por não haver também nenhum aperfeiçoamento para tornar a mão-de-obra mais eficiente, não haveria nenhum aumento da produção; e uma vez que o capital, por mais que aumentasse, obteria apenas o mesmo retorno bruto, todas as poupanças de cada ano seriam, exatamente no mesmo montante, subtraídas dos lucros do ano seguinte e de cada ano subsequente. É quase supérfluo dizer que, em tais circunstâncias, os lucros muito cedo baixariam àquele ponto em que cessaria o ulterior aumento do capital. Um aumento do capital, muito mais rápido que o aumento da população, logo tem de atingir seu limite extremo, a menos que seja acompanhado de maior eficiência da mão-de-obra (por meio de invenções e descobertas, ou de uma formação mental e física mais aprimorada), ou a menos que se tornem produtivas algumas das pessoas atualmente ociosas, ou alguns dos trabalhadores improdutivos. Se a população aumentasse juntamente com o capital, e na mesma proporção, a queda dos lucros continuaria a ser inevitável. Aumento de população implica maior demanda de produtos agrícolas. Na ausência de aperfeiçoamentos industriais, essa demanda só pode ser atendida a um custo de produção maior — ou cultivando terra pior, ou mediante um cultivo mais refinado e mais dispendioso da terra já em cultivo. Em consequência, sofre aumento o custo dos gêneros de subsistência do trabalhador e, a menos que o trabalhador se sujeite a um deterioramento de sua condição de vida, os lucros têm de cair. Em um país antigo, como a Inglaterra, se, além de supormos suspenso todo aperfeiçoamento na agricultura interna, supusermos não haver maior produção em países estrangeiros, para o mercado inglês, a queda dos lucros seria muito rápida. Se estivessem fechadas ambas as vias para aumentar o suprimento de alimentos, e a população continuasse a crescer — como se afirma estar acontecendo, à taxa de 1000 habitantes por dia — logo se passaria a cultivar toda terra inculta que comporte cultivo no atual estágio de conhecimento, e o custo de produção dos alimentos e seu preço aumentariam tanto, que, se os trabalhadores recebessem os salários em dinheiro aumentados, necessários para compensá-los pelas despesas maiores que teriam, os lucros muito cedo atingiriam o mínimo. A queda dos lucros seria retardada se os salários em dinheiro não aumentassem, ou aumentassem em grau menor; acontece que é muito pequena a margem que se pode ganhar com um deterioramento da condição de vida dos trabalhadores: em geral, eles não podem suportar muita redução, e quando podem, possuem também um padrão mais alto de exigências e não a querem. No conjunto, portanto, podemos presumir que em um país como a Inglaterra, se continuasse o atual montante anual de poupanças, sem nenhuma das circunstâncias neutralizantes que atualmente retêm a influência natural que essas poupanças têm no sentido de reduzir o lucro, a taxa de lucro rapidamente atingiria o mínimo, e por ora cessaria todo ulterior acúmulo de capital. § 5. Quais são, então, essas circunstâncias neutralizantes que, no atual estado de coisas, travam uma luta mais ou menos de igual para igual contra a tendência dos lucros a baixar, e impedem que as grandes poupanças anuais que ocorrem na Inglaterra conduzam a taxa de lucro para muito mais perto daquele ponto mínimo, para o qual ela sempre está tendendo, e que tão prontamente atingiria se fosse abandonada a si mesma? Os fatores de resistência são de vários tipos. O primeiro deles é um fator tão simples e tão manifesto que alguns economistas políticos, especialmente o sr. de Sismondi e o dr. Chalmers, lhe deram tanta atenção, que quase chegaram a excluir os demais. É o desperdício de capital, em períodos de over-trading (compra de mercadorias além das necessidades do mercado, comprometendo o capital com transações arriscadas) e de especulação precipitada, e nas reviravoltas comerciais que sempre vêm depois de tais períodos. É verdade que grande parte daquilo que se perde em tais períodos não é destruída, mas simplesmente transferida — como as perdas de um jogador — a especuladores mais bem-sucedidos. Mas, mesmo dessas simples transferências, grande parte sempre vai para estrangeiros, devido à compra precipitada de quantidades incomuns de mercadorias estrangeiras a preços altos. E muita coisa é também absolutamente desperdiçada. Abrem-se minas, constroem-se ferrovias ou pontes, e começam-se muitas outras obras de lucro incerto, empatando-se nesses empreendimentos muito capital que ou não traz retorno algum, ou então traz um retorno inadequado para o investimento feito. Constroem-se fábricas e implantam-se máquinas além das necessidades do mercado ou daquilo que este tem condições de empregar. Mesmo que as novas fábricas e máquinas sejam mantidas em atividade, o capital está empatado; ele foi convertido de capital circulante em capital fixo, e deixou de ter qualquer influência sobre os salários ou lucros. Além disso, há grande consumo improdutivo de capital durante a estagnação que segue a um período de over-trading geral. Fecham-se estabelecimentos, ou estes são mantidos em atividade sem lucro algum, trabalhadores perdem o emprego, e muitas pessoas de todos os níveis, que por ficarem privadas de sua renda são obrigadas a se sustentarem com as suas poupanças, se encontram, depois de ter passado a crise, em uma condição de empobrecimento maior ou menor. Esses são os efeitos de uma reviravolta comercial; e se essas reviravoltas são mais ou menos periódicas, isto é uma consequência necessária dessa tendência dos lucros a baixar, que estamos estudando. Depois de passarem alguns anos sem crise, acumulou-se tanto capital adicional, que já não é possível investi-lo com o lucro habitual; todos os títulos públicos adquirem preço alto, a taxa de juros, com a melhor garantia comercial, cai muito, e é geral entre as pessoas de negócios a queixa de que não se consegue mais ganhar dinheiro. Por acaso isso não demonstra com que rapidez o lucro atingiria o mínimo, e se atingiria a condição estacionária do capital, se essas acumulações continuassem sem nenhum princípio neutralizador? Mas o valor menor que se dá a todos os ganhos seguros inclina pessoas a dar ouvido pronto a quaisquer projetos que apresentem, embora com o risco de perda, a expectativa de uma taxa de lucro mais alta; e vêm as especulações, as quais, com reviravoltas subsequentes, destroem, ou transferem a estrangeiros, uma soma considerável de capital, produzem subida temporária dos juros e do lucro, dão lugar a novas acumulações, recomeçando o mesmo rodízio. Indubitavelmente, essa é uma causa considerável que impede os lucros de descerem ao ponto mínimo, varrendo embora, de tempos em tempos, parte da massa de capital acumulado que força o lucro a baixar. Mas não é essa — ao contrário do que se poderia inferir do modo de falar de alguns autores — a causa principal. Se fosse, o capital do país não aumentaria; e no entanto, na Inglaterra ele aumenta muito, e rapidamente. Isso é demonstrado pelo aumento de produtividade de quase todos os impostos, pelo crescimento contínuo de todos os sinais de riqueza nacional, e pelo rápido aumento da população, enquanto a condição dos trabalhadores certamente não está declinando, mas, no conjunto, melhorando. Esses fatos provam que cada reviravolta comercial, por mais desastrosa que seja, está muito longe de destruir todo o capital que foi adicionado às acumulações do país desde a última reviravolta que o precedeu, e que, invariavelmente, se encontra ou se cria lugar para o emprego de um capital constantemente em aumento, sem obrigar os lucros a descerem a uma taxa mais baixa. § 6. Isso nos leva ao segundo dos fatores neutralizantes, a saber, os aperfeiçoamentos na produção. Estes têm evidentemente o efeito de ampliar aquilo que o sr. Wakefield denomina campo de aplicação, isto é, possibilitam acumular e empregar um montante maior de capital, sem fazer baixar a taxa de lucro, sempre sob a condição de que não façam subir de nível, em medida proporcional, os hábitos e as exigências do trabalhador. Se a classe trabalhadora ganhar a plena vantagem dos preços mais baixos, em outras palavras, se os salários em dinheiro não baixarem, os lucros não aumentam, nem a queda deles será retardada. Mas se os trabalhadores não conseguem melhorar sua condição, e dessa maneira recaírem em sua condição anterior, os lucros subirão. Todas as invenções que barateiam qualquer uma das coisas consumidas pelos trabalhadores, se as exigências deles não aumentarem em grau equivalente, mais cedo ou mais tarde fazem baixar os salários em dinheiro, e por fazerem isso, possibilitam acumular e empregar um capital maior, antes de os lucros retrocederem ao que eram anteriormente. Os aperfeiçoamentos que só afetam coisas consumidas exclusivamente pelas classes mais ricas não têm exatamente os mesmos efeitos. O barateamento do tecido rendado ou do veludo não tem efeito algum na redução do custo da mão-de-obra, e não há como mostrar de que maneira ele possa fazer subir a taxa de lucro; de molde a criar lugar para um capital maior antes de se atingir o mínimo. No entanto, ele produz um efeito que é virtualmente equivalente: faz baixar, ou tende a fazer baixar o próprio mínimo. Em primeiro lugar, o barateamento de artigos de consumo estimula a inclinação a poupar, proporcionando a todos os consumidores uma sobra que podem guardar, sem abandonarem seu padrão de vida costumeiro; e a menos que anteriormente estivessem sofrendo privações efetivas, pouca abstinência será necessária para economizar ao menos parte dessa sobra. Em segundo lugar, tudo aquilo que possibilita às pessoas viverem igualmente bem com uma renda menor, os inclina a guardarem capital por uma taxa de lucro mais baixa. Se as pessoas têm condição de viver com uma renda própria de 500 libras por ano, da mesma forma que anteriormente conseguiam viver com uma de 1000 libras, algumas pessoas, que teriam desanimado da perspectiva mais longínqua de conseguir a renda independente de 1000 libras, serão induzidas a poupar, na esperança de obter a de 500 libras. Por conseguinte, todos os aperfeiçoamentos introduzidos na produção de quase todas as mercadorias tendem em algum grau a aumentar o intervalo que tem de transcorrer antes de se atingir a condição estacionária; todavia, esse efeito é muito maior no caso dos aperfeiçoamentos que afetam os artigos consumidos pelo trabalhador, pois esses aperfeiçoamentos conduzem a esse efeito de duas maneiras: induzem as pessoas a acumularem em função de um lucro menor, e também fazem subir a própria taxa de lucro. § 7. Tem efeito equivalente aos aperfeiçoamentos na produção a aquisição de qualquer nova capacidade de comprar mercadorias baratas do exterior. Se os gêneros de primeira necessidade baixam de preço, não faz nenhuma diferença para os lucros e os salários se esse barateamento se obtém por aperfeiçoamentos efetuados no país, ou por importação do exterior. A menos que o trabalhador fique com o benefício total desse barateamento, e que o mantenha mediante uma melhoria de seu padrão habitual, o custo da mão-de-obra baixa e a taxa de lucro sobe. Enquanto se puder continuar a importar alimentos para uma população em crescimento sem diminuir o barateamento, impede-se a redução do lucro em virtude do aumento da população e do capital, e a acumulação pode continuar, sem fazer com que a taxa de lucro se aproxime mais do mínimo. E por esse motivo, alguns acreditam que a revogação das leis do trigo abriu para o país uma longa era de aumento rápido do capital, com uma taxa de lucro que não diminui. Antes de investigar se essa expectativa é razoável, temos de fazer uma observação, que diverge muito de conceitos comumente aceitos. O comércio exterior não aumenta necessariamente o campo de aplicação para o capital. Não é a simples abertura de um mercado para os produtos de um país que tende a fazer subir a taxa de lucros. Se em troca dos produtos exportados não se comprasse nada a não ser os artigos de luxo dos ricos, não diminuiriam os gastos de nenhum capitalista, os lucros de forma alguma aumentariam, nem se criaria mais lugar para a acumulação de capital sem se sujeitar a uma redução dos lucros: e caso se retardasse o alcance da condição estacionária, seria somente porque o custo menor ao qual se pode desfrutar de certo grau de luxo poderia induzir pessoas, nessa expectativa, a fazerem novas poupanças por um lucro mais baixo do que estavam dispostas a fazê-lo anteriormente. Quando o comércio exterior cria lugar para mais capital, ao mesmo lucro, é porque possibilita ao trabalhador comprar a custo menor os artigos de primeira necessidade, ou os artigos habituais de seu consumo. Ele pode fazer isso de dois modos: pela importação dessas mercadorias ou dos meios e recursos para produzi-las. Ferro barato tem, em certa medida, o mesmo efeito sobre os lucros e sobre o custo da mão-de-obra que trigo barato, porque com o ferro barato se fazem ferramentas baratas para a agricultura e máquinas baratas para fabricar tecidos. Entretanto, um comércio exterior que, nem diretamente nem por meio de alguma consequência indireta, não fizer baixar o preço de alguma coisa consumida pelos trabalhadores, não tende a fazer subir os lucros ou a retardar sua queda, da mesma forma como não tenderia a isso uma invenção ou descoberta no mesmo caso: ele simplesmente coloca a produção de bens para mercados estrangeiros no lugar da produção interna de artigos de luxo, e não faz com que a aplicação de capital seja maior ou menor do que antes. É verdade que dificilmente há algum comércio de exportação que, em um país que já importa gêneros de primeira necessidade ou matérias-primas, se enquadre nessas condições, pois cada aumento de exportações possibilita ao país obter todas as suas importações por preços mais baixos que antes. Um país que, como é atualmente o caso da Inglaterra, admite a importação livre, de todas as partes do mundo, de alimentos de todos os tipos, bem como de todos os artigos de primeira necessidade e de matérias-primas para produzi-los, já não depende da fertilidade de seu próprio solo para manter sua taxa de lucro, mas da do solo do mundo todo. Resta ver até que ponto se pode contar com esse recurso para resistir durante um período muito longo à tendência dos lucros a declinarem à medida que o capital aumenta. Naturalmente, tem-se de supor que, com o aumento do capital, cresça também a população; pois se a população não aumentasse, o consequente aumento dos salários faria os lucros baixarem, a despeito de qualquer barateamento dos alimentos. Suponhamos, então, que a população da Grã-Bretanha continue a crescer à sua taxa atual, e exija cada ano um suprimento de alimentos importados que vá consideravelmente além daquele do ano anterior. Esse aumento anual de alimentos, exigidos dos países exportadores, só pode ser obtido por meio de grandes aperfeiçoamentos na agricultura desses países ou por meio da aplicação de um grande capital adicional para o cultivo de alimentos. O primeiro fator provavelmente será um processo muito lento, devido ao primitivismo e à ignorância das classes agrícolas que vivem nos países europeus exportadores de alimentos, ao passo que as colônias britânicas e os Estados Unidos já estão de posse da maior parte dos aperfeiçoamentos feitos até agora, na medida em que isso é compatível com suas circunstâncias. Resta, como recurso, a ampliação da lavoura. E, quanto a isso, cabe observar que, na maioria dos casos, ainda não existe o capital que possibilitaria qualquer ampliação da lavoura. Na Polônia, Rússia, Hungria e Espanha, o aumento de capital é extremamente lento. Na América ele é rápido, mas não mais do que o aumento populacional. O fundo principal atualmente disponível para fornecer à Inglaterra uma quantidade anual maior de alimentos é constituído por aquela porção das poupanças anuais da América que até agora foi aplicada para aumentar o número de estabelecimentos manufatureiros dos Estados Unidos, e que o livre comércio de trigo pode possivelmente desviar dessa finalidade, para cultivar alimentos para o nosso mercado. A menos que a agricultura registre grandes aperfeiçoamentos, não se pode esperar que essa fonte de suprimento limitada acompanhe a demanda crescente de uma população que aumenta tão rapidamente como a da Grã-Bretanha; e se a nossa população e o nosso capital continuarem a crescer com a rapidez atual, a única maneira de se continuar a ter alimentos baratos para essa população é enviar o capital do país para o exterior, para lá produzir tais alimentos. § 8. Isso nos leva ao último dos fatores neutralizantes que sustam a tendência dos lucros a baixarem, em um país cujo capital aumenta mais rapidamente do que o de seus vizinhos, e cujos lucros, portanto, estão mais perto do mínimo. É o fluxo constante de capital para colônias ou países estrangeiros, à procura de lucros superiores aos que se podem conseguir no país. Acredito que durante muitos anos foi esta uma das causas principais que sustaram o declínio dos lucros na Inglaterra. Essa causa tem dois efeitos. Em primeiro lugar, faz o que teria sido feito por um incêndio, uma inundação, ou uma crise comercial: leva embora parte do aumento de capital, responsável ela redução dos lucros. Em segundo lugar, o capital assim levado não é perdido, mas sobretudo empregado na fundação de colônias — que se tornam grandes exportadores de produtos agrícolas baratos — ou na ampliação e talvez no aperfeiçoamento da agricultura de comunidades mais antigas. É sobretudo na emigração de capital inglês que temos de depositar esperança, se quisermos manter um suprimento de alimentos baratos e de matérias-primas baratas para a fabricação de tecidos, suprimento este proporcional ao aumento da nossa população; crer-se-á assim a possibilidade de um capital crescente encontrar aplicação no país, sem redução do lucro, para produzir artigos manufaturados com os quais se poderá pagar esse suprimento de produtos em estado bruto. Assim, a exportação de capital é um agente de grande eficácia para ampliar o campo de aplicação para o capital que sobra; pode-se verdadeiramente afirmar que, até certo ponto, quanto mais capital enviarmos para fora, tanto mais capital possuiremos e seremos capazes de segurar em casa. Em países que estão mais avançados em indústria e população, e, portanto, apresentam uma taxa de lucro mais baixa do que outros, existe sempre, muito antes de se atingir o mínimo efetivo, um mínimo prático, isto é, quando os lucros caíram tanto abaixo do que são alhures, que, se caíssem mais, todas as acumulações ulteriores migrariam para o exterior. No atual estágio do mundo, quando houver necessidade, em qualquer país rico e progressista, de levar em consideração, para efeitos práticos, o lucro mínimo, só se precisa levar em conta esse mínimo prático. Enquanto houver países velhos em que o capital aumenta rapidamente, e países jovem em que o lucro ainda é alto, os lucros nos países velhos não baixarão para a taxa que haveria de sustar a acumulação de capital; a queda da taxa de lucro é sustada no ponto em que se exporta capital para o exterior. Todavia, é somente por meio de aperfeiçoamentos na produção, e mesmo na produção de artigos consumidos por trabalhadores, que se evita que o capital de um país como a Inglaterra atinja rapidamente aquele grau de redução de lucro que faria com que todas as ulteriores poupanças saíssem do país para encontrar aplicação nas colônias, ou em países estrangeiros. CAPÍTULO V Consequência da Tendência dos Lucros em Direção a um Mínimo § 1. A teoria do efeito da acumulação de capital sobre os lucros, estabelecida no capítulo anterior, altera substancialmente muitas das conclusões práticas que de outra forma se poderia supor seguirem dos princípios gerais da Economia Política, e que foram de fato, por muito tempo, admitidas como verdadeiras pelas mais altas autoridades na matéria. A citada teoria necessariamente reduz de muito, ou melhor, destrói totalmente, em países em que os lucros são baixos, a importância imensa que se costumava atribuir, por parte dos economistas políticos, aos efeitos que um evento ou uma medida do governo poderia ter, no sentido de aumentar o capital do país ou de reduzi-lo. Acabamos de ver que os lucros baixos constituem uma prova de que o espírito de acumulação é tão intenso e de que o aumento do capital ocorreu com tanta rapidez, que superou os dois fatores neutralizantes, a saber, os aperfeiçoamentos na produção e o suprimento maior de gêneros de primeira necessidade baratos, do exterior; vimos também que, a menos que parte considerável do aumento anual de capital fosse periodicamente destruído, ou exportado para investimento no exterior, o país atingiria rapidamente o ponto no qual cessariam acumulações ulteriores, ou ao menos diminuiriam espontaneamente, de modo a não mais ultrapassar os aperfeiçoamentos das técnicas que produzem os gêneros de primeira necessidade. Em um estado de coisas como esse, um acréscimo repentino ao capital do país, desacompanhado de qualquer aumento de força produtiva, seria de duração apenas transitória, pois, fazendo baixar os lucros e os juros, ele faria diminuir, em um montante correspondente, as poupanças que seriam feitas da renda, no ano ou nos dois anos seguintes, ou então faria com que se enviasse ao exterior um montante equivalente, ou que este fosse desperdiçado em especulações precipitadas. Por outro lado, tampouco uma redução repentina do capital teria qualquer efeito no empobrecimento do país, a menos que se tratasse de uma redução muito grande. Depois de alguns meses ou anos, existiria no país exatamente tanto capital como se nenhuma parcela tivesse saído. A redução do capital, por fazer os lucros e os juros subirem, daria novo estímulo ao princípio de acumulação que rapidamente preencheria o vazio. Sem dúvida, o único efeito que provavelmente se teria seria que, por algum tempo depois, se exportaria menos capital, e se jogaria fora menos capital na forma de especulação perigosa. Por conseguinte, em primeiro lugar essa visão das coisas enfraquece muito, em um país rico e operoso, a força do argumento econômico contra o gasto de dinheiro público para fins realmente valiosos, ainda que economicamente improdutivos. Se, visando a algum grande objetivo de justiça ou de política filantrópica, como a regeneração industrial da Irlanda, ou uma medida abrangente de colonização ou de educação pública, se propusesse levantar uma grande soma por meio de empréstimo, os políticos não precisariam opor objeções à retirada de tanto capital, como se isso tendesse a fazer secar as fontes permanentes de riqueza do país, e a diminuir o fundo que assegura a subsistência da população trabalhadora. O máximo de gasto que poderia ser necessário para qualquer uma dessas finalidades, com toda a probabilidade, não privaria de emprego um único trabalhador sequer, nem diminuiria a produção do ano seguinte de uma única vara de tecido ou de um único alqueire de trigo. Em países pobres, o capital do país necessita do cuidado diligente do legislador; ele é obrigado a tomar as máximas precauções para não interferir no capital, devendo favorecer ao máximo a acumulação do mesmo no país, e a importação de capital estrangeiro. Ao contrário, em países ricos, populosos e altamente cultivados, o elemento que falta não é o capital, mas terra fértil, e o que o legislador tem de desejar e promover não é uma poupança global maior, mas um retorno maior para as poupanças, seja ampliando o cultivo agrícola, seja abrindo acesso aos produtos de terras mais férteis, existentes em outras regiões do globo. Em tais países, o governo pode tirar qualquer parcela razoável do capital do país e gastá-la como receita, sem afetar a riqueza nacional, pois o total é retirado da porção das poupanças anuais que do contrário seriam enviadas ao exterior, ou do gasto improdutivo de indivíduos para o ano seguinte ou os dois anos seguintes, já que cada milhão gasto cria lugar para se poupar outro milhão antes de atingir o ponto de transbordamento. Quando o objetivo visado vale o sacrifício de tal montante de gasto, que assegura o desfrute diário da população, a única objeção econômica bem fundada contra o tirar os fundos necessários para isso diretamente do capital consiste nos inconvenientes inerentes ao processo de levantar uma receita por meio de impostos, para pagar os juros de uma dívida. Essas mesmas considerações nos possibilitam descartar, como não merecedor de atenção, um dos argumentos comuns contra a emigração como solução de alívio para a classe trabalhadora. Afirma-se que a emigração não pode trazer nenhum benefício para os trabalhadores se, para cobrir o custo, se tem de tirar do capital do país tanto quanto se tira da sua população. Penso que poucos diriam hoje que possa ser necessário retirar do capital do país uma soma dessas proporções, mesmo para a mais extensa colonização: mas, mesmo nessa suposição insustentável, é um erro supor que disso não adviria nenhum benefício para a classe trabalhadora. Se 1/10 da população trabalhadora da Inglaterra fosse transferido para as colônias, e com isso também se transferisse 1/10 do capital circulante do país, ocorreria o seguinte: os salários ou os lucros, ou ambos, seriam altamente beneficiados pela pressão menor que o capital e a população exerceriam sobre a fertilidade da terra. Haveria uma demanda menor de alimentos: as terras aráveis de qualidade inferior deixariam de ser cultivadas, e se transformariam em pastagens: as terras de qualidade superior seriam cultivadas com menos refino, mas com um retorno proporcional maior; os alimentos se tornariam mais baratos, e embora não subissem os salários em dinheiro, melhoraria consideravelmente a condição de cada trabalhador, e essa melhoria seria permanente, se não fosse seguida de maior estímulo ao aumento populacional e de uma queda dos salários — ao passo que, se isso acontecesse, os lucros e a acumulação aumentariam, de modo a reparar a perda do capital. Somente os donos de terra sofreriam alguma perda de renda: e mesmo esse prejuízo só ocorreria se a colonização fosse levada a efeito ao ponto de reduzir efetivamente o capital e a população, mas não se ela simplesmente absorvesse o aumento anual. § 2. Partindo dos mesmos princípios, podemos agora chegar a uma conclusão final em relação aos efeitos que as máquinas, e de modo geral o empate de capital para uma finalidade produtiva, produzem sobre os interesses imediatos e últimos da classe trabalhadora. A propriedade característica desse tipo de aperfeiçoamento industrial é a conversão de capital circulante em capital fixo; ora, mostramos no Livro Primeiro que, em um país em que a acumulação de capital é lenta, a introdução de máquinas, de melhorias permanentes da terra e similares poderia ser, de início, extremamente prejudicial, pois o capital assim empregado poderia ser tirado diretamente do fundo destinado a pagar salários, poderia ocorrer deterioramento do padrão de vida da população e diminuição de empregos, e a produção bruta anual do país poderia efetivamente diminuir. Mas em um país de grandes poupanças anuais e onde os lucros são baixos não há motivo para se temerem tais efeitos. Em se tratando de tal país, e se esses fenômenos permanecerem dentro de limites razoáveis — como nem mesmo a emigração de capital, nem seu gasto improdutivo, nem seu desperdício absoluto reduz de forma alguma o montante total do fundo destinado a pagar salários —, muito menos pode ter esse efeito a simples conversão de uma soma igual em capital fixo, que continua a ser produtivo. Isso simplesmente retira, por um orifício, aquilo que já estava saindo por outro; ou, se isso não acontecer, o espaço maior, deixado no reservatório não tem outra consequência senão fazer com que entre uma quantidade maior. Por conseguinte, a despeito das perturbações danosas do mercado financeiro, que advieram uma vez do fato de se empatarem grandes somas em ferrovias, nunca pude concordar com aqueles que temiam prejuízos para os recursos produtivos do país, provenientes dessa fonte. Isto, não pelo motivo absurdo (o qual, para qualquer um que esteja familiarizado com os elementos do tema, não precisa de refutação) de que os gastos com ferrovias seriam simples transferência de capital, de um dono para outro, sem que nada se perca ou se destrua. Isso é verdade com relação ao que se gasta na compra de terra; mesmo parte daquilo que se paga a intermediários, a advogados, a engenheiros e agrimensores, é poupada por aqueles que o recebem, e se transforma novamente em capital; mas o que é gasto de boa-fé na construção da própria ferrovia está perdido e se foi; uma vez gasta, essa soma já não tem condições de ser um dia paga em forma de salários ou de ser novamente aplicada no sustento de trabalhadores; para efeito de contabilidade, o resultado é que se consumiu tanto de alimentos, roupas e ferramentas, e em lugar disso o país tem uma ferrovia. Mas o ponto em que quero insistir é que somas assim aplicadas são na maior parte dos casos simples apropriação da sobra anual que do contrário teria ido para o exterior, ou então teria sido jogada fora de maneira não rentável, sem deixar atrás de si nem uma ferrovia nem qualquer outro resultado palpável. A jogada ferroviária de 1844 e 1845 provavelmente salvou o país de uma baixa dos lucros e dos juros, e de uma subida de todos os títulos públicos e privados, fatores que teriam gerado especulações ainda mais selvagens e, quando os efeitos viessem depois a ser agravados pela escassez de alimentos, teriam culminado numa crise ainda mais temível do que aquela que se viveu nos anos imediatamente subsequentes. Nos países mais pobres da Europa, a corrida à construção de ferrovias poderia ter tido consequências piores do que na Inglaterra, se naqueles países tais empreendimentos não fossem em grande parte efetuados por capital estrangeiro. Os empreendimentos ferroviários das várias nações do mundo podem ser considerados como uma espécie de concorrência para o capital sobrante dos países em que os lucros são baixos e o capital é abundante, como a Inglaterra e a Holanda. As especulações com as ferrovias inglesas constituem uma luta para manter no país o nosso aumento anual de capital, enquanto as especulações com as ferrovias de países estrangeiros são um esforço para conseguir capital. (Dificilmente é necessário assinalar com que plenitude as observações feitas no texto foram comprovadas por fatos subsequentes. O capital do país, longe de ter sido em algum grau prejudicado pelo grande montante empatado na construção de ferrovias, logo transbordou novamente) Essas considerações já evidenciam que a conversão de capital circulante em capital fixo, seja por meio de ferrovias, seja por meio de manufaturas, navios, máquinas, canais, minas ou obras de drenagem e irrigação, não tem probabilidade, em nenhum país rico, de diminuir a produção bruta ou o montante de emprego para a mão-de-obra. Isso se reforça ainda mais se considerarmos que essas transformações de capital se enquadram por natureza na categoria dos aperfeiçoamentos efetuados na produção, os quais, em vez de ao final reduzirem o capital circulante, são as condições necessárias para o crescimento dele, pois só eles possibilitam a um país possuir um capital constantemente em aumento, sem reduzirem os lucros àquela taxa que faria estacionar a acumulação de capital. Dificilmente há algum aumento de capital fixo que não possibilite ao país deter eventualmente um capital circulante maior do que aquele que de outra forma seria capaz de possuir e aplicar dentro de suas próprias fronteiras, pois dificilmente existe alguma criação de capital fixo que, quando se comprovar bem-sucedida, não faça baixar o preço dos artigos nos quais se costuma gastar os salários. Todo capital empatado na melhoria permanente da terra diminui o custo dos alimentos e das matérias-primas; quase todos os aperfeiçoamentos feitos nas máquinas barateiam o preço da roupa ou da moradia do trabalhador, ou as ferramentas com as quais estas são feitas; os aperfeiçoamentos nos meios de transporte, tais como ferrovias, fazem baixar, para o consumidor; o preço de todas as coisas que são transportadas de longe. Todos esses aperfeiçoamentos criam uma condição melhor para os trabalhadores, com os mesmos salários em dinheiro — fazem-no, se não fizerem aumentar a taxa de multiplicação deles. Se tais aperfeiçoamentos levarem a aumentar essa taxa de multiplicação; e consequentemente os salários baixarem, ao menos os lucros sobem, e, por se estimular diretamente a acumulação, cria-se espaço para um montante maior de capital, antes que surja um motivo suficiente para enviá-lo ao exterior. Mesmo os aperfeiçoamentos que não barateiam os artigos consumidos pelo trabalhador, e que, portanto, não fazem aumentar os lucros nem retêm capital no país, não obstante isso, como vimos, pelo fato de fazerem baixar o mínimo de lucro em função do qual em última análise as pessoas consentem em poupar, deixam uma margem maior do que antes, para eventual acumulação, antes que chegue a uma condição estacionária. Podemos, portanto, concluir que os aperfeiçoamentos na produção e a emigração de capital para solos mais férteis e para minas inexploradas das regiões desabitadas ou pouco povoadas do globo não fazem diminuir a produção bruta e a demanda de mão-de-obra no país, como pareceria a uma análise superficial; pelo contrário, esses aperfeiçoamentos constituem aquilo de que sobretudo temos de depender, se quisermos aumentar tanto uma como a outra, e constituem até as condições necessárias para qualquer grande ou prolongado aumento das duas. Tampouco há exagero algum em dizer que, dentro de determinados limites não muito restritos, quanto mais capital um país como a Inglaterra gastar dessas duas maneiras, tanto mais lhe sobrará. CAPÍTULO VI A Condição Estacionária § 1. Os capítulos precedentes abrangem a teoria geral sobre o progresso econômico da sociedade, no sentido em que esses termos são comumente entendidos: o progresso do capital, o aumento da população e o progresso das técnicas produtivas. Mas, ao observarmos qualquer movimento progressivo, não em sua natureza ilimitada, a mente não se satisfaz em apenas traçar as leis desse movimento; ela não pode deixar de fazer esta outra pergunta: para que finalidade? Para que ponto último está tendendo a sociedade, com seu progresso industrial? Quando o progresso cessar, em que condição podemos esperar que ele deixará a humanidade? Os economistas políticos sempre devem ter visto, com clareza maior ou menor, que o aumento da riqueza não é ilimitado; que ao final daquilo que denominam condição progressista está a condição estacionária, que todo aumento de riqueza é apenas um adiamento dessa última condição, e que cada passo para a frente é um aproximar-se dela. Fomos agora levados a reconhecer que essa meta última em todos os tempos está suficientemente perto para estar plenamente à vista; que estamos sempre a um passo dela, e que se ainda não a atingimos há muito tempo é porque a própria meta voa adiante de nós. Os países mais ricos e mais prósperos muito cedo atingiriam a condição estacionária, se não introduzissem mais aperfeiçoamentos nas técnicas produtivas, e se houvesse suspensão do processo de transbordamento do capital desses países para as regiões da Terra não cultivadas ou mal cultivadas. Essa impossibilidade de se evitar, em última análise, a condição estacionária — essa necessidade irresistível de a torrente da atividade humana ao final desembocar em um mar aparentemente estagnado — deve ter sido, para os economistas políticos das duas últimas gerações, uma perspectiva desagradável e desencorajadora, pois o tom e a tendência de suas pesquisas convergem totalmente para a identificação de tudo aquilo que é economicamente desejável na condição progressista, e só nela. Para o sr. McCulloch, por exemplo, a prosperidade não significa grande produção e boa distribuição da riqueza, mas um rápido aumento da mesma; para ele, o teste da prosperidade são os lucros altos; e como a tendência desse aumento de riqueza, que ele chama de prosperidade, é exatamente no sentido de lucros baixos, o progresso econômico, segundo ele, deve tender à extinção da prosperidade. Adam Smith sempre supõe que a condição da massa da população, ainda que possa não ser abertamente aflitiva, é necessariamente apertada e precária em uma condição estacionária da riqueza, e só pode ser satisfatória em um estado de progresso. A doutrina de que, por mais que a luta incessante possa adiar ao máximo esta nossa sina triste, o progresso da sociedade tem de “terminar em baixios e em misérias”, longe de ser — como ainda pensam muitos — uma invenção cruel do sr. Malthus, foi afirmada, expressa ou tacitamente, por seus predecessores mais conceituados, e só pode ser combatida com êxito com base nos princípios dele. Antes de se dirigir a atenção para o princípio da população como sendo a força ativa que determina a remuneração da mão-de-obra, o crescimento da humanidade era virtualmente tratado como uma quantidade constante; em todos os casos, supunha-se que, na condição natural e normal da vida humana, a população teria que crescer constantemente, donde se concluía que um aumento constante dos meios de subsistência era essencial para o conforto físico da massa da humanidade. A publicação dos Ensaios do sr. Malthus representa a era a partir da qual se devem datar concepções mais corretas sobre esse assunto; e apesar dos erros reconhecidos de sua primeira edição, poucos autores fizeram mais do que ele, nas edições subsequentes, para fomentar essas expectativas mais justas e mais promissoras. Mesmo em uma condição de progresso do capital, em países velhos, é indispensável um controle consciencioso ou prudente da população, para impedir que o aumento de habitantes supere o do capital, bem como para impedir que se deteriore a condição das classes que estão na base da sociedade. Onde não existe, no povo, ou em alguma percentagem muito grande dele, uma resistência resoluta a esse deterioramento — uma determinação de preservar um padrão de conforto estabelecido —, piora a condição da classe mais pobre, mesmo em uma condição de progresso, até o ponto mais baixo que ela consentir em suportar. A mesma determinação seria igualmente eficaz para manter elevada a condição dessas classes na condição estacionária, e teria exatamente a mesma probabilidade de existir. Com efeito, mesmo hoje, os países em que se manifesta maior prudência em controlar a população muitas vezes são aqueles em que o capital aumenta com menos rapidez. Onde existe uma perspectiva indefinida de emprego para uma população maior, existirá provavelmente menos necessidade de um controle previdente. Se fosse evidente que um novo trabalhador não poderia encontrar emprego a não ser desalojando um já empregado, ou sucedendo a ele, poder-se-ia confiar até certo ponto nas influências associadas da prudência e da opinião pública, para limitar as gerações futuras ao número necessário para substituir as de hoje. § 2. Não posso, portanto, considerar a condição estacionária do capital e da riqueza com essa aversão impassível, tão generalizadamente manifestada pelos economistas políticos da velha escola. Estou propenso a crer que essa condição estacionária seria, no conjunto, uma enorme melhoria da nossa condição atual. Confesso que não me encanta o ideal de vida defendido por aqueles que pensam que o estado normal dos seres humanos é aquele de sempre lutar para progredir do ponto de vista econômico, que pensam que o atropelar e pisar os outros, o dar cotoveladas, e um andar sempre ao encalço do outro (características da vida social de hoje) são o destino mais desejável da espécie humana, quando na realidade não são outra coisa senão os sintomas desagradáveis de uma das fases do progresso industrial. Isso pode ser um estágio necessário no progresso da civilização, e nações europeias que até agora foram tão afortunadas a ponto de serem preservadas dele ainda podem passar por esse estágio. É um incidente do crescimento, não uma marca de declínio, pois essa condição estacionária do capital não é necessariamente destruidora das aspirações mais elevadas e das virtudes heroicas, como a América, em sua grande guerra civil, o demonstrou ao mundo, tanto pela sua conduta como povo, quanto por numerosos exemplos individuais esplêndidos, e como também o demonstraria a Inglaterra — assim o esperamos — se fosse colocada em uma situação igualmente penosa e emocionante. Mas esse não é um tipo de perfeição social que os filantropos futuros desejarão muito ajudar a construir. Sem dúvida, é altamente conveniente que, enquanto as riquezas forem consideradas como poder, e o tornar-se o mais rico possível for um objetivo universal de ambição, o caminho para chegar a isso esteja aberto a todos, sem favorecimento ou parcialidade. Mas o melhor estado para a natureza humana é aquele em que, se por um lado ninguém é pobre, por outro lado ninguém deseja ser mais rico do que é, nem tem motivo algum para temer ser jogado para trás pelos esforços que outros fazem para avançar. Que as energias da humanidade sejam utilizadas para conseguir riqueza, da mesma forma como antigamente eram utilizadas para lutar na guerra, até que as maiores inteligências consigam educar os outros para coisas melhores, é sem dúvida mais desejável do que essas energias enferrujarem e permanecerem estagnadas. Enquanto as inteligências forem primitivas e necessitarem de estímulos primitivos, que os tenham. Entrementes os que não aceitam o estágio atual do aperfeiçoamento humano — ainda muito inicial — como o modelo último do mesmo podem ser escusados por se manterem relativamente indiferentes a esse tipo de progresso econômico, que desperta as congratulações dos políticos comuns e que consiste no simples aumento da produção e na acumulação de capital. Para a segurança da independência nacional, é essencial que um país não fique muito atrás de seus vizinhos nessas coisas. Mas consideradas em si mesmas, são de pouca importância, enquanto o aumento da população ou algum outro fator impedir a massa do povo de ter alguma participação no benefício proporcionado por elas. Não sei por que deveríamos felicitar-nos pelo fato de pessoas, que já são mais ricas do que qualquer um necessita ser, dobrarem seus recursos para consumir coisas que dão pouco ou nenhum prazer, a não ser o de serem sinais representativos de riqueza; ou então pelo fato de um conjunto de indivíduos passar, cada ano, das classes médias para uma classe mais rica, ou da classe dos ricos ocupados para a dos ricos ociosos. É somente nos países atrasados que o aumento da produção ainda é uma meta importante; nos mais avançados, o que se necessita economicamente é de uma melhor distribuição, e para isso um meio indispensável é a limitação maior da população. Só nivelar as instituições sejam estas justas ou injustas, não pode bastar; com isso poder-se-ia apenas fazer baixar os que estão muito em cima, porém não bastaria para fazer subir em caráter permanente os que estão na base da sociedade. Por outro lado, podemos supor que essa melhor distribuição seja adequadamente atingida pelo efeito conjunto da prudência e da frugalidade dos indivíduos, e por um sistema de legislação que favoreça a igualdade das fortunas, na medida em que isso for conciliável com o justo direito do homem ou da mulher aos frutos, grandes ou pequenos, de seu próprio trabalho. Podemos pensar por exemplo (conforme sugestão apresentada em um capítulo anterior), em limitar a soma que qualquer pessoa pode adquirir por doação ou por herança ao montante suficiente para proporcionar uma autonomia razoável. Sob essa dupla influência, a sociedade apresentaria as seguintes características dominantes: um conjunto de trabalhadores bem remunerados e afluentes e inexistência de fortunas enormes, a não ser as que fossem ganhas e acumuladas durante uma única existência; em contrapartida, um conjunto, muito maior do que atualmente de pessoas não apenas livres das ocupações mais duras, mas também dispondo de lazer suficiente, tanto físico quanto mental, para se libertarem de detalhes mecânicos e poderem cultivar livremente os encantos da vida, e para darem exemplos disso às classes menos favorecidas para o cultivo desses valores. Essa condição da sociedade, tão altamente preferível à atual, não apenas é perfeitamente compatível com a condição estacionária, senão que, segundo parece, se coaduna com mais naturalidade com essa condição estacionária do que com qualquer outra. Sem dúvida, há lugar, no mundo, e mesmo em países velhos, para um grande aumento da população, desde que o engenho humano continue a melhorar e o capital continue a crescer. Mas, mesmo que esse aumento populacional fosse inofensivo, confesso ver muito pouca razão para desejá-lo. Já foi atingida em todos os países mais povoados, a densidade populacional necessária para possibilitar à humanidade obter, no grau máximo, todas as vantagens da cooperação e do intercâmbio social. Uma população pode ser excessiva, mesmo que todos tenham abundância de alimentos e de roupa. Não é bom que o homem seja forçado em todos os momentos a estar no meio de seus semelhantes. Um mundo do qual se extirpa a solidão é um ideal muito pobre. A solidão, no sentido de estar muitas vezes a sós, é essencial para qualquer profundidade de meditação ou de caráter; e a solidão, na presença da beleza e da grandeza natural, é o berço de pensamentos e aspirações que não apenas são bons para o indivíduo, mas são também algo sem o qual dificilmente a sociedade poderia passar. Por outro lado, não se sente muita satisfação em contemplar um mundo em que não sobrasse mais espaço para a atividade espontânea da Natureza: um mundo em que se cultivasse cada rood (1/4 de acre) de terra capaz de produzir alimentos para seres humanos, um mundo em que toda área agreste e florida, ou pastagem natural, fosse arada, um mundo em que todos os quadrúpedes ou aves não domesticados para o uso humano fossem exterminados como rivais do homem em busca de alimento, um mundo em que cada cerca-viva ou árvore supérflua fossem arrancadas, e raramente sobrasse um lugar onde pudesse crescer um arbusto ou uma flor selvagem, sem serem exterminados como erva daninha, em nome de uma agricultura aprimorada. Se a Terra tiver que perder a grande parte de amenidade que deve a coisas que o aumento ilimitado da riqueza e da população extirpariam dela, simplesmente para possibilitar à terra sustentar uma população maior, mas não uma população melhor ou mais feliz, espero sinceramente, por amor à posteridade, que a população se contente com permanecer estacionária, muito antes que a necessidade a obrigue a isso. Dificilmente será necessário observar que uma condição estacionária do capital e da população não implica uma condição estacionária do aperfeiçoamento humano. Haveria o mesmo campo que sempre há para todos os tipos de cultura intelectual, de progresso moral e social, o mesmo espaço para aprimorar a arte de viver, e muito mais probabilidade de esse aprimoramento ocorrer, se as inteligências deixassem de ser absorvidas exclusivamente pela preocupação de prosperar na riqueza. Mesmo as técnicas industriais poderiam ser cultivadas com a mesma seriedade e com o mesmo sucesso, com esta única diferença: em vez de não servirem a outro propósito que não seja ao aumento da riqueza, os aperfeiçoamentos industriais produziriam seu efeito legítimo, o de abreviar o trabalho. Até agora, é discutível se todas as invenções mecânicas feitas até hoje chegaram a aliviar a labuta diária de algum ser humano. Possibilitaram a uma população maior viver a mesma vida de servidão e de prisão, possibilitando também a um número maior de manufatores e de outras pessoas ganhar fortunas. Aumentaram os confortos das classes médias. Mas ainda não começaram a efetuar aquelas grandes mudanças no destino humano, para cuja consecução se destinam no futuro, por sua natureza. Somente quando, além de instituições justas, o aumento quantitativo da humanidade for guiado de forma planejada pela previsão criteriosa, somente então as conquistas sobre as forças da Natureza conseguidas pelo intelecto e pela energia de pesquisadores científicos poderão transformar-se em propriedade comum da espécie humana, bem como em meio para melhorar e elevar a sorte de todos. CAPÍTULO VII O Futuro Provável das Classes Trabalhadoras § 1. As observações feitas no capítulo anterior tiveram como objetivo primordial condenar um falso ideal da sociedade humana. A aplicabilidade dessas observações às finalidades práticas dos tempos atuais consiste em moderar a importância desordenada atribuída ao simples aumento da produção, e em fixar a atenção nos dois desiderata que são uma melhor distribuição e uma generosa remuneração da mão-de-obra. Que a produção global aumente ou não em sua quantidade absoluta, é uma meta pela qual, depois de se ter conseguido certo montante, nem o legislador nem o filantropo precisam ter grande interesse; mas, que essa quantidade aumente em relação ao número daqueles que dela devem partilhar, eis uma coisa da maior importância possível; e isso (quer a riqueza da humanidade seja estacionária, quer esteja acusando a taxa de crescimento mais rápida jamais conhecida em um país velho) depende necessariamente das opiniões e dos hábitos da classe mais numerosa, a dos trabalhadores braçais. Quando falo, aqui ou alhures, de “classes trabalhadoras”, ou dos trabalhadores como uma “classe”, utilizo essas expressões em adesão ao costume e para descrever um estado de relações sociais existente, mas que de forma alguma é um estado necessário ou permanente. Não reconheço como justo nem como salutar um estado social no qual exista alguma “classe” que não seja trabalhadora ou qualquer ser humano que esteja isento de partilhar das labutas necessárias da vida humana, excetuados aqueles que são incapazes de trabalhar ou os que ganharam honestamente seu descanso com o trabalho anterior. Entretanto, enquanto existir o grande mal social de uma classe não trabalhadora, também os trabalhadores constituem uma classe, e nessa qualidade pode ser chamada de classe trabalhadora, ainda que provisoriamente. Considerada em seu aspecto moral e social, a condição da população trabalhadora constitui ultimamente objeto de muito mais investigação e debate do que anteriormente, generalizando-se muito a opinião de que essa condição não é hoje o que deveria ser. As sugestões apresentadas e as controvérsias que têm havido, mais sobre pontos isolados do que sobre os fundamentos da matéria, evidenciam a existência de duas teorias conflitantes, com respeito à posição social desejável para os trabalhadores braçais. Uma pode ser denominada teoria da dependência e da proteção a outra, teoria da autodeterminação. Segundo a primeira teoria, a sorte dos pobres, em todas as coisas que os afetam coletivamente, deve ser determinada para eles, não por eles. Não se deve exigir que pensem por si mesmos — nem a isso devem ser encorajados —, nem que deem à sua própria reflexão ou previsão um peso influente na determinação de seu próprio destino. Supõe-se caber às classes mais altas o dever de pensar pelos pobres, e de assumir a responsabilidade por sua sorte, assim como o comandante e os oficiais de um exército assumem a responsabilidade pela sorte dos soldados que o compõem. Essa função — afirma-se — as classes mais altas devem preparar-se para cumpri-la conscienciosamente, e todo o comportamento delas deve impor nos pobres confiança nessa função, a fim de que, prestando obediência passiva e intensa às regras prescritas para eles, os pobres possam entregar-se, sob todos os outros aspectos, a uma despreocupação confiante, e repousar à sombra dos seus protetores. A relação entre ricos e pobres, segundo essa teoria (uma teoria aplicada também à relação entre homens e mulheres), deve ser autoritária somente em parte, pois deve ser amiga, moral, e afetuosa: de um lado, portanto, tutela carinhosa, e do outro, deferência respeitosa e imbuída de gratidão. Os ricos devem fazer as vezes de pais dos pobres, guiando-os e refreando-os como filhos. Não deve haver nenhuma necessidade de ação espontânea por parte dos pobres. Estes não devem ser chamados para nada, a não ser para seu serviço diário, e devem ser honrados e religiosos. Quem deve elaborar a moral e a religião para os pobres são os seus superiores, os quais devem cuidar que estas lhes sejam adequadamente ensinadas, e devem fazer tudo o que é necessário para garantir que os pobres, em troca de seu trabalho e de sua dedicação afetuosa, sejam adequadamente alimentados, vestidos, tenham moradia apropriada, sejam edificados espiritualmente, e se distraiam com divertimentos puros. Esse é o ideal do futuro, nas cabeças daqueles cuja insatisfação com o presente assume a forma de afeição e saudade pelo passado. Como outros ideais, exerce influência inconsciente sobre as opiniões e sentimentos de muitos que nunca se guiam a si mesmos por um ideal. Esse ideal tem também outra característica em comum com outros ideais: ele nunca foi realizado historicamente. Apela às nossas simpatias imaginárias apresentando-se como uma restauração dos bons tempos dos nossos antepassados. Contudo, não se consegue apontar épocas nas quais as classes mais altas, da Inglaterra ou de qualquer outro país, tenham cumprido uma função que se assemelhe sequer de longe àquela que lhes é atribuída nessa teoria. É uma idealização, fundada na conduta e no caráter de um outro indivíduo. Todas as classes privilegiadas e poderosas, como tais, têm utilizado seu poder no interesse de seu próprio egoísmo e têm desfrutado da importância que atribuem a si mesmas, desprezando — e não cuidando amorosamente — aqueles que, em seu conceito, estavam em posição inferior, por terem que trabalhar em benefício delas. Não afirmo que aquilo que sempre foi assim sempre deva permanecer tal, ou que o aperfeiçoamento humano não tenha nenhuma tendência a corrigir os sentimentos intensamente egoístas, gerados pelo poder; mas, ainda que esse mal possa ser reduzido, não pode ser erradicado, enquanto não se retirar esse próprio poder das pessoas. Ao menos isso me parece inegável: muito antes que as classes superiores pudessem ser suficientemente aperfeiçoadas para governar da maneira tutelar suposta por essa teoria, as classes inferiores estariam por demais aperfeiçoadas para serem governadas dessa forma. Estou perfeitamente consciente de toda a sedução exercida pela imagem da sociedade apresentada por essa teoria. Embora os fatos que a caracterizam não encontrem protótipo no passado, encontram-no os sentimentos que a inspiram. É nesses sentimentos que reside tudo o que há de realidade nessa concepção. Assim como é essencialmente repulsivo o conceito de uma sociedade baseada exclusivamente nas relações e sentimentos provenientes de interesses pecuniários, da mesma maneira existe algo de naturalmente atrativo na forma de uma sociedade em que haja abundância de laços pessoais fortes e de auto-dedicação desinteressada. Tem-se de admitir que, até agora, a fonte mais rica de tais sentimentos tem sido a relação protetor-protegido. Os seres humanos em geral mantêm os laços de afeto mais fortes com as coisas ou as pessoas que se interpõem entre eles e algum mal que temem. Daí que, em uma época de violência e de insegurança sem lei, e em que predominam a crueldade e a rudeza generalizadas, em que a vida está cercada de perigos e sofrimentos a cada passo, para aqueles que não têm uma posição própria de comando nem um direito à proteção de alguém que a possua — nessas circunstâncias, os laços mais fortes que unem os seres humanos entre si são, de um lado, a atitude de oferecer proteção generosa, e de outro, a atitude de receber com gratidão tal proteção; os sentimentos que se originam dessa relação constituem os sentimentos mais calorosos das pessoas; todos os entusiasmos e toda a ternura das naturezas mais sensíveis se reúnem em torno dessa relação; a lealdade do lado dos protegidos e o cavalheirismo do lado dos protetores são princípios exaltados e transformados em verdadeiras paixões. Não pretendo menosprezar essas qualidades. O erro está em não perceber que essas virtudes e sentimentos, como o sistema de clãs e a hospitalidade do árabe itinerante, pertencem decididamente a um estágio primitivo e imperfeito do relacionamento social; e que os sentimentos entre protetor e protegido, seja entre reis e súditos, seja entre ricos e pobres, ou entre homens e mulheres, já não podem ter essa propriedade bela e cativante, onde não existem mais perigos sérios contra os quais as pessoas tenham que ser protegidas. No atual estágio social, o que pode fazer com que seja natural seres humanos, dotados de força e coragem normal, sentirem a mais calorosa gratidão e devoção em troca de proteção? As próprias leis protegem as pessoas onde quer que as leis não faltem criminosamente ao seu dever. Estar sob o poder de alguém, em vez de ser, como em épocas anteriores, a única condição que oferece segurança, é hoje, falando de modo geral, a única situação que expõe as pessoas a males sérios. Os assim chamados protetores são hoje as únicas pessoas contra as quais, em quaisquer circunstâncias normais, se necessita de proteção. A brutalidade e a tirania que pervadem cada relatório policial são aquelas que os maridos cometem contra as esposas e os pais contra os filhos. Se a lei não coíbe tais atrocidades, se só agora ela está fazendo uma primeira tentativa tímida de reprimi-las e puni-las, não é por que assim tenha de ser inevitavelmente, mas por triste omissão daqueles que elaboram e administram as leis. Nenhum homem ou mulher que possua autonomia financeira ou seja capaz de ganhá-la precisa de qualquer outra proteção além daquela que a lei poderia e deveria proporcionar-lhe. Se assim é, demonstra grande ignorância da natureza humana quem continuar a considerar como certo que as relações baseadas na proteção devem subsistir para sempre, e não enxergar que a atitude de assumir a função de protetor e o poder que a esta função inere, sem que haja necessidades que justifiquem tal atitude, necessariamente têm de gerar sentimentos opostos à lealdade. Quanto às pessoas que trabalham, ao menos nos países mais evoluídos da Europa pode-se dar por certo que o sistema patriarcal ou paternal de governo é um sistema ao qual elas já não se sujeitarão. Essa questão está decidida, desde o momento em que se lhes ensina a ler, possibilitando-lhes o acesso a jornais e artigos políticos, desde o momento em que se consentiu que pregadores não conformistas fossem para o seu meio e apelassem para suas faculdades e sentimentos, em oposição a crenças professadas por seus superiores, desde o momento em que os trabalhadores foram reunidos em grandes contingentes, para trabalharem socialmente sob o mesmo teto, desde o momento em que as ferrovias lhes possibilitaram deslocar-se de um lugar para outro, e mudar de patrões com a mesma facilidade com que trocam de casaco, desde o momento em que foram encorajados a participar do governo, mediante a franquia eleitoral. As classes trabalhadoras tomaram seus interesses em suas próprias mãos, e constantemente estão mostrando que, em seu pensamento, os interesses dos empregadores não se identificam com seus próprios interesses, mas se lhes opõem. Algumas pessoas das classes superiores iludem-se de que essas tendências possam ser neutralizadas pela educação moral e religiosa, mas deixaram escapar a ocasião propícia para ministrar-lhes uma formação que servisse aos seus propósitos. Os princípios da Reforma penetraram tão fundo na sociedade quanto a leitura e a escrita, e as pessoas não aceitarão, por muito mais tempo, a moral e a religião elaboradas por outros. Refiro-me mais especificamente ao nosso país, sobretudo à população urbana, e aos distritos em que prevalecem a agricultura mais científica e os salários mais altos — a Escócia e o norte da Inglaterra. Entre a população agrícola mais inerte e menos modernizada dos condados do Sul, poderia ser possível para a pequena nobreza conservar, por mais algum tempo, algo da antiga deferência e submissão que caracterizam os pobres, subornando-os com salários altos e emprego constante, assegurando-lhes o sustento e nunca exigindo deles que façam algo de que não gostem. Acontece que estamos aqui diante de duas condições que nunca andaram juntas por muito tempo, nem podem. Uma garantia de subsistência só pode ser mantida na prática se houver no mínimo uma coerção moral para cobrar a execução do serviço e coibir a multiplicação populacional supérflua. Os pretensos ressuscitadores de tempos antigos — tempos esses que não entendem — sentiriam, então, na prática, quão inútil é a tarefa em que estavam engajados. Todo o esquema da influência patriarcal ou de senhorio que se tentou construir sobre o fundamento das carícias dispensadas aos pobres se espatifaria contra a necessidade de aplicar uma lei coercitiva em favor dos pobres. § 2. A partir de agora, o bem-estar e a prosperidade da população trabalhadora terão de fundar-se em bases bem diferentes. Os pobres se libertaram das principais restrições e já não há possibilidade de governá-los ou tratá-los como crianças. Os cuidados pelos destinos dos trabalhadores precisam agora ser entregues a eles mesmos. As nações modernas terão de aprender esta lição: o bem-estar de um povo tem de ser criado por meio da justiça e do autogoverno, a dikaiosyne e a sofrosyne dos cidadãos individuais. A teoria da dependência tenta dispensar a necessidade dessas virtudes nas classes dependentes. Hoje, porém, quando mesmo em relação à posição, elas se estão tornando cada vez menos dependentes, e suas mentes aderem cada vez menos ao grau de dependência que ainda subsiste, as virtudes de que precisam são as da independência. Qualquer conselho, exortação ou guia que se ofereça às classes trabalhadoras a partir de agora devem ser oferecidos a elas como iguais, e deverão ser aceitos por elas com os olhos abertos. A chance do futuro depende do grau em que se conseguir fazer dos trabalhadores seres racionais. Só há razões para acreditar que essa perspectiva encerra esperanças. Sem dúvida, até agora o progresso tem sido lento, e continua a sê-lo. Mas está em andamento uma educação espontânea da multidão, a qual pode ser acelerada e aperfeiçoada por meios artificiais. A instrução colhida nos jornais e artigos políticos pode não ser o tipo mais sólido de instrução, mas representa uma melhoria imensa, em comparação com o nada. O que essa imprensa faz por um povo foi admiravelmente exemplificado durante a crise algodoeira, no caso dos fiandeiros e tecelões do Lancashire, que agiram com o constante bom senso e tolerância tão justamente aplaudidos, simplesmente porque, pela leitura dos jornais, compreenderam as causas da calamidade que se abatera sobre eles e sabiam que ela de forma alguma era imputável aos seus empregadores ou ao Governo. Não é certo que a conduta deles teria sido tão racional e exemplar, se a desgraça tivesse precedido a medida salutar da emancipação fiscal que deu origem à penny press. As instituições criadas para conferências e discussões, as deliberações coletivas sobre questões de interesse comum, os sindicatos, o debate político, tudo isso serve para despertar o espírito público, para difundir a pluralidade de ideias entre a massa, e para suscitar a reflexão nos mais inteligentes. Se bem que a obtenção muito cedo dos direitos políticos por parte da classe menos informada poderia retardar, em vez de promover, seu aperfeiçoamento, dificilmente se pode duvidar de que a consecução dessa meta foi altamente estimulada pela tentativa de conseguir tais direitos. Nesse meio tempo, as classes trabalhadoras passaram a fazer parte do público, e de todas as discussões sobre temas de interesse geral, os trabalhadores, ou ao menos parte deles, passaram agora a participar; todos os que utilizam a imprensa como instrumento podem, se isso acontecer, ter os trabalhadores como leitores; os caminhos da instrução, através dos quais as classes médias adquirem as ideias que têm, são acessíveis, no mínimo, aos trabalhadores urbanos. Com esses recursos, não resta dúvida de que crescerão em inteligência, mesmo que devessem contar apenas com seus próprios esforços; ao mesmo tempo, existem motivos para esperar que haverá grandes melhorias, tanto na qualidade quanto na quantidade da educação escolar, em virtude das iniciativas quer do governo quer de indivíduos, e que o progresso da massa da população em cultura intelectual, e nas virtudes que dela dependem, ocorrerá com maior rapidez, e com interrupções e aberrações menores do que se fosse abandonado a si mesmo. Desse aperfeiçoamento intelectual pode-se esperar confiantemente colher vários efeitos. O primeiro é o seguinte: os trabalhadores aceitarão ainda menos do que hoje ser guiados e governados — e dirigidos para o caminho que devem trilhar — pela simples autoridade e prestígio dos superiores. Se atualmente os trabalhadores não têm nenhum sentimento de deferência ou princípio religioso de obediência que os mantenha mentalmente sujeitos a uma classe acima deles, muito menos os terão daqui em diante. A teoria da dependência e da proteção será cada vez mais intolerável para eles, e exigirão que sua conduta e sua condição sejam basicamente governadas por eles mesmos. Ao mesmo tempo, é perfeitamente possível que em muitos casos exijam a intervenção dos legisladores em seus problemas, bem como que a lei regulamente várias coisas que lhes dizem respeito, aliás, muitas vezes baseadas em conceitos equívocos em relação a seus interesses. Mesmo que assim fosse, o que exigem é que se atenda à vontade deles, às suas próprias ideias e sugestões, e não a normas estabelecidas para eles, mas por outras pessoas. Coaduna-se perfeitamente com isso o respeito que sentem pela superioridade de inteligência e de conhecimento, e o acatamento que dão às opiniões, em se tratando de qualquer assunto, daqueles que consideram bem versados na matéria. Tal deferência está profundamente enraizada na natureza humana: o que querem, porém, é julgar eles próprios acerca das pessoas que merecem ou não esse acatamento. § 3. Parece-me impossível esperar outra coisa a não ser que esse aprimoramento da inteligência, da educação, e do amor à independência, entre as classes trabalhadoras, virá acompanhado do correspondente crescimento do bom senso que se manifesta em hábitos de conduta previdente, e que, portanto, a taxa de aumento populacional decrescerá gradualmente em relação ao capital e ao emprego. Esse resultado altamente desejável seria muito acelerado por outra mudança, que está na linha direta das melhores tendências do nosso tempo: o livre acesso de ambos os sexos às ocupações industriais. As mesmas razões que fazem com que já não seja necessário que os pobres dependam dos ricos tornam igualmente desnecessário que as mulheres dependam dos homens; e o mínimo exigido pela justiça é que a lei e o costume não forcem essa dependência (quando se tornou supérflua a proteção correlativa), ordenando que uma mulher que eventualmente não tiver uma provisão por herança dificilmente disponha de outros meios para ganhar o seu pão, a não ser na função de esposa e mãe. Que adotem essa função as mulheres que a preferirem; mas é uma injustiça social flagrante que não haja opção, nenhuma outra carreira possível para a grande maioria das mulheres, a não ser nos setores mais humildes da vida. As ideias e instituições que fazem do sexo o fundamento para uma desigualdade de direitos legais, e para uma diferença forçada de funções sociais, dentro em breve terão de ser reconhecidas como sendo o maior obstáculo para o aprimoramento moral, social e até intelectual. De momento indicarei apenas, entre as prováveis consequências que advirão da independência profissional e social das mulheres, uma grande diminuição do mal da superpopulação. Se o instinto animal responsável pela multiplicação populacional chega a ter a preponderância desproporcional que tem exercido até agora na vida humana, isso se deve ao fato de se dedicar toda uma metade do gênero humano exclusivamente à função de esposa e mãe, fazendo com que essa função absorva a vida inteira das mulheres e interfira em quase todos os objetivos dos homens. § 4. As consequências políticas da força e da importância crescentes das classes trabalhadoras, e de seu crescente aumento populacional — fatores que, mesmo na Inglaterra, e na vigência das instituições atuais, estão permitindo à maioria, no mínimo, dar um voto de desconfiança ao Governo — constituem um tema por demais amplo para ser discutido neste contexto. Entretanto, limitando-nos a considerações de ordem econômica, e apesar do efeito que o aprimoramento intelectual nas classes trabalhadoras e as leis justas possam ter no sentido de alterar essa distribuição da produção em vantagens delas, não posso crer que os trabalhadores estarão permanentemente satisfeitos com a condição de trabalhar apenas por salários, como se esta fosse a condição definitiva deles. Talvez estejam dispostos a passar pela classe de empregados, no caminho que leva à categoria de empregadores, mas não permanecer nela a vida inteira. Começar como trabalhadores assalariados, depois disso trabalhar por alguns anos por conta própria, e finalmente empregar outras pessoas, eis a condição normal dos trabalhadores em um país jovem, que aumenta rapidamente de riqueza e população, como a América ou a Austrália. Contudo, em um país antigo e plenamente povoado, os que começam a vida como assalariados, como regra geral, continuam nessa condição até o fim, a menos que caiam na condição ainda mais baixa de viver da caridade pública. No atual estágio do progresso humano, quando se difundem, com vigor cada vez maior, ideias de igualdade entre as classes mais pobres e em um tempo já não se consegue impedir a divulgação de tais ideias a não ser pela supressão total do debate escrito e mesmo da liberdade de falar, não se pode esperar que se mantenha em caráter permanente a divisão da humanidade em duas classes hereditárias, a saber, empregadores e empregados. Essa relação é quase tão insatisfatória para quem paga salários quanto para quem os recebe. Se os ricos encaram os pobres, como acontece por uma espécie de lei natural, como seus empregados e dependentes, os ricos, por sua vez, são considerados como simples presa e pasto para os pobres, dado que as exigências e as expectativas destes, já ilimitadas, aumentam ainda mais com cada concessão que lhes é feita. A ausência total de consideração pela justiça e pela honestidade nas relações entre as duas classes é tão marcada do lado dos empregados quanto do lado dos empregadores. É inútil procurar nas classes trabalhadoras em geral, o justo orgulho que consiste em prestar bom serviço em troca de bons salários; na maioria dos casos, seu único empenho consiste em receber tanto quanto possível, e em retribuir o mínimo possível na forma de serviço. Mais cedo ou mais tarde, tornar-se-á insuportável para as classes empregadoras viverem em contato íntimo e a cada momento com pessoas cujos interesses e sentimentos lhes são hostis. Os capitalistas estão quase tão interessados quanto os trabalhadores em fazer com que as operações da indústria sejam tais, que aqueles que trabalham para eles sintam o mesmo interesse no trabalho que é sentido por aqueles que trabalham por conta própria. A opinião expressa em uma parte anterior deste tratado, com respeito às pequenas propriedades agrárias e aos proprietários camponeses, pode ter levado o leitor a pensar que a ampla difusão da propriedade fundiária seja o recurso no qual confio para isentar, ao menos os trabalhadores agrícolas da dependência exclusiva do trabalho assalariado. Entretanto, não é essa a minha opinião. Sem dúvida, penso que essa forma de economia agrícola é depreciada, de maneira totalmente infundada, e é preferível, nos seus efeitos globais, para a felicidade humana, ao trabalho assalariado, em qualquer forma em que ele exista atualmente, pois a limitação prudente do aumento da população age mais diretamente nesse sistema e é mais eficaz, como demonstra a experiência, e também porque, do ponto de vista da segurança, da independência e do exercício de todas as faculdades não exclusivamente animais, a condição de um camponês proprietário é muito superior à de um trabalhador agrícola assalariado, na Inglaterra ou em qualquer outro país antigo. Onde já existe esse sistema, e onde ele funciona satisfatoriamente, no conjunto, eu lamentaria, no atual estágio da inteligência humana, que ele fosse abolido para dar lugar ao sistema de trabalhadores assalariados, a pretexto de um conceito pedante de que o aperfeiçoamento agrícola seria uma coisa necessariamente igual em cada circunstância diferente. Em um estágio de aperfeiçoamento industrial atrasado, como na Irlanda, eu pessoalmente exigiria a introdução do sistema de camponeses proprietários, de preferência a um sistema exclusivo de mão-de-obra assalariada, pois este é um instrumento mais eficaz para tirar uma população de um estado de apatia e inércia e educá-la para o trabalho perseverante e para uma conduta guiada pela previsão prudente. Entretanto, um povo que uma vez adotou o sistema de produção em grande escala, seja nas manufaturas seja na agricultura, provavelmente não abandonará esse sistema; e diria que não é desejável tal abandono, caso se mantenha a devida proporção da população com os meios de sustento. Não há dúvida de que o trabalho é mais produtivo no sistema de grandes empresas industriais; a produção, se não for maior em termos absolutos, é maior em proporção à mão-de-obra empregada: consegue-se sustentar igualmente bem o mesmo número de pessoas, com menos trabalho e mais lazer — o que representará uma vantagem manifesta, assim que a civilização e o aperfeiçoamento tiverem avançado tanto, que aquilo que é um benefício para o todo seja um benefício para cada indivíduo que o compõe. E sob o aspecto moral da questão, que é ainda mais importante que o econômico, o aperfeiçoamento industrial deve ter um objetivo melhor que o de espalhar a humanidade pela Terra, em famílias isoladas, cada uma delas governada internamente, como acontece atualmente com as famílias, por um déspota patriarcal, e dificilmente apresentando alguma comunidade de interesse ou comunhão mental necessária com outros seres humanos. Nessas condições, é absoluto o domínio do cabeça da família sobre os demais membros, enquanto o efeito sobre sua própria mente tende à concentração de todos os interesses na família, considerada como uma expansão do seu chefe, tendendo também à absorção de todas as paixões na posse exclusiva, e de todas as preocupações na preservação e na aquisição. Esse estágio moral pode ser aceito como um passo para sair do estágio puramente animal e passar para o humano, para sair da escravização aos instintos animais e passar para o sistema de previsão prudencial e de autogoverno. Mas, se desejarmos espírito público, sentimentos generosos, ou justiça e igualdade verdadeiras, a escola em que se cultivam tais virtudes não será a do isolamento dos interesses, mas a de associação de interesses. O objetivo do aperfeiçoamento não deve consistir apenas em colocar os seres humanos em uma condição em que possam viver uns sem os outros, mas capacitá-los a trabalhar uns com os outros ou uns pelos outros, em relações que não envolvam a dependência recíproca. Até agora não tem havido outra alternativa, para aqueles que vivem do seu trabalho, senão cada um trabalhar só para si mesmo, ou então trabalhar para um patrão. Contudo, pode-se obter as influências civilizadoras e melhoradoras da associação, e a eficiência e a economia da produção em grande escala, sem dividir os produtores em duas classes que têm interesses e sentimentos hostis, sendo que os muitos que executam o trabalho não passam de empregados sob o comando daquele que fornece o capital e não têm nenhum interesse pessoal na empresa, afora ganhar seus salários com o mínimo de trabalho possível. Quanto a esse item, são fartamente concludentes as pesquisas e as discussões dos últimos cinquenta anos, e os acontecimentos dos últimos trinta anos. Se continuar o progresso já feito — progresso este que nem mesmo o despotismo militar triunfante conseguiu sustar, embora tenha conseguido retardá-lo —, pouca dúvida resta de que a condição de trabalhadores assalariados tenderá gradualmente a limitar-se exclusivamente àqueles tipos de obreiro que, em razão de seu baixo nível moral, são inaptos para uma condição mais independente, não havendo dúvida de que a relação entre patrões e operários será gradualmente substituída pela parceria, e isto em uma das duas formas: em alguns casos, na forma de associação dos trabalhadores com o capitalista, e em outros, e ao final, talvez, em todos eles, na de associação de trabalhadores entre si. § 5. A primeira dessas duas formas de associação vem sendo praticada há muito tempo — não como uma regra, mas como uma exceção. Em vários setores profissionais já existem casos em que cada um que contribui para o serviço — seja com seu trabalho, seja com os seus recursos pecuniários — tem o interesse de um sócio no empreendimento, proporcional ao valor da contribuição que presta. Já é praxe remunerar aqueles em quem se deposita confiança especial, dando-lhes uma percentagem sobre os lucros; e há casos em que esse princípio é aplicado à categoria dos simples trabalhadores manuais, com excelente resultado. Nos navios americanos que fazem comércio com a China, de há muito é costume cada marinheiro ter um interesse nos lucros resultantes da viagem — e a isso se tem atribuído a boa conduta generalizada desses marujos, bem como a raridade extrema de qualquer conflito entre eles e o governo ou o povo do país. Um exemplo disso na Inglaterra — não tão conhecido quanto mereceria — é o dos mineiros da Cornualha. “Na Cornualha, as minas são exploradas no estrito regime de um empreendimento solidário: grupos de mineiros contratam com o feitor — que representa o proprietário da mina — a exploração de determinada parte do veio e a preparação do minério para o mercado a um preço calculado sobre a soma pela qual o minério é vendido. Esses contratos são feitos a determinados períodos regulares, geralmente a cada dois meses, e assumidos por um grupo voluntário de sócios acostumados à mina. Esse sistema tem as suas desvantagens, em decorrência da incerteza e da irregularidade dos ganhos, e da consequente necessidade de viver de crédito por muito tempo; mas apresenta vantagens que neutralizam de longe esses inconvenientes. Gera um grau de inteligência, de independência, e de elevação moral que eleva a condição e o caráter do mineiro da Cornualha muito acima da generalidade da classe trabalhadora. Conta-nos o sr. Barham que eles não somente são, como classe, inteligentes como trabalhadores, mas também homens de conhecimento considerável. Além disso, têm caráter de autonomia, algo como os americanos, já que o sistema desses contratos lhes dá plena liberdade de se organizarem entre si, de sorte que cada um sente, como sócio nessa pequena firma, que se relaciona com seus empregadores em termos quase de igualdade (...) Com essa base de inteligência e de independência de caráter, não nos surpreendemos ao ouvir que um número muito elevado de mineiros mora atualmente em terrenos próprios, arrendados pelo período de três gerações ou 99 anos, terrenos estes nos quais construíram casas; ou então ficamos sabendo que nos bancos de poupança da Cornualha estão depositadas 281 541 libras, das quais 2/3 pertencem a mineiros, segundo as estimativas.” (Esta passagem foi extraída do Prize Essay sobre as Causes and Remedies of National Distress, do sr. Samuel Laing. Os extratos que inclui são tirados do Apêndice ao Report of the Children’s Employment Commission). O sr. Babbage, que também descreve esse sistema, observa que o pagamento às tripulações dos baleeiros é regido por um princípio similar, e que “os lucros auferidos da pesca com rede, nas costas do sul da Inglaterra, são assim divididos: metade do produto pertence ao dono do barco e da rede; metade é dividida em porções iguais entre as pessoas que utilizam a rede, sendo elas também obrigadas a ajudar a repará-la, quando necessário”. Cabe ao sr. Babbage o grande mérito de ter assinalado a exequibilidade e a vantagem de estender esse princípio à indústria manufatureira em geral. (Economy of Machinery and Manufactures) Tem despertado certa atenção uma experiência dessa natureza, começada há mais de trinta anos por um comerciante de Paris, um pintor de casas, o sr. Leclaire (Seu estabelecimento está localizado na Rue Saint Georges, 11) — experiência descrita por ele mesmo em um folheto publicado no ano de 1842. Segundo sua afirmação, o sr. Leclaire emprega, em média, duzentos trabalhadores, que paga da forma costumeira, com salários fixos. Para si mesmo, além dos juros pelo seu capital reserva-se uma quantia fixa, pelo seu trabalho e responsabilidade gerencial. No fim do ano os lucros restantes são divididos entre todos, incluindo ele mesmo na proporção dos salários de cada um (É manifesto, porém, que os trabalhadores que o sr. Leclaire admitiu a esta participação nos lucros eram apenas parte (menos do que a metade) do número total dos empregados. Isso é explicado por outra parte de seu sistema. O sr. Leclaire paga a taxa salarial plena a todos os seus operários. Por isso, a participação nos lucros, que lhes é dada, representa um acréscimo evidente aos ganhos normais próprios da classe deles, acréscimo este que Leclaire muito louvavelmente utiliza como um instrumento para melhorar a empresa, fazendo com que essa participação seja a recompensa pelo merecimento, ou a remuneração por uma confiança especial depositada no trabalhador). São altamente instrutivas as razões que levaram o sr. Leclaire a adotar esse sistema. Constatando ser insatisfatória a conduta de seus trabalhadores primeiro tentou pagar-lhe salários melhores, e com isso conseguiu um conjunto de trabalhadores excelentes, que não estavam dispostos a abandonar seu serviço em troca de nenhum outro. “Tendo assim conseguido (cito a partir de um extrato do folheto publicado no Chambers’ Journal (Número de 27 de setembro de 1845)) produzir certa estabilidade na organização de sua firma, o sr. Leclaire esperava — afirma ele — desfrutar de mais tranquilidade. Mas nisso teve uma decepção. Enquanto tinha condições de supervisionar tudo pessoalmente, desde os assuntos gerais do seu negócio até os mínimos detalhes teve certa satisfação; todavia, a partir do momento em que, em razão do aumento dos negócios, constatou que não podia fazer mais do que funcionar como centro emissor de ordens, centro este ao qual convergiam os relatórios, passou novamente a sentir o peso das preocupações e do incômodo de antes.” Fala por alto das outras fontes de preocupação, às quais está sujeito um comerciante, mas descreve como causa incessante de sofrimento as perdas derivantes da má conduta dos trabalhadores. Um empregador “encontrará trabalhadores cuja indiferença em relação aos seus interesses é tão grande que não executam sequer 2/3 do trabalho de que são capazes; daí a contínua irritação dos patrões, os quais, vendo que seus interesses são postos de lado, se sentem autorizados a supor que os trabalhadores estão constantemente conspirando para arruinar aqueles dos quais auferem seu ganha-pão. Se o artífice assalariado estivesse seguro de emprego constante, sua posição seria, sob certos aspectos, mais invejável que a do patrão, porque tem certeza que receberá determinado salário diário, tanto trabalhando muito como trabalhando pouco. Ele não incorre em risco algum, e não tem nenhuma outra motivação que o estimule a fazer o melhor que pode, afora seu próprio senso do dever. Em contrapartida, o patrão depende altamente da sorte, quanto aos seus retornos: sua posição é de irritação e preocupação contínua. Isso não mais aconteceria, na mesma extensão, se os interesses do patrão e os dos trabalhadores convergissem, estivessem unidos por algum laço de garantia mútua, tal como a que se conseguiria adotando o esquema de uma divisão anual dos lucros”. O sucesso foi notável, mesmo no primeiro ano durante o qual o sr. Leclaire implantou plenamente sua experiência. Nenhum de seus artífices, que trabalham até trezentos dias, ganhou, naquele ano, menos de 1500 francos, e alguns ganharam bem mais. Sendo o salário superior a 4 francos por dia, ou seja, 1200 francos por trezentos dias, os 300 francos restantes, ou seja, 12 libras, devem ter sido a soma mínima que qualquer trabalhador, que tivesse trabalhado trezentos dias, ganhou como cota proporcional dos lucros sobrantes. O sr. Leclaire descreve com entusiasmo as melhoras que já se manifestavam nos hábitos e no comportamento dos seus empregados, não somente no trabalho, e nas relações deles com o empregador, mas também em outras ocasiões e em outras relações, demonstrando mais respeito tanto no que concerne a outros como a si mesmos. O sr. Chevalier, em uma obra publicada em 1848 (CHEVALIER, Michel. Lettres sur l’Organisation du Travail. Lettre XIV), afirmou, com base na autoridade do sr. Leclaire, que o aumento de zelo dos trabalhadores continuou a constituir uma compensação plena para ele, mesmo em um sentido pecuniário, pela parcela de lucro à qual renunciara em favor deles. E o sr. Villiaumé (Nouveau Traité d’Economie Politique) observa, em 1857: “Mesmo sem nunca praticar as fraudes que não deixam de ser muito frequentes em sua profissão, ele sempre conseguiu manter-se contra a concorrência, e conseguiu adquirir boa fortuna, apesar de abrir mão de uma parcela tão grande de seus lucros. Com certeza, ele só teve esse sucesso porque a diligência incomum de seus empregados, e a supervisão que um exercia sobre o outro lhe compensaram o sacrifício que fizera, de contentar-se com apenas uma parcela do seu ganho”. (Atualmente, a empresa do sr. Leclaire opera com um sistema um pouco modificado, embora se mantenha o princípio de dividir os lucros. A empresa tem hoje três sócios: o próprio Leclaire, outra pessoa (o sr. Defournaux) e uma sociedade de previdência (Société de Secours Mutuels), da qual são membros todos os empregados da empresa do sr. Leclaire. (Essa sociedade previdenciária possui excelente biblioteca, sendo que nela são regularmente ministradas conferências científicas, técnicas e sobre outros assuntos.) Cada um dos três sócios tem 100 mil francos investidos na empresa, havendo o sr. Leclaire adiantado à sociedade previdenciária o que foi necessário para suprir a insuficiência inicial de fundos desta última. A participação no capital, por parte desta, é limitada, e da parte do sr. Leclaire e do sr. Defournaux é ilimitada. Estes dois recebem, cada um, 6 mil francos (240 libras) por ano, a título de remuneração pela gerência. Dos lucros anuais, recebem a metade, embora possuam 2/3 do capital. A metade restante pertence aos funcionários e operários, sendo 25 desta pagos à sociedade previdenciária, e os outros 3/5 divididos entre os funcionários e empregados da empresa. Atualmente, porém, o sr. Leclaire se reserva o direito de decidir quem participará da distribuição dos lucros, e em quanto importa essa participação; compromete-se apenas a nunca reter nenhuma parcela, mas a dar à sociedade previdenciária todo o lucro sobrante que não foi pago a indivíduos. Além disso, está previsto que, em caso de os dois sócios privados se retirarem da empresa, passam a ser propriedade da sociedade, sem pagamento, a clientela e as instalações). O exemplo benéfico dado pelo sr. Leclaire tem sido seguido, com brilhante sucesso, por outros empregadores parisienses de mão-de-obra em grande escala; permito-me acrescentar, da obra à qual acabo de referir-me (aliás, um dos melhores dentre os muitos bons tratados de Economia Política produzidos pela geração atual de economistas políticos da França), alguns exemplos notáveis do benefício econômico e moral que decorre desse sistema admirável. ("Em março de 1847, o sr. Paul Dupont chefe de uma tipografia de Paris, teve a ideia de transformar em sócios seus operários, cedendo-lhes 1/10 dos lucros. Ele emprega habitualmente trezentas pessoas: duzentas em trabalho por tarefa, e cem pagas por dia. Emprega, além disso, cem operários extras, que não são sócios da associação. Em média, a parcela de lucro que cabe aos operários não lhes dá mais do que o equivalente a duas semanas de salário, todavia, recebem seu salário normal de acordo com as taxas vigentes em todas as grandes tipografias de Paris, tendo além disso a vantagem de atendimento médico em caso de doença, à custa da associação, mais um franco e meio por dia, quando incapacitados para o trabalho. Os operários só podem retirar sua parcela de lucro ao abandonarem a associação. Esse dinheiro é aplicado a juros (por vezes investido nos fundos públicos), formando uma reserva acumulada de poupanças para os respectivos proprietários. "O sr. Dupont e os seus sócios constatam que essa associação é uma fonte de grande lucro adicional para eles, e os operários, de sua parte, se alegram diariamente pela feliz ideia de seu empregador. Vários deles, com seu trabalho, levaram a empresa a ganhar uma medalha de ouro em 1849, e uma medalha de honra na Exposição Universal de 1855; alguns até receberam pessoalmente a recompensa de suas invenções e de seus trabalhos. Sob o comando de um empregador comum, essas excelentes pessoas não teriam tido tempo para sustentar em juízo sua invenções, a não ser deixando toda a honra a alguém que não era o autor delas; todavia, sendo associados, se o empregador tivesse cometido injustiça, duzentas pessoas o teriam obrigado a repará-la. "Visitei essa empresa e pude ver com meus próprios olhos a melhoria que a parceria produz nos hábitos dos trabalhadores. "O sr. Gisquet, anteriormente chefe de polícia, durante muito tempo foi dono de uma velha manufatura em St. Denis, a mais importante existente na França, depois da do sr. Darblay, de Corbeil. Quando, em 1848, assumiu pessoalmente a administração dela, encontrou operários que se embebedavam vários dias por semana, e durante o serviço cantavam, fumavam, e às vezes brigavam entre si. Haviam-se feito muitas tentativas infrutíferas para mudar essa situação; ele conseguiu isso, proibindo-lhes de se embebedarem em dias de serviço sob pena de demissão, e ao mesmo tempo prometendo-lhes repartir com eles, por meio de uma gratificação anual, 5% de seus lucros líquidos, em parcelas proporcionais aos salários, sendo estes determinados de acordo com as taxas correntes. A partir dessa data, a reforma foi completa, e hoje ele está cercado de cem operários zelosos e dedicados. O conforto deles aumentou no montante equivalente ao que deixaram de gastar com bebida, mais o que ganham com sua pontualidade no trabalho. A gratificação anual tem dado, em média, o equivalente ao salário de seis semanas. "O sr. Beslay, membro da Câmara dos Deputados de 1830 a 1839, e posteriormente membro da Assembleia Constituinte, fundou uma manufatura importante de máquinas a vapor em Paris, no bairro do Temple. Transformou seus operários em parceiros, desde o início de 1847, e o contrato de associação é um dos mais completos que se tenha feito entre empregadores e operários." Pela sua sagacidade prática, emigrantes chineses há muito tiveram a ideia, segundo o relatório de um homem que há pouco visitou Manila, de uma constituição similar da relação entre um empregador e os trabalhadores. “Nestas lojas chinesas (em Manila), o proprietário geralmente engaja toda a diligência de seus patrícios empregados por ele, dando a cada um deles uma parte nos lucros do estabelecimento, ou, na realidade, transformando-os todos em pequenos sócios do empreendimento, do qual naturalmente ele toma o cuidado de manter a parte do leão, assim sendo, ao mesmo tempo que ele sai ganhando por administrar bem a empresa, também os operários se beneficiam. Esse princípio é aplicado a tal ponto que é costume a empresa dar até aos seus trabalhadores braçais uma parte nos lucros, em lugar de salários fixos; ao que parece, esse esquema é adequado para o caráter deles: com efeito, se tendo um salário fixo só trabalham na presença do patrão, constata-se que se tornam altamente aplicados e úteis quando interessados em participarem do lucro, mesmo que seja mínima a parcela de lucro que lhes cabe.” MCMICKING. Recollections of Manilla and the Philippines durante 1848,1849 e 1850). Até a promulgação da Lei da Responsabilidade Limitada, acreditava-se que um sistema similar ao do sr. Leclaire teria sido impossível na Inglaterra, já que os trabalhadores não podiam, na legislação anterior, ter sido associados aos lucros, sem serem também responsáveis pelas perdas. Um dos muitos benefícios desse grande aprimoramento da legislação consiste em possibilitar tais associações de interesse, e hoje podemos esperar que elas sejam implantadas na prática. Os srs. Briggs, das minas de carvão de Whitwood e Methley, perto de Normanton, no Yorkshire, deram o primeiro passo. Hoje, eles exploram essas minas por meio de uma empresa; eles mesmos continuam a possuir 2/3 do capital da mesma, porém se propõem, na repartição do terço que resta, a dar preferência aos “funcionários e trabalhadores empregados na firma”; e, o que é ainda mais importante, toda vez que o lucro anual supera os 10%, metade desse excedente é dividido entre os trabalhadores e funcionários, sejam eles acionistas ou não, em proporção aos ganhos deles durante o ano. É muito honroso para esses grandes empresários terem iniciado um sistema tão benéfico, tanto para os empregados como para o interesse geral do aprimoramento social; eles não fazem outra coisa senão expressar uma justa confiança nesse princípio, ao afirmarem que “a adoção da forma de apropriação aqui recomendada acrescentaria, como acreditamos, um elemento tão grande de sucesso à empresa, que os dividendos dos acionistas aumentariam, em vez de diminuírem”. § 6. Todavia, a forma de associação que, se a humanidade continuar a aperfeiçoar-se, deverá predominar, como se espera, não é aquela que pode existir entre um capitalista, que funciona como chefe, e trabalhadores destituídos de voz na administração, mas sim a associação dos próprios trabalhadores entre si, em termos de igualdade, possuindo eles, coletivamente, a propriedade do capital com o qual operam, e trabalhando sob o comando de administradores eleitos e substituídos por eles mesmos. Enquanto essa ideia permaneceu no estágio de teoria, nos escritos de Owen ou de Louis Blanc, pode ter parecido, à luz das maneiras de julgar correntes, que ela era impossível de ser realizada, e que não havia probabilidade de se tentar a sua implantação, a não ser lançando mão do capital já existente, e confiscando-o em benefício dos trabalhadores; aliás, tanto na Inglaterra como no continente, ainda hoje há muitas pessoas que imaginam — e muito mais ainda, que pretendem — que esse seja o intuito e o propósito do socialismo. Contudo, há uma capacidade de iniciativa e de auto renúncia, nas massas da humanidade, que só se chega a conhecer nas raras ocasiões em que se lança um desafio a essas qualidades, em nome de alguma grande ideia ou sentimento elevado. Tal desafio foi lançado pela revolução francesa de 1848. Naquela ocasião, pela primeira vez pareceu às classes trabalhadoras inteligentes e generosas de uma grande nação que haviam conseguido um governo que desejava sinceramente a liberdade e a dignidade da população, e que não encarava essa liberdade e dignidade como instrumentos naturais e legítimos de produção, utilizados em benefício dos donos de capital. Com esse estímulo, cresceram e frutificaram as ideias semeadas por autores socialistas, de uma emancipação do trabalho, a ser realizada por meio da associação dos próprios trabalhadores; muitos trabalhadores chegaram à resolução não somente de trabalharem uns para os outros, em vez de trabalharem para um comerciante ou manufator patrão, mas também de se libertarem, a qualquer custo de trabalho ou de privação, da necessidade de pagar, com o produto de seu trabalho, alto tributo pelo uso do capital; resolveram que aboliriam esse tributo oneroso, não roubando dos capitalistas aquilo que eles ou os seus predecessores haviam adquirido com o trabalho e haviam guardado economizando, mas adquirindo eles mesmos capital, de maneira honesta. Se somente alguns trabalhadores tivessem empreendido essa árdua tarefa, ou se, ainda que muitos a tivessem tentado, somente alguns tivessem obtido êxito, poder-se-ia ter acreditado que o sucesso deles não representaria argumento algum a favor do sistema pelo qual optaram, como forma permanente de organização industrial. Entretanto, excluindo todos os casos de fracasso, existem, ou existiram até pouco tempo atrás, mais de cem associações bem-sucedidas de trabalhadores, somente em Paris, e muitas outras altamente prósperas, além de um número considerável delas fora de Paris. O sr. H. Feugueray publicou um resumo instrutivo da história delas e dos princípios que as regem, sob o título de L’Association Ouvrière Industrielle et Agricole; e, uma vez que os jornais ingleses afirmam com frequência haverem fracassado as associações existentes em Paris — o que é feito por autores que parecem confundir as previsões dos adversários dessas associações, no momento de seu início de implantação, com os testemunhos da experiência subsequente —, considero importante mostrar, com citações extraídas da obra do sr. Feugueray, reforçadas por testemunhos posteriores, que essas afirmações tendenciosas não somente estão longe da verdade, mas também traduzem exatamente o oposto dela. O capital da maioria dessas associações de trabalhadores limitava-se inicialmente às poucas ferramentas pertencentes aos fundadores, e às pequenas somas que se conseguia juntar das poupanças deles, ou que lhes eram emprestadas por outros trabalhadores, mais pobres do que eles mesmos. Em alguns casos, porém, o Governo republicano lhes emprestava capital; entretanto, no geral, de forma alguma parece que as associações mais prósperas sejam aquelas que conseguiram esses empréstimos, ou ao menos as que os obtiveram antes de atingirem sucesso. Os casos mais impressionantes de prosperidade são os daquelas associações que nada tinham em que pudessem confiar, a não ser unicamente os seus parcos recursos e os pequenos empréstimos de trabalhadores companheiros, e cujos associados viviam de pão e água enquanto dedicavam toda a sobra de seus ganhos à formação de um capital. “Muitas vezes — afirma o sr. Feugueray — não dispunham de dinheiro algum, não tinham sequer condições de pagar salários. As mercadorias não saíam, os pagamentos não entravam, não havia possibilidade de descontar títulos, o depósito de matérias-primas estava vazio: tinham que aceitar privações, reduzir todas as despesas ao mínimo, viver às vezes a pão e água. (...) Foi com o preço dessas agruras e preocupações que homens que começaram praticamente sem nenhum outro recurso a não ser a sua boa vontade e o seu trabalho conseguiram clientes, adquiriram crédito, formaram, ao afinal, um capital conjunto, fundando assim associações cujo futuro hoje parece assegurado.” Permito-me citar por extenso a história notável de uma dessas associações. “A necessidade de um grande capital para implantar uma fábrica de pianos era tão plenamente reconhecida entre os profissionais do ramo, que em 1848 os delegados de várias centenas de trabalhadores, que se haviam unido para formar uma grande associação, solicitaram do Governo uma subvenção de 300 mil francos [12 mil libras], isto é, a décima parte da quantia total aprovada pela Assembleia Nacional. Lembro-me que, sendo eu um dos membros da comissão encarregada da distribuição do fundo, tentei em vão, durante duas horas, convencer os dois delegados com os quais a comissão conversou de que o pedido deles era exorbitante. Responderam imperturbáveis que seu ramo de atividade era de tipo especial, que a associação só tem chance de sucesso em uma escala muito grande, e com um capital considerável, e que 300 mil francos representavam o mínimo que lhes poderia bastar, e que não poderiam reduzir de um único soldo a solicitação feita. A comissão acabou indeferindo o pedido. “Hoje, depois dessa recusa, tendo-se abandonado o projeto de uma grande associação, o que aconteceu foi o seguinte. Catorze trabalhadores — e é singular que entre eles figurava um dos dois delegados — resolveram fundar, por conta própria, uma associação para fabricar pianos. O projeto era cheio de riscos, em se tratando de pessoas que não dispunham nem de dinheiro nem de crédito; mas a fé não raciocina — ela age. “Os nossos catorze homens começaram a trabalhar; cito, de um excelente artigo escrito pelo sr. Cochut no National —, cuja exatidão posso testemunhar — o seguinte relato sobre os primeiros passos dados. “Alguns deles, que haviam trabalhado por conta própria, traziam consigo, em ferramentas e materiais, o valor de aproximadamente 2 mil francos [80 libras]. Além disso, precisava-se de um capital circulante. Cada membro da associação, não sem dificuldade, conseguiu subscrever 10 francos [8 xelins]. Determinado número de trabalhadores, não interessados na sociedade, deram sua adesão, trazendo pequenas contribuições. Em 10 de março de 1849, tendo-se juntado uma soma de 229 1/2 francos [£ 9 3 s. 71/2 d.], declarou-se constituída a associação. “Essa soma não era sequer suficiente para montar uma oficina e para pagar as pequenas despesas exigidas diariamente para a operação dela. Não sobrando nada para o pagamento dos salários, passaram quase dois meses sem que os trabalhadores recebessem qualquer dinheiro. Como conseguiriam sobreviver durante esse intervalo? Da maneira em que vivem trabalhadores quando desempregados, partilhando da porção de um companheiro que está empregado, e também vendendo ou penhorando, um a um, os poucos bens que possuíam. “Executaram alguns serviços encomendados. Receberam o pagamento no dia 4 de maio. Aquele dia foi para eles como uma vitória na abertura de uma campanha, e por isso resolveram celebrá-lo. Depois de pagarem todas as dívidas vencidas, os dividendos que sobraram para cada membro foram de 6 francos e 61 cêntimos. Concordaram em dar a cada um 5 francos [4 xelins] por conta de seus salários, e gastar o resto em uma refeição fraterna. Os catorze acionistas, a maioria dos quais não havia provado vinho durante o ano que passara, se encontraram, juntamente com suas esposas e filhos. Gastaram 32 soldos [1 s. 4 d.] por família. Ainda hoje, nas suas oficinas, falam desse dia com uma emoção de que é difícil a gente não partilhar. “Ainda durante um mês, foi preciso contentarem-se com receber 5 francos por semana. No decurso de junho, um padeiro, por amor à música ou para fazer especulação, se ofereceu para comprar um piano, pagando com pão. O negócio foi fechado ao preço de 480 francos. Foi um golpe de sorte para a associação. Tinham agora ao menos o que era indispensável. Resolveram não computar o pão na conta dos salários. Cada um comia segundo seu apetite, ou melhor, de acordo com o apetite da família, pois se permitiu aos acionistas casados levarem pão à vontade, para suas esposas e filhos. “Nesse meio tempo, a associação, por ser composta de excelentes trabalhadores. gradualmente superou os obstáculos e as privações que haviam complicado seu início. Seus registros contábeis fornecem a melhor prova do progresso que seus pianos fizeram na estima dos compradores. Desde agosto de 1849, o que recebiam semanalmente aumentou para 10, 15 e 20 francos por semana: essa última soma não representa todos os seus lucros, pois cada sócio deixou no caixa comum muito mais do que recebeu dele. Com efeito, não é com base na soma que o membro recebe semanalmente que se avalia a condição dele, mas pela parte adquirida na posse de uma propriedade já considerável. A posição da associação, no inventário efetuado a 30 de dezembro de 1850, era a seguinte. “Nessa época, o número de acionistas era 32. Grandes oficinas e depósitos, alugados por 2 mil francos, já não eram suficientes para a atividade. Francos Cêntimos Independente das ferramentas, avaliadas em . . . 5 922 possuíam, em mercadorias, especialmente em matérias-primas, o valor de . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 972 Em caixa, tinham . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 021 Em títulos, tinham . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 540 A receber, tinham . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 861 Tinham, portanto, na conta de crédito . . . . . . . . 39 317 Contra esse valor, a conta de débito registrava apenas 4 737 francos e 86 cêntimos a pagar a credores, e 1650 francos devidos a oitenta simpatizantes; no total, portanto, deviam . . . . . . . . 6 387 Saldo positivo restante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 930 [£ 1319 4 s.], saldo este que constituía seu capital indivisível, e a reserva dos membros individuais. Nessa época, a associação tinha 76 pianos encomendados e em fabricação, e recebia mais encomendas do que as que tinha condições de atender.” De um relatório posterior ficamos sabendo que essa sociedade se dividiu, mais tarde, em duas associações distintas, uma das quais, em 1854, já possuía um capital circulante de 56 mil francos [2 240 libras]. Em 1864, o capital total desta era de 6 520 libras. (Artigo do sr. Cherbuliez sobre “Operative Associations”, no Journal des Economistes de novembro de 1860. Acrescento, citando dos srs. Villiaumé e Cherbuliez, detalhes relativos a outras experiências, altamente bem-sucedidas, e feitas por trabalhadores que se associaram. “Citaremos primeiro — diz o sr. Cherbuliez —, como associações que atingiram seu objetivo e chegaram a um resultado inegável, a Associação Remquet, da Rue Garancière, em Paris, cujo fundador, em 1848, era capataz na tipografia do sr. Renouard. Estando essa firma na iminência de fechar, propôs a seus companheiros de trabalho juntarem-se a ele para darem continuidade ao empreendimento por conta própria, solicitando do Governo uma subvenção monetária para comprar o estabelecimento e cobrir as primeiras despesas. Quinze de seus companheiros aceitaram a proposta, e formaram uma associação, cujos estatutos fixaram o salário para cada tipo de trabalho, e cuidaram da constituição gradual de um capital de giro, mediante a dedução de 25% de todos os vencimentos e salários, valor sobre o qual não era permitido cobrar dividendos ou juros durante os dez anos de duração projetada do estabelecimento. Remquet solicitou e obteve para si a direção total do empreendimento, recebendo um salário fixo bem modesto por isto. Quando a firma fechasse, a totalidade dos lucros deveria ser dividida entre todos os membros, proporcionalmente à sua participação no capital, isto é, ao serviço que haviam prestado. O Estado concedeu uma subvenção de 80 mil francos, não sem grande dificuldade, e em condições bem onerosas. A despeito disso e das circunstâncias desfavoráveis resultantes da situação política do país, a associação prosperou tanto que, na liquidação, depois de pagar o empréstimo concedido pelo Estado, possuía um capital líquido de 155 mil francos [6 200 libras], cuja divisão deu, em média, entre 10 e 11 mil francos para cada associado; a parcela mínima distribuída foi de 7 mil francos e, a máxima, de 18 mil. “A Associação Fraterna de operários fabricantes de lanternas e de funileiros fora fundada em março de 1848 por quinhentos operários, que abrangiam quase todos os profissionais do ramo. Uma vez que a primeira tentativa, inspirada por ideias não práticas, não sobreviveu aos dias fatais de junho, constituiu-se uma nova associação, de proporções menores. Composta originalmente de quarenta membros, começou a operar em 1849, com um capital resultante das subscrições de seus membros, sem solicitar subvenção. Depois de vários percalços, que reduziram o número de sócios a três, depois o aumentaram para catorze, para depois novamente reduzi-lo a três, a associação acabou por englobar 46 membros, os quais tranquilamente reformularam seus estatutos naqueles pontos que a experiência havia demonstrado falhos; tendo o número de associados aumentado sucessivamente para cem, a associação possuía, em 1858, uma propriedade conjunta de 50 mil francos, tendo condições de repartir anualmente 20 mil francos. "A associação de operários joalheiros, a mais antiga de todas, fora fundada em 1831, por oito trabalhadores, com um capital de 200 francos [8 libras], proveniente das poupanças conjuntas deles. Uma subvenção de 24 mil francos lhes possibilitou, em 1849, ampliar muito suas operações, que em 1858 já atingiram o valor de 140 mil francos, e deu a cada associado dividendos anuais equivalentes ao dobro de seus salários." O sr. Villiaumé relata o seguinte: "Depois da insurreição de junho de 1848, suspendeu-se a atividade no bairro de St. Antoine, o qual, como sabemos, é ocupado sobretudo por fabricantes de móveis. Alguns operários do ramo de confecção de poltronas fizeram um apelo àqueles que quisessem associar-se a eles. De seiscentos ou setecentos que praticavam a profissão, quatrocentos deram seu nome. Mas, faltando capital, nove dos mais zelosos começaram a associação com tudo o que possuíam, a saber, um valor de 369 francos em ferramentas, e 135 francos e 20 cêntimos em dinheiro. "Pelo seu bom gosto, pela sua honestidade e pontualidade, conseguiram aumentar o negócio, passando a contar logo com 108 associados. Receberam do Estado um empréstimo de 25 mil francos, pagáveis em catorze anos mediante anuidades, com juros de 3 3/4%. “Em 1857 o número de associados é de 65, os auxiliares somam em média cem. Todos os sócios votam na eleição de um conselho de oito membros, e na de um administrador que representa a firma. A distribuição e a supervisão de todos os trabalhos estão confiadas a capatazes escolhidos pelo administrador e pelo conselho. Há um capataz para cada 20 ou 25 trabalhadores. “O pagamento é por tarefa, as taxas determinadas em assembleia geral. Os ganhos variam de 3 a 7 francos por dia, conforme o zelo e a habilidade do operário. A média é de 50 francos [2 libras] por quinzena, sendo que ninguém ganha muito menos de 40 francos por quinzena, enquanto muitos ganham 80. Alguns dos entalhadores e moldadores ganham até 100, isto é, 200 francos [8 libras] por mês. Cada um se obriga a trabalhar 120 horas por quinzena, iguais a 10 horas por dia. Pelo regulamento, cada hora trabalhada a menos desse montante sujeita o infrator a uma multa de 10 cêntimos [1 pêni] por hora, até 30 horas, e de 15 cêntimos [1 1/2 d.] para cada hora que passar disso. O que se visava com essa norma era abolir a falta na segunda-feira, e isso foi conseguido. Durante os dois últimos anos, a conduta dos membros tem sido tão exemplar que as multas caíram em desuso. “Embora os sócios tenham começado com um estoque de apenas 369 francos de ferramentas, o valor das instalações (Rue de Chavonne, Cour St. Joseph, Faubourg St. Antoine) equivalia, já em 1851, a 5 713 francos, sendo que o ativo da associação, incluindo o que tinham a receber, era de 24 mil francos. A partir daí, a associação se tornou ainda mais florescente, tendo resistido a todas as tentativas feitas para impedir seu progresso. De todas as casas de Paris que lidam no ramo, é ela que mantém o maior volume de negócios e desfruta da maior consideração. Seus negócios ascendem a 400 mil francos por ano.” Seu balanço de dezembro de 1855 mostra, segundo o Sr. Villiaumé, um saldo positivo de 100398 francos e 90 cêntimos — mas na realidade, afirma o autor — de 123 mil francos. Todavia, a associação mais importante de todas é a dos pedreiros. “A associação dos pedreiros foi fundada em 10 de agosto de 1848. Seu endereço é à Rue St. Victor, 155. O número de membros é de 85, e seus auxiliares são trezentos a quatrocentos. Há dois gerentes: um para o setor de construção, outro para a administração financeira: estes são considerados como os pedreiros-mestres mais capazes de Paris, e se contentam com um salário modesto. Essa associação construiu recentemente três ou quatro das mansões mais notáveis na metrópole. Embora ela execute seu trabalho mais economicamente do que os construtores comuns, não obstante isso, pelo fato de ter de conceder créditos a longo prazo, tem de fazer adiantar muito dinheiro; apesar disso, ela prospera, como demonstram os dividendos de 56%, que foram pagos neste ano, sobre seu capital, incluindo no pagamento aqueles que se associaram às suas operações. Ela consta de trabalhadores que só entram com seu trabalho, de outros que entram com seu trabalho mais algum tipo de capital, e de uma terceira categoria, daqueles que não entram com trabalho mas somente com capital. "À noite os pedreiros mantêm programas de instrução mútua. Tanto eles como os fabricantes de poltronas dão assistência médica à custa da associação, bem como uma ajuda aos associados doentes. Estendem sua proteção a cada associado, em cada ação de sua vida. Os fabricantes de poltronas possuirão em breve, cada um, um capital de 2 ou 3 mil francos, com o qual poderão dotar suas filhas ou então iniciar uma reserva para os anos futuros. Quanto aos pedreiros, alguns já têm 4 mil francos, que deixam na caixa comum. "Antes de se associarem, esses trabalhadores se vestiam pobremente, com jaquetas e blusas, uma vez que, por falta de previdência e ainda mais, por falta de serviço, nunca dispunham de 60 francos para comprar um sobretudo. A maioria deles hoje se veste tão bem como os lojistas, e às vezes até com mais gosto. Pois o trabalhador, por ter sempre um crédito na associação, pode comprar tudo o que precisar, assinando uma solicitação; a associação se reembolsa mediante deduções salariais quinzenais, obrigando o trabalhador a poupar, diríamos, contra a vontade dele. Alguns trabalhadores que não devem à firma assinam ordens pagáveis a eles mesmos no prazo de cinco meses, para resistirem à tentação de fazer gastos desnecessários. A cada quinzena a empresa lhes deduz 10 francos do salário, e assim, ao final de cinco meses, pouparam este montante.” A tabela que segue, extraída pelo sr. Cherbuliez de uma obra (Die gewerblichen und wirthschaftlichen Genossenschaften der arbeitenden Classen in England, Frankreich und Deutschland) publicada em Tubingen em 1860 pelo Prof. Huber (um dos apóstolos mais ardentes deste tipo de cooperação e um dos imbuídos de melhores princípios) demonstra o rápido aumento progressivo de prosperidade da associação dos pedreiros até 1858: "Destes últimos dividendos —, diz o sr. Cherbuliez — 30 mil francos foram colocados no fundo de reserva, e os restantes 100 mil francos, divididos entre os sócios, deram a cada um 500 a 1500 francos, além dos seus vencimentos ou salários, e da sua participação no capital fixo da empresa." Quanto à administração das associações em geral, o sr. Villiaumé afirma: “Pude certificar-me pessoalmente da capacidade dos administradores e dos conselhos das associações de trabalhadores. Os administradores são muito superiores, em talento, em zelo, e até mesmo em polidez, à maioria dos patrões particulares nos seus respectivos ramos. E entre os trabalhadores associados, o hábito fatal da intemperança está desaparecendo gradualmente, junto com a grosseria e a rudeza que são a consequência da educação muito precária da categoria”). As mesmas qualidades admiráveis fizeram com que essas associações conseguissem vencer as primeiras lutas, levaram-nas à sua prosperidade crescente. As suas normas disciplinares, em vez de serem mais brandas, são mais rigorosas do que as das oficinas comuns; todavia, por serem normas impostas pelas próprias pessoas que as cumprirão, e por visarem manifestamente ao bem da comunidade, e não à conveniência de um empregador que se considera ter um interesse oposto, são observadas com muito mais fidelidade, e a obediência voluntária traz consigo um sentimento de valor e dignidade pessoal. Com rapidez admirável, os trabalhadores associados aprenderam a corrigir algumas daquelas ideias com que haviam começado, e que se opõem ao ensinamento da razão e da experiência. Quase todas as associações, de início, excluíam o trabalho pago por tarefa ou peça, e pagavam salários iguais, fosse maior ou menor o serviço prestado. Quase todas abandonaram esse sistema, e depois de fixarem, para cada um, determinado mínimo, suficiente para a subsistência, distribuem toda a remuneração que sobra, com base no serviço feito; a maior parte delas está até dividindo os lucros no fim do ano na mesma proporção que os ganhos. (Até a associação fundada pelo sr. Louis Blanc, a dos alfaiates de Clichy, depois de tentar esse sistema durante dezoito meses, adotou o sistema de pagar por peça ou tarefa. Vale a pena citar uma das razões indicadas pela associação para abandonar o sistema inicial. “Além dos vícios que mencionei, os alfaiates se queixavam de disputas e brigas incessantes, devido ao interesse que cada um tinha em fazer o serviço de seus colegas. A vigilância ou supervisão mútua que reinava entre eles degenerou em uma escravidão real: ninguém tinha o livre controle de seu tempo e de suas ações. Essas dissensões desapareceram desde que se introduziu o trabalho por tarefa ou peça.” Feugueray. Um dos sinais mais vergonhosos de uma condição moral baixa, revelado recentemente por uma parte das classes trabalhadoras inglesas, é a oposição que fazem ao trabalho pago por tarefa ou peça. Quando o pagamento por peça ou tarefa não é suficientemente alto, há motivo justo para reclamar. Mas a aversão ao sistema de pagar por peça, como tal, deve, a não ser que se trabalhe com noções errôneas, equivaler a uma aversão que se tem à justiça e à honestidade, a um desejo de burlar, recusando prestar serviço proporcional ao salário. O trabalho pago por tarefa é a forma perfeita do acordo trabalhista; e o acordo trabalhista, em todos os serviços e no mínimo detalhe — o princípio de pagar tanto, por tanto de serviço prestado, princípio este levado ao extremo máximo —, é o sistema, dentre todos os outros, que no atual estágio social e no atual grau de civilização mais favorece ao trabalhador, e também o que menos favorece ao que não trabalha e que deseja ser pago para ficar ocioso). A maior parte dessas associações opera com base no princípio declarado de que não existem em função do simples benefício particular dos membros individuais, mas para a promoção da causa cooperativista. Por isso, com cada ampliação de seus negócios, admitem novos membros, não (ao menos quando permanecem fiéis ao seu projeto original) para pagá-los como trabalhadores assalariados, mas para que estes entrem imediatamente a partilhar dos plenos benefícios da associação, sem que deles se exija que tragam outra coisa senão o seu trabalho; a única condição imposta é a de receberem, durante alguns anos, uma parcela menor na divisão anual dos lucros, como uma espécie de equivalente pelos sacrifícios dos membros fundadores. Quando membros deixam a associação — direito de que desfrutam sempre, em qualquer momento — não levam consigo nenhuma parcela do capital; este permanece uma propriedade indivisível, da qual os membros, enquanto permanecerem tais, têm o uso, mas não podem dispor dele arbitrariamente; pelas estipulações da maioria dos contratos, mesmo que a associação encerre as suas atividades, o capital não pode ser dividido, mas deve ser inteiramente destinado a alguma obra de beneficência ou de utilidade pública. Uma parcela fixa, geralmente considerável, dos lucros anuais não é repartida entre os membros, mas adicionada ao capital da associação, ou destinada a amortizar empréstimos feitos anteriormente a ela; outra parcela dos lucros anuais é reservada para atender aos doentes e inválidos, e outra destinada a formar um fundo para ampliar o espírito cooperativista, ou para ajudar outras associações em necessidade. Os administradores são pagos, como outros membros, pelo tempo que ocupam na administração, recebendo habitualmente o salário da mão-de-obra mais bem remunerada; todavia, segue-se a norma de que o exercício do poder nunca deve ser uma ocasião para auferir lucro. Quanto à capacidade de as associações competirem com êxito com capitalistas individuais, mesmo em um período inicial de sua existência, o sr. Feugueray afirmou: “As associações fundadas nos últimos dois anos (o sr. Feugueray escreveu em 1851) tiveram muitos obstáculos a superar; a maioria delas estava quase totalmente destituída de capital; todas elas pisavam em um terreno ainda inexplorado; corriam os riscos que sempre ameaçam os inovadores e os que iniciam. Apesar disso, em muitos dos setores em que se têm estabelecido, já são concorrentes temíveis dos estabelecimentos antigos, e parte da burguesia até se queixa delas, por esse motivo. Isso é verdade não somente em relação aos cozinheiros, aos vendedores de limonada, e aos cabeleireiros — ocupações que, devido à sua natureza, permitem às associações contarem com costumes democráticos —, mas também em outros setores em que não gozam das mesmas vantagens. Basta consultar os fabricantes de cadeiras, poltronas, arquivos, e se saberá deles se os estabelecimentos mais importantes nos seus respectivos ramos não são os dos trabalhadores associados”. Realmente, deve ser grande a vitalidade dessas associações, para ter possibilitado umas vinte delas a sobreviverem não somente à reação antissocialista, que na época lançou o descrédito sobre todas as tentativas de possibilitar aos trabalhadores serem seus próprios empregadores — não apenas às arrelias da polícia e da política hostil do Governo, desde a usurpação —, senão também, além desses obstáculos, a todas as dificuldades decorrentes da penosa situação do mundo financeiro e comercial, de 1854 até 1858. Quanto à prosperidade atingida por algumas dessas associações, mesmo atravessando esse período difícil, citei exemplos que devem ser conclusivos para todos, no tocante ao futuro brilhante reservado ao princípio da cooperação. (Nos últimos poucos anos, o movimento cooperativista teve novo impulso entre as classes trabalhadoras da França. Um relato interessante da Associação Alimentar de Grenoble encontra-se em um opúsculo do sr. Casimir Périer (Les Sociétés de Coopération); e no Times de 24 de novembro de 1864 lemos o seguinte: “Enquanto certo número de operários reclama melhores salários, ou menos horas de trabalho, outros, que também se separaram, associaram-se com o fim de exercerem suas profissões respectivas por conta própria, e juntaram fundos para a compra de instrumentos de trabalho. Fundaram uma sociedade, a ’Société Générale d’Approvisionnement et de Consommation’. Ela conta com trezentos a quatrocentos membros, que já abriram uma ‘cooperativa de consumo’ em Passy, atualmente localizada dentro da comarca de Paris. Calculam que por volta de maio próximo, quinze novas associações do mesmo tipo, que se auto-sustentam, estarão prontas para começar a operar, de sorte que, somente em Paris, o número será cinquenta a sessenta”). Não foi somente na França que essas associações iniciaram uma carreira de prosperidade. Para não dizer aqui nada sobre a Alemanha, o Piemonte e a Suíça (onde o Consum Verein (cooperativa de consumo) de Zurique é uma das associações mais prósperas da Europa), a Inglaterra pode apresentar casos de sucesso que ombreiam até com aqueles que citei ao falar da França. Sob o impulso deslanchado pelo sr. Owen, e mais recentemente difundido pelos escritos e pelos esforços pessoais de um grupo de amigos, sobretudo eclesiásticos e advogados, cujas nobres iniciativas dificilmente se podem elogiar demais, espalhou-se amplamente essa boa semente; conseguiram-se do Parlamento as alterações necessárias da legislação inglesa sobre as sociedades em nome coletivo, com base na iniciativa benéfica e cheia de espírito público do sr. Slaney; fundaram-se muitas associações industriais, e um número ainda maior de depósitos ou entrepostos cooperativos para compras no varejo. Entre estes, destacam-se já muitos exemplos de prosperidade notável, dos quais os mais notáveis são o “Leeds Flour Mill” e a “Rochdale Society of Equitable Pioneers”. A história dessa última associação, a mais bem-sucedida de todas, foi escrita de forma muito interessante pelo sr. Holyoake (Self-help by the People — History of Co-operation in Rochdale. Outro relato instrutivo sobre essa associação e outras associações cooperativistas foi escrito no Companion to the Almanack de 1862, pelo sr. John Plummer, de Kettering — ele mesmo é um dos exemplos mais inspiradores da cultura intelectual e dos princípios elevados que se possam encontrar em um trabalhador autodidata); a notoriedade que essa obra e outros meios têm dado a fatos tão encorajadores está levando a uma rápida ampliação das associações que visam a objetivos similares, no Lancashire, no Yorkshire, em Londres e alhures. O capital inicial da Rochdale Society era de 28 libras, fruto exclusivamente da economia de aproximadamente quarenta trabalhadores, por meio do processo lento de uma subscrição de 2 pence por semana (depois aumentados para 3 pence). Com esse capital, fundaram em 1844 uma pequena loja, ou depósito, para o fornecimento de alguns artigos de consumo comuns às suas próprias famílias. Quando, em razão de sua administração cuidadosa e honesta, conseguiram aumentar o número de clientes e de subscritores, ampliaram suas operações para um número maior de artigos de consumo, e em poucos anos tiveram condição de fazer grande investimento em cotas de um moinho de trigo em forma de cooperativa. O sr. Holyoake relata assim as etapas do progresso da referida sociedade até 1857: “A Equitable Pioneers Society está dividida em sete setores: secos e molhados, armarinhos, açougue, sapataria, tamancaria, alfaiataria, vendas no atacado. “Mantém-se uma conta separada para cada setor, emitindo-se a cada trimestre um relatório geral, que mostra a posição global da sociedade. “O setor de secos e molhados começou, como relatamos, em dezembro de 1844, com apenas quatro artigos para vender. Atualmente ele inclui tudo aquilo que uma loja desse gênero deve ter. “O setor de armarinhos teve início em 1847, com umas poucas atrações. Em 1854 ele foi transformado em um setor independente. “Um ano antes, em 1846, a cooperativa começou a vender carne de açougue, comprando 80 ou 100 libras de um comerciante da cidade. Depois de algum tempo, interromperam-se as vendas até 1850, quando a sociedade passou a possuir um depósito próprio. O sr. John Moorhouse, que atualmente conta com dois assistentes, compra e abate para a sociedade três bois, oito ovelhas, vários porcos e novilhos cevados, que em média são convertidos em 130 libras por semana. “A confecção de sapatos começou em 1852. Trabalham na confecção três homens e um aprendiz, mantendo-se um estoque para venda. “Também os setores de tamancaria e alfaiataria começaram em 1852. “O setor de vendas no atacado começou em 1852, e marca um passo importante na evolução da Pioneers. Esse setor foi criado para suprir todos os sócios que precisem de grandes quantidades, tendo em vista abastecer os depósitos cooperativos do Lancashire e do Yorkshire, cujos capitais pequenos são insuficientes para comprar nos melhores mercados, ou então para contratar os serviços de um profissional, aliás indispensável para cada depósito — um bom comprador, que conheça os mercados e seu métier, que sabe o que, como e quando comprar. O setor de vendas e atacadistas garante pureza, qualidade, bons preços, peso e medida-padrão, mas tudo com base no princípio que nunca falha, o pagamento em dinheiro”. Em consequência do número de membros que atualmente residem longe, e da dificuldade de atender ao grande aumento de clientes, “abriram-se depósitos filiais. Em 1856 abriu-se o primeiro deles na Oldham Road, a cerca de 1 milha do centro de Rochdale. Em 1857 abriram-se o de Castelton, outro na Whitworth Road, e um quarto em Pinfold”. O armazém, do qual o depósito original era apenas uma dependência, era alugado de terceiros, e apresentava condições de conservação muito precárias, em 1849. “Cada parte passou por uma boa reforma e por uma decoração razoável, apresentando atualmente a aparência de um local comercial bem respeitável. Um dos espaços está hoje bem aparelhado para a apresentação de novidades. Outro foi adaptado como biblioteca. (...) O local destinado a novidades está tão bem abastecido quanto o de um clube londrino.” Ele está hoje “franqueado aos sócios, e é mantido com o Fundo Educacional”, fundo este formado com 2 1/2% de todos os lucros a serem divididos, e que é reservado para fins educacionais. “A biblioteca contém 2 200 volumes, selecionados dentre os melhores livros, e entre eles muitos dos mais caros. O acesso à biblioteca é livre. De 1850 a 1855, havia uma escola para jovens, pagando os interessados 2 pence por mês. Desde 1855, a administração cedeu um espaço para o uso de vinte a trinta pessoas, da idade de catorze até quarenta anos, para instrução mútua aos domingos e às terças-feiras. (...) “O moinho de trigo naturalmente era alugado e estava localizado em Small Bridge, a certa distância da cidade — 1,5 milha e meia. Posteriormente, a sociedade construiu na cidade um moinho completamente novo para seu uso. O motor e as máquinas são da maior solidez e da melhor qualidade. O capital investido no moinho de trigo é de 8 450 libras, das quais £ 3 731 15 s. 2 d. são subscritas pela Equitable Pioneers Society. O moinho de trigo emprega onze homens”. Em período posterior, a sociedade ampliou suas operações para a manufatura própria de produtos básicos. Do sucesso da Pioneers Society nasceu não somente o moinho de trigo cooperativo, mas também uma associação cooperativa para a manufatura de algodão e de lã. “O capital desse setor é de 4 000 libras, das quais 2 042 foram subscritas pela Equitable Pioneers Society. Essa sociedade manufatureira possui 96 teares movidos a energia, empregando 26 homens, sete mulheres, quatro meninos e cinco meninas — no total, 42 pessoas. (...) “Em 1853, a cooperativa comprou, por 745 libras, um depósito (propriedade livre e alodial) localizado no lado oposto da rua, onde mantém e vende no varejo seus estoques de farinha, carne de açougue, batatas e gêneros afins. Suas salas de reunião e escritórios estão instalados no mesmo edifício. Alugam outras casas perto, para estoque e venda de tecido de algodão, malharia e sapatos. Na imensidão desses locais, o visitante topa com sapateiros e alfaiates trabalhando em condições saudáveis, e em perfeita tranquilidade quanto ao resultado apurado no sábado à noite. Os depósitos encontram-se tão bem abastecidos quanto a Arca de Noé: verdadeiros enxames de clientes animados lotam literalmente Toad Lane à noite, deslocando-se como abelhas para cada recanto. Os distritos industriais da Inglaterra não têm a oferecer outra vista igual à oferecida pela cooperativa de Rochdale em dia de sábado à noite”. ("Todavia — acrescenta o sr. Holyoake —, o que despertará mais interesse no escritor ou no leitor não é o brilhantismo da atividade comercial, mas sim o novo e aprimorado espírito que anima esse intercâmbio comercial. O comprador e o vendedor se encontram como amigos: não há astúcia de um lado, nem suspeita do outro. (...) Essas multidões de trabalhadores humildes, que anteriormente nunca sabiam quando estavam consumindo alimento de boa qualidade, que almoçavam diariamente comida adulterada, cujos sapatos estragavam-se antes da hora, cujos coletes eram ensebados e cujas esposas usavam tecido comum de algodão impossível de lavar, agora compram nos mercados como milionários, e, no que concerne à pureza dos alimentos, vivem como senhores." Aliás, provavelmente vivem muito melhor que senhores, quanto a esse particular, pois seguramente estes não são os clientes menos burlados na atual corrida de concorrência desonesta. “Os trabalhadores estão agora fazendo seus próprios tecidos, fazendo seus próprios sapatos, costurando suas próprias roupas, e moendo seu próprio trigo. Compram o açúcar mais puro e o melhor chá, e moem seu próprio café. Abatem seu próprio gado, e os animais mais bonitos e gordos da região andam bamboleando nas ruas de Rochdale para serem abatidos para o consumo de tecelões de flanela e de sapateiros. (No ano passado a sociedade fez um anúncio para contratação de um profissional para fazer compras na Irlanda, dedicando tempo integral a essa tarefa.) Quando a concorrência proporcionou essas vantagens aos pobres? E alguém ousará dizer que o caráter moral dessa gente não melhorou sob essas influências? Os abstêmios de Rochdale reconhecem que a cooperativa tem produzido mais pessoas sóbrias, desde que começou a operar, do que foram capazes de produzir todos os seus esforços, feitos durante o mesmo período. Maridos que nunca souberam o que é estar sem dívidas, e esposas pobres, que durante quarenta anos nunca tiveram 6 pence não comprometidos no bolso, agora possuem pequenos depósitos de dinheiro, suficientes para construir seus chalés, e vão toda semana ao seu próprio mercado, com dinheiro tinindo nos bolsos; e nesse mercado não há desconfiança nem impostura: não há adulteração de produtos, não há preços de intermediários. Toda a atmosfera é de honestidade. Os que lá servem não têm pressa, não usam de estratagemas nem adulam. Não têm interesse algum em chicanas. Só têm um dever a cumprir — o de dar ao cliente a medida certa, o peso pleno, e um artigo não adulterado. Em outras partes da cidade, onde o princípio comercial que reina é o da concorrência, nem mesmo toda a pregação feita em Rochdale é capaz de produzir efeitos morais como esses. “Já que a cooperativa não contraiu nenhuma dívida, não incorreu em nenhuma perda: e durante treze anos de transações, em que a receita ascendeu a 303 852 libras, não precisou enfrentar nenhum processo judicial. Os árbitros das sociedades, durante todos os anos em que exerceram a profissão ali, nunca tiveram um único caso para decidir, e estão descontentes porque ninguém recorre”). Desde o lamentável fracasso da Caixa Econômica da Rochdale, em 1849, o depósito da sociedade passou virtualmente a funcionar como Caixa Econômica da localidade. Não preciso entrar em detalhes similares no tocante à cooperativa do moinho de trigo; limito-me a afirmar que em 1860 o capital dela — com base na mesma autoridade — era de £ 26 61814 s. 6 d., e o lucro, só naquele ano, foi de £ 1016412 s. 5 d. Quanto ao setor manufatureiro, não disponho de dados certos além dos fornecidos pelo sr. Holyoake, segundo o qual o capital dessa associação, em 1857, era de 5 500 libras. Contudo, uma carta publicada no Rochdale Observer de 26 de maio de 1860, que os editores afirmam ter sido escrita por uma pessoa bem informada, diz que o capital naquela época havia atingido as 50 mil libras; a mesma carta contém afirmações altamente satisfatórias no tocante a outras associações similares: a Rosendale Industrial Company, com um capital de 40 mil libras. a Walsden Co-operative Company, com capital de 8 mil libras, a Bacup and Wardle Commercial Company, com um capital de 40 mil libras, “sendo que, deste, mais de 2/3 provêm de empréstimos contraídos a 5%, circunstância esta que, durante os últimos dois anos de prosperidade comercial sem precedente, fez com que a taxa de dividendos para os sócios ascendesse a um montante quase fabuloso”. É supérfluo entrar em outros detalhes quanto à história subsequente do cooperativismo inglês, mesmo porque este é atualmente um dos elementos reconhecidos no progresso do nosso tempo e, como tal, tem sido ultimamente alvo de bons artigos publicados na maior parte dos nossos principais periódicos, sendo que um dos mais recentes e melhores foi publicado na Edinburgh Review de outubro de 1864; por outro lado, o progresso da cooperação, de um mês para outro, é regularmente relatado no Co-operator. Não posso, porém, deixar de mencionar o último grande passo para a frente, no tocante às cooperativas, a saber, a formação, no norte da Inglaterra (e outra está a ponto de fundar-se em Londres) de uma sociedade cooperativa para venda a atacadistas, para dispensar os serviços dos comerciantes atacadistas bem como do distribuidor varejista, e para estender às sociedades a vantagem que cada sociedade dá a seus próprios sócios, a saber, a de adquirir diretamente dos produtores — por meio de uma cooperativa para compras — mercadorias estrangeiras e nacionais. Dificilmente é possível deixar de encarar com esperança as perspectivas da humanidade, quando, em dois países líderes do mundo, as camadas anônimas da sociedade contêm trabalhadores simples que, pela sua integridade, bom senso, autocontrole e confiança uns nos outros, foram capazes de coroar essas nobres experiências com o sucesso atestado pelos fatos registrados nas páginas que precedem. Com base no avanço crescente do movimento cooperativista, pode-se esperar grande aumento até da produtividade global do trabalho. As fontes desse aumento são duas. Em primeiro lugar, reduzir-se-á a dimensões menores a classe dos distribuidores, que não são produtores mas simples auxiliares da produção, e cujo número exorbitante, muito mais do que os ganhos dos capitalistas, representam a causa que explica por que uma parcela tão grande da riqueza produzida não atinge os produtores. Os distribuidores diferem dos produtores no seguinte: quando aumenta o número dos produtores, mesmo que em determinado setor possam ser numerosos em excesso, eles produzem efetivamente mais, ao passo que a multiplicação dos distribuidores não faz com que se distribua mais artigos, nem com que se distribua mais riqueza; faz apenas com que o mesmo serviço seja dividido entre um número maior de pessoas, raramente barateando sequer o processo. Restringindo-se os distribuidores ao número efetivamente necessário para tornar as mercadorias acessíveis aos consumidores — o que constitui o efeito direto do sistema cooperativista —, libera-se grande número de trabalhadores para a produção, e o capital que os alimenta e os ganhos que os remuneram serão aplicados para alimentar e remunerar produtores. Essa grande economia dos recursos mundiais seria conseguida, mesmo que a cooperação parasse em associações destinadas a compra e consumo, sem abarcar a produção. A outra maneira de o sistema de cooperação tender, ainda mais eficazmente, a aumentar a produtividade do trabalho consiste no grande estímulo dado às energias produtivas, colocando os trabalhadores, como massa, em uma relação tal com seu serviço, que faria com que o princípio e o interesse deles — já que atualmente isso não ocorre — seja fazer o máximo possível, e não o mínimo possível, em troca da remuneração que recebem. Dificilmente se pode exagerar esse benefício substancial, que no entanto não é nada em comparação com a revolução moral da sociedade que o acompanharia: a cura deste mal que é a hostilidade constante entre o capital e o trabalho, a transformação da vida humana, de um conflito de classes que se batem por interesses opostos, em uma rivalidade amiga na busca de um bem comum a todos, a elevação da dignidade do trabalho, um novo sentimento de segurança e de independência na classe trabalhadora, e a conversão da ocupação diária de cada ser humano em uma escola em que se aprende a solidariedade social e a inteligência prática. Essa é a ideia nobre que os promotores da cooperação devem ter diante de si. Entretanto, para atingir tais objetivos nesse grau, é indispensável que todos os que executam o serviço — e não apenas alguns deles — se identifiquem, ao nível dos interesses, com a prosperidade do empreendimento. Associações que, uma vez atingido o sucesso, renunciam ao princípio essencial desse sistema, e se transformam em sociedades anônimas de um número limitado de acionistas, que diferem de outras empresas simplesmente pelo fato de seus donos serem trabalhadores, associações que empregam trabalhadores assalariados sem interesse algum nos lucros (e dói-me dizer que até mesmo a sociedade-cooperativa manufatureira de Rochdale degenerou nisso) — todas elas estão, sem dúvida, exercendo um direito legal que consiste em utilizar honestamente o sistema social vigente para melhorar sua posição como indivíduos, mas não será delas que podemos esperar algo no sentido de substituir esse sistema por um melhor. Aliás, a longo prazo essas sociedades não conseguirão manter-se contra a concorrência individual. A administração individual, feita pela pessoa que é a principal interessada, tem grandes vantagens sobre qualquer tipo de administração coletiva. O sistema de cooperação só tem uma coisa a opor a essas vantagens: o interesse comum de todos os trabalhadores no empreendimento. Quando os capitalistas individuais acrescentarem essa vantagem às demais que já possuem — e certamente farão isso —, quando, ainda que seja apenas para aumentar seus ganhos, adotarem a prática que essas sociedades cooperativas vêm abandonando, e juntarem o interesse pecuniário de cada pessoa a seu serviço à administração mais eficiente e mais econômica da empresa, provavelmente conseguirão uma vitória fácil sobre aquelas empresas que retêm os defeitos do sistema velho, e ainda por cima sem poderem usufruir das vantagens plenas desse sistema velho. Na hipótese mais favorável, será desejável, talvez ainda durante muito tempo. que os capitalistas individuais, associando seus trabalhadores a seus lucros, coexistam até com aquelas sociedades que se mantêm fiéis aos princípios do cooperativismo. A unidade de autoridade torna possíveis muitas coisas que não poderiam ser ou não seriam realizadas se o comando se dividisse em facções ou a administração mudasse. Um capitalista particular, isento do controle de um grupo, se for uma pessoa capaz, tem muito maior probabilidade do que quase toda associação de assumir riscos razoáveis e investir em melhorias dispendiosas. Pode-se confiar nas sociedades cooperativas para adotar melhorias, depois de estas já terem sido testadas com sucesso, mas são os indivíduos que têm mais probabilidade de começar coisas ainda não tentadas. Mesmo na atividade corrente, a concorrência de pessoas capazes que, no caso de fracasso, têm de assumir toda a perda, e em caso de êxito, a maior parte do ganho, será muito útil para fazer com que os administradores das sociedades cooperativas mantenham o devido grau de dedicação e vigilância. Quando, porém, as sociedades cooperativas se tiverem multiplicado o suficiente, é improvável que os trabalhadores — excetuados os de menor valor — continuem ainda a consentir em trabalhar a vida toda apenas por salários: tanto os capitalistas particulares como as associações acharão então necessário fazer com que todos os seus trabalhadores participem dos lucros. Eventualmente — e talvez em um futuro menos longínquo do que se possa supor — poderemos, por meio do princípio do cooperativismo, encontrar o nosso caminho para uma mudança social, que combinaria a liberdade e a independência do indivíduo com as vantagens morais, intelectuais e econômicas da produção agregada, e que, sem violência ou espoliação, ou até sem nenhuma perturbação dos hábitos e das expectativas vigentes, realizaria, ao menos no setor industrial, as melhores aspirações do espírito democrático, acabando com a divisão da sociedade em trabalhadores e ociosos, e apagando todas as distinções sociais, afora aquelas que são honestamente conquistadas mediante serviços e iniciativas pessoais. Associações como as que acima descrevemos, pelo próprio processo mediante o qual atingem o sucesso, constituem uma escola de aprendizagem daquelas qualidades morais e ativas que são os únicos meios pelos quais se pode merecer ou atingir o êxito. À medida que as associações se multiplicassem, tenderiam cada vez mais a absorver todos os trabalhadores, excetuados aqueles que têm muito pouca inteligência ou muito pouca virtude para serem capazes de aprender a agir dentro de outro sistema que não seja o do egoísmo tacanho. À medida que essa mudança se alastrasse, os donos de capital gradualmente constatariam ser vantajoso para eles, em vez de continuarem a lutar com o sistema velho e apenas com trabalhadores da pior qualidade, emprestarem seu capital às associações, e fazerem esse empréstimo a uma taxa de juros mais baixa, e ao final, talvez, até trocarem seu capital por anuidades amortizáveis. Dessa maneira — ou de alguma forma similar —, as acumulações de capital hoje existentes poderiam, honestamente, e por uma espécie de processo espontâneo, tornar-se, ao final, a propriedade conjunta de todos os que participam da aplicação produtiva do mesmo — uma transformação que, se fosse assim efetuada (e supondo, evidentemente, que os dois sexos participem igualmente dos direitos e do governo da associação (Também sob esse aspecto, a Rochdale Society deu um exemplo de juízo de justiça, digno do bom senso e dos sentimentos nobres manifestados em seu procedimento geral. “A cooperativa de Rochdale — afirma o sr. Holyoake — presta ajuda ocasional, mas valiosa, no sentido de efetivar a autonomia civil das mulheres. As mulheres podem ser membros dessa cooperativa, e votar em suas assembleias. Juntam-se mulheres solteiras e casadas. Muitas mulheres casadas se tornam membros porque seus maridos não se darão a esse trabalho, e outras se associam em defesa própria, para impedir seus maridos de gastarem o dinheiro na bebida. O marido não pode retirar as poupanças existentes na cooperativa em nome da esposa, a não ser que esta assine a ordem de retirada)), constituiria a solução mais próxima à justiça social, bem como o sistema industrial mais benéfico para o bem universal que se possa hoje prever. § 7. Concordo, portanto, com a concepção que os autores socialistas têm sobre a forma que o mundo industrial tende a assumir, à medida que o progresso avança; partilho também inteiramente da opinião deles, de que nosso tempo está maduro para iniciar essa transformação, e que esta deve ser ajudada e encorajada com todos os meios justos e eficazes. Mas, ao mesmo tempo que concordo e me solidarizo com os socialistas nessa parte prática dos objetivos que perseguem, discordo totalmente da parte mais relevante e veemente do seu ensinamento, a saber, das suas catilinárias contra a concorrência. Embora defendam concepções morais sob muitos aspectos bem à frente das atuais estruturas sociais, em geral têm conceitos muito confusos e errôneos a respeito dos efeitos reais da concorrência; um dos maiores erros deles, em meu entender, está em atribuir à concorrência todos os males econômicos atualmente existentes. Esquecem que, em toda parte onde não existe concorrência, existe o monopólio, e que este, em todas as suas formas, é a taxação daqueles que trabalham para sustentar os indolentes, quando não para sustentar os que saqueiam. Esquecem também que, excetuada a concorrência entre trabalhadores, toda outra concorrência beneficia a estes, por baratear o preço dos artigos que consomem; esquecem que a concorrência, mesmo no mercado de mão-de-obra, é uma fonte de salários altos, e não de salários baixos, em toda parte onde a concorrência na procura de mão-de-obra ultrapassa a concorrência na oferta de mão-de-obra, como na América, nas colônias e nas profissões qualificadas; esquecem que a concorrência nunca pode ser uma causa de salários baixos, a não ser quando se satura o mercado de mão-de-obra com um número excessivo de filhos de trabalhadores, enquanto, se a oferta de mão-de-obra for excessiva, nem mesmo o socialismo consegue impedir que a sua remuneração seja baixa. Além disso, se a prática da associação entre trabalhadores se generalizasse universalmente, não haveria concorrência entre um trabalhador e outro, e que a concorrência entre uma associação e outra beneficiaria os consumidores, isto é, as associações, as classes trabalhadoras em geral. Não pretendo afirmar que a concorrência não acarrete nenhum inconveniente, ou que careçam totalmente de fundamento as objeções morais movidas contra ela pelos autores socialistas, como sendo ela fonte de inveja e hostilidade entre os que exercem a mesma profissão. Contudo, se, por um lado, a concorrência tem seus males, por outro impede males maiores. Como diz bem o sr. Feugueray, “a raiz mais profunda dos males e das iniquidades que pervadem o mundo do trabalho não está na concorrência, mas no fato de o trabalhador estar submetido ao capital, bem como na parcela enorme de ganhos que os donos do capital têm condições de auferir da produção. (...) Se é verdade que a concorrência muito pode contribuir para o mal, é também inegável que ela não é menos fértil para produzir o bem, sobretudo no que concerne ao desenvolvimento das faculdades individuais e ao sucesso das inovações”. É erro comum dos socialistas não levarem em conta a indolência natural da humanidade, a sua tendência à passividade, a permanecer escrava do hábito, a persistir indefinidamente em um caminho uma vez escolhido. Se deixarmos que a humanidade uma vez atinja algum estado de existência que considere tolerável, o perigo a ser temido é que a partir daí ela estagnará, não se empenhará no sentido de melhorar e, deixando enferrujar suas faculdades, perderá até a energia necessária para preservá-lo de deterioramento. A concorrência pode não ser o melhor estímulo concebível, mas no momento é um estímulo necessário, e ninguém é capaz de prever o dia em que ela não será mais indispensável para o progresso. Mesmo limitando-nos ao setor industrial, no qual, mais do que em qualquer outro, se pode supor que a maioria dos envolvidos sejam juízes competentes para avaliar as inovações, seria difícil induzir a assembleia geral de uma associação a submeter-se ao trabalho e ao inconveniente de alterar seus hábitos, adotando alguma invenção nova e promissora, a menos que o conhecimento da existência de associações rivais a fizesse temer que outras fariam aquilo que ela mesma não consentiria em fazer, e portanto ficaria atrás na corrida. Em vez de encarar a concorrência com o princípio nocivo e antissocial que ela seria, no pensamento da maioria dos socialistas, entendo que, mesmo na atual conjuntura da sociedade e do trabalho, qualquer restrição que se lhe faça é um mal, e toda ampliação dela, mesmo que de momento fosse prejudicial para alguma classe de trabalhadores, é sempre boa, em última análise. Proteger alguém contra a concorrência é dar proteção à sua ociosidade ou indolência, ao seu embotamento mental, a poupar-lhe a necessidade de ser tão empreendedor e talentoso quanto outras pessoas; por outro lado, se proteger contra a concorrência significar também proteger contra o risco de não encontrar emprego, pelo fato de o empregador dar preferência a uma categoria de trabalhadores menos bem pagos, isso só acontece onde o costume antigo, ou algum monopólio local e injusto, colocou alguma categoria específica de artesãos em uma posição privilegiada, em comparação com as demais; ora, já chegou o tempo em que já não se promove o interesse do aprimoramento universal prolongando os privilégios de poucos. Se os vendedores de roupas feitas, e outros do mesmo gênero, fizeram baixar os salários dos alfaiates e de alguns outros artífices, fazendo que esses salários sejam regulados pela concorrência, e não mais pelo costume, tanto melhor, ao final. O que hoje se exige não é que se dê guarida a certos costumes antigos, em virtude dos quais certas classes restritas de trabalhadores conseguem ganhos injustos — o que faz com que tenham interesse em manter a atual estrutura social —, mas sim que se introduzam práticas gerais novas, que beneficiem a todos; há motivos para alegrar-se com tudo aquilo que faz com que certas classes privilegiadas de artífices qualificados sintam que têm os mesmos interesses, e dependem, quanto à sua remuneração, das mesmas causas gerais, e têm de recorrer, para melhorar sua condição, às mesmas soluções a que recorre a multidão dos menos afortunados e dos que são relativamente mais desprovidos de recursos. LIVRO QUINTO A INFLUÊNCIA DO GOVERNO CAPÍTULO I As Funções do Governo em Geral § 1. Uma das questões mais discutidas em nosso tempo, tanto na ciência política como entre os estadistas propriamente, versa sobre os limites adequados das funções e da intervenção dos governos. Em outros tempos, discutia-se sobre como os governos devem ser constituídos, e segundo que princípios e normas devem exercer sua autoridade; atualmente, porém, pergunta-se quase igualmente a que setores da vida humana esta autoridade tem que se estender. E quando é tão forte a tendência no sentido de introduzir mudanças no governo e na legislação, como meio para melhorar a condição da humanidade, essa discussão tem mais probabilidade de aumentar de interesse do que de diminuir. De um lado, temos reformadores impacientes, pensando ser mais fácil e mais rápido apossar-se do governo, do que das inteligências e da disposição do público, constantemente tentados a exagerar a competência do governo além dos limites devidos, ao passo que, do outro lado, a humanidade tem sido tão habituada, pelos governantes, à interferência para fins outros que o bem público, ou sob uma concepção errônea do que este bem público exige, e se fazem tantas propostas precipitadas, da parte de pessoas que amam com sinceridade o aperfeiçoamento, no sentido de tentar, por meio de regulamentos compulsórios, o alcance de objetivos que só se podem atingir eficaz ou utilmente por meio da opinião pública e da discussão, que tem surgido um espírito de resistência extrema à interferência do governo, simplesmente como tal, e uma tendência a reduzir sua esfera de ação aos limites mais restritos. Devido a diferenças na evolução histórica atravessada por países diferentes — diferenças estas nas quais não cabe aqui deter-nos —, o primeiro excesso, o de exagerar a competência do governo, prevalece mais, tanto em teoria como na prática, entre as nações da Europa continental, ao passo que na Inglaterra tem predominado até agora a mentalidade oposta. Os princípios gerais do problema, na medida em que é uma questão de princípio, procurar determiná-los em um capítulo posterior deste Livro — depois de primeiro considerar os efeitos produzidos pela conduta do governo no exercício das funções que se lhe reconhecem universalmente. Para este fim, deve haver uma especificação das funções que ou são inseparáveis do conceito de governo, ou são exercidas habitualmente e sem objeção por todos os governos, funções estas distintas daquelas em relação às quais se tem considerado questionável se os governos devem ou não as exercer. Podemos chamar o primeiro tipo de funções do governo de necessárias, e o segundo, de opcionais. Com o termo opcional não se quer dizer que possa ser questão indiferente, ou de escolha arbitrária, se o governo deve ou não assumir as funções em pauta; quer-se apenas dizer que a conveniência de o governo as exercer não equivale a uma necessidade, sendo um assunto sobre o qual existe ou pode existir diversidade de opinião. § 2. Ao tentarmos enumerar as funções necessárias do governo, constatamos que elas são muito mais diversificadas do que pensa à primeira vista a maioria das pessoas, e que não há possibilidade de circunscrevê-las com aquelas linhas de demarcação bem nítidas que muitas vezes se tenta aplicar, com a irreflexão que caracteriza a discussão em nível popular. Por exemplo, às vezes ouvimos dizer que os governos se devem limitar a oferecer proteção contra a força e a fraude, e que, excetuando-se essas duas coisas, as pessoas devem ser agentes livres, capazes de cuidar de si próprias, e que, enquanto uma pessoa não praticar violência ou fraude, prejudicando a pessoa ou a propriedade de outrem, os legisladores e os governos de forma alguma devem preocupar-se com ela. Mas, por que motivo as pessoas deveriam ser protegidas pelo seu governo, isto é, pela sua própria força coletiva, contra a violência e a fraude, e não contra outros males, a não ser porque essa conveniência é mais óbvia? Se for verdade que só convém ao governo fazer pelas pessoas aquilo que estas não têm possibilidade de fazer por si mesmas, poder-se-ia exigir que as pessoas se protejam com a sua própria habilidade e coragem até contra a força, ou então solicitar ou comprar proteção contra ela, como efetivamente fazem onde o governo é incapaz de protegê-las; e quanto à fraude, cada um tem a proteção de sua própria prudência e juízo. Entretanto, sem continuarmos a antecipar a discussão sobre os princípios, é suficiente, neste contexto, considerar fatos. Perguntemos, por exemplo: sob qual dos dois itens — a repressão da força ou da fraude — deveremos enquadrar a operação das leis que regem a herança? Algumas leis desse gênero têm de existir em todas as sociedades. Talvez se alegue que, nessa matéria, cabe ao governo simplesmente dar cumprimento à disposição que um indivíduo faz de sua propriedade por testamento. Entretanto, isso é no mínimo muito discutível: provavelmente não existe país algum cujas leis reconheçam como totalmente absoluto o poder de dispor de seus bens por testamento. E suponhamos o caso muito comum de a pessoa não deixar testamento: porventura a lei, isto é, o governo, não decide, com base em princípios de conveniência geral, quem ficará com a sucessão? E no caso de o sucessor de qualquer forma inábil, o governo por acaso não designa pessoas, com frequência os seus próprios oficiais, para recolher a propriedade e aplicá-la em benefício da pessoa em questão? Há muitos outros casos em que o governo assume a administração da propriedade, porque pensa ser isso exigido pelo interesse público, ou talvez somente pelo das pessoas específicas envolvidas. Isso acontece muitas vezes em casos de propriedade em litígio e em casos de insolvência declarada judicialmente. Nunca se afirmou que, ao fazer isso, um governo ultrapasse a sua competência. Também a função da lei, de definir a propriedade como tal, não é tão simples como se poderia supor. Imaginar-se-ia talvez que à lei só cabe declarar e proteger o direito de cada um àquilo que ele mesmo produziu, ou àquilo que adquiriu por consentimento, honestamente obtido, daqueles que o produziram. Mas será que só se reconhece como propriedade aquilo que foi produzido? E a própria terra, suas florestas e suas águas, e todas as outras riquezas naturais, acima e abaixo da superfície? Esses bens constituem a herança da humanidade, devendo haver regulamentos para que a comunidade desfrute deles. Não se pode deixar de decidir que direitos, e sob que condições, uma pessoa pode exercer sobre qualquer porção dessa herança comum. Nenhuma função do governo é menos opcional do que a regulamentação dessas coisas, ou está mais profundamente implicada no conceito de sociedade civilizada. Por outro lado, admite-se a legitimidade de reprimir a violência ou a deslealdade; mas sob qual desses itens devemos enquadrar a obrigação imposta às pessoas, de cumprirem seus contratos? O não cumprimento não implica necessariamente fraude; a pessoa que assumiu um contrato pode ter tido a intenção sincera de cumpri-lo, e o termo fraude, que dificilmente pode ser estendido até ao caso de violação voluntária de contrato quando não se praticou nenhuma fraude, certamente não é aplicável quando o não cumprimento é um caso de negligência. Porventura não cabe aos governos o dever de urgir o cumprimento de contratos? Aqui, sem dúvida se estenderia um tanto a doutrina da não interferência do governo, e se diria que exigir o cumprimento de contratos não equivale a resolver as pendências dos indivíduos a bel-prazer do governo, mas a dar cumprimento e efeito ao desejo expresso pelos próprios indivíduos. Concordemos com essa ampliação da teoria restritiva, e aceitemo-la com o valor que ela tem. Acontece que os governos não limitam sua preocupação por contratos a simplesmente exigir o cumprimento dos mesmos. Usam do direito de determinar quais são os contratos cujo cumprimento pode ser exigido. Não basta uma pessoa fazer uma promessa a outra sem ser vítima de fraude ou coação. Existem promessas em relação às quais, em função do bem público, não se deve reconhecer às pessoas o direito de obrigar-se a cumpri-las. Para não dizermos nada sobre os compromissos de praticar algo contrário à lei, há compromissos cujo cumprimento a lei se recusa a exigir, por motivos ligados ao interesse de quem prometeu, ou à política geral do Estado. Um contrato mediante o qual uma pessoa se vende a outra como escravo seria declarado nulo pelos tribunais da Inglaterra e da maioria dos demais países europeus. Poucas são as nações cujas leis exigem o cumprimento de um contrato relacionado com o que se considera como prostituição, ou de qualquer compromisso matrimonial cujas condições contrariam sob qualquer aspecto aquelas que a lei achou conveniente prescrever. Ora, já que se admite que há compromissos cujo cumprimento, por motivos de conveniência, a lei não deve exigir, a mesma questão se abre necessariamente com respeito a todos os compromissos. Poder-se-á questionar, por exemplo, se a lei deve exigir o cumprimento de um contrato de trabalho quando o salário é excessivamente baixo, ou o horário de trabalho é rigoroso demais, ou se a lei pode ou deve exigir o cumprimento de um contrato pelo qual uma pessoa se compromete a permanecer, por mais de um período limitado, a serviço de determinado indivíduo, ou se deve continuar a exigir um contrato de casamento, feito para a vida toda, contra a vontade deliberada dos dois, ou de um deles. Toda questão que possa surgir quanto à política dos contratos, e às relações que estes criam entre seres humanos, é uma questão para o legislador — e uma questão que este não pode deixar de considerar, e de decidir, de uma forma ou de outra. Mais: a prevenção e a supressão da força e da fraude dão emprego apropriado a soldados, policiais e juízes criminais; mas há também tribunais civis. A punição do mal é ocupação de uma administração judiciária, mas o dirimir litígios é outra. Inúmeros litígios surgem entre pessoas, sem má-fé de nenhuma das duas partes, pelo mau entendimento de seus direitos legais, ou por não concordarem acerca dos fatos de cuja comprovação dependem legalmente esses direitos. Não será interesse geral do Estado designar pessoas para dirimir essas incertezas e pôr fim a esses litígios? Não se pode dizer que isso seja um caso de necessidade absoluta. As próprias pessoas litigantes poderiam designar um árbitro e comprometer-se a se submeterem à decisão dele, e realmente o fazem, onde não há tribunais de justiça, ou onde não se confia neles, ou onde as suas demoras e os custos, ou então a irracionalidade de suas normas de comprovação, impedem as pessoas de recorrer a eles. E no entanto universalmente se considera correto que o Estado crie tribunais civis; e se as falhas deles levam pessoas a recorrer a sucedâneos, mesmo então é o direito que se tem, de levar o caso a um tribunal legalmente constituído, que confere a esses sucedâneos sua eficácia principal. Não somente o Estado dirime litígios, senão que também toma precauções de antemão para que eles não ocorram. As leis de muitos países estabelecem regras para determinar muitas coisas não porque seja muito importante a maneira como são determinadas, mas para que elas possam ser determinadas de alguma forma, e não possa haver contestação sobre a matéria. A lei prescreve expressões a serem empregadas em muitos tipos de contrato, para que não possa surgir dúvida ou interpretação equívoca do seu significado; ela dispõe que, se surgir uma disputa, haja possibilidade de providenciar comprovação para dirimi-la, exigindo que o documento seja atestado por testemunhas e validado por certas formalidades. A lei preserva comprovações autênticas de fatos aos quais estão ligadas consequências legais, mantendo um registro de tais fatos: por exemplo, de nascimentos, óbitos, casamentos, de testamentos e contratos, e de processos judiciais. Nunca se alegou que, ao fazer essas coisas, o governo ultrapasse os limites apropriados de suas funções. Além disso, por mais amplo que seja o sentido que demos à doutrina de que os indivíduos são os guardiães adequados de seus próprios interesses, e que o governo nada lhes deve a não ser a obrigação de evitar que outros interfiram nesse direito, essa doutrina só pode ser aplicável a pessoas capazes de agir em seu próprio nome. O indivíduo pode ser uma criança, um louco, ou uma vítima de debilidade mental. A lei certamente tem o dever de zelar pelo interesse de tais pessoas. Ela não faz isso necessariamente por meio de oficiais próprios, senão que muitas vezes confia essa tarefa a algum parente ou a outra pessoa ligada ao indivíduo. Mas, será que a obrigação da lei termina aqui? Pode porventura a lei confiar os interesses de uma pessoa ao controle de outra e dispensar-se de supervisionar, ou de responsabilizar a pessoa a quem confiou essa tarefa pelo cumprimento da mesma? Há uma infinidade de casos em que os governos, com aprovação geral, assumem poderes e executam funções para as quais não se pode indicar nenhuma razão, a não ser o mero motivo de que são de conveniência geral. Podemos tomar como exemplo a função (que é também um monopólio) de cunhar moeda. Essa função, o governo a assume simplesmente para economizar às pessoas o incômodo, a demora e a despesa de pesar e de aquilatar a moeda. E, no entanto, ninguém, nem mesmo dentre os que menos aceitam a interferência estatal, objetou que isso seja um exercício indevido dos poderes do governo. Temos outro exemplo na prescrição de um conjunto de pesos e medidas-padrão. Outro é a pavimentação, a iluminação e a limpeza das ruas e vias públicas — quer isso seja feito pelo governo federal ou, como é mais comum, e geralmente mais aconselhável, por uma autoridade municipal. Outros casos do gênero são: construir ou melhorar portos, construir torres com luzeiros para guiar navegantes, fazer levantamentos para se ter mapas e quadros precisos, levantar diques para segurar o mar, e diques para que os rios não extravasem. Poder-se-ia multiplicar indefinidamente exemplos, sem entrar em campo controverso. Mas já dissemos o suficiente para mostrar que as funções que se admite para o governo abrangem um âmbito muito mais vasto do que se possa facilmente incluir no círculo restrito de alguma definição restritiva, e que dificilmente é possível encontrar alguma justificativa comum a todas essas funções, a não ser a justificativa abrangente da conveniência geral, e também que dificilmente é possível restringir a interferência do governo por alguma regra universal, a não ser que seja esta, simples e vaga: que tal interferência nunca deve ser admitida, a não ser que seja grande a conveniência de fazê-lo. § 3. A despeito disso, pode-se fazer algumas observações de utilidade sobre a natureza das considerações em torno das quais mais provavelmente versará a questão da interferência governamental, e sobre a maneira de avaliar a magnitude comparativa das conveniências em pauta. Isso constituirá a última das três partes em que se pode convenientemente dividir a nossa exposição sobre os princípios e os efeitos da interferência do governo. Dividiremos a matéria como segue. Primeiramente, consideraremos os efeitos econômicos decorrentes da maneira como os governos cumprem suas funções necessárias e reconhecidas. A seguir, passaremos a analisar algumas daquelas interferências governamentais que denominei opcionais (ou seja, que ultrapassam os limites das funções universalmente reconhecidas), que ocorreram e que em alguns lugares continuam a ocorrer, sob a influência de teorias gerais falsas. Finalmente, pesquisaremos se, independentemente de qualquer teoria falsa, e em consonância com uma visão correta das leis que regulamentam os afazeres humanos, existem casos da categoria das funções opcionais nos quais a interferência governamental é realmente aconselhável e quais são eles. A primeira dessas três partes é de natureza extremamente diversificada: com efeito, as funções necessárias do governo, e aquelas que são de tanta conveniência, que nunca ou só raramente foram contestadas, são, como já assinalei, por demais diversificadas para se poder enquadrá-las em alguma classificação muito simples. Contudo, aquelas que se revestem de maior importância — as únicas que é preciso considerar aqui — podem ser reduzidas aos seguintes itens gerais: Primeiramente, os meios adotados pelos governos para conseguir a receita que condiciona a própria existência deles. Segundo. a natureza das leis que os governos prescrevem no tocante aos dois grandes itens, a propriedade e os contratos. Terceiro, as excelências ou falhas do sistema de meios pelos quais os governos geralmente exigem o cumprimento de suas leis, isto é, a justiça e a polícia. Comecemos pelo primeiro item, ou seja, com a teoria sobre a tributação. CAPÍTULO II Os Princípios Gerais Sobre a Tributação § 1. As qualidades que, do ponto de vista econômico, se desejam em um sistema de tributação foram condensadas por Adam Smith em quatro máximas ou princípios, os quais, por terem sido geralmente aceitos por autores subsequentes, se tornaram, digamos assim, clássicos. O melhor começo possível para este capítulo é citar esses princípios. (Wealth of Nations. Livro Quinto. Cap. II.). “1) Os súditos de cada Estado devem contribuir para a manutenção do governo, na medida máxima possível, proporcionalmente às suas capacidades respectivas, isto é, em proporção com a renda de que desfrutam, sob a proteção do Estado. Na observância ou no não cumprimento dessa máxima consiste o que se denomina igualdade ou desigualdade da tributação. “2) O imposto que cada indivíduo está obrigado a pagar deve ser certo, e não arbitrário. A data do pagamento, a forma de pagar, o montante a pagar, tudo isso deve ser claro e simples para o contribuinte e para qualquer outra pessoa. Onde não é assim, toda pessoa sujeita ao imposto está exposta, em grau maior ou menor, ao poder do coletor, o qual pode agravar o imposto sobre qualquer contribuinte que lhe for antipático ou então extorquir, por medo de tal agravação, algum presente ou gratificação para si mesmo. A incerteza da tributação estimula a insolência e favorece a corrupção em uma categoria de pessoas que por natureza são impopulares, mesmo quando na realidade não forem nem insolentes nem corruptas. A certeza daquilo que cada indivíduo deve pagar é, em matéria de tributação, de tal relevância que um grau muito elevado de desigualdade — como se deduz, acredito, da experiência de todas as nações — não representa, nem de longe, um mal tão grande quanto um grau muito pequeno de incerteza. “3) Todo imposto deve ser cobrado no momento, ou da forma em que for maior a probabilidade de ser conveniente para o contribuinte. Um imposto sobre a renda da terra ou de casas, pagável na mesma data em que se costuma pagar tais rendas, é cobrado em um momento em que há maior probabilidade de conveniência para o contribuinte, ou seja, no momento em que há maior probabilidade de ele ter com que pagar o imposto. Os impostos sobre bens de consumo, como artigos de luxo, são todos pagos, em última análise, pelo consumidor, e geralmente de uma forma que é muito conveniente para ele. Paga-os pouco a pouco, quando tem necessidade de comprar essas mercadorias. Já que ele tem também a liberdade de comprar ou não, conforme lhe aprouver, necessariamente é culpa dele mesmo se esses impostos lhe acarretam algum inconveniente notável. “4) Todo imposto deve ser tal que tire do bolso das pessoas, e mantenha fora dele, o mínimo possível, além daquilo que carreia para os cofres do Estado. Há quatro maneiras possíveis de um imposto poder tirar do bolso das pessoas, ou manter fora dele, muito mais do que traz para o erário público. Primeiramente, a cobrança do imposto pode exigir um número maior de funcionários, cujos salários podem consumir a maior parte da receita do imposto e cujas gratificações podem impor um tributo adicional às pessoas.” Segundo, a cobrança pode desviar parte do trabalho e do capital da comunidade de um emprego mais produtivo para um menos produtivo. “Terceiro, pelas multas e outras penalidades em que incorrem aqueles infelizes indivíduos que tentam sem sucesso sonegar o imposto, este muitas vezes os pode levar à ruína e com isso pôr fim ao benefício que a comunidade poderia ter auferido da aplicação dos capitais deles. Um imposto pouco criterioso representa grande tentação para a sonegação. Em quarto lugar, sujeitando as pessoas às frequentes visitas e à inspeção odiosa dos coletores, o imposto pode expô-las a muito incômodo, importunação e opressão desnecessários.” A isso pode-se acrescentar o seguinte: as normas restritivas às quais muitas vezes se sujeitam as profissões e as manufaturas, para impedir a sonegação de um imposto, são incômodas e caras não somente em si mesmas, mas muitas vezes também colocam obstáculos insuperáveis para introduzir aperfeiçoamentos nos processos produtivos. As últimas três das quatro máximas citadas demandam pouca ou nenhuma outra explicação ou ilustração, além da contida na própria passagem citada. Até que ponto determinado imposto obedece a essas máximas, ou conflita com elas, é uma questão a ser considerada na ocasião em que analisarmos os impostos específicos. Entretanto, o primeiro dos quatro pontos, a igualdade de tributação, precisa ser examinado mais a fundo, por ser um item de muitas vezes não é bem compreendido, e com base no qual se consolidam muitas concepções falsas, até certo ponto devido à ausência de quaisquer princípios definidos de julgamento por parte do povo. § 2. Por que motivo a igualdade deve ser a norma em matéria de tributação? Porque esta deve ser a norma em tudo aquilo que diz respeito às coisas referentes ao governo. Já que o governo não deve fazer nenhuma discriminação de pessoas e classes quanto à força dos direitos que as pessoas têm em relação a ele, é preciso que qualquer sacrifício que exigir delas represente, na medida do possível, o mesmo ônus para todas — sendo essa, importa notar, a maneira que, no conjunto, acarreta menos sacrifício. Se alguém carrega uma cota de peso menor do que aquela que por justiça lhe cabe, alguma pessoa tem de carregar mais do que lhe toca, e coeteris paribus o alívio da primeira não é um bem tão grande para ela, quanto é um mal a maior pressão exercida sobre a segunda. A igualdade de tributação, portanto, como máxima de política, significa igualdade de sacrifício. Significa distribuir a contribuição de cada pessoa para cobrir as despesas do governo de tal forma que ela não sinta nem mais nem menos incômodo, com a cota que lhe cabe pagar, do que qualquer outra sente, pagando a dela. Esse padrão, como outros padrões de perfeição, não pode ser atingido completamente; mas o primeiro objetivo, em toda discussão prática, deve ser o saber o que é a perfeição. Há, porém, pessoas que não se contentam com os princípios gerais da justiça para fundamentar uma regra de finanças, senão que devem ter algo — assim pensam — mais especificamente apropriado para o caso. O que mais lhes agrada é considerar os impostos pagos por cada membro da comunidade como um equivalente por um valor recebido, na forma de serviço a ele prestado; tais pessoas preferem basear a justiça de fazer cada um contribuir em proporção com os seus recursos sobre o seguinte fundamento: aquele que tem o dobro de propriedade a ser protegida pelo governo recebe, com base em um cálculo preciso, o dobro de proteção e, portanto, deveria, com base nos princípios de pacto e venda, pagar o dobro por essa proteção que recebe. Já que, porém, a suposição de que o governo existe somente para proteger a propriedade não é uma suposição à qual se tenha de aderir ponderadamente, alguns adeptos coerentes do princípio quid pro quo prosseguem, observando que, pelo fato de a proteção ser necessária tanto para a pessoa como para a propriedade, e já que cada um recebe o mesmo montante de proteção, um imposto de uma quantia fixa por cabeça é um equivalente adequado para esse benefício de proteção governamental às pessoas, ao passo que a outra parte, a saber, a proteção à propriedade, deve ser paga em proporção à propriedade possuída. Há nessa modalidade uma falsa aparência de boa adaptação, muito aceitável para alguns. Contudo, em primeiro lugar, não se pode admitir que a proteção das pessoas e da propriedade sejam os únicos propósitos do governo. Os objetivos do governo são tão amplos quanto os da união social. Eles consistem em todo bem, e em toda a imunidade do mal, que a existência do governo pode proporcionar direta ou indiretamente. Em segundo lugar, o ato de fixar valores definidos para coisas essencialmente indefinidas e fazer deles um fundamento de conclusões práticas é particularmente fecundo em concepções falsas de questões sociais. Não se pode admitir que ser protegido na posse de dez vezes mais propriedade é a mesma coisa que ser protegido dez vezes mais. Tampouco se pode dizer, sem faltar à verdade, que a proteção dispensada a 1000 libras por ano custe ao Estado dez vezes mais que a proteção dispensada a 100 libras por ano e não duas vezes mais, ou então exatamente o mesmo. Os mesmos juízes, soldados e marinheiros que protegem a primeira propriedade protegem também a outra, e a renda maior não exige necessariamente mais policiais — ainda que por vezes o possa exigir. Quer se faça com que o padrão sejam o trabalho e a despesa da proteção dispensada pelo Estado, quer se faça com que o padrão sejam os sentimentos da pessoa protegida, ou qualquer outra coisa definida, não existe aquela proporção que se supõe, nem nenhuma outra proporção definível. Se quiséssemos avaliar os graus de benefício que pessoas diferentes auferem da proteção dispensada pelo governo, teríamos que considerar quem sofreria mais, se tal proteção fosse retirada; ora, se alguma resposta se puder dar a essa questão, deverá ser esta: sofreriam mais os mais fracos, do ponto de vista mental e físico, seja por natureza, seja por posição. De fato, tais pessoas quase infalivelmente seriam escravos. Por isso, se houvesse alguma justiça, na teoria da justiça que estamos analisando, os menos capazes de se ajudarem e defenderem a si próprios, por serem aqueles para os quais a proteção do governo é a mais indispensável, teriam que pagar a cota maior do preço dessa proteção — o que é o inverso do verdadeiro conceito de justiça distributiva, que consiste não em imitar, mas em corrigir as desigualdades e os erros da natureza. O governo deve ser considerado como preocupação tão preeminente de todos, que não tem importância real determinar quem tem mais interesse nele. Se uma pessoa ou uma categoria de pessoas receber uma cota tão pequena desse benefício que é necessário levantar essa questão, há alguma outra coisa, diferente da tributação, que não está em ordem, e o que se deve fazer é remediar a falha, em vez de reconhecê-la e fazer dela um fundamento para exigir impostos mais baixos. Assim como, em um caso de subscrição voluntária para um fim que interessa a todos, se acha que todos deram a sua justa contribuição quando cada um contribuiu de acordo com seus recursos, isto é, fez um sacrifício igual em prol do objetivo comum, da mesma forma, este deve ser o princípio das contribuições compulsórias, sendo supérfluo procurar um fundamento mais engenhoso ou abscôndito para estabelecê-lo. § 3. Partindo, portanto, da máxima que se deve exigir sacrifícios iguais de todos, temos de perguntar agora se isso se consegue realmente, fazendo com que cada um contribua com a mesma percentagem sobre seus recursos financeiros. Muitos dizem que não, afirmando que a décima parte, em se tratando de uma renda pequena, representa um ônus maior do que 1/10, tirado de uma renda muito maior; é nisso que se baseia o sistema muito popular do que se denomina imposto gradual sobre a propriedade, isto é, imposto de renda no qual a percentagem aumenta à medida que aumenta o montante de renda. Com base na melhor análise que sou capaz de fazer desse problema, parece-me que a parte de verdade que essa doutrina encerra provém sobretudo da diferença entre um imposto que se pode pagar, em vez de gastar com artigos de luxo, e um imposto que incide, por menor que seja, sobre os artigos de primeira necessidade. Tirar 1000 por ano do dono de 10 mil não o privaria de nada que realmente afetasse o sustento ou o conforto de sua existência; e se esse fosse o efeito de tirar 5 libras de um cuja renda é de 50, o sacrifício exigido deste último não somente é maior do que o imposto ao primeiro, mas é totalmente desproporcional ao dele. A maneira de reparar essas desigualdades de ônus, que parece ser a mais equitativa, é a recomendada por Bentham: isentar de tributo determinado mínimo de renda, suficiente para garantir o indispensável para a subsistência. Suponhamos que 50 libras por ano sejam suficientes para proporcionar ao número de pessoas normalmente sustentadas com uma única renda o necessário para viver com saúde, e a proteção contra o sofrimento corporal habitual, mas não comodidades ou luxos. Esse teria que ser então o citado mínimo, e as rendas que passassem disto deveriam pagar imposto não sobre o montante total, mas apenas sobre o que ultrapassa esse mínimo. Se o imposto for de 10%, uma renda de 60 libras deveria ser considerada como uma renda líquida de 10 libras, e deveria pagar um imposto de 1 libra por ano, ao passo que uma renda de 1000 libras deveria pagar 10% de 950 libras. Cada um pagaria então uma percentagem fixa não sobre o montante total dos seus rendimentos, mas sobre o seu supérfluo (Esse princípio de tributação foi em parte adotado pelo sr. Gladstone ao reformar o imposto de renda. Desde 100 libras, onde começa o imposto, até 200 libras, o imposto de renda incide somente sobre o excedente que vai além de 60 libras). Uma renda que não ultrapassasse 50 libras não deveria ser tributada nem diretamente nem por meio de impostos sobre artigos de primeira necessidade; com efeito, uma vez que, por hipótese, essa é a renda mínima que o trabalho deveria ser capaz de comprar, o governo não deve contribuir para reduzir essa renda. Essa medida, porém, constituiria uma razão — além de outras que poderiam ser indicadas — para manter impostos sobre artigos de luxo consumidos pelos pobres. A isenção tributária estendida à renda exigida para os artigos de primeira necessidade deveria estar sujeita à condição de esta ser realmente gasta para esse fim; consequentemente, os pobres que, mesmo não tendo mais do que o suficiente para sobreviverem com saúde, desviarem qualquer porção dessa renda para comodidades deveriam, como outras pessoas, contribuir com sua cota, tirada dessas comodidades, para as despesas do Estado. Em minha opinião, a isenção tributária em favor das rendas mais baixas não deve ir além do montante de renda necessário para viver, manter a saúde e permanecer isento de sofrimento físico. Se 50 libras por ano forem suficientes (o que se pode pôr em dúvida) para esses fins, parecer-me-ia que uma renda de 100 libras por ano, se o imposto incidir apenas sobre 50 libras desse montante, teria todo o alívio a que tem direito, se comparada a uma renda de 1000 libras. Sem dúvida, pode-se alegar que tirar 100 libras de imposto, de 1000 libras de renda (mesmo restituindo 5 libras), é um imposto mais pesado do que 1000 libras de imposto, tiradas de uma renda de 10 mil libras (restituindo também no caso 5 libras). Mas essa doutrina se me afigura altamente questionável, e mesmo que fosse verdadeira não me parece verdadeira em grau suficiente para que se faça dela o fundamento de alguma norma de tributação. Se a pessoa que ganha 10 mil libras por ano importa-se menos com um imposto de 1000 libras do que a pessoa que ganha 1000 libras por ano se importa com um imposto de 100 libras, e se, no caso de isso ocorrer, importa-se menos, é uma coisa que, se bem entendo, não se pode decidir com aquele grau de certeza com o qual um legislador ou um financista tem de agir. Sem dúvida, alguns sustentam que a regra da tributação proporcional pesa mais para as rendas pequenas do que para as grandes, pois o mesmo pagamento proporcional tem mais tendência, no primeiro caso do que no segundo, a reduzir o contribuinte a uma posição social mais baixa. Esse fato me parece mais do que contestável. Entretanto, mesmo que o admitíssemos, a minha objeção é a seguinte: não se pode exigir do governo que paute suas medidas com base em tais considerações, ou que reconheça a ideia de que a importância social das pessoas possa ser determinada com base no montante que gastam. O governo deve dar um exemplo de avaliar todas as coisas em seu valor verdadeiro, e portanto deve avaliar a riqueza pelo valor que, para o conforto ou o prazer, têm as coisas que essa riqueza compra; o governo não deve sancionar essa vulgaridade de avaliar a riqueza com base na deplorável vaidade que sentem as pessoas que notoriamente a possuem, e pela mísera “vergonha” que sentem as pessoas suspeitas de não possuí-la pois essas são as motivações primordiais de 3/4 dos gastos feitos pelas classes médias. Os sacrifícios de conforto e de comodidade real que o governo exige, ele é obrigado a reparti-los entre todas as pessoas, com a máxima igualdade possível; quanto aos sacrifícios que as pessoas fazem da dignidade imaginária que está em função dos gastos arcados, o governo pode tranquilamente poupar-se ao trabalho de levá-los em conta. Tanto na Inglaterra como na Europa continental, tem-se defendido um imposto gradual sobre a propriedade (o imposto progressivo), com base no fundamento declarado de que o Estado deve utilizar o instrumento da tributação como meio de suavizar as desigualdades de riqueza. Tenho o mesmo desejo que qualquer outro de que se empreguem meios para diminuir essas desigualdades, mas não de forma a aliviar o perdulário à custa daqueles que são prudentes. Taxar as rendas mais altas em uma percentagem maior do que as rendas menores significa impor um tributo à iniciativa e à parcimônia, impor uma penalidade a pessoas por terem trabalhado mais duro e economizado mais do que seus vizinhos. O que se deve restringir, para o bem público, não são as fortunas ganhas merecidamente com o trabalho, mas as que não são ganhas com o trabalho. Uma legislação justa e sábia se absteria de incentivar a dissipação daquilo que se ganhou com o trabalho honesto, incentivando, sim, a poupar o que se ganhou dessa forma. A imparcialidade entre concorrentes consistiria em procurar fazer com que todos eles possam começar com as mesmas chances, e não em impor um peso às pessoas ativas, para diminuir a distância entre elas e as vagarosas ou menos diligentes. Sem dúvida, muitos fracassam, embora façam esforços maiores do que aqueles que atingem sucesso com esforços menores — não por diferença de mérito, mas por diferença de oportunidades; entretanto, caso se fizesse tudo aquilo que um bom governo poderia fazer, por meio da instrução e das leis, para diminuir essa desigualdade de oportunidades, as diferenças de fortuna decorrentes dos méritos das próprias pessoas não poderiam com justiça gerar melindres. Em relação às grandes fortunas adquiridas por doação ou herança o poder de legá-las em testamento é um daqueles privilégios inerentes à propriedade que o governo tem o poder de regulamentar, visando ao bem público; aliás, já sugeri, como um dos modos possíveis para limitar a acumulação de grandes fortunas nas mãos daqueles que não as ganharam com o trabalho próprio, uma limitação do montante que se deveria permitir a toda pessoa adquirir por doação, legado ou herança. Independentemente disso, bem como da proposta de Bentham (também ela já exposta em um capítulo anterior) de que se deve abolir a herança em linha colateral em caso de não ser legada por testamento — devendo essa propriedade caber ao Estado —, entendo que as heranças e legados que excederem determinado montante são itens altamente adequados para tributação; entendo também que a receita proveniente dessas fontes deve ser tão grande quanto possível, sem dar origem à sonegação, por meio de doação entre vivos ou ocultamento de propriedade, impossível de impedir adequadamente. Quanto ao princípio da tributação progressiva (como é denominado), isto é, de cobrar uma percentagem maior sobre uma quantia maior, embora sua aplicação seja, em meu entender, contestável, ela me parece justa e conveniente quando se trata de impostos sobre legados e heranças. A objeção que milita contra um imposto progressivo sobre a propriedade aplica-se, em grau ainda maior, à proposta de um imposto exclusivo sobre aquilo que se chama ativo realizável, vale dizer, propriedade que não faz parte de capital aplicado comercialmente, ou melhor, aplicado comercialmente sob a supervisão do proprietário, como é o caso de terra, fundos públicos, dinheiro emprestado sob hipoteca e ações (como presumo) em sociedades anônimas. Excetuada a proposta de cancelar a dívida interna, nenhuma dessas violações palpáveis da honestidade normal tem encontrado apoio suficiente na Inglaterra, durante a geração atual, para que se possa dizer que faça parte do domínio da discussão. Ela não tem a desculpa de um imposto progressivo sobre a propriedade, a de impor o ônus àqueles que têm a maior possibilidade de arcar com ele; com efeito, o ativo realizável inclui em grande medida a maior parcela da provisão feita em prol dos incapacitados para o trabalho, consistindo, em grande parte, em frações extremamente reduzidas. Dificilmente poderia imaginar uma pretensão mais desavergonhada do que a de isentar de sua cota de imposto a maior parte da propriedade do país, a dos comerciantes, manufatores, arrendatários e lojistas — que essas categorias só teriam que começar a pagar sua cota depois de se retirarem da atividade, e, no caso de nunca se retirarem, devessem ser totalmente isentas. Mas mesmo isso não dá ideia adequada da injustiça dessa proposta. O ônus imposto assim exclusivamente aos proprietários da parcela menor da riqueza da comunidade nem sequer seria um ônus imposto a essa categoria de pessoas em sucessão perpétua, senão que recairia exclusivamente sobre aqueles que eventualmente pertencessem a essa categoria quando o tributo foi imposto. Uma vez que a terra e esses títulos específicos a partir daí dariam renda líquida menor, em relação aos juros em geral do capital e aos lucros comerciais, o equilíbrio se recomporia por meio de uma depreciação permanente desses tipos de propriedade. Compradores futuros adquiririam terra e títulos com uma redução de preço, equivalente ao imposto específico especial, imposto este que, portanto, escapariam de pagar, ao passo que os donos originais permaneceriam onerados com esse imposto, mesmo depois de venderem a propriedade, já que teriam vendido sua terra ou seus títulos com uma perda de valor equivalente à do domínio pleno de bens herdados. Assim, a imposição desse tributo seria a mesma coisa que o confisco para utilidade pública de uma percentagem de sua propriedade, igual à percentagem imposta à sua renda pelo imposto. Que tal proposta encontre algum apoio, é um exemplo flagrante da falta de consciência em matéria de tributação, aliás resultante da ausência de quaisquer princípios fixos na opinião pública, bem como da ausência de qualquer indicação de um senso de justiça sobre o assunto, na conduta geral dos governos. Caso esse sistema um dia conseguisse o apoio de muitos, o fato denotaria decadência da integridade pecuniária na vida nacional dificilmente inferior à negação americana de dívida. § 4. Não seria correto taxar os lucros da atividade profissional em uma percentagem menor que os rendimentos provenientes de juros ou de renda? Esse item faz parte da questão mais abrangente, com tanta frequência debatida em se tratando do atual imposto de renda, a saber, se os rendimentos que duram só enquanto a pessoa viver devem pagar a mesma percentagem de imposto que os rendimentos perpétuos; se os salários, por exemplo, ou as anuidades, ou os ganhos das profissões devem pagar a mesma percentagem que o rendimento proveniente de propriedade herdável. O imposto vigente dispensa exatamente o mesmo tratamento a todos os tipos de rendimento cobrando os seus 7 pence (atualmente [1871] 4 pence) por libra tanto da pessoa cujo rendimento morre com ela, como do dono de terras ou de capital, do credor hipotecário, que pode transmitir sua fortuna total a seus descendentes. Estamos aqui diante de uma injustiça manifesta e, no entanto, isso não viola aritmeticamente a regra de que a tributação deve ser proporcional aos recursos. Quando se diz que um rendimento temporário deve ser taxado com um imposto menor do que um rendimento permanente, é irresistível a resposta de que ele é taxado com imposto menor, pois o rendimento que dura apenas dez anos paga o imposto apenas durante dez anos, enquanto o que dura sempre paga imposto sempre. Quanto a esse ponto, alguns reformadores financeiros incorrem em grande falácia. Sustentam que os rendimentos devem pagar impostos de renda não em proporção ao seu montante anual, mas em proporção ao seu valor capitalizado: que, por exemplo, se o valor de uma anuidade perpétua de 100 libras for 3 mil libras, e uma anuidade vitalícia do mesmo montante, valendo apenas a metade do número de anos de rendimento, só pudesse ser vendida por 1500 libras, o rendimento perpétuo deveria pagar duas vezes mais por cento de imposto de renda do que o rendimento limitado; se um paga 10 libras por ano, o outro deveria pagar apenas 5 libras. Acontece que essa argumentação deixa obviamente de levar em conta um fato: avalia os rendimentos com um padrão e os pagamentos com outro; capitaliza os rendimentos, mas esquece de capitalizar os pagamentos. Alega-se: uma anuidade no valor de 3 mil libras deve pagar o dobro do imposto incidente sobre uma que só vale 1500 libras; nada mais incontestável do que isso. Esquece-se, porém, que o rendimento que vale 3 mil libras paga ao suposto imposto de renda 10 libras por ano in perpetuum, o que equivale, pela hipótese, a 300 libras, ao passo que o rendimento limitado paga as mesmas 10 libras somente enquanto viver o seu proprietário, o que, com base no mesmo cálculo, é um valor de 150 libras, e poderia efetivamente ser comprado por essa soma. Por isso, o rendimento que vale apenas a metade já paga apenas a metade ao imposto, e se, além disso, sua cota anual fosse reduzida de 10 para 5 libras, ele pagaria não a metade, mas apenas 1/4 do pagamento exigido do rendimento perpétuo. Para que fosse justo um rendimento pagar apenas a metade, por ano, do que paga o outro, seria necessário que pagasse essa metade durante o mesmo período, isto é, in perpetuum. A regra defendida por essa escola de reformadores financeiros seria muito justa se o imposto só tivesse que ser cobrado uma vez, para atender a alguma emergência nacional. Com base no princípio de exigir de todos os contribuintes um sacrifício igual toda pessoa que fosse proprietária de alguma coisa, incluindo os que têm o direito de reversão de propriedade, deveria fazer um pagamento proporcional ao valor atual da sua propriedade. Surpreende-me que não ocorra aos referidos reformadores que, exatamente pelo fato de esse princípio de tributação ser justo no caso de um pagamento feito de uma vez por todas, não é possível que ele seja justo para um tributo permanente. Quando cada um paga apenas uma vez, uma pessoa não paga mais vezes que outra; ora, a proporção, que seria justa nesse caso, não pode ser também justa se uma pessoa tem de fazer o pagamento uma só vez e a outra o tem de fazer mais vezes. Ora, é isso o que ocorre na realidade. Os rendimentos permanentes pagam o imposto tantas vezes mais que os rendimentos temporários, quanto um rendimento perpétuo ultrapassa o período certo ou incerto que perfaz a duração do rendimento que dura a vida toda ou determinado número de anos. São manifestamente absurdas todas as tentativas no sentido de estabelecer um direito, em favor dos rendimentos temporários, com base em motivos numéricos — para fazer, em suma, com que um imposto proporcional não seja um imposto proporcional. Esse direito não se baseia em motivos da aritmética, mas em motivos de necessidades e desejos humanos. Se o beneficiário de uma anuidade temporária deve pagar uma percentagem menor, não é porque tem menos recursos, mas porque tem necessidades maiores. Apesar de ser nominalmente igual o rendimento, A, um beneficiário de anuidade que recebe 1000 libras por ano, não pode pagar 100 libras desse rendimento com a mesma facilidade que B, que aufere a mesma soma anual de uma propriedade herdável, pois normalmente A tem, quanto ao rendimento que recebe, uma exigência que B não tem em relação ao seu, isto é, poupar para prover a seus filhos ou a outras pessoas; a isso, no caso de salários ou ganhos profissionais, geralmente se tem de acrescentar uma provisão para os anos de velhice da própria pessoa — ao passo que B pode gastar todo o seu rendimento sem prejudicar a sua velhice, e mesmo assim ter condição de passá-lo a outros, após a sua morte. Se A, para atender a essas exigências, tem de guardar 300 libras de seu rendimento, tirar dele 100 libras como imposto de renda significa tirar-lhe 100 de 700 libras, pois, em se tratando dele, só se pode tirar daquela parte de seus recursos que ele pode permitir-se gastar com seu próprio consumo. Se A rateasse o imposto sobre o que gasta para seu consumo e sobre o que economiza, deduzindo 70 libras de seu consumo e 30 libras de sua poupança, então sem dúvida o seu sacrifício imediato seria proporcionalmente igual ao de B; mas nesse caso, em consequência do imposto, os filhos de A, ou sua velhice, estariam menos bem providos. A soma capital que seria acumulada para esses fins seria 1/10 inferior, e sobre o rendimento reduzido produzido por esse capital reduzido seus filhos e sua velhice teriam que pagar imposto de renda uma segunda vez, ao passo que os herdeiros de B só teriam que pagar imposto de renda uma vez. Consequentemente, o princípio da igualdade de tributação, se interpretado em seu único sentido justo, de igualdade de sacrifício, exige que uma pessoa que não tem outros meios para prover à sua velhice ou para prover àqueles por quem tem interesse, a não ser poupando de seu rendimento, deve gozar de isenção do imposto de renda sobre toda aquela parte de seu rendimento que é realmente e de boa-fé aplicada para esse fim. Com efeito, caso se pudesse confiar na consciência dos contribuintes, ou caso se pudesse ter garantia suficiente, por meio de medidas colaterais, de que não mentem, o modo correto de cobrar um imposto de renda seria taxar somente a parte do rendimento destinada ao gasto, isentando a parte que é poupada. Pois, quando a quantia é poupada e investida (e todas as poupanças são investidas, falando de modo geral), ela a partir daí paga imposto de renda sobre os juros ou o lucro que rende, apesar de já ter sido taxada no principal. Se, portanto, as poupanças não forem isentas do imposto de renda, os contribuintes sofrem taxação dupla sobre aquilo que economizam e apenas uma taxação sobre aquilo que gastam. Uma pessoa que gasta tudo o que recebe paga 7 d. por libra de imposto de renda, ou, digamos, 3%, e não mais; se, porém, economizar parte do rendimento anual e adquirir capital, nesse caso, além dos 3% que pagou sobre o principal, e que diminuem os juros na mesma proporção, paga 3% anualmente sobre os próprios juros, o que equivale a um pagamento imediato de outros 3% sobre o principal. Assim sendo, se o gasto improdutivo paga apenas 3%, as poupanças feitas pagam 6% — ou, mais corretamente, 3% sobre o total, e outros 3% sobre os 97 restantes. A diferença assim criada, em desvantagem de quem é prudente e economiza, não somente é impolítica, mas também injusta. Taxar a soma investida e depois taxar também o que esse investimento rende é taxar a mesma parte dos recursos do contribuinte duas vezes. O principal e os juros não podem, os dois, fazer parte dos seus recursos, senão que são a mesma porção, contada duas vezes: se ele recebe os juros é porque se absteve de usar o principal; se gastar o principal, não recebe os juros. Entretanto, já que pode fazer qualquer uma das duas coisas ele é taxado como se pudesse fazer as duas, e como se pudesse gozar ao mesmo tempo dos dois benefícios, o da poupança feita e também o do gasto efetuado. Contra a proposta de se isentar do imposto de renda as poupanças, tem-se objetado que a lei não deve perturbar, com interferência artificial, a concorrência natural entre as motivações para poupar e as motivações para gastar. Mas, já vimos que a lei perturba essa concorrência natural ao taxar as poupanças, e não quando as isenta, pois, pelo fato de as poupanças pagarem, em qualquer hipótese, o imposto pleno no próprio momento em que são investidas, é necessário isentá-las do pagamento no estágio anterior, para impedi-las de pagar duas vezes, ao passo que o dinheiro gasto em consumo improdutivo paga apenas uma vez. Tem-se além disso objetado que, uma vez que os ricos têm mais recursos para poupar, qualquer privilégio que se dê às poupanças é uma vantagem conferida aos ricos, à custa dos pobres. Respondo que esse privilégio é conferido aos ricos somente na proporção em que renunciam a utilizar pessoalmente suas riquezas, na proporção em que, em vez de atenderem às suas próprias necessidades de consumo, as desviam para um investimento produtivo, com o qual o dinheiro em vez de ser consumido por eles próprios, é distribuído em salários entre os pobres. Se isso for favorecer aos ricos, gostaria que alguém me dissesse: qual tipo de tributação se poderia dizer que favorece aos pobres? Não é realmente justo nenhum imposto de renda em que as poupanças não forem isentas e não se deveria aprovar nenhum imposto de renda que não contivesse essa medida, desde que a forma dos retornos e a natureza da demonstração exigida pudessem ser tais que se impedisse as pessoas de auferirem vantagem fraudulenta dessa isenção, poupando com uma mão e endividando-se com a outra, ou gastando no ano subsequente o que no ano anterior foi isento do imposto, por ser poupança. Se essa dificuldade pudesse ser superada, desapareceriam as dificuldades e complexidades decorrentes dos direitos comparativos dos rendimentos temporários e dos rendimentos permanentes; com efeito uma vez que os rendimentos temporários não têm direito a uma taxação menor do que os rendimentos permanentes, a não ser na medida em que os donos deles são levados a poupar, a isenção daquilo que realmente poupam atenderia plenamente a esse direito. Entretanto, se não se puder encontrar nenhum sistema para isentar as poupanças efetivas que seja suficientemente isento de possibilidade de fraude, é necessário, como item seguinte, em termos de justiça, levar em conta, ao fixar o imposto, o que as diferentes classes de contribuintes devem poupar. Ora, provavelmente não haveria nenhuma outra maneira de fazer isso, a não ser recorrendo a duas taxas diferentes de cobrança do imposto. Seria muito difícil levar em conta diferenças de duração entre um tipo de rendimento limitado e outro; e, no caso mais frequente — o dos rendimentos que duram somente enquanto vive a pessoa —, as diferenças de idade e de saúde apresentariam tal diversidade que seria impossível tomar conhecimento adequado dos mesmos. Provavelmente seria então necessário contentar-se com uma única taxa uniforme para todos os rendimentos provenientes de herança e de outra taxa uniforme para todos os rendimentos provenientes de herança e de outra taxa uniforme para todos aqueles que terminam com a vida do indivíduo. Ao fixar a proporção entre as duas taxas, necessariamente terá que haver alguma arbitrariedade; talvez uma dedução de 1/4 em favor dos rendimentos que duram até falecer o indivíduo se prestaria a menos objeções que qualquer outra modalidade, presumindo-se nesse caso que 1/4 de um rendimento que dura enquanto viver a pessoa, na média de todas as idades e condições de saúde, representa uma proporção justa a se guardar com provisão para sucessores e para a velhice. (O sr. Hubbard, a primeira pessoa que, como legislador prático, tentou corrigir o imposto de renda com base em princípios de justiça impecável, e a cujo sistema bem pensado pouco falta para aproximar-se tanto quanto possível de uma tributação tão justa quanto aquela que provavelmente seria possível implantar na prática, propõe uma redução, não de 1/4, mas de 1/3, em favor dos rendimentos industriais e profissionais. Fixa-se nessa taxa porque, independentemente de qualquer consideração quanto àquilo que as classes industriais e profissionais devem poupar, os dados de que se dispõe tendem a provar que o que realmente poupam é, em média, 1/3 de seus rendimentos além da percentagem economizada por outras categorias. Observa ele: “Estima-se que as poupanças feitas de rendas derivantes de propriedade investida são de 1/10. As poupanças feitas de rendimentos industriais são estimadas em 4/10. Por serem quase iguais as importâncias que seriam taxadas, nestas duas categorias, simplificando-se o cálculo, eliminando 1/10 dos dois lados, e reduzindo então de 3/10, ou 1/3, o montante taxável dos rendimentos industriais. Relatório apresentado (p. XIV do Report and Evidence da Comissão de 1861). Essa estimativa contém necessariamente ampla margem de conjectura; entretanto, na medida em que a estimativa puder ser comprovada, fornece uma base válida para as conclusões práticas que o sr. Hubbard deduz dela. Vários autores que escreveram sobre o assunto, incluindo o sr. [James] Mill, em seus Elements of Political Economy, e o sr. McCulloch, em sua obra Taxation, sustentaram que se deveria deduzir tanto quanto fosse suficiente para assegurar a um proprietário, enquanto viver, uma soma que proporcionasse aos que lhe sucedem, para sempre, um rendimento igual àquele que reserva para si mesmo, pois é isso o que o dono de propriedade herdável pode fazer, sem poupar: em outras palavras, que os rendimentos temporários devem ser convertidos em rendimentos perpétuos de valor atual igual, e taxados como tais. Se os proprietários de rendimentos que duram enquanto estes viverem efetivamente poupassem essa grande percentagem de seus rendimentos, ou até uma percentagem ainda maior, de boa vontade eu lhes daria isenção tributária sobre o montante total, pois, caso se pudessem encontrar meios práticos para fazer isso, eu isentaria totalmente as poupanças. Entretanto, não posso admitir que tenham direito à isenção, com base na presunção geral de que estejam obrigados a poupar esse montante. Os proprietários de rendimentos de duração vitalícia não estão obrigados a deixar de desfrutar deles para deixar a uma linha perpétua de sucessores uma provisão independente, igual ao seu próprio rendimento temporário, e ninguém sequer sonha com isso. Muito menos se exige ou espera daqueles cujos rendimentos são fruto de trabalho pessoal, que deixam à sua posteridade, para sempre, sem que os descendentes tenham nenhuma necessidade de trabalhar, o mesmo rendimento que eles se permitem ter. A única coisa que estão obrigados a fazer, mesmo em favor de seus filhos, é colocá-los em situação em que tenham chance de ganhar sua própria vida. Dar, porém, aos filhos, ou a outros, por testamento, por ser uma inclinação legítima, à qual essas pessoas não podem atender sem guardar parte de seu rendimento, ao passo que isso é possível para donos de propriedade herdável, essa desigualdade real, em casos em que os próprios rendimentos são iguais, deve ser considerada, em grau razoável, na determinação do tributo, de molde a exigir dos dois sacrifício igual, dentro do máximo possível). Quanto aos lucros líquidos das pessoas engajadas no comércio, parte deles, como já observamos, pode ser considerada como juros sobre o capital, e de natureza perpétua e a parte restante pode ser considerada como remuneração pela habilidade e pelo trabalho de supervisão. A sobra que resta, além dos juros, depende da duração de vida do indivíduo, diríamos até do fato de ele continuar em sua atividade, tendo direito ao montante total de isenção concedido aos rendimentos limitados. Entendo que essa parcela tem também justo direito a um montante a mais de isenção, em razão da sua precariedade. Um rendimento que pode ser reduzido a nada ou convertido em perda, em virtude de alguma vicissitude não fora do normal, não é a mesma coisa, para os sentimentos do seu dono, que um rendimento permanente de 1000 libras por ano, mesmo que, em uma média de anos, possa render 1000 libras por ano. Se os rendimentos vitalícios fossem taxados na base de 3/4, de seu montante, os lucros derivantes da atividade, depois de se deduzirem os juros sobre o capital, não somente deveriam pagar imposto sobre apenas 3/4. senão que deveriam pagar uma taxa mais baixa. Ou então talvez se poderia atender suficientemente aos reclamos da justiça, sob esse aspecto, permitindo deduzir 1/4 do rendimento total, incluídos os juros. São esses os casos principais, de ocorrência comum, nos quais surge alguma dificuldade de interpretação da máxima da igualdade ou equidade da tributação. O sentido correto que se deve dar a essa máxima, como vimos no exemplo precedente, é que as pessoas devem ser taxadas não em proporção ao que possuem, mas em proporção ao que têm condições de gastar. Não constitui objeção a esse princípio o fato de não podermos aplicá-lo coerentemente a todos os casos. Uma pessoa que tem rendimento vitalício e uma saúde precária, ou que tem muitas pessoas que dependem da sua atividade, deve, se deseja garantir a subsistência deles após a morte, ser mais rigorosamente econômica do que uma que tem um rendimento vitalício de montante igual, mas que goza de uma constituição forte e tem poucas pessoas que dela dependem; e se concedermos que a tributação não pode ajustar-se a essas distinções, argumenta-se que não tem utilidade alguma atender a quaisquer distinções em que o montante de rendimento é absolutamente o mesmo. Entretanto, a dificuldade de se fazer justiça plena não constitui razão alguma contra o se fazer o que pudermos nesse sentido. Mesmo que seja duro, para um beneficiário de anuidade que tem apenas cinco anos de vida, não poder gozar de dedução superior àquela que se concede a um que tem vinte anos de vida. mesmo assim, isto é para ele melhor do que se a nenhum dos dois se concedesse dedução alguma. § 5. Antes de encerrarmos o item da equidade de tributação, devo observar que há casos em que se pode fazer exceções a esse princípio, sem lesar a justiça igualitária que constitui o fundamento dessa máxima. Suponhamos que exista um tipo de rendimento que tenda constantemente a aumentar, sem nenhuma atividade ou sacrifício da parte dos proprietários; tais proprietários constituiriam uma categoria, na comunidade, que se enriquece progressivamente pelo curso natural das coisas, sem que eles mesmos façam esforço algum para isso. Em tais casos, não haveria nenhuma violação dos princípios nos quais se baseia a propriedade privada se o Estado se apropriasse desse acréscimo de riqueza, ou de parte dele, à medida que ocorrer. Isso não seria propriamente tirar algo de alguém; equivaleria apenas a aplicar um acréscimo de riqueza, criado por circunstâncias, ao benefício da sociedade, em vez de permitir que essa riqueza seja um acréscimo desmerecido à riqueza de uma categoria específica de pessoas. Ora, esse é realmente o caso da renda. O progresso normal de uma sociedade que aumenta em riqueza está sempre tendendo a aumentar as rendas dos senhores de terras, a proporcionar-lhes tanto um montante maior como uma percentagem maior da riqueza da comunidade, independentemente de qualquer trabalho ou despesa da parte deles. Tornam-se mais ricos, digamos assim, no sono, sem trabalhar, sem assumir riscos, sem economizar. Que direito têm a esse acréscimo de riqueza, com base no princípio geral da justiça social? Em que teriam sido lesados, se a sociedade, desde o início, se tivesse reservado o direito de taxar o aumento espontâneo da renda, até o montante máximo demandado pelas exigências financeiras? Admito que seria injusto deter-se sobre cada propriedade individual, e apossar-se do aumento que eventualmente se tivesse constatado haver ocorrido em sua renda, pois não haveria meio de distinguir, em casos individuais, entre um aumento devido exclusivamente às circunstâncias gerais da sociedade e um que fosse efeito da perícia e dos gastos investidos pelo proprietário. A única maneira admissível de proceder seria por uma medida geral. O primeiro passo deveria consistir em uma avaliação de toda terra do país. Dever-se-ia isentar do imposto o valor atual de toda terra; contudo, decorrido certo intervalo, durante o qual a população e o capital da sociedade tivessem aumentado, poder-se-ia fazer uma avaliação sumária do aumento espontâneo ocorrido na renda, desde a data em que se fez a referida avaliação. O preço médio da produção colhida poderia constituir algum critério: se esse preço houvesse aumentado, seria certo que também a renda aumentou e (como já mostramos) até em proporção superior ao aumento do preço. Com base nesse dado e em outros, poder-se-ia fazer uma avaliação aproximada de quanto valor acresceu à terra do país, por efeito de causas naturais; e ao fixar um imposto geral sobre a propriedade fundiária, o qual, para não correr o risco de cálculos errôneos, deveria manter-se notavelmente dentro do montante supra indicado, ter-se-ia garantia de não tocar em nenhum aumento de renda que pudesse resultar do capital investido ou do trabalho despendido pelo proprietário. Entretanto, ainda que seja incontestavelmente justo taxar esse tipo de aumento da renda, se a sociedade se tivesse reservado expressamente esse direito, será que a sociedade não renunciou a esse direito pelo fato de não exercê-lo? Na Inglaterra, por exemplo, será que aqueles que compraram terra no século passado, ou antes não pagaram não só pelo valor então vigente, mas também pelas perspectivas de aumento, com garantia implícita de serem taxados apenas na mesma proporção que outras rendas? Essa objeção, na medida em que é válida, tem um grau de validade diferente conforme os países, dependendo do grau de desuso em que a sociedade deixou cair um direito que, sem dúvida, uma vez possuiu plenamente. Na maior parte dos países da Europa, nunca se abandonou o direito de o Estado tirar, por tributação, conforme a exigência o impusesse, uma parcela indefinida da renda da terra. Em vários países da Europa continental, o imposto fundiário constitui grande percentagem da receita pública, e sempre permaneceu declaradamente sujeito a ser aumentado ou baixado sem referência a outros impostos. Nesses países, ninguém pode pretender tornar-se proprietário de terra com a esperança de nunca ser intimado a pagar um imposto fundiário maior. Na Inglaterra, esse imposto não variou desde a primeira parte do século passado. A última lei do Parlamento, em relação ao montante desse imposto, foi para diminuí-lo: e embora o aumento subsequente das rendas do país tenha sido imenso, não somente em decorrência da agricultura, mas também em decorrência do crescimento das cidades e do aumento das construções, a predominância dos senhores de terra no Parlamento impediu que se impusesse qualquer tributo — como tão justo seria — sobre a enorme parcela desse aumento que não foi merecido, mas foi, digamos assim, acidental. Para atender às expectativas assim criadas, parece-me que se oferece uma compensação amplamente suficiente, isentando-se de qualquer tributação especial todo esse aumento de renda que ocorreu durante esse longo período, em decorrência de uma simples lei natural, sem trabalho ou sacrifício dos proprietários. A partir desta data, porém, ou a partir de alguma data subsequente em que o Parlamento resolva sancionar esse princípio, não vejo objeção alguma em declarar que o aumento futuro da renda deve estar sujeito a uma taxação especial; ao fazer isso, evitar-se-ia toda injustiça aos senhores de terra, caso se lhes assegurasse o atual preço de mercado de sua terra, pois esse valor inclui o valor atual de todas as expectativas futuras. Com referência a tal imposto, talvez um critério mais seguro do que um aumento das rendas ou um aumento do preço do trigo seria um aumento geral do preço da terra. Seria fácil manter o imposto fundiário dentro do montante que reduzisse o valor de mercado da terra abaixo da avaliação original — até esse ponto, qualquer que fosse o montante do imposto, não se cometeria nenhuma injustiça contra os proprietários. § 6. Contudo, o que quer que se pense acerca da legitimidade de fazer o Estado tirar partido de todo aumento futuro da renda da terra, em decorrência de causas naturais, o imposto territorial hoje vigente (o qual, na Inglaterra, infelizmente é muito baixo) não deveria ser considerado como um imposto, mas como um encargo sobre a renda, cobrado em benefício do público — uma parcela da renda, reservada desde o início pelo Estado, parcela esta que nunca pertenceu aos senhores de terra nem nunca fez parte de sua renda, e portanto não deveria ser contada para eles como parte de sua tributação, de molde a isentá-los de sua justa cota de participação em todos os outros impostos. Tão pouco poderia a dízima ser considerada como um tributo imposto aos senhores de terra, quão pouco, em Bengala onde o Estado, embora tenha direito a toda renda da terra, cedeu 1/10 da mesma aos indivíduos, retendo os outros 9/10 —, esses 9/10 poderiam ser considerados como um imposto desigual e injusto sobre os beneficiários do 1/10 da renda cedido pelo Estado. O fato de uma pessoa possuir parte da renda não faz com que a parcela restante lhe pertença por direito de justiça, como se fosse injustiça tirar-lhe isso. Os senhores de terra originalmente possuíam suas propriedades sujeitas a ônus feudais; ora, o atual imposto fundiário não é de forma alguma um equivalente suficiente desses ônus, e portanto se deveria exigir dos senhores de terra o pagamento de um imposto muito maior, por terem sido liberados daqueles ônus. Todos os que compraram terra desde que o imposto existe, compraram-na sujeita ao imposto. Não há o mínimo fundamento para considerá-lo como um pagamento cobrado da atual geração de senhores de terra. Essas observações são aplicáveis a um imposto fundiário somente na medida em que ele é um imposto especial, e não quando ele é apenas uma forma de cobrar dos senhores de terra o equivalente àquilo que se tira de outras categorias. Na França, por exemplo, existem impostos especiais, incidentes sobre outros tipos de propriedade e de renda (o mobilier e a patente), e na suposição de o imposto fundiário não representar um equivalente superior a esses impostos, não haveria base alguma para sustentar que o Estado se reservou o direito de cobrar um encargo sobre a renda da terra. Entretanto, em toda parte em que — e na medida em que — a renda proveniente da terra estiver por lei sujeita a uma dedução para fins públicos, além da taxa de tributação cobrada de outras rendas, o excedente não é propriamente uma tributação, mas uma participação na propriedade do solo, reservada pelo Estado. Na Inglaterra, não há impostos especiais para outras categorias que correspondam ao imposto fundiário, ou que tenham sido criados para contrabalançá-lo. Por conseguinte, o imposto territorial, em sua totalidade, não é tributação, mas um encargo sobre a renda, sendo como se o Estado tivesse retido não uma parcela da renda, mas uma parcela da terra. Tampouco é um ônus que pesa sobre o senhor de terra, quão pouco a parcela de um ocupante associado é um ônus para o outro. Os senhores de terra não têm direito a nenhuma compensação por esse imposto, nem têm direito algum a que este imposto seja considerado como parte de seus impostos. A continuidade do imposto nas condições atuais não representa nenhuma violação do princípio da equidade de tributação. (Aplicam-se obviamente as mesmas observações àqueles impostos locais que, segundo tantas afirmações dos protecionistas que ainda restam, exercem uma pressão especial sobre a propriedade fundiária. Todos esses ônus que forem de velha data devem ser considerados como uma dedução ou reserva consagrada, para fins públicos, de uma parcela da renda. Qualquer acréscimo recente, ou reverteu para o benefício dos donos de propriedade fundiária, ou foi ocasionado por culpa deles, e portanto, em nenhum dos dois casos, têm motivo algum de queixa justa). Mais adiante, ao tratarmos da tributação indireta, consideraremos até que ponto, e com que modificações, a norma da equidade é aplicável a esse setor. § 7. Além das normas que precedem, estabelece-se às vezes outra regra geral de tributação, isto é, que ela deve incidir sobre o rendimento e não sobre o capital. Não cabe dúvida de que é de máxima importância que a taxação não deve interferir no montante do capital nacional; porém, essa interferência, quando ocorre, não é tanto uma consequência de alguma forma específica de taxação, mas antes do montante excessivo do capital nacional. A taxação excessiva, se efetuada em extensão suficiente, é perfeitamente capaz de arruinar a comunidade mais trabalhadora, sobretudo quando for em qualquer grau arbitrária, de sorte que o contribuinte nunca sabe ao certo quanto poderá manter para si — ou então, quando o tributo é imposto de forma tal, que se torna mau negócio trabalhar e economizar. Se, porém, se evitarem esses erros, e se o montante de tributação não for superior ao que é atualmente, mesmo no país europeu em que os impostos são os mais pesados, não há perigo algum de que ela prive o país de uma parcela de seu capital. Ordenar que a tributação incida totalmente sobre o rendimento e não sobre o capital ultrapassa o poder de qualquer sistema de arrecadação fiscal. Não existe imposto algum que em parte não seja retirado daquilo que, do contrário, teria sido poupado; não existe imposto algum cujo montante, se não fosse cobrado, seria totalmente empregado para gastos e do qual não se guardaria nenhuma parcela como capital adicional. Por isso, todos os impostos são, em certo sentido, em parte pagos com capital, e em um país pobre é impossível impor qualquer tributo que não impeça o aumento da riqueza nacional. Todavia, em um país onde o capital é abundante, e onde é forte o espírito de acumulação de poupança, dificilmente é sentido esse efeito dos impostos. Por ter o capital atingido o estágio em que, caso não houvesse uma sucessão contínua de aperfeiçoamento na produção, cessaria logo todo aumento ulterior do mesmo — e pelo fato de o capital ter uma tendência tão forte a superar até os citados aperfeiçoamentos, que os lucros são mantidos acima do mínimo, apenas em virtude da emigração de capital, ou por uma varrida periódica denominada crise comercial —, nesse caso tirar do capital, por meio da tributação, o que de outra forma seria tirado pela emigração do mesmo, ou seria destruído por uma crise comercial, significa apenas fazer o que do contrário teria ocorrido em virtude de alguma dessas duas causas, isto é, criar um novo espaço para ulteriores poupanças. Não posso, pois, atribuir importância alguma, em um país rico, à objeção feita contra os impostos sobre legados e heranças, de que constituem impostos sobre o capital. É perfeitamente verdade que são impostos sobre o capital. Como observa Ricardo, se tirarmos 100 libras de alguém, na forma de um imposto sobre casa ou sobre vinho, ele provavelmente economizará esse montante, ou parte dele, vivendo em uma casa mais barata, consumindo menos vinho, ou então reduzindo algum outro de seus gastos; contudo, se tirarmos dele a mesma soma pelo fato de haver recebido um legado de 1 000 libras, ele considera o legado como sendo apenas de 900 libras, e já não sente estímulo a economizar em seus gastos, do que em qualquer outra ocasião (provavelmente se sentirá até menos estimulado a economizar). O imposto, portanto, é totalmente pago com capital; e há realmente países em que isso constituiria uma séria objeção. Entretanto, em primeiro lugar, esse argumento não se pode aplicar a nenhum país que tenha uma dívida nacional e destine qualquer parcela da receita a liquidá-la, pois a receita proveniente do imposto, se aplicada dessa forma, continua a ser capital, sendo apenas transferida do pagador de impostos para o proprietário de fundos. Contudo, essa objeção nunca é aplicável a um país cuja riqueza aumenta rapidamente. O montante que se auferiria, mesmo de um imposto muito alto sobre um legado, em cada ano, não passa de uma pequena fração do aumento anual de capital que ocorre em tal país, e essa redução de capital não faria senão criar lugar para poupar um montante equivalente — ao passo que, no caso de o Estado não cobrar essa parcela de imposto, teria como efeito impedir que a respectiva importância fosse economizada, ou então, se a economia fosse feita, teria por efeito fazê-la migrar para o exterior, para investimento. Um país que, como a Inglaterra, acumula capital não somente para si mesmo, mas para a metade do mundo, está cobrindo — pode-se dizer — todos os seus gastos públicos com seu capital sobrante, sendo que, no momento presente, sua riqueza provavelmente é tão grande quanto seria se não houvesse no país imposto algum. O que realmente fazem os impostos cobrados no país não é subtrair os recursos destinados à produção, mas diminuir os recursos destinados aos gastos supérfluos; com efeito, tudo aquilo que qualquer pessoa está pagando em impostos poderia, se não o aplicasse para pagar impostos, empregá-lo para viver mais folgadamente, ou para atender a algum desejo ou gosto ao qual, atualmente, deixa de satisfazer. CAPÍTULO III Impostos Diretos § 1. Os impostos podem ser diretos ou indiretos. Um imposto direto é aquele cobrado exatamente das pessoas que se tenciona ou se deseja que o paguem. Impostos indiretos são aqueles que são cobrados de uma pessoa, na expectativa ou com a intenção de que esta se indenize à custa de outra, tal como o imposto de consumo ou as taxas alfandegárias. O produtor ou o importador de uma mercadoria é intimado a pagar um imposto sobre esta, não com a intenção de cobrar dele uma contribuição especial, mas com a intenção de taxar, por seu intermédio, os consumidores da mercadoria, dos quais, como se supõe, ele recuperará o montante, aumentando o preço da mesma. Os impostos diretos incidem sobre rendimento ou sobre gastos. A maioria dos impostos sobre gastos é indireta, mas alguns são diretos, por recaírem não sobre o produtor ou vendedor de um artigo, mas diretamente sobre o consumidor. Um imposto predial, por exemplo, é um imposto direto sobre gasto se for cobrado, como acontece normalmente, do ocupante da casa. Se for cobrado do construtor ou do proprietário, seria um imposto indireto. Um imposto por janela é um imposto direto sobre gastos; o mesmo acontece com os impostos sobre cavalos e carruagens, e com os demais dos chamados impostos diretos. As fontes de rendimento são a renda, os lucros e os salários. Isso inclui todo tipo de rendimento, excetuados doações ou roubos. Os impostos podem incidir em qualquer um dos três tipos de rendimento, ou então se pode impor um tributo uniforme a cada um dos três tipos de rendimento. Estudaremos esses impostos em sua respectiva ordem. § 2. Um imposto sobre renda da terra recai inteiramente sobre o dono da terra. Não há meio de ele descarregar esse peso sobre outra pessoa. Ele não afeta o valor ou o preço dos produtos agrícolas, pois estes são determinados pelo custo de produção nas circunstâncias mais desfavoráveis, e nessas circunstâncias, como demonstramos tantas vezes, não se paga renda. Por isso, um imposto sobre a renda não tem outro efeito senão seu efeito óbvio. Ele simplesmente tira um tanto do dono da terra e o transfere para os cofres do Estado. Isso, porém, no sentido rigorosamente exato, só é verdade em relação à renda que resulta de causas naturais ou de melhorias feitas por arrendatários. Quando o proprietário implanta melhorias que aumentam a força produtiva de sua terra, recebe remuneração por elas mediante o pagamento extra do arrendatário; esse pagamento, que para o senhor da terra é propriamente um lucro sobre o capital, se confunde com a renda — e realmente é renda para o arrendatário, e sob o aspecto das leis econômicas que determinam o seu montante. Um imposto sobre a renda, se abrangesse essa parcela dela, desestimularia os donos de terra de fazer melhorias, mas disso não segue que ele faria aumentar o preço dos produtos agrícolas. As mesmas melhorias poderiam ser feitas com o capital do arrendatário, ou mesmo com o capital do dono da terra, se emprestado por ele ao arrendatário — desde que o dono da terra esteja disposto a conceder ao arrendatário um prazo de locação tão longo que lhe possibilite indenizar-se antes de a locação expirar. Mas tudo aquilo que impede a realização de melhorias da maneira como as pessoas preferem fazê-las, muitas vezes impedirá que elas nem sequer sejam efetuadas; e por isso um imposto sobre a renda da terra seria inconveniente, a menos que se pudesse encontrar algum meio de excluir dos seus efeitos aquela porção da renda nominal que pode ser considerada como lucro do dono da terra. Todavia, não carece desse argumento para condenar tal imposto. Um imposto especial sobre o rendimento de qualquer categoria, não contrabalançado por impostos sobre outras categorias, representa violação da justiça, equivalente a um confisco injusto. Já apontei motivos para isentar dessa censura um imposto que, poupando as rendas vigentes, se contentasse com apropriar-se de uma parcela de qualquer aumento futuro derivante da simples ação de causas naturais. Mas mesmo isso não poderia ser feito com justiça, sem oferecer como alternativa o preço de mercado da terra. No caso de um imposto sobre a renda, que não seja peculiar, mas acompanhado de um imposto equivalente sobre outros rendimentos, é menos aplicável a objeção baseada no fato de ele atingir o lucro derivante das melhorias, pois, por se taxar tanto os lucros como a renda, o lucro que assume a forma de renda está sujeito à sua cota, juntamente com outros lucros; mas, já que os lucros devem, por motivos anteriormente indicados, ser taxados algo mais baixo do que a renda propriamente dita, a objeção apenas perde parte da força, mas não é eliminada. § 3. Um imposto sobre o lucro, analogamente a um imposto sobre a renda, deve, ao menos em seu efeito imediato, recair inteiramente sobre quem o paga. Pelo fato de todos os lucros serem afetados da mesma forma, não se pode conseguir nenhum alívio mudando de ocupação. Caso se impusesse um tributo aos lucros de qualquer setor de emprego produtivo, o imposto representaria virtualmente um aumento do custo de produção, aumentando também, em consequência, o valor e o preço do artigo, e com isso o imposto seria descarregado sobre os consumidores da mercadoria, não afetando os lucros. Mas um imposto geral e igual sobre todos os lucros não afetaria os preços em geral, recaindo, ao menos em primeira instância, somente sobre os donos de capital. Há, porém, outro efeito, o qual, em um país rico e próspero, precisa ser levado em conta. Quando o capital acumulado é tão grande e o ritmo de acumulação é tão rápido, que a única maneira de impedir o país de atingir a condição estacionária é a emigração de capital, ou então introduzir aperfeiçoamentos contínuos na produção, toda circunstância que virtualmente faz baixar a taxa de lucro não pode deixar de exercer influência decisiva sobre esses fenômenos. Tal circunstância pode ter efeitos diferentes. A redução dos lucros, e a consequente dificuldade maior para fazer fortuna ou conseguir o sustento aplicando capital, pode agir como estímulo para invenções, e para a utilização das mesmas, quando feitas. Se os aperfeiçoamentos na produção forem muito acelerados e se baratearem, direta ou indiretamente, o preço de qualquer uma das coisas habitualmente consumidas pelo trabalhador, os lucros podem aumentar, e aumentar o suficiente para compensar tudo o que deles é tirado pelo imposto. Nesse caso, o imposto foi recolhido sem perda para ninguém, e a produção do país aumentará em montante igual, ou em um montante que seria muito maior. Mesmo nesse caso deve-se dizer que o imposto é pago com os lucros, porque os beneficiados, se o imposto fosse suprimido, seriam os que recebem os lucros. Embora a retirada artificial de uma parcela dos lucros tenha uma tendência real a acelerar a introdução de aperfeiçoamentos na produção, na realidade possivelmente não resultaria nenhum aperfeiçoamento considerável, ou então só resultariam aperfeiçoamentos que de forma alguma fariam aumentar os lucros em geral, ou não os aumentariam tanto quanto o imposto os teria reduzido. Se assim fosse, a taxa de lucro chegaria mais perto daquele mínimo virtual do qual se aproxima constantemente, e este retorno reduzido do capital representaria um obstáculo decisivo para a ulterior acumulação de capital ou faria com que se enviasse ao exterior uma percentagem maior do que antes do aumento anual de capital, ou fosse desperdiçada em especulações não rentáveis. Na sua primeira imposição, o tributo recai inteiramente sobre o lucro; mas o montante de aumento de capital que o imposto impede teria tendido a reduzir os lucros ao mesmo nível, caso se tivesse permitido que o aumento de capital continuasse, e a cada período de dez ou vinte anos se encontrará menos diferença entre os lucros como são e os lucros como seriam nessa eventualidade — até que, ao final, não haja diferença alguma e o imposto acabe recaindo sobre o trabalhador ou sobre o dono da terra. O efeito real de um imposto sobre os lucros é fazer o país possuir, em determinado período, um capital menor e uma produção agregada menor, e fazer com que se atinja mais cedo o estado estacionário e com um montante menor de riqueza racional. Um imposto sobre os lucros pode até reduzir o capital existente no país. Se a taxa de lucro já é o mínimo virtual, isto é, já estiver no ponto em que aquela parcela do aumento anual que tenderia a reduzir os lucros é retirada do país, seja pela exportação, seja pela especulação, nesse caso, impondo-se um imposto que reduza os lucros ainda mais, as mesmas causas que antes retiravam do país apenas o aumento de capital provavelmente passariam a retirar uma parcela do capital existente. Por isso, um imposto sobre os lucros é extremamente prejudicial para a riqueza nacional, na condição de capital e de acumulação de capital como a da Inglaterra. E esse efeito não se limita ao caso de um imposto especial, e, portanto, intrinsecamente injusto, sobre os lucros. O simples fato de os lucros terem que carregar a sua parte de uma tributação pesada generalizada tende, da mesma forma que um imposto especial, a fazer o capital emigrar para o exterior, a estimular especulações imprudentes, reduzindo ganhos seguros, a desencorajar a ulterior acumulação de capital, e a acelerar o alcance da condição estacionária. Pensa-se ter sido essa a causa principal do declínio da Holanda, ou melhor, da cessação do seu progresso. Mesmo em países que não acumulam capital com tanta rapidez, que estejam sempre a curta distância da condição estacionária, parece impossível que, se estiver havendo acumulação de capital, essa acumulação não seja até certo ponto retardada pela dedução de uma parcela de seu lucro; e a menos que esse efeito seja plenamente contrabalançado pelo efeito de estimular os aperfeiçoamentos, é inevitável que parte desse ônus passe do capitalista para o trabalhador ou o dono da terra. Diminuindo a taxa de acumulação de capital, um desses dois sai sempre perdendo. Se a população continuar a aumentar como antes, sofre o trabalhador; se não, o cultivo agrícola deixa de avançar e os donos de terra perdem o acréscimo da renda que teriam tido. Os únicos países em que um imposto sobre os lucros parece ter probabilidade de constituir permanentemente um ônus que pesa apenas sobre os capitalistas são aqueles em que o capital estacionou, por não haver mais novas acumulações. Em tais países, o imposto poderia não impedir de se continuar a manter o antigo capital, por hábito, ou pelo fato de as pessoas não quererem submeter-se a empobrecer, e dessa forma o capitalista poderia continuar a arcar com o imposto inteiro. Essas considerações mostram que os efeitos de um imposto sobre os lucros são muito mais complexos, mais variados, e sob certos aspectos mais incertos do que o comumente suposto por autores que escrevem sobre o assunto. § 4. Passemos agora para os impostos sobre salários. A incidência destes é muito diferente, conforme os salários taxados forem os de mão-de-obra comum não qualificada, ou forem a remuneração de profissões qualificadas ou privilegiadas, manuais ou intelectuais, que são tiradas da esfera da concorrência por um monopólio natural ou conferido. Já observei que, no atual estágio baixo em que se encontra a educação popular, todos os graus mais altos de mão-de-obra intelectual ou especializada têm preço de monopólio, superando os salários de operários comuns em grau muito maior do que é devido às despesas, ao trabalho e ao investimento de tempo exigidos para se qualificar para a profissão. Qualquer imposto cobrado sobre esses ganhos, que ainda os deixe acima (e não abaixo) de sua justa proporção, recai sobre aqueles que o pagam; estes não têm nenhum meio de descarregar o imposto sobre alguma outra categoria. O mesmo é verdade em relação aos salários comuns, em casos como os dos Estados Unidos, ou de uma nova colônia, onde, pelo fato de o capital aumentar tão rapidamente quanto pode aumentar a população, os salários são mantidos altos pelo aumento do capital, e não pela adesão dos trabalhadores a um padrão de conforto fixo. Em tal caso, algum deterioramento da condição deles, seja por um imposto, seja por outra via, poderia possivelmente ocorrer sem impedir o aumento da população. Nesse caso, o imposto recairia sobre os próprios trabalhadores e os reduziria prematuramente àquela condição mais baixa à qual, na mesma suposição em relação a seus hábitos, teriam sido reduzidos em qualquer hipótese, em última análise em razão da diminuição inevitável da taxa de aumento do capital, pela ocupação de toda a terra fértil. Objetarão alguns que, mesmo nesse caso, um imposto sobre os salários não pode prejudicar os trabalhadores, pois o dinheiro levantado por esse imposto, por ser gasto no país, volta novamente aos trabalhadores, pela demanda de mão-de-obra. Entretanto, no Livro Primeiro demonstrei tão cabalmente a falácia dessa doutrina que pouco me resta fazer além de remeter para a exposição já feita. Demonstrarei lá que os fundos gastos improdutivamente não têm tendência alguma a elevar ou manter altos os salários, a não ser que sejam gastos na contratação direta de mão-de-obra. Se o governo cobrasse um imposto de 1 xelim por semana de cada trabalhador e aplicasse isso tudo para contratar trabalhadores para o serviço militar, para obras públicas ou coisas similares, sem dúvida indenizaria os trabalhadores, como categoria, por tudo o que o imposto deles tirasse. Isso seria realmente “gastar o dinheiro entre o povo”. Mas se gastasse isso tudo para comprar mercadorias, ou para aumentar os vencimentos dos funcionários que com esse dinheiro comprassem mercadorias, isso não levaria a um aumento da demanda de mão-de-obra, nem tenderia a aumentar os salários. Sem, porém, voltarmos aos princípios gerais podemos recorrer a uma óbvia reductio ad absurdum. Se tirar dinheiro dos trabalhadores e gastá-lo em mercadorias equivaler a restituí-lo aos trabalhadores, nesse caso, tirar dinheiro de outras classes e gastá-lo da mesma forma deveria equivaler a dá-lo aos trabalhadores; consequentemente, quanto mais o governo recolhesse em impostos, tanto maior seria a demanda de mão-de-obra, e tanto mais opulenta seria a condição dos trabalhadores — proposição cujo absurdo ninguém pode deixar de ver. Na condição da maioria das comunidades, os salários são regulados pelo padrão de vida habitual ao qual aderem os trabalhadores, e abaixo do qual não se multiplicarão. Onde existe tal padrão, um imposto sobre os salários recairá realmente, durante algum tempo, sobre os próprios trabalhadores; contudo, a menos que essa baixa temporária tenha o efeito de fazer baixar o próprio padrão de vida, a população deixará de aumentar, o que fará aumentar os salários e reconduzirá os trabalhadores à sua condição de vida anterior. Sobre quem recairá, nesse caso, o imposto? Segundo Adam Smith, sobre a comunidade em geral, na qualidade de consumidores — pois, no pensamento dele, o aumento dos salários faria aumentar os preços em geral. Entretanto, vimos que os preços em geral dependem de outras causas, e nunca aumentam em virtude de qualquer circunstância que afete todos os tipos de ocupação produtiva da mesma forma e no mesmo grau. Um aumento de salários, decorrente de um imposto, tem de ser coberto pelos lucros, como, aliás, qualquer outro aumento do custo da mão-de-obra. Tentar taxar os trabalhadores diaristas, em um país antigo, significa simplesmente impor um tributo extra a todos os empregadores de mão-de-obra comum — isto, a menos que o imposto tenha o efeito, muito mais grave, de fazer baixar permanentemente o padrão de subsistência confortável na visão da classe mais pobre. Nas considerações que acabam de ser feitas, encontramos um argumento a mais para a opinião, já expressa, de que a tributação direta não deve atingir a classe de rendimentos que não excedem o que é necessário para levar uma existência sadia. Esses rendimentos muito pequenos provêm na maior parte dos casos de trabalho manual; e, como acabamos de ver, qualquer tributo imposto a essa classe de rendimentos ou acaba fazendo baixar em caráter permanente os hábitos da classe trabalhadora, ou recai sobre os lucros, e onera os capitalistas com um imposto indireto, além da cota que já pagam na forma de impostos diretos; ora, isso depara com duas objeções: é uma violação da norma fundamental da equidade e, por razões que já mostramos, faz com que um imposto especial sobre os lucros seja prejudicial à riqueza pública, e consequentemente para os recursos que a sociedade possui para pagar quaisquer impostos que sejam. § 5. Passemos agora de impostos sobre as espécies individuais de rendimento para um imposto que se tenta cobrar honestamente de todas as espécies de rendimentos: em outros termos, um imposto de renda em geral. Já antecipamos, no capítulo anterior, a discussão sobre as condições necessárias para que esse imposto se coadune com a justiça. Suporemos, pois, que essas condições sejam atendidas. A primeira delas é que os rendimentos abaixo de certo montante devem permanecer totalmente isentos de imposto. Esse mínimo não deve ultrapassar o montante que basta para os artigos de primeira necessidade da população existente. A isenção do atual imposto de renda, em se tratando de todos os rendimentos abaixo de 100 libras por ano, e a percentagem mais baixa anteriormente cobrada sobre os rendimentos entre 100 e 150 libras são defensáveis somente pelo motivo de que quase todos os impostos indiretos pesam mais sobre os rendimentos entre 50 e 150 libras do que sobre quaisquer outros. A segunda condição é que os rendimentos acima desse limite devem ser taxados somente em proporção ao excedente que passa do citado limite. Terceira condição: que todas as importâncias economizadas do rendimento e investidas devem ser isentas de imposto; ou então, se isso se constatar impraticável, que os rendimentos vitalícios provenientes da atividade comercial e das profissões tenham um imposto menor do que os rendimentos herdáveis, em um grau o mais possível equivalente à maior necessidade de economia decorrente do fato de serem rendimentos que cessam, levando-se em conta igualmente, no caso de rendimentos variáveis, seu caráter precário. Um imposto de renda, cobrado honestamente com base nesses princípios, seria, do ponto de vista da justiça, o menos impugnável dos impostos. A objeção que se lhe faz, no baixo grau de moralidade pública atualmente vigente, é a impossibilidade de verificar com certeza os rendimentos reais dos contribuintes. Em meu entender, não se deve dar muita atenção ao suposto incômodo que haveria em obrigar as pessoas a revelarem o montante de seus rendimentos. Um dos males sociais da Inglaterra está na prática, que equivale a um costume, de manter — ou se tentar manter — a aparência, perante os outros, de um rendimento superior àquele que se possui; ora, seria muito maior, para os interesses dos que cedem a essa fraqueza, se fosse dado a conhecer universalmente e com exatidão o montante de seus recursos, e se eliminasse a tentação de tais pessoas gastarem mais do que podem, reduzindo as suas necessidades reais, antes que externar aparência falsa. Ao mesmo tempo, a razão, mesmo nesse ponto, não está tão exclusivamente de um lado só do argumento, como por vezes se supõe. Enquanto a maioria da população de qualquer país estiver em uma condição mental tão baixa quanto a que pressupõe esse hábito nacional — enquanto o seu respeito (se é que a isso se pode chamar de respeito) é proporcional àquilo que supõem serem os recursos pecuniários de cada um —, há razões para se duvidar de que qualquer coisa que eliminasse toda incerteza quanto a esse ponto não faria aumentar consideravelmente a presunção e arrogância dos ricos vulgares, e sua insolência em relação aos que os ultrapassam em inteligência e caráter, embora estejam abaixo deles em termos de fortuna. Além disso, não obstante o que se chama natureza inquisitorial desse imposto, nenhum poder inquisitorial que seria tolerado por um povo mais disposto a se submeter a ele teria condições de cobrar esse imposto com base no conhecimento efetivo da situação dos contribuintes. Pode-se constatar com exatidão as rendas, os salários, as anuidades e todos os rendimentos fixos. Mas os ganhos variáveis dos profissionais liberais, e mais ainda os lucros comerciais, que nem a própria pessoa interessada é sempre capaz de verificar com exatidão, não podem ser avaliados por um coletor de impostos com alguma precisão que se aproxime da realidade. Tem-se de confiar sobretudo — e sempre assim se fez — nos dados fornecidos pela própria pessoa. Nenhuma apresentação de contas tem muito valor, a não ser contra os casos mais flagrantes de falsidade; e mesmo em se tratando destes, os obstáculos que se podem criar são muito imperfeitos, pois, no caso de a fraude ser tencionada, geralmente se consegue armar contas falsas, as quais será impossível detectar, mesmo com quaisquer recursos de sindicância possuídos pelos oficiais da Receita; muitas vezes basta para isso o recurso fácil de omitir entradas no crédito, sem recorrer a dívidas ou desembolsos fictícios. Por isso, o imposto de renda, quaisquer que sejam os princípios de equidade que lhe sirvam de base, é, na prática, desigual no seu pior aspecto: pelo fato de recair mais duramente sobre os mais conscienciosos. Os inescrupulosos conseguem sonegar grande parte do que devem pagar; mesmo pessoas íntegras em suas transações comuns estão tentadas a enganar a consciência, ao menos até o ponto de decidirem em seu próprio favor todos os pontos em torno dos quais poderia surgir a mínima dúvida ou contestação, ao passo que os rigorosamente verazes podem ter de pagar mais do que o intencionado pelo Estado, devido aos poderes de cobrança arbitrária, necessariamente confiados aos funcionários da Receita como sendo a última defesa contra o poder de ocultar as coisas que o contribuinte tem. Há, pois, razões para temer que a justiça inerente ao princípio de um imposto sobre a renda não possa ter vigência na prática, e que esse imposto, embora manifestamente seja o mais justo de todos os modos de arrecadar uma receita, acabe sendo na realidade mais injusto do que muitos outros que, prima facie, se prestam a mais objeções. Essa consideração nos levaria a concordar com a opinião que tem prevalecido até há pouco — que os impostos diretos sobre a renda devem ser reservados como um recurso extraordinário para grandes emergências nacionais, quando a necessidade de uma receita adicional supera todas as objeções. As dificuldades para se implantar um imposto de renda justo levaram a propor um imposto direto, de tantos por cento, não sobre o rendimento, mas sobre os gastos efetuados, já que o montante total dos gastos de cada um é comprovado, assim como o é atualmente o montante de rendimento, por dados fornecidos pelos próprios contribuintes. O autor dessa sugestão, o sr. Revans, em um opúsculo inteligente sobre a matéria (REVANS, John. A Percentage Tax on Domestic Expenditure to supply the whole of the Public Revenue. Publicado por Hatchard em 1847), sustenta que os dados que as pessoas forneceriam sobre os seus gastos seriam mais confiáveis do que aqueles que fornecem atualmente sobre seu rendimento, na medida em que os gastos por sua natureza são mais públicos do que o rendimento, sendo também mais fácil detectar falsificações. Penso que ele não deve ter levado suficientemente em conta quão poucos itens do gasto anual da maior parte das famílias é possível julgar, com alguma aproximação da verdade, com base em sinais externos. A única base continuaria a ser a veracidade dos indivíduos, e não há razão alguma para se supor que a confiabilidade deles seria maior em se tratando de suas despesas do que de seus rendimentos, sobretudo porque, consistindo o gasto da maioria das pessoas em itens muito mais numerosos que os de seu rendimento, haveria até mais campo para ocultar e suprimir no detalhe das despesas, do que no detalhe dos rendimentos recebidos. Os impostos sobre gastos, atualmente vigentes, seja na Inglaterra, seja em outros países, recaem apenas sobre tipos especiais de gasto, e não diferem dos impostos sobre mercadorias a não ser pelo fato de serem pagos diretamente pela pessoa que consome ou utiliza o artigo, em vez de serem pagos adiantadamente pelo produtor ou pelo vendedor, e serem reembolsados no preço. Os impostos sobre cavalos e carruagens, sobre cães, sobre escravos são todos dessa natureza. Recaem evidentemente sobre as pessoas das quais são cobrados — os que utilizaram a mercadoria taxada. Um imposto de tipo semelhante, e mais importante, é o que incide sobre moradias; este precisa ser analisado um pouco mais detalhadamente. § 6. O aluguel de uma casa consta de dois itens: o aluguel sobre o solo e o que Adam Smith denomina o aluguel sobre a construção. O primeiro é determinado pelos princípios comuns que regem o aluguel. É a remuneração paga pelo uso do terreno ocupado pela casa e seus acessórios, variando desde um simples equivalente pelo aluguel que o terreno daria, se utilizado para fins agrícolas, até os aluguéis de monopólio, pagos por localizações favoráveis em ruas populosas. O aluguel da própria casa, na medida em que se distingue do aluguel do solo, é o equivalente pago pelo trabalho e pelo capital despendidos na construção da mesma. O fato de ele ser recebido em pagamentos trimestrais ou semestrais não faz diferença quanto aos princípios que o regulam. Ele compreende o lucro normal sobre o capital do construtor, e uma anuidade — suficiente, à taxa corrente de juros, depois de pagar todas as reparações a cargo do proprietário — para repor o capital original na data em que a casa estiver desgastada, ou ao expirar o prazo costumeiro de um contrato de locação. Um imposto de tanto por cento sobre o aluguel bruto recai tanto sobre o aluguel do solo como sobre o aluguel da casa propriamente dita. Quanto maior for o aluguel de uma casa, tanto mais ela paga de imposto, quer a causa disso esteja na qualidade da localização, quer esteja na qualidade da própria casa. Todavia, é preciso considerar em separado a incidência dessas duas parcelas do imposto. Aquela parte do imposto que incide sobre o aluguel da construção em última análise recai sobre o consumidor, em outras palavras, sobre o ocupante da casa. Com efeito, como os lucros de construção não estão já acima da taxa comum, se o imposto recaísse sobre o dono, e não sobre o inquilino, eles se tornariam mais baixos do que os lucros auferidos de aplicações ou ocupações não taxadas, e não se construiriam casas. Contudo, é provável que durante algum tempo depois de o tributo começar a ser imposto grande parte dele recairia não sobre o locatário, mas sobre o dono da casa. Grande parte dos consumidores não teria condições de — ou não quereria — pagar seu aluguel anterior com um imposto adicional, senão que se contentaria com uma moradia mais barata. Em consequência, durante algum tempo haveria maior oferta do que procura de casas. A consequência de tal excedente de oferta, no caso da maioria dos outros artigos, seria uma redução quase imediata da oferta; em se tratando, porém, de uma mercadoria tão durável quanto as casas, o montante em oferta não diminui tão rapidamente. Deixar-se-iam de construir novas casas, da categoria em relação à qual a procura tivesse diminuído, a não ser que houvesse motivos especiais: nesse meio tempo, o excesso temporário faria os aluguéis baixarem e os consumidores talvez conseguissem a mesma moradia que antes, pagando a mesma coisa, juntando o aluguel e o imposto. Gradualmente, porém, à medida que as casas existentes se desgastassem, ou à medida que o aumento populacional exigisse oferta maior, os aluguéis subiriam novamente, até que se tornasse rentável recomeçar a construir — o que não ocorreria antes de o imposto ser totalmente transferido ao locatário. Ao final, portanto, o locatário acaba arcando com aquela parte de um imposto incidente sobre o aluguel, que recai sobre o pagamento da própria casa, excluindo aquela parte do imposto que recai sobre o terreno em que se encontra a casa. O caso é em parte diferente com o imposto sobre o aluguel do solo. Já que os impostos sobre a renda da terra, assim chamados com propriedade, recaem sobre o dono da terra, supor-se-ia que um imposto sobre o aluguel do terreno deva recair sobre o dono do mesmo, ao menos depois de expirar o contrato de locação. Entretanto, ele não recairá totalmente sobre o dono da terra, a não ser que ao imposto sobre o aluguel do terreno esteja associado um imposto equivalente sobre a renda agrícola. O aluguel mínimo de terra locada para construção está muito pouco acima do aluguel que o mesmo solo renderia, se utilizado para fins agrícolas, pois é razoável supor que a terra, excetuado o caso de circunstâncias excepcionais, é alugada ou vendida para construção tão logo se torna claro que vale mais a pena utilizá-la para construção do que para lavoura. Se, portanto, se impusesse um tributo sobre aluguéis de terrenos construídos, sem que o mesmo imposto fosse cobrado de aluguéis de terrenos usados para lavoura, isto — exceto nos casos de montante muito pequeno — reduziria o retorno dado pelos aluguéis de solo mais baixos, abaixo do retorno normal dado pela terra, e constituiria um desestímulo para se continuar a construir, exatamente com a mesma eficácia como se fosse um imposto sobre aluguéis prediais — e isto, até que o aumento da demanda de uma população maior ou uma redução da oferta, em razão das causas comuns de depreciação ou destruição, tivessem feito aumentar o aluguel no montante total do imposto. Mas tudo aquilo que faz subir os aluguéis prediais mais baixos, faz subir todos os outros, já que cada um supera o mais baixo pelo valor de mercado de suas vantagens especiais. Se, portanto, o imposto sobre aluguéis territoriais fosse uma quantia fixa por pé quadrado, sendo que as localizações mais valorizadas não pagassem mais do que as menos requisitadas, esse pagamento fixo recairia em última análise sobre o locatário. Suponhamos que o aluguel territorial mais baixo seja de 10 libras por acre e que o mais alto seja de 1000 libras; nesse caso, um imposto de 1 libra por acre de terreno construído alugado faria, em última análise, com que o primeiro aumentasse para 11 libras e o segundo, consequentemente, para 1001 libras, já que a diferença de valor entre as duas localizações seria exatamente a mesma que antes; por conseguinte, a libra anual seria paga pelo locatário da casa. Mas, um imposto sobre aluguel territorial é supostamente uma porção de um imposto predial, o qual não é uma importância fixa, mas uma percentagem sobre o aluguel. Por isso, supondo-se que a localização mais barata pague, como antes, 1 libra, a mais cara pagaria 100 libras, das quais somente 1 libra poderia ser descarregada sobre o locatário da casa, já que o aluguel continuaria a aumentar apenas para 1001 libras. Consequentemente, 99 libras das 100 cobradas da localização cara recairiam sobre o dono do solo construído. Por isso, um imposto predial tem de ser considerado sob dois aspectos: como um imposto incidente sobre todos os ocupantes de casas, e como um imposto sobre aluguéis de terrenos construídos. No caso da grande maioria das casas, o aluguel do solo representa apenas uma pequena percentagem do pagamento anual feito pela casa, e quase todo o imposto recai sobre o locatário. É somente em casos excepcionais, como o das localizações favoritas em cidades grandes, que o elemento predominante no aluguel real da casa é o aluguel do solo construído; e entre os tipos muito raros de renda que constituem itens adequados para taxação especial, esses aluguéis territoriais ocupam o lugar principal, por serem o exemplo mais gigantesco que existe de enormes aumentos de riqueza adquirida rapidamente, e em muitos casos inesperadamente, por umas poucas famílias, pelo simples fato acidental de possuírem certas áreas de terra, sem que elas mesmas tenham ajudado na aquisição com o mínimo de trabalho, gasto ou risco. Na medida, portanto, em que um imposto predial recai sobre o dono do solo construído, não há nenhuma objeção válida contra ele. Na medida em que tal imposto recai sobre o locatário da casa, se ele for com justiça proporcional ao valor da casa, é um dos impostos mais justos e um dos que menos se presta a objeções. Nenhum item do gasto de uma pessoa é um critério melhor para medir suas possibilidades econômicas, nenhum, no global, apresenta mais de perto a mesma proporção com esses recursos. Um imposto predial aproxima-se mais de um imposto de renda justo do que o possa fazer facilmente um imposto direto sobre a renda; tal imposto tem a grande vantagem de estabelecer espontaneamente todas as diferenciações que é tão difícil fazer e tão impraticável fazer com exatidão, ao estabelecer um imposto sobre a renda; com efeito, se aquilo que uma pessoa paga como aluguel de casa comprova alguma coisa, comprova não aquilo que ele possui, mas aquilo que pensa poder gastar. A equidade desse imposto só pode ser contestada seriamente por dois motivos. O primeiro é que um avarento pode escapar dele. Essa objeção aplica-se a todos os impostos sobre gastos; um avarento só pode ser atingido por um imposto direto sobre a renda. Entretanto, uma vez que os avarentos hoje costumam não acumular seus tesouros, senão que investem o dinheiro em aplicações produtivas, isso não somente faz aumentar a riqueza nacional e, portanto, os recursos gerais destinados ao pagamento de impostos, senão que também o imposto que seria justo cobrar sobre tais poupanças é apenas simplesmente transferido da soma principal para a renda posteriormente derivante delas, a qual paga impostos logo que é gasta. A segunda objeção é que uma pessoa pode precisar de uma casa maior e mais cara não por ter mais recursos, mas por ter uma família mais numerosa. Quanto a isso, porém, não lhe cabe o direito de queixar-se, pois o ter uma família mais numerosa é questão de opção própria, e, no que concerne ao interesse público, isto é uma coisa que se deve mais desestimular do que fomentar. (Outra objeção comum é que muitas vezes se precisa de acomodação grande e cara não como residência, mas para a atividade comercial. Mas é um princípio admitido que prédios ou partes de prédios ocupados exclusivamente para atividade comercial, tais como lojas, depósitos ou manufaturas, devem ficar isentos de imposto predial. A alegação de que pessoas engajadas comercialmente podem ser forçadas a morar em localizações em que, como as grandes ruas de Londres, o aluguel de casa tem preço de monopólio parece-me não merecer atenção, pois ninguém faz isso a não ser porque o lucro extra, que espera auferir da localização, representa para ele mais do que um equivalente do custo extra. Todavia, em qualquer hipótese, o grosso do imposto sobre esse aluguel extra não recai sobre ele, mas sobre o dono do solo. Tem-se objetado também que o aluguel de casa nos distritos rurais é muito mais baixo do que em cidades, e mais baixo, em certas cidades e em alguns distritos rurais, do que em outros; assim sendo, um imposto predial, se proporcional ao aluguel, acarretaria uma desigualdade discriminativa entre os inquilinos, no tocante ao sacrifício que cada um tem de fazer. A isso, porém, pode-se responder o seguinte: em lugares em que o aluguel de casa é baixo, pessoas do mesmo montante de renda normalmente vivem em casas maiores e melhores e, portanto, gastam em aluguel de casa uma quantia que se aproxima mais da mesma porcentagem de suas rendas do que poderia à primeira vista parecer. Ou, se isso não ocorre, é provável que muitas delas vivam em tais locais precisamente porque são pobres demais para viverem alhures, e portanto têm o direito máximo de pagarem um imposto mais baixo. Em alguns casos, é exatamente porque as pessoas são pobres que o aluguel de casa permanece baixo). Grande parte dos impostos recolhidos na Inglaterra são impostos prediais. Toda a tributação paroquial das cidades e, em parte, a taxação dos distritos rurais, consiste em um imposto sobre aluguéis de casa. O imposto por janela, que era também ele um imposto predial, mas condenável, por funcionar como um imposto sobre a luz natural, e como causa de deformidade nas construções, foi substituído em 1851 por um imposto predial propriamente dito, mas em escala muito inferior à que vigorava antes de 1834. É lamentável que o novo imposto conserve o princípio injusto com base no qual se calculava o antigo imposto predial e que contribuía, tanto quanto o egoísmo das classes médias, para produzir a algazarra contra esse imposto. A opinião pública se escandalizava com razão ao saber que o imposto de residências como Chatsworth ou Belvoir era calculado apenas com base em um aluguel imaginário de talvez 200 libras por ano, sob o pretexto de que, devido à grande despesa necessária para mantê-las, não havia condição de alugá-las por mais. Na realidade, provavelmente não tinham condições de pagar sequer esse aluguel, e se o argumento fosse honesto, nem sequer deveriam ter sido taxadas. Acontece que um imposto predial não é pensado para ser um imposto sobre rendas auferidas de casas, mas como um imposto sobre gastos incorridos com casa. O que se deseja verificar é o que uma casa custa para a pessoa que vive nela e não o que ela renderia se fosse alugada a outra pessoa. Quando o ocupante não é o proprietário e não tem de arcar com os reparos da casa, o aluguel que paga é a medida do que a casa lhe custa; ao contrário, quando o ocupante é o proprietário, deve-se procurar alguma outra medida. Deve-se no caso fazer uma avaliação da casa, não pelo preço pelo qual ela seria vendida, mas com base no custo de reconstrução dela, e essa avaliação poderia ser corrigida periodicamente, mediante uma margem para o que tivesse perdido de valor em decorrência do tempo, ou tivesse ganho em decorrência de reparos e benfeitorias. O montante do valor corrigido constituiria uma soma principal, cujos juros, ao preço corrente dos fundos públicos, representaria o valor anual com base no qual se cobraria o imposto predial. Assim como os rendimentos abaixo de determinado montante devem ficar isentos de imposto de renda, da mesma forma devem ser isentas de imposto predial as casas abaixo de determinado valor, com base no princípio universal de isentar de tributação o que é absolutamente necessário para levar uma existência saudável. A fim de que os ocupantes de aposentos, bem como de casas, pudessem beneficiar-se, como deveriam, por justiça, dessa isenção, dever-se-ia facultar aos proprietários a opção de que cada parte de uma casa ocupada por um inquilino diferente fosse avaliada em separado, e também o imposto fosse determinado em separado, como é hoje costume fazer em se tratando de quartos. CAPÍTULO IV Impostos Sobre Mercadorias § 1. Por impostos sobre mercadorias costuma-se designar aqueles que são cobrados quer dos produtores quer dos transportadores ou distribuidores que intervêm entre os produtores e as compras finais para consumo. Tributos impostos diretamente aos consumidores de mercadorias específicas, tais como um imposto predial ou o imposto que vige na Inglaterra sobre cavalos e carruagens, poderiam chamar-se de impostos sobre mercadorias, mas não o são, pois a expressão por costume se restringe a impostos indiretos — aqueles que são pagos adiantadamente por uma pessoa, para serem, como se espera e tenciona, reembolsados por outra. Os impostos sobre mercadorias incidem sobre a produção dentro do país, ou sobre a importação de fora, ou sobre o transporte ou venda dentro do país, sendo classificados, respectivamente, como imposto de consumo, imposto alfandegário ou pedágios e taxas de trânsito. A qualquer categoria que pertencerem e em qualquer estágio de progresso da comunidade que sejam impostos, equivalem a um aumento do custo de produção — utilizando esse termo em seu sentido mais amplo, que inclui o custo de transporte e de distribuição, ou, na expressão comum, o custo de comercialização da mercadoria. Quando o custo de produção é aumentado artificialmente por efeito de um imposto, o resultado é o mesmo que quando o aumento ocorre por efeito de causas naturais. Se apenas uma ou poucas mercadorias são afetadas, seu valor e seu preço aumentam, de maneira a compensar o produtor ou o distribuidor por esse ônus especial; ao contrário, se houvesse um imposto sobre todas as mercadorias exatamente proporcional ao valor das mesmas, o produtor ou o distribuidor não teriam essa compensação; não haveria nem um aumento geral dos valores — o que é um absurdo — nem um aumento geral de preços, que dependem de causas bem diferentes. Entretanto, como aponta o sr. McCulloch, haveria uma perturbação dos valores, caindo alguns e subindo outros, devido a uma circunstância, cujo efeito sobre os valores e os preços já foi exposto: a diferença de durabilidade do capital empregado em ocupações diferentes. O produto bruto do trabalho consta de duas partes: uma delas serve para repor o capital consumido, enquanto a outra é lucro. Ora, capitais iguais empregados em dois setores de produção devem apresentar expectativas iguais de lucro; todavia, se uma porção maior de um do que de outro é capital fixo, ou se esse capital fixo é mais durável, haverá um consumo menor de capital no ano, e se precisará de menos para repô-lo, de sorte que o lucro, se for absolutamente igual nos dois empregos, representará uma percentagem maior dos retornos anuais. Para auferir de um capital de 1000 libras um lucro de 100 libras, um dos produtores pode ter de vender produto ao valor de 1 100 libras, ao passo que o outro só precisa vender produto no valor de 500 libras. Se a esses dois ramos de atividade se impuser uma taxa de 5% ad valorem, para o segundo o imposto equivalerá a apenas 25 libras, ao passo que para o primeiro equivalerá a 55 libras, ficando o segundo com um lucro de 75 libras, e o primeiro com um lucro de apenas 45 libras. Para igualar, portanto, suas expectativas de lucro, uma das mercadorias deve subir de preço, ou a outra deve cair de preço, ou então as duas mercadorias feitas sobretudo com trabalho humano devem aumentar de valor, em comparação com as mercadorias que são feitas sobretudo com máquinas. É supérfluo levar adiante essa pesquisa. § 2. Um imposto sobre qualquer mercadoria, seja sobre a produção da mesma, seja sobre sua importação, seu transporte de um lugar a outro ou sua venda, e quer o imposto represente uma quantia fixa de dinheiro por determinada quantidade da mercadoria, quer represente uma taxa ad valorem, como regra geral tem de fazer aumentar o valor e o preço da mercadoria, no mínimo, no montante equivalente ao imposto. Há poucos casos em que tais impostos não aumentam o preço mais do que no montante correspondente ao imposto. Em primeiro lugar, há poucos impostos sobre a produção em razão dos quais não se constate ou se considere necessário impor normas restritivas aos manufatores ou aos distribuidores, a fim de impedir sonegações do imposto. Essas normas são sempre fonte de incômodo e aborrecimento, e geralmente também de gasto, e, por tudo isso, por se tratar de desvantagens especiais, os produtores ou os distribuidores devem receber compensação no preço de sua mercadoria. Essas restrições frequentemente interferem também nos processos de manufatura, exigindo que o produtor execute suas operações da maneira mais conveniente para a Receita, ainda que não seja a mais barata ou a mais eficiente para fins de produção. Quaisquer regulamentações, exigidas por lei, dificultam ao produtor adotar processos novos e melhores. Além disso, a necessidade de pagar adiantadamente o imposto obriga os produtores e os distribuidores a efetuarem seus negócios com capitais maiores do que seriam normalmente necessários, capitais estes sobre os quais os produtores recebem a taxa normal de lucro, ainda que somente uma parte seja empregada para cobrir as despesas reais de produção ou de importação. O preço do artigo deve ser tal que assegure um lucro sobre um valor superior ao seu valor natural, em vez de apenas um lucro sobre o seu valor natural. Em suma, parte do capital do país não é empregada na produção, mas em pagamentos antecipados ao Estado, compensados no preço das mercadorias; e os consumidores têm de ressarcir os vendedores, indenização esta igual ao lucro que teriam auferido com o mesmo capital, se fosse realmente empregado na produção. (Certamente, isso não constitui, como parece à primeira vista, um caso em que se tira dos bolsos do povo mais do que aquilo que o Estado recebe; com efeito, se o Estado necessita desse dinheiro e o consegue dessa forma, tem condições de evitar de conseguir um montante equivalente em forma de empréstimo de capital ou de letras do Tesouro. Todavia, é mais econômico que as necessidades do Estado sejam atendidas com o capital disponível nas mãos da classe que dá empréstimos financeiros do que aumentando artificialmente as despesas de uma ou várias classes de produtores ou de comerciantes). Tampouco se deve esquecer que tudo aquilo que faz com que se tenha de empregar um capital maior em qualquer ocupação ou comércio limita a concorrência naquele ramo, e, por dar a alguns distribuidores algo semelhante a um monopólio, pode dar-lhes condições de manter o preço além do que seria necessário para pagar a taxa normal de lucro ou de obter a taxa normal de lucro com menos trabalho para melhorar ou baratear sua mercadoria. Desses vários modos, os impostos sobre mercadorias muitas vezes custam ao consumidor, devido ao aumento do preço do artigo, muito mais do que aquilo que é arrecadado pela receita do Estado. Há ainda outra consideração a fazer. O preço mais alto gerado pelo imposto quase sempre faz diminuir a demanda da mercadoria; ora, uma vez que há muitos aperfeiçoamentos na produção que, para serem praticáveis, exigem determinado grau de procura do produto, o imposto acaba representando um obstáculo para se introduzir tais aperfeiçoamentos, e muitos deles se tornam simplesmente impossíveis. É um fato sobejamente conhecido que os ramos de produção em que menos aperfeiçoamentos se fazem são aqueles nos quais intervém o funcionário da Receita, e que não há nada que dê maior impulso aos aperfeiçoamentos na produção de uma mercadoria do que suprimir um imposto que limitava o mercado para o mesmo. § 3. Esses são os efeitos dos impostos incidentes sobre mercadorias, considerados de maneira geral; mas, como existem algumas mercadorias (as que representam os artigos de primeira necessidade do trabalhador) cujos valores exercem uma influência sobre a distribuição da riqueza entre as diferentes categorias da comunidade, é necessário identificar um pouco mais detalhadamente os efeitos dos impostos sobre esses artigos específicos. Caso se imponha um tributo, digamos, ao trigo, e o preço subir proporcionalmente ao imposto, esse aumento de preço pode ter dois efeitos. Primeiro: pode fazer declinar a condição das classes trabalhadoras e temporariamente será difícil que isso não aconteça. Se o aumento de preço fizer com que diminua o consumo dos produtos agrícolas por parte dos trabalhadores, ou os fizer recorrer a um alimento que o solo produz com mais abundância e, portanto, a preço mais baixo, nesta mesma medida contribuirá para fazer a agricultura voltar a terras mais férteis ou a processos menos dispendiosos, e para fazer baixar o valor e o preço do trigo — o qual, portanto, em última análise se fixa em um preço cujo aumento não equivale ao montante total do imposto, mas somente a parte dele. Em segundo lugar, porém, pode acontecer que o preço caro do alimento taxado não faça baixar o padrão habitual das exigências do trabalhador, mas que, ao contrário, os salários, agindo sobre a população, aumentem dentro de um período menor ou maior, de maneira a compensar aos trabalhadores a parcela que têm de pagar do imposto, sendo que nesse caso essa compensação ocorre à custa dos lucros. Os impostos sobre artigos de primeira necessidade têm, pois, obrigatoriamente um desses dois efeitos: ou fazem baixar a condição das classes trabalhadoras, ou tiram dos donos de capital, além do montante devido ao Estado sobre seus próprios artigos de primeira necessidade, o montante devido sobre os artigos de primeira necessidade consumidos pelos trabalhadores. Nesse último caso, o imposto sobre artigos de primeira necessidade, da mesma forma que um imposto sobre os salários, é equivalente a uma taxa especial sobre os lucros, a qual, como qualquer outra taxação discriminatória, é injusta e particularmente nociva para o aumento da riqueza nacional. Falta falar do efeito sobre a renda. Supondo-se (o que de fato costuma ocorrer) que não diminua o consumo de alimentos, será necessário o mesmo cultivo que antes para atender às necessidades da comunidade; a margem de cultivo, para usar a expressão do dr. Chalmers, permanece a mesma; e o mesmo tipo de terra ou o mesmo capital que, sendo os menos produtivos, já regulavam o valor e o preço de toda a produção agrícola continuarão a regulá-los. O efeito que um imposto sobre produtos agrícolas terá sobre a renda depende de ele afetar ou não a diferença existente entre o retorno por essa terra ou capital menos produtivos e os retornos produzidos por outras terras e por outros capitais. Ora, isso depende da maneira como se impõe o tributo. Se for um imposto ad valorem, vale dizer, uma percentagem fixa da produção, como, por exemplo, a dízima, ele evidentemente faz baixar as rendas em trigo. Efetivamente, tal imposto retira maior quantidade de trigo das terras melhores do que das piores, e exatamente no grau em que as terras forem melhores, já que uma terra duas vezes mais produtiva paga duas vezes mais como dízima. Tudo aquilo que tira mais da maior de duas quantidades do que da menor faz diminuir a diferença entre elas. A imposição de uma dízima sobre o trigo tiraria uma dízima também da renda em trigo, pois, se reduzirmos uma série de números de 1/10 cada um, as diferenças entre eles são reduzidas de 1/10. Por exemplo, digamos que haja cinco qualidades de terra, que produzem, na mesma extensão de solo e com o mesmo gasto, 100, 90, 80, 70 e 60 alqueires de trigo, sendo a última delas a quantidade mais baixa que a demanda de alimentos torna necessário cultivar. Suponhamos agora que se imponha uma dízima que tire dessas cinco extensões de terra 10, 9, 8, 7 e 6 alqueires de trigo, respectivamente, sendo que a quinta qualidade de terra continuará a ser a que regula o preço, mas dando ao arrendatário, depois de paga a dízima, apenas 54 alqueires de trigo, e a terra que produz 60 alqueires de trigo, reduzidos a 54, não dará nenhuma renda, como antes. Assim sendo, a renda da primeira qualidade de terra perdeu 4 alqueires de trigo; o da segunda, 3; o da terceira, 2; e o da quarta, 1; ou seja, cada um perdeu exatamente 1/10. Portanto, um imposto de uma percentagem fixa de produção faz baixar a renda avaliada em trigo, na mesma proporção. Contudo, somente baixa a renda em trigo, e não a renda avaliada em dinheiro ou em qualquer outra mercadoria. Pois, na mesma proporção em que é reduzida em quantidade a renda em trigo, aumenta o valor do trigo que compõe essa quantidade. Sob efeito da dízima, 54 alqueires de trigo valerão no mercado o que antes valiam 60; e 9/10, em qualquer hipótese, se venderão pelo mesmo preço pelo qual anteriormente eram vendidos os 10/10. Por conseguinte, os donos de terra serão compensados em valor e em preço por aquilo que perdem em quantidade, e sofrerão apenas na medida em que consumirem sua renda em espécie, ou, depois de recebê-la em dinheiro, a gastarem com produtos agrícolas; ou seja, sofrem apenas como consumidores de produtos agrícolas, e juntamente com os demais consumidores. Considerados como donos de terra, continuam a ter a mesma renda que antes; portanto, a dízima recai sobre o consumidor e não sobre o dono da terra. Produzir-se-ia o mesmo efeito sobre a renda, se o imposto, em vez de ser uma percentagem fixa da produção, fosse uma quantia fixa por quarter ou por alqueire. Um imposto que tira 1 xelim por cada alqueire, tira mais xelins de um campo do que de outro, exatamente na proporção em que o campo produzir mais alqueires, e tem exatamente os mesmos efeitos que a dízima, excetuado o fato de que a dízima não apenas é a mesma percentagem da produção de todas as terras, mas é também a mesma percentagem sempre, ao passo que uma soma fixa de dinheiro por alqueire de trigo representará uma percentagem maior ou menor, conforme o trigo for barato ou caro. Há outros modos de taxar a agricultura que afetariam a renda de maneira diferente. Um imposto proporcional à renda recairia exclusivamente sobre ela, e de forma alguma faria subir o preço do trigo, que é regulado pela parcela do produto que não paga renda. Um imposto fixo de tanto por acre cultivado, sem distinção de valor, teria efeitos diretamente opostos. Pelo fato de não tirar das melhores qualidades de terra mais do que das piores, faria com que as diferenças permanecessem as mesmas que antes, e consequentemente também com que permanecessem inalteradas as rendas em trigo, e os donos de terra obteriam lucro na extensão plena do aumento do preço. Para usar outra formulação: o preço deve subir o suficiente para possibilitar à pior terra pagar o imposto, possibilitando assim a todas as terras que produzem mais do que as piores pagarem não somente o imposto, mas também uma renda maior aos donos de terra. Estes, porém, não são tanto impostos sobre a produção da terra, mas antes sobre a própria terra. Os impostos sobre a produção agrícola propriamente ditos, sejam eles fixos ou ad valorem, não afetam a renda, mas recaem sobre o consumidor, sendo que, porém, os lucros geralmente arcam com todo o imposto que é cobrado sobre o consumo das classes trabalhadoras, ou ao menos com a maior parcela de tal imposto. § 4. Creio que o que expusemos é uma descrição correta dos efeitos que os tributos geram sobre produtos agrícolas, no momento em que são estabelecidos. Quando, porém, esses impostos são de velha data, seus efeitos podem ser diferentes, como foi assinalado pela primeira vez, segundo acredito, pelo sr. Senior. Como vimos, uma consequência quase infalível de qualquer redução dos lucros consiste em retardar o ritmo de acumulação de capital. Ora, o efeito da acumulação de capital, quando acompanhada do fenômeno que costuma acompanhá-la — um aumento populacional — é aumentar o valor e o preço dos alimentos, fazer subir a renda e baixar os lucros, ou seja, fazer exatamente o que segue como consequência de um imposto sobre produtos agrícolas, excetuado o fato de que este não faz subir a renda. O imposto, portanto, simplesmente antecipa a subida do preço e a queda dos lucros que em última análise teriam ocorrido em razão do simples aumento da acumulação de capital, ao passo que ao mesmo tempo impede, ou ao menos retarda, esse aumento. Se a taxa de lucro fosse tal, antes da imposição de uma dízima, que o efeito da dízima a reduzisse ao mínimo virtual, a dízima suspenderia toda acumulação ulterior, ou faria com que ela ocorresse fora do país, e o único efeito que a dízima teria então sobre o consumidor seria fazê-lo pagar antes o preço que teria que pagar um pouco mais tarde — uma parte do qual, sem dúvida, com o progresso gradual da riqueza e do crescimento populacional, começaria a pagar quase imediatamente. Depois de um lapso de tempo que tivesse assim comportado um aumento de 1/10, devido ao progresso natural da riqueza, o consumidor estará pagando não mais do que teria pago se a dízima nunca tivesse existido; ele terá deixado de pagar qualquer parcela da dízima e a pessoa que realmente a pagará será o dono da terra, a quem ela priva do aumento de renda que por esse tempo lhe teria cabido. Em cada ponto sucessivo desse intervalo de tempo, será menor o ônus que pesará sobre o consumidor e maior o que pesará sobre o dono da terra; e como resultado último, o mínimo de lucro será atingido com um capital e uma população menores, atingindo-se também uma renda da terra mais baixa, do que se o curso das coisas não tivesse sido perturbado pela imposição de um tributo. Por outro lado, se a dízima ou outro imposto sobre produtos agrícolas não reduzir os lucros ao mínimo, mas a algo pouco acima do mínimo, a acumulação de capital não cessará, mas apenas diminuirá; e se a população também aumentar, o duplo aumento continuará a produzir seus efeitos: um aumento do preço do trigo e um aumento da renda. Todavia, essas consequências não ocorrerão com a mesma rapidez que ocorreria se tivesse continuado a taxa mais alta de lucro. Ao final de vinte anos, o país terá uma população e um capital menores do que teria a esse tempo, não fora o imposto; os donos de terra terão uma renda menor e o preço do trigo, por ter aumentado menos rapidamente do que teria aumentado de outra forma, não estará muito mais do que 1/10 acima daquilo que por essa época seria o preço, se não houvesse nenhum imposto. Portanto, uma parte do imposto já terá deixado de recair sobre o consumidor e terá passado a recair sobre o dono da terra; e essa proporção se tornará cada vez maior, com o correr do tempo. O sr. Senior ilustra esse ponto de vista sobre o assunto, comparando os efeitos das dízimas, ou de outros impostos sobre os produtos agrícolas, com os efeitos da esterilidade natural do solo. Se a terra de um país destituído de acesso a fornecimentos do exterior fosse repentinamente acometida por um deterioramento permanente da qualidade, até um ponto em que fosse necessário 1/10 a mais de trabalho para colher a produção existente, o preço do trigo sem dúvida aumentaria de 1/10. Todavia, disso não se pode inferir que, se o solo do país desde o começo tivesse sido 1/10 pior do que é, o trigo seria agora 1/10 mais caro. É muito mais provável que o retorno menor para o trabalho e para o capital, desde a primeira colonização do país, teria levado, em cada geração sucessiva, a um aumento menos rápido do que o que ocorreu — que o país agora teria menos capital e manteria uma população menor, de sorte que, a despeito da inferioridade do solo, o preço do trigo não seria maior, nem os lucros seriam mais baixos, do que atualmente; só a renda com certeza seria mais baixa. Podemos supor duas ilhas, as quais, sendo iguais em extensão, em fertilidade natural e em avanço industrial, fossem até certo tempo iguais em população e em capital, e tivessem rendas iguais, e o mesmo preço do trigo. Imaginemos agora que se tenha imposto uma dízima a uma dessas ilhas, mas não à outra. Haverá imediatamente uma diferença no preço do trigo e, portanto, provavelmente, nos lucros. Enquanto os lucros não estiverem tendendo a baixar em nenhum dos dois países, isto é, enquanto os aperfeiçoamentos na produção dos gêneros de primeira necessidade acompanharem plenamente o aumento da população, pode continuar essa diferença de preços e lucros entre as duas ilhas. Mas se na ilha em que não existe a dízima o capital aumentar, e juntamente com ele também a população, mais do que o suficiente para contrabalançar quaisquer aperfeiçoamentos que ocorrerem, o preço do trigo aumentará gradualmente, os lucros baixarão e a renda aumentará, ao passo que na ilha em que existe a dízima, nem a população nem o capital aumentarão (além do que é contrabalançado pelos aperfeiçoamentos), ou, se aumentarem, o farão em grau menor, de sorte que nem a renda nem o preço do trigo aumentarão em absoluto, ou então aumentarão mais lentamente. A renda, portanto, em pouco tempo estará mais alta na ilha em que não há dízima do que naquela em que a dízima existe, e os lucros não serão muito mais altos, nem o trigo será muito mais barato do que era no momento em que se decretou a dízima. Esses efeitos serão progressivos. Ao final de cada dez anos, haverá uma diferença maior entre as rendas e entre a riqueza e a população global das duas ilhas, e uma diferença menor quanto aos lucros e ao preço do trigo. Em que ponto cessarão inteiramente essas últimas diferenças e em que ponto o efeito temporário dos impostos sobre produtos agrícolas no sentido de fazerem aumentar o preço, terá dado lugar por completo ao efeito último, o de limitar a produção total do país? Embora a ilha em que não há dízima penda sempre para o ponto em que o preço dos alimentos superaria o preço na ilha que tem dízima, seu avanço para esse ponto naturalmente se reduz à medida que chega mais perto de atingi-lo, pois — pelo fato de a diferença entre as duas ilhas, em termos de rapidez de acumulação de capital, depender da diferença nas taxas de lucro —, na proporção em que estas se aproximam, o movimento que as aproxima entre si perde força. É possível que uma na realidade não supere a outra, até que as duas ilhas atinjam o mínimo de lucros; até esse ponto, a ilha em que há dízima pode continuar, em grau maior ou menor, à frente da ilha em que não há dízima, no que tange ao preço do trigo; consideravelmente à frente, se estiver longe do mínimo e, portanto, estiver acumulando capital rapidamente; muito pouco à frente, se estiver perto do mínimo e estiver acumulando capital lentamente. Ora, tudo aquilo que é verdade a respeito da ilha que tem dízima e da que não a tem, em nosso caso hipotético, é verdade também em relação a qualquer país que tenha dízima, comparado com o mesmo país, se nunca tivesse tido dízima. Na Inglaterra, a grande emigração de capital e a ocorrência mais ou menos periódica de crises comerciais geradas por especulações ocasionadas pela taxa de lucro habitualmente baixa são indicações de que o lucro atingiu o mínimo virtual, embora ainda não o último limite, e de que todas as poupanças que ocorrem (além daquelas para as quais criam espaço os aperfeiçoamentos que tendem a baratear os artigos de primeira necessidade) ou são enviadas ao exterior para investimento ou são periodicamente eliminadas. Por isso, penso restar pouca dúvida sobre um fato: se a Inglaterra nunca tivesse tido dízima, nem nenhum imposto sobre produtos agrícolas, o preço do trigo teria sido em nossa época tão alto como hoje e a taxa de lucro também seria igualmente baixa. Independentemente da acumulação mais rápida de capital, que teria ocorrido se os lucros não tivessem baixado prematuramente por efeito desses impostos, a simples economia de parte do capital, que se tem desperdiçado em especulações malsucedidas, e o fato de permanecer no país parte do capital que foi enviado ao exterior teriam sido perfeitamente suficientes para produzir esse efeito. Penso, pois, como o sr. Senior, que a dízima, mesmo antes de ser substituída, havia cessado de ser uma causa de preços altos ou de lucros baixos e se havia transformado em simples dedução, e que os seus outros efeitos seriam os seguintes: fez com que o país não tivesse nem capital maior, nem produção maior, nem população mais numerosa, do que se tivesse sido 1/10 menos fértil do que é — ou, digamos melhor, 1/20 menos fértil (considerando que foi muito grande a parte da Grã-Bretanha que permaneceu isenta da dízima). Entretanto, embora as dízimas e outros impostos sobre produtos agrícolas, quando de origem antiga, não façam aumentar o preço dos alimentos nem façam absolutamente baixarem os lucros, ou, se o fazem, não o façam em proporção ao imposto, não obstante isso, a supressão de tais impostos, quando existem, faz diminuir o preço e, em geral, faz aumentar a taxa de lucro. A abolição da dízima tira 1/10 do custo de produção e, consequentemente, do preço de todos os produtos agrícolas, e, a menos que faça subir, em caráter permanente, as exigências dos trabalhadores, faz baixar o custo da mão-de-obra e faz os lucros subirem. A renda, avaliada em dinheiro ou em mercadorias, geralmente permanece a mesma que antes; avaliada em produtos agrícolas, aumenta. Com a supressão da dízima, o país aumenta tanto a distância que o separa da condição estacionária, quanto reduziu essa distância, no momento em que impôs a dízima. Acelera-se altamente a acumulação de capital, e se também a população crescer, o preço do trigo começa imediatamente a recuperar-se e a renda a subir, transferindo assim gradualmente o benefício da supressão da dízima do consumidor para o dono da terra. Esses efeitos, que resultam da abolição da dízima, resultam igualmente do sistema gerado pela lei da comutação, que comutou a dízima por um encargo sobre a renda. Quando o imposto, em vez de ser cobrado sobre todos os produtos do solo, é cobrado somente das porções de terra que pagam renda e não toca em nenhuma nova extensão da lavoura, este já não faz parte do custo de produção da parcela da produção que regula o preço dos demais produtos agrícolas. A terra ou capital que não paga renda pode agora comercializar a sua produção por um preço 1/10 mais baixo. A comutação da dízima deveria, portanto, ter produzido uma baixa considerável do preço médio do trigo. Se ela não tivesse entrado em operação tão gradualmente e se o preço do trigo, durante o mesmo período, não tivesse estado sob a influência de várias outras causas de mudança, o efeito provavelmente teria sido marcante. Como a comutação foi gradual, não pode haver dúvida de que essa circunstância teve sua parte na queda que ocorreu no custo de produção e no preço dos produtos cultivados no país, ainda que os efeitos dos grandes aperfeiçoamentos agrícolas, que foram ativados simultaneamente, bem como da livre importação de produtos agrícolas de países estrangeiros, tenham ocultado os efeitos da outra causa. Essa queda de preço, em si mesma, não teria qualquer tendência prejudicial para o dono da terra, já que as rendas em trigo aumentam à mesma proporção em que diminui o preço do trigo. Mas tampouco essa queda de preço tende de alguma maneira a aumentar a renda do dono de terra. Por isso, o encargo sobre a renda, que passou a substituir a dízima, é uma perda para ele ao expirarem as locações existentes, e a comutação da dízima não foi uma simples alteração da maneira como o dono da terra arcava com um ônus existente, senão a imposição de um ônus novo; a baixa do preço beneficiou o consumidor, à custa do dono da terra, o qual, porém, começa imediatamente a receber indenização progressiva à custa do consumidor, devido ao impulso dado à acumulação de capital e ao aumento populacional. § 5. Pesquisamos até aqui os efeitos dos impostos incidentes sobre mercadorias, na hipótese de eles serem cobrados imparcialmente sobre qualquer método ou processo de produção ou de comercialização da mercadoria. Há lugar para considerações diferentes, se supusermos que não se mantém essa imparcialidade e que o tributo é imposto não à mercadoria propriamente dita, mas a algum método específico de consegui-la. Suponhamos que uma mercadoria possa ser produzida por dois processos diferentes: assim, uma mercadoria manufaturada pode ser produzida a mão ou com energia a vapor; o açúcar pode ser feito de cana-de-açúcar ou de beterraba; o gado pode ser engordado com feno, com capim verde, com torta de linhaça e com refugos das cervejarias. O interesse da comunidade é que, dentre os dois métodos, os produtores adotem aquele que produzir o melhor artigo a preço mais baixo. Por ser esse também o interesse dos produtores, a menos que sejam protegidos contra a concorrência e, portanto, contra o castigo que toca aos indolentes, o processo mais vantajoso para a comunidade é aquele que, se não houver interferência do Governo, em última análise os produtores considerarem vantajoso adotar. Suponhamos, porém, que se imponha um tributo a um dos processos e que ao outro não se imponha nenhum, ou um de montante menor. Se o processo taxado for aquele que os produtores não teriam adotado, a medida é simplesmente inútil. Mas se o imposto recair, como naturalmente é a intenção, sobre o processo que os produtores adotariam, ele cria uma motivação artificial para preferir o processo não taxado, embora seja inferior ao outro. Se, pois, o imposto tiver algum efeito, faz com que a mercadoria produzida seja de qualidade inferior, ou que seja produzida com gasto maior de mão-de-obra: faz com que se desperdice tanto do trabalho da comunidade e também com que o capital empregado para sustentar e remunerar a mão-de-obra seja gasto inutilmente, como se fosse para contratar homens para cavar buracos e enchê-los novamente. Esse desperdício de trabalho e de capital constitui um acréscimo ao custo de produção da mercadoria, acréscimo este que faz aumentar seu valor e preço em uma proporção correspondente, e dessa forma os donos do capital são indenizados. A perda recai sobre os consumidores, ainda que o capital do país também diminua, eventualmente, com a diminuição de seus recursos para poupança e, até certo ponto, de seus estímulos para poupar. Eis por que o tipo de imposto que responde à denominação geral de taxa discriminatória transgride a norma de que os impostos devem tirar do contribuinte o mínimo possível, além daquilo que carreiam para os cofres do Estado. Uma taxa discriminatória faz o consumidor pagar duas taxas diferentes, sendo que apenas uma é paga ao Governo e, frequentemente, a menos onerosa das duas. Caso se impusesse uma taxa ao açúcar produzido da cana, sem taxar o açúcar feito de beterraba, nesse caso, na medida em que se continuasse a usar açúcar de cana, o imposto incidente sobre ele seria pago ao Tesouro e poderia estar tão isento de objeções quanto quaisquer outros impostos; mas se o açúcar feito de cana, tendo antes sido mais barato do que o açúcar de beterraba, ficasse agora mais caro e passasse a ser substituído em montante considerável pelo de beterraba, e em consequência se plantasse beterraba e se instalassem usinas de açúcar de beterraba, o Governo não receberia nenhuma receita do açúcar de beterraba, enquanto os consumidores dele pagariam um imposto real. Pagariam pelo açúcar de beterraba mais do que haviam pago anteriormente pelo açúcar de cana, e a diferença seria para indenizar os produtores por parte do trabalho do país efetivamente desperdiçado em produzir, com o trabalho de (digamos assim) trezentos homens, o que se poderia conseguir, utilizando o outro processo, com o trabalho de duzentos. Um dos casos mais comuns de taxas discriminatórias é o de um imposto sobre a importação de uma mercadoria capaz de ser produzida no país, não acompanhado de um imposto equivalente sobre o produto nacional. Nunca se importa permanentemente uma mercadoria, a não ser quando se consiga obtê-la do exterior a um custo menor de mão-de-obra e de capital, no global, do que o necessário para a produzir. Se, portanto, uma taxa de importação fizer com que seja mais barato produzir o artigo do que importá-lo, despende-se uma quantidade extra de trabalho e de capital, sem nenhum resultado extra. O trabalho é inútil e o capital é gasto para pagar pessoas para trabalharem sem nada produzirem. Por isso, todas as taxas alfandegárias que têm por efeito encorajar a produção, no país, do artigo taxado, são assim um modo altamente antieconômico de arrecadar uma receita. Essa propriedade caracteriza em grau especial as taxas alfandegárias incidentes sobre produtos da terra, a menos que sejam contrabalançadas por impostos de consumo sobre a produção interna. Tais taxas carreiam menos para os cofres do Estado, em comparação com o que tiram dos consumidores, do que quaisquer outros impostos aos quais as nações civilizadas costumam estar sujeitas. Se o trigo produzido em um país for 20 milhões de quarters e o consumo for de 21 milhões, importando-se anualmente 1 milhão, e se sobre esse milhão de quarters se impuser uma taxa que faz o preço subir 10 xelins por quarter, sobe de preço não só o milhão de quarters importados, mas o total dos 21 milhões de quarters. Adotando a suposição mais favorável — ainda que extremamente improvável — de que a importação não seja de forma alguma restringida, nem a produção interna aumente, o Estado ganha uma receita de apenas 0,5 milhão, ao passo que os consumidores pagam 10,5 milhões de imposto — nesse caso, os 10 milhões são uma contribuição para os produtores internos, os quais, devido à concorrência, são forçados a repassar toda essa contribuição aos donos de terra. Assim, o consumidor paga aos donos de terra uma taxa adicional, igual a vinte vezes aquela que paga ao Estado. Suponhamos agora que o imposto realmente faça diminuir a importação. Suponhamos que a importação cesse totalmente em anos comuns, pois se constata que o milhão de quarters pode ser obtido, mediante uma lavoura mais aprimorada, ou cultivando terra inferior, com um adiantamento inferior aos 10 xelins sobre o preço anterior — digamos, por exemplo, 5 xelins por quarter. Nesse caso, a receita do Estado não fica com nada, a não ser com o que vier das importações extraordinárias que eventualmente podem ocorrer em uma estação de escassez. Mas os consumidores pagam anualmente uma taxa de 5 xelins sobre o total dos 21 milhões de quarters num montante de 5,25 milhões de libras esterlinas. Desse total, nada menos de 250 mil libras servem para compensar os produtores do último milhão de quarters pelo trabalho e capital desperdiçados sob a compulsão da lei. Os 5 milhões restantes servem para enriquecer os donos de terra, como antes. Tal é o efeito do que se tem denominado tecnicamente leis do trigo, quando foram impostas; e este continua a ser seu efeito, enquanto tiverem qualquer efeito em fazer subir o preço do trigo. No entanto, de forma alguma sou de opinião que, a longo prazo, essas leis mantenham altos os preços ou as rendas, no grau que poderíamos supor, com base nas considerações aqui feitas. O que dissemos sobre o efeito das dízimas e de outros impostos sobre produtos agrícolas aplica-se em alto grau às leis reguladoras do mercado do trigo: antecipam artificialmente um aumento do preço e da renda que em todo caso teria ocorrido por efeito do crescimento populacional e do aumento de produção. A diferença entre um país que não tem essas leis e um país que por muito tempo as teve não está tanto no fato de este último ter um preço mais alto ou uma renda da terra superior, mas antes no fato de ele ter o mesmo preço e a mesma renda, com um capital e uma população que, no conjunto, são menores. A imposição das referidas leis faz as rendas da terra subirem mas retarda aquele progresso da acumulação de capital, que em nenhum período longo os teria feito subir tanto. A supressão dessas leis tende a fazer as rendas baixarem, mas libera uma força que, em um estágio em que aumenta o capital e cresce a população, restabelece e até faz aumentar o montante anterior. Há todos os motivos para esperar que, no regime de importação virtualmente livre de produtos agrícolas, finalmente extorquido do Parlamento inglês, o preço dos alimentos, se a população continuar a aumentar, aumentará gradualmente, mas em ritmo constante — ainda que esse efeito possa ser por algum tempo adiado pela forte corrente que começou na Inglaterra (impulso que se está estendendo a outros países), em direção ao aperfeiçoamento da ciência agrícola e à sua maior aplicação prática. O que dissemos sobre as taxas incidentes sobre importação de modo geral é igualmente aplicável a taxas discriminatórias que favorecem a importação de um lugar ou, de forma especial, em confronto com outros: tal como a preferência dada aos produtos de uma colônia, ou aos produtos de um país com o qual se mantém um tratado comercial — ou como as taxas maiores antigamente impostas pelas nossas leis de navegação a mercadorias importadas em navios não britânicos. Tudo o mais que se possa alegar em favor de tais taxas discriminatórias é que, sempre que não forem inúteis são economicamente nocivas. Induzem a recorrer a uma modalidade mais dispendiosa de conseguir uma mercadoria, em lugar de uma menos dispendiosa, e com isso fazem com que parte do trabalho que o país emprega para abastecer-se de mercadorias estrangeiras seja sacrificada sem retorno. § 6. Há ainda outro ponto relativo aos efeitos dos impostos sobre mercadorias transportadas de um país a outro que demanda estudo: a influência que exercem sobre os intercâmbios internacionais. Todo imposto sobre uma mercadoria tende a aumentar seu preço e, consequentemente, a fazer decrescer a demanda dela no mercado em que é vendida. Todas as taxas impostas ao comércio internacional tendem, pois, a produzir um distúrbio e um reajuste daquilo que denominávamos equilíbrio da demanda internacional. Essa consideração conduz a consequências um tanto curiosas, que foram assinaladas em nosso estudo específico sobre o comércio internacional, ao qual já nos referimos várias vezes no decorrer deste tratado. As taxas impostas ao comércio exterior são de dois tipos — taxas sobre importações e taxas sobre exportações. À primeira vista, pareceria que as duas são pagas pelos consumidores da mercadoria, e que, portanto, as taxas sobre exportações recairiam inteiramente sobre os consumidores estrangeiros, ao passo que as taxas sobre artigos importados recairiam exclusivamente sobre o consumidor interno. Acontece que a verdade é bem mais complexa. “Ao taxarmos produtos que exportamos, podemos, em certas circunstâncias, produzir uma divisão da vantagem do comércio mais favorável a nós. Em alguns casos podemos atrair para os nossos cofres, à custa dos países estrangeiros, não somente o total da taxa senão mais do que isso; em outros casos, ganharíamos exatamente a taxa: em outros, menos do que a taxa. Nesse último caso, parte da taxa de exportação tem de ser paga por nós; possivelmente, a taxa em sua totalidade e até mais do que isso, como demonstraremos.” Retornando ao caso hipotético empregado no referido estudo, de um comércio entre a Alemanha e a Inglaterra, de tecido fino de lã preta e linho, “digamos que a Inglaterra taxe a sua exportação de tecido, supondo-se que a taxa não seja suficientemente alta para induzir a Alemanha a produzir tecido para si mesma. Em decorrência da taxa imposta, aumenta o preço ao qual se pode vender o tecido na Alemanha. Isto provavelmente fará diminuir a quantidade consumida. Pode diminuir tanto que, mesmo com o preço aumentado, não se precise de um valor tão alto em dinheiro quanto antes. Ou então, a quantidade pode nem sequer diminuir, ou tão pouco, que em consequência do preço mais alto se compre um valor tão alto em dinheiro quanto anteriormente. Nesse último caso, a Inglaterra ganhará, à custa da Alemanha, não somente todo o montante da taxa de exportação, senão mais, pois, aumentando o valor em dinheiro de suas exportações à Alemanha, ao passo que suas importações permanecem inalteradas, entrará dinheiro da Alemanha para a Inglaterra. O preço do tecido aumentará na Inglaterra e, consequentemente, na Alemanha; mas o preço do linho cairá na Alemanha e, portanto, na Inglaterra. Exportaremos menos tecido e importaremos mais linho, até restabelecer-se o equilíbrio. Evidencia-se assim (o que à primeira vista é um tanto notável) que, taxando suas exportações, a Inglaterra, em algumas circunstâncias concebíveis, não somente ganharia de seus clientes estrangeiros o montante total da taxa de exportação, senão que também obteria os artigos importados da Alemanha a preço mais baixo. Conseguiria essas importações a preço mais baixo de duas formas, pois as obteria por menos dinheiro, e teria mais dinheiro para pagá-las. Em contrapartida, a Alemanha levaria dupla desvantagem: teria que pagar pelo seu tecido importado um preço que aumentou não somente devido à taxa de exportação inglesa, mas também devido à entrada de dinheiro na Inglaterra, enquanto a mesma mudança na distribuição do meio circulante lhe deixaria menos dinheiro para comprar o tecido inglês. “Esse, porém, é apenas um dos três casos possíveis. Se, depois da imposição da taxa de exportação inglesa, a Alemanha precisar de uma quantidade de tecido tão reduzida, que o valor total dessa quantidade for exatamente o mesmo que antes, a balança comercial permanecerá inalterada: a Inglaterra ganhará a taxa de exportação, a Alemanha a perderá e nada mais acontecerá. Se, porém, a imposição da taxa de exportação inglesa gerar tal queda na demanda, que a Alemanha passe a precisar de um valor pecuniário menor do que antes, as nossas exportações já não serão suficientes para pagar as nossas importações; deverá então sair dinheiro da Inglaterra para a Alemanha e a participação da Alemanha na vantagem desse comércio aumentará. Em razão da mudança na distribuição do dinheiro, o preço do tecido cairá na Inglaterra e, portanto, cairá também na Alemanha. Assim sendo, a Alemanha não pagará o total da taxa de exportação inglesa. Pela mesma razão, o preço do linho aumentará na Alemanha e, consequentemente, na Inglaterra. Quando essa alteração de preços tiver ajustado a demanda de tal modo que o tecido e o linho se paguem novamente um pelo outro, o resultado será que a Alemanha pagou apenas parte da taxa, e o resto daquilo que a Receita inglesa recebeu saiu indiretamente dos bolsos dos nossos próprios consumidores de linho, que pagam um preço mais alto por essa mercadoria importada, em consequência da taxa incidente sobre as nossas exportações, enquanto, em decorrência da evasão de dinheiro e da queda dos preços, dispõem de rendas menores em dinheiro para pagar o linho a esse preço maior. "Não é uma hipótese impossível que, taxando as nossas exportações, não somente não ganhemos nada do país estrangeiro, pelo fato de a taxa sair dos nossos próprios bolsos, senão que tenhamos até que obrigar o nosso próprio povo a pagar uma segunda taxa ao exterior. Suponhamos, como antes, que a demanda da Alemanha de tecido caia tanto, com a imposição da taxa de exportação, que ela precise de um valor em dinheiro menor do que antes, mas que com o linho na Inglaterra o caso seja tão diferente que, quando o preço aumenta, a demanda não diminui, ou diminui tão pouco que o valor de que se precisa, em dinheiro, seja maior que antes. Nesse caso, o primeiro efeito da imposição da taxa de exportação é, como antes, que o tecido inglês exportado já não será suficiente para pagar o linho importado. Por isso, sairá dinheiro da Inglaterra para a Alemanha. Um dos efeitos é a subida do preço do linho na Alemanha e, consequentemente, na Inglaterra. Mas isso, pela hipótese, em vez de sustar a evasão de dinheiro, somente a faz aumentar, pois quanto mais alto for o preço, tanto maior será o valor em dinheiro do linho consumido. Portanto, o equilíbrio só pode ser restabelecido pelo outro efeito, que está ocorrendo ao mesmo tempo, isto é, a queda do preço do tecido no mercado inglês, e, consequentemente, no mercado alemão. Mesmo quando o tecido tiver caído tanto, que seu preço, com a taxa de exportação, for apenas igual ao que era seu preço de início, sem a taxa de exportação, disso não segue como consequência necessária que a queda de preço pare; com efeito, para pagar o valor maior das importações, em dinheiro, não bastará o mesmo montante de exportação que antes; e embora os consumidores alemães tenham agora não somente tecido ao preço velho, mas também rendimentos maiores em dinheiro, não é certo que estarão inclinados a empregar seus rendimentos maiores para aumentar suas compras de tecido. Por isso, talvez, para restabelecer o equilíbrio, o preço do tecido inglês deva cair mais do que o montante total da taxa de exportação inglesa; a Alemanha pode vir a ter condições de importar tecido a preços mais baixos quando houver taxa de exportação do que quando não há, e esse ganho será seu, à custa dos consumidores ingleses de linho, os quais, além disso, serão os que na realidade pagarão tudo o que for recebido na própria alfândega inglesa, sob o nome de taxa de exportação de tecido." É supérfluo destacar que o tecido e o linho são aqui apenas representações de exportações e importações em geral, e que o efeito que uma taxa de exportação pode ter no aumento do custo dos artigos importados afetaria os artigos importados de todos os países, e não somente os que poderiam ser importados do país específico para o qual fossem exportados os artigos taxados. “Tais são os efeitos extremamente variados que podem resultar, para nós e para os nossos clientes, da imposição de taxas sobre as nossas exportações; por outro lado, as circunstâncias determinantes são por natureza tão difíceis de constatar com certeza que deve ser quase impossível decidir com alguma certeza, mesmo depois de a taxa ser imposta, se saímos ganhando ou perdendo.” Em geral, porém, pouca dúvida poderia haver de que um país que impusesse tais taxas conseguiria fazer com que países estrangeiros contribuíssem com algo para a sua receita; mas, a não ser que o artigo taxado na exportação seja um daqueles que é alvo de uma procura extremamente urgente, raramente esses países estrangeiros pagarão o total do montante que a taxa de exportação recolhe. (Provavelmente, o exemplo mais forte que se conhece de uma grande receita arrecadada de estrangeiros com uma taxa sobre exportações, é o comércio de ópio com a China. O alto preço desse artigo sob monopólio do Governo (o qual equivale a uma elevada taxa de exportação) tem tão pouco efeito para desestimular o consumo do mesmo que se diz ter sido ele vendido na China pelo preço correspondente de prata). “Em todo caso, tudo o que ganharmos representa perda para alguém, e além disso há a despesa do recolhimento; se, portanto, a moral internacional fosse corretamente entendida e praticada, tais taxas não existiriam, por serem contrárias ao bem universal.” Isso quanto às taxas sobre exportações. Passamos agora ao caso mais comum das taxas sobre importações. “Vimos um exemplo de uma taxa de exportação, isto é, de uma taxa destinada a onerar outros países, e que acaba recaindo em parte sobre nós mesmos. Por isso, não nos surpreenderemos que uma taxa de importação, isto é, destinada a ser paga por nós, em parte recaia sobre outros países. “Em vez de taxar o tecido que exportamos, suponhamos que taxemos o linho que importamos. A taxa que estamos supondo aqui não precisa ser o que se chama de taxa de proteção, isto é, uma taxa suficientemente elevada para induzir-nos a produzir no país o artigo em pauta. Se ela tivesse esse efeito, acabaria inteiramente com o comércio, tanto de tecido como de linho e os dois países perderiam o total da vantagem que anteriormente ganhavam intercambiando essas mercadorias entre si. Supomos tratar-se de uma taxa que poderia fazer diminuir o consumo do artigo em referência, mas que não impediria de continuar a importá-lo como antes, qualquer que seja a quantidade de linho que consumamos. “O equilíbrio comercial seria perturbado se a imposição da referida taxa fizesse diminuir, em grau mínimo, a quantidade de linho consumida. Pois, como a taxa é cobrada em nossa própria alfândega, o exportador alemão só recebe o correspondente ao mesmo preço que antes, ainda que o consumidor inglês pague um preço mais alto. Se, portanto, houver qualquer redução da quantidade comprada, ainda que possivelmente se gaste efetivamente uma quantia maior de dinheiro na compra do artigo, a Inglaterra deverá à Alemanha uma quantia menor; essa soma não será mais equivalente à quantia devida pela Alemanha à Inglaterra pelo tecido e, portanto, o saldo devedor tem de ser pago em dinheiro. Os preços cairão na Alemanha e subirão na Inglaterra: o linho cairá de preço no mercado alemão: o tecido aumentará de preço no mercado inglês. Os alemães pagarão um preço mais alto pelo tecido e terão um rendimento menor em dinheiro para comprá-lo, ao passo que os ingleses comprarão o linho a preço mais baixo, isto é o preço dele superará o que era anteriormente, em montante inferior ao montante da taxa, enquanto seus recursos para comprá-lo aumentarão, por aumentarem seus rendimentos em dinheiro. “Se a imposição da taxa não fizer a procura diminuir, deixará o comércio exatamente na situação de antes. Continuaremos a importar e a exportar a mesma quantidade; nesse caso, o total da taxa será pago por nós. “Entretanto a imposição de uma taxa sobre uma mercadoria quase sempre faz diminuir a demanda, em grau maior ou menor, e nunca, ou em casos raros, pode fazê-la aumentar. Pode-se, pois, estabelecer como princípio que uma taxa sobre mercadorias importadas, quando opera realmente como uma taxa ou imposto, e não como uma proibição, total ou parcial, quase sempre recai, em parte, sobre os estrangeiros que consomem as nossas mercadorias, e que essa é uma maneira pela qual uma nação pode apropriar-se, à custa de outros países, de uma cota maior do que lhe caberia normalmente do aumento da produtividade geral do trabalho e do capital do mundo, que resulta do intercâmbio de mercadorias entre as nações.” Estão certos, portanto, aqueles que sustentam que as taxas de importação em parte são pagas por estrangeiros; enganam-se, porém, quando afirmam que são pagas pelo produtor estrangeiro. Parte das nossas taxas alfandegárias recai espontaneamente sobre todos aqueles que compram de nós, e não sobre a pessoa da qual compramos. É o consumidor externo das nossas mercadorias exportadas que é obrigado a pagar um preço mais alto por elas, por mantermos taxas alfandegárias na importação de artigos estrangeiros. Existem somente dois casos em que taxas sobre mercadorias podem em algum grau ou de alguma forma recair sobre o produtor. Um deles ocorre quando se trata de um artigo de monopólio rigoroso, que tenha preço de escassez. Com efeito, nesse caso, pelo fato de o preço ser limitado apenas pelos desejos do comprador, e pelo fato de a soma obtida, devido à oferta restrita, ser o máximo que os compradores poderiam consentir em pagar, antes de ficarem sem o artigo, se o Tesouro cobrar parte dessa soma, o preço não pode aumentar mais, para compensar a taxa, devendo esta ser paga pelos lucros do monopolizador. Uma taxa sobre vinhos raros e de alto preço recairá totalmente sobre os produtores, ou melhor, sobre os proprietários dos vinhedos. O segundo caso em que o produtor por vezes arca com parte da taxa é mais importante: o caso de taxas sobre os produtos da terra ou das minas. Esses produtos podem atingir preços tão altos a ponto de reduzir substancialmente a procura, e obrigar a abandonar algumas terras ou minas de qualidade inferior. Na hipótese de o efeito ser esse, os consumidores, tanto no próprio país como naqueles que com ele comercializarem, comprariam o produto a um custo mais baixo, e somente parte — e não o total — da taxa recairia sobre o comprador, que seria indenizado sobretudo à custa dos donos de terra ou de minas no país produtor. As taxas de importação podem, portanto, ser divididas “em duas categorias: as que têm por efeito encorajar algum ramo específico de atividade interna e as que não têm tal efeito. As do primeiro tipo são pura e simplesmente danosas tanto para o país que as impõe quanto para aqueles com os quais o país comercializa. Impedem de economizar trabalho e capital, economia essa que, se houvesse possibilidade de fazê-la, seria dividida, em uma proporção ou outra, entre o país importador e os países que compram o que esse país exporta ou poderia vir a exportar. “A outra categoria de taxas é constituída por aquelas que não encorajam uma forma de adquirir um artigo, à custa de outra, senão que permitem de ocorra intercâmbio, exatamente como se a taxa não existisse, possibilitando aquela economia de trabalho que constitui a motivação para o comércio internacional, como aliás para qualquer comércio. A essa categoria pertencem taxas sobre a importação de qualquer mercadoria que em hipótese alguma poderia ser produzida no país, bem como taxas não suficientemente elevadas para contrabalançar a diferença de gasto entre a produção do artigo no país e a importação do mesmo. Do dinheiro que entra nos cofres públicos de qualquer país, em decorrência de taxas desse gênero, somente parte é paga pelo povo desse país; o restante é pago pelos consumidores estrangeiros de seus produtos. “A despeito disso, esse último tipo de taxas é, em princípio, tão inconveniente quanto as do primeiro tipo, se bem que não exatamente pela mesma razão. Uma taxa protecionista nunca pode ser uma causa de ganho, mas sempre e necessariamente de perda, para o país que a impõe exatamente na medida em que é eficaz para o fim a que visa. Ao contrário, uma taxa não protecionista seria na maior parte dos casos uma fonte de ganho para o país que a impõe, na medida em que descarregar parte do peso das suas taxas sobre outros é um ganho: entretanto, constituiria um meio ao qual raramente seria aconselhável recorrer, por ser uma medida que facilmente é contrabalançada por um procedimento similar da outra parte. “Se a Inglaterra, no caso já suposto, tentasse obter para si mais do que a parte natural que lhe cabe da vantagem do comércio com a Alemanha, impondo uma taxa sobre a importação de linho, bastaria à Alemanha impor uma taxa à importação de tecido, suficiente para reduzir a procura desse artigo, aproximadamente tanto quanto tivesse diminuído na Inglaterra a procura por linho, em razão da taxa inglesa. As coisas voltariam a ser então como antes, e cada país pagaria sua própria taxa: a menos que a soma das duas taxas ultrapassasse a vantagem total do comércio, pois se isso acontecesse, cessaria totalmente o referido comércio, juntamente com a vantagem que ele traz consigo. “Não haveria, portanto, vantagem alguma em impor taxas desse tipo, com o objetivo de com elas ganhar da forma assinalada. Contudo, quando alguma parte da receita provém de taxas sobre mercadorias, estas muitas vezes podem ser tão pouco contestáveis quanto as demais. É também evidente que considerações de reciprocidade, que são totalmente secundárias quando se trata de uma taxa protecionista, se revestem de importância capital quando se trata da abolição de taxas desse outro tipo. Não se pode esperar que um país renuncie ao poder de taxar produtos estrangeiros, se em troca os estrangeiros não fizerem o mesmo em relação a ele. A única maneira de um país evitar de sair perdendo com as taxas alfandegárias impostas por outros países aos seus próprios produtos é impor taxas alfandegárias equivalentes aos produtos deles. Deve apenas cuidar que essas taxas não sejam tão elevadas, que superem tudo o que resta da vantagem do comércio em pauta e ponham totalmente fim à importação, fazendo com que o artigo em questão seja produzido no próprio país ou importado de outro mercado, mais caro.” CAPÍTULO V Outras Taxas § 1. Além dos impostos diretos sobre a renda, e dos impostos sobre o consumo, os sistemas financeiros da maioria dos países englobam uma série de impostos ou taxas vários, que a rigor não se incluem em nenhuma das duas categorias. Os sistemas modernos europeus conservam muitas dessas taxas ainda que em número e variedade bem menores do que nos governos semibárbaros ainda não atingidos pela influência europeia. Em alguns desses países, dificilmente há algum evento da vida que tenha escapado de servir de alguma forma como pretexto para alguma cobrança fiscal; dificilmente alguém pode executar algum ato, não pertencente à rotina diária, sem ter de obter permissão de algum agente do governo, a qual só é concedida em troca de um pagamento — sobretudo quando o ato exige a ajuda ou a garantia especial de uma autoridade pública. Neste tratado, podemos limitar a nossa atenção aos impostos e taxas que existiram até recentemente, ou ainda existem, em países comumente qualificados como civilizados. Em quase todas as nações, arrecada-se uma receita considerável de taxas sobre contratos. Estas são impostas de vários modos. Uma delas consiste em taxar o instrumento legal que serve como comprovação do contrato e que geralmente é a única comprovação legalmente admissível. Na Inglaterra, dificilmente existe algum contrato vinculante que não tenha de ser feito em papel selado, o qual pagou uma taxa ao Governo; e até bem recentemente, quando o contrato versava sobre propriedade, a taxa era proporcionalmente muito mais alta sobre as transações menores do que sobre as maiores — o que ainda se observa quanto a algumas dessas taxas. Há também impostos de selo para os instrumentos legais que constituem comprovação do cumprimento de contratos — tais como reconhecimentos de quitação e instrumentos ou títulos de pagamento. As taxas sobre contratos nem sempre são cobradas por meio de selo. A taxa sobre vendas por leilão, abolida por Sir Robert Peel, era um exemplo disso. Outro exemplo são as taxas sobre transferências de propriedade fundiária na França; na Inglaterra há, no caso, impostos de selo. Em alguns países, há muitos tipos de contrato que só têm validade se registrados, e o registro deles é objeto de taxação. Dentre os impostos ou taxas sobre contratos, os mais importantes são os que incidem sobre transferência de propriedade, especialmente sobre compras e vendas. Impostos sobre a venda de mercadorias de consumo não passam de impostos sobre essas mercadorias. Se incidirem apenas sobre algumas mercadorias específicas, fazem subir seu preço e são pagas pelo consumidor. Caso se fizesse a tentativa de taxar todas as compras e vendas — o que foi lei na Espanha durante séculos, por mais absurdo que seja —, o imposto, se pudesse ser cobrado, equivaleria a um imposto sobre todas as mercadorias e não poderia afetar os preços: se cobrado dos vendedores, seria um imposto sobre os lucros; se cobrado dos compradores, seria um imposto sobre o consumo, sendo que nenhuma das duas categorias teria condição de descarregar esse ônus sobre a outra. Se tal imposto fosse limitado a determinada modalidade de venda, como, por exemplo, a venda por leilão, ele desestimularia recorrer a essa modalidade, e se o imposto representar alguma quantia substancial, esse próprio fato constitui um obstáculo para o imposto a ser adotado, a não ser em um caso de emergência — caso em que, uma vez que o vendedor tem necessidade de vender, enquanto o comprador não tem nenhuma necessidade de comprar, o imposto acaba recaindo sobre o vendedor; esta foi, aliás, a objeção mais forte contra o imposto sobre leilões — ele quase sempre recaía sobre uma pessoa em estado de necessidade e, por sinal, no auge de sua necessidade. Os impostos ou taxas sobre a compra e a venda de terra, na maioria dos países, estão sujeitos à mesma objeção. Em países antigos, raramente uma pessoa se desfaz de propriedade fundiária senão devido à sua situação financeira apertada, ou a alguma necessidade urgente; em consequência o vendedor tem de aceitar o preço que puder conseguir, ao passo que o comprador, cujo objetivo é investir, faz seus cálculos com base nos juros que consegue para seu dinheiro em outras aplicações e não comprará se lhe tocar pagar um imposto governamental sobre a transação. (A afirmação constante no texto precisa ser modificada no caso de países onde predominam minifúndios. Estes, por não serem sinal de prestígio social nem, em geral, objeto de afeição, são prontamente vendidos a um preço pouco superior ao custo original, com a intenção de comprar terra em outro lugar, por outro lado, é tão grande o desejo de adquirir terra, em tais circunstâncias, mesmo em condições desvantajosas, que até um imposto elevado não representa grande obstáculo para a compra de terra). Sem dúvida, tem-se objetado que esse argumento não se aplicaria se fossem sujeitas ao mesmo imposto todas as modalidades de investimento permanente, tais como a compra de títulos do governo, de ações de sociedades anônimas, hipotecas e congêneres. Todavia, mesmo nesse caso, o imposto, se pago pelo comprador, equivaleria a um imposto sobre os juros; se fosse suficientemente alto para ter alguma relevância, perturbaria a relação normal entre os juros e o lucro, e a perturbação se ajustaria por meio de um aumento da taxa de juros, e por meio de uma queda do preço da terra e de todos os títulos. Por isso, parece-me que, excetuadas circunstâncias especiais, geralmente caberá ao vendedor pagar tais impostos. São condenáveis todos os impostos que obstaculizarem a venda de terra ou de outros instrumentos de produção. Tais vendas tendem naturalmente a tornar a propriedade mais produtiva. O vendedor, seja ele movido por necessidade ou por opção livre, provavelmente é alguém que não tem os meios, ou então carece da capacidade para fazer o uso mais rentável da respectiva propriedade para fins produtivos, enquanto o comprador, por outro lado, em qualquer hipótese não está em situação de necessidade, e com frequência tem propensão e capacidade para melhorar a propriedade, pois, já que a propriedade vale mais para ele do que para qualquer outra pessoa, provavelmente oferecerá o preço mais alto por ela. Por isso, são claramente nocivos todos os impostos e taxas, e todas as dificuldades e despesas impostas a tais contratos — sobretudo em se tratando de terra, a fonte de subsistência e o fundamento original de toda riqueza, dependendo, portanto, do aprimoramento dela coisas tão importantes como essas. Não é possível exagerar na concessão de facilidades que possibilitem a transferência da terra para as pessoas mais indicadas para aumentar sua produtividade e que tornem possível incorporá-la e dividi-la da maneira mais conveniente para atingir essa finalidade. Se as propriedades fundiárias forem excessivamente grandes, a alienação deve ser isenta, para que possam ser subdivididas; se forem excessivamente pequenas, para que possam ser unidas. Deve-se abolir todas as taxas e impostos incidentes sobre a transferência de propriedade fundiária; entretanto, já que os senhores de terra não têm direito algum de serem liberados de nenhuma apropriação que o Estado até agora fez a seu próprio favor, do montante de sua renda, deve-se distribuir um imposto anual, equivalente à receita média desses impostos, sobre a terra de modo geral, na forma de um imposto sobre a terra. Algumas das taxas incidentes sobre contratos são muito perniciosas, por imporem uma penalidade virtual sobre transações que a política do legislador deveria encorajar. Nesse gênero enquadra-se o imposto de selo sobre locações, as quais, em um país de latifúndios, representam uma condição essencial para que haja boa agricultura; encaixam-se aqui também os impostos sobre seguros, que representam um desestímulo direto à prudência e à previsão para o futuro. § 2. Quase iguais às taxas sobre contratos são as taxas incidentes sobre a comunicação. A principal destas é a taxa postal; a esta pode-se acrescentar as taxas sobre anúncios e sobre jornais, que são taxas sobre a comunicação de informações. A maneira usual de cobrar uma taxa pelo transporte de cartas consiste em fazer com que o governo seja o único transportador autorizado das mesmas e cobre um preço de monopólio. Quando esse preço é tão baixo como na Inglaterra, com o sistema uniforme de cobrança — dificilmente ultrapassando, se é que isso chega a acontecer, o que seria cobrado por qualquer companhia particular, no regime da concorrência mais livre —, isso dificilmente pode ser considerado como taxação, mas antes como lucro de uma atividade, pois todo excedente que for além do lucro normal do capital é um resultado justo da economia de gastos, decorrente do fato de se ter apenas um estabelecimento e um conjunto de instalações para o país todo, em vez de muitos que concorreriam entre si. Além disso, essa atividade, por ser uma daquelas que podem e devem ser conduzidas com base em normas fixas, é uma das poucas que não apresentam inconvenientes, permanecendo nas mãos do governo. Por isso, o correio é atualmente uma das melhores fontes da qual a Inglaterra aufere sua receita. Entretanto, não é desejável uma taxa postal que ultrapasse de muito o que se pagaria pelo mesmo serviço em um sistema de livre concorrência. O ônus principal de tais taxas recai sobre cartas comerciais, aumentando a despesa das relações comerciais entre localidades distantes. É como uma tentativa de arrecadar uma grande receita por meio de pedágios elevados; estes obstaculizam todas as operações por meio das quais os produtos são transportados de um lugar a outro, e desestimulam a produção de mercadorias em um lugar para serem consumidas em outro — fator que, por si mesmo, não somente é uma das maiores fontes de economia de trabalho, mas também uma condição necessária de quase todos os aperfeiçoamentos na produção e um dos estímulos mais fortes para o trabalho e para o fomento da civilização. A taxa sobre anúncios não estava isenta da mesma objeção, pois, em qualquer grau que os anúncios sejam úteis ao comércio, por facilitarem o encontro do distribuidor ou do produtor com o consumidor, nessa mesma medida, se a taxa for suficientemente alta para ser um desestímulo a fazer anúncios, prolonga o período durante o qual as mercadorias permanecem estocadas e o capital permanece ocioso. Uma taxa sobre jornais presta-se a objeções não tanto onde ela é suprimida, mas antes onde não é suprimida, isto é, onde ela impede que se faça uso dos jornais. Para a maioria daqueles que os compram, os jornais são um luxo que eles têm condições de pagar, tanto quanto outras comodidades, e que representa uma fonte igualmente inatacável de receita. Mas para a grande parcela da comunidade que aprendeu a ler, porém recebeu pouca instrução intelectual de outro tipo, os jornais são a fonte de quase toda a informação geral que possuem e de quase todo o conhecimento que adquirem das ideias e dos assuntos correntes entre a humanidade; por outro lado, é mais fácil despertar interesse por jornais do que por livros ou por outras fontes de instrução mais refinadas. Os jornais contribuem tão pouco, de maneira direta, para fazer surgirem ideias úteis, que muitas pessoas subvalorizam a importância que têm para a divulgação de tais ideias. Os jornais corrigem muitos preconceitos e superstições, habituam as pessoas ao debate e fomentam o interesse pelas coisas públicas, cuja ausência é uma grande causa da estagnação mental comumente encontrada nas classes mais baixas e nas médias — senão em todas as classes — dos países onde não existem jornais de características importantes ou interessantes. Não deve haver taxas (como realmente não existem, atualmente, na Inglaterra) que façam com que esse grande instrumento difusor de informações, de incitamento e exercício mental, seja menos acessível àquela parcela do público que tem maior necessidade de acesso a um campo de ideias e interesse que vá além do seu próprio horizonte limitado. § 3. Na enumeração das taxas condenáveis, um lugar relevante deve ser atribuído às taxas judiciais que arrecadam para o Estado uma receita de operações várias envolvidas em um recurso aos tribunais. Como todos os gastos desnecessários relacionados com processos judiciais, constituem uma taxa sobre a reparação do mal, e portanto um prêmio para a injustiça. Embora tais taxas tenham sido abolidas na Inglaterra como fonte geral de receita, elas ainda existem na forma de emolumentos pagos para cobrir os gastos dos tribunais — ao que parece, com base no conceito de que é justo exigir que arquem com as despesas da administração judicial aqueles que colhem os frutos dela. A falácia dessa doutrina foi vigorosamente exposta por Bentham. Como observou ele, os que precisam recorrer à justiça são os que menos se beneficiam — e não os que mais se beneficiam — com o Direito e com a administração da justiça. Para eles, a proteção que a lei assegura não foi plena, pois foram obrigados a recorrer a um tribunal para salvaguardar seus direitos, ou manter esses direitos contra a infração, ao passo que os demais cidadãos desfrutaram da imunidade de injustiça, conferida pela lei e pelos tribunais, sem estarem sujeitos ao inconveniente de recorrer a eles. § 4. Além das taxas gerais do Estado, em todos os países ou na maioria deles há taxas locais, para cobrir quaisquer despesas de natureza pública que se considera melhor colocar sob o controle ou administração de uma autoridade local. Algumas dessas despesas são contraídas para finalidades que interessam exclusiva ou principalmente à localidade específica: como a pavimentação, a limpeza e a iluminação das ruas; ou então a construção e a reparação de estradas e pontes, que podem ser importantes para os cidadãos de qualquer parte do país, mas somente na medida em que eles, ou as mercadorias pelas quais se interessam, transitam por essas estradas e pontes. Em outros casos, trata-se de despesas que, do ponto de vista nacional, são tão importantes como quaisquer outras, mas são pagas localmente, por se supor que há maior probabilidade de serem bem administradas por organismos locais: tal é, na Inglaterra, o caso da ajuda aos pobres, da manutenção de prisões e, em alguns outros países, da manutenção de escolas. Definir para quais objetivos públicos a supervisão local é a mais indicada, e quais são aqueles que devem permanecer diretamente sob a jurisdição da supervisão central, não é problema de Economia Política, mas de administração. Entretanto, é um princípio importante que as taxas impostas por uma autoridade local, por serem menos acessíveis à discussão por parte da opinião pública do que os atos do Governo, sempre devem ser especiais — devendo ser impostas por algum serviço definido e não devendo superar a despesa efetivamente incorrida na prestação do serviço. Assim delimitadas, é desejável, onde for exequível, que esse ônus recaia sobre aqueles aos quais o serviço é prestado — que, por exemplo, os gastos com estradas e pontes sejam pagos mediante um pedágio, por conta dos passageiros e das cargas que por elas transitam, dividindo assim o custo entre aqueles que as utilizam, para prazer ou para transporte, e os consumidores das mercadorias que, através dessas vias de comunicação, chegam ao mercado ou saem dele com custo mais baixo. Todavia, uma vez que as taxas de pedágio tiverem pago, com juros, todos os gastos havidos, a estrada ou ponte deve ser isenta de pedágio, para que possa ser usada também por aqueles para os quais essas vias de comunicação só têm serventia se as puderem utilizar gratuitamente — nesse caso, os reparos devem ser executados com os fundos do Estado, ou então com uma taxa arrecadada nas localidades que forem mais beneficiadas pelas respectivas estradas e pontes. Na Inglaterra, quase todas as taxas locais são diretas (as principais exceções são a taxa sobre o carvão, da cidade de Londres, e algumas outras taxas similares), embora a maior parte das taxas e impostos para finalidades gerais seja indireta. Ao contrário, na França, na Áustria e em outros países em que o Estado recorre amplamente à taxação direta, as despesas locais das cidades são pagas sobretudo com taxas ou impostos cobrados sobre as mercadorias, no momento de entrarem no país. Essas taxas ou impostos indiretos são muito mais condenáveis nas cidades do que na fronteira, porque as coisas que o campo fornece às cidades são sobretudo os artigos de primeira necessidade e as matérias-primas para manufatura, ao passo que, daquilo que um país importa, a maior parte consiste geralmente em artigos de luxo. Um posto fiscal nas cidades não pode gerar grande receita sem pesar duramente sobre as classes trabalhadoras das cidades — a menos que seus salários aumentem proporcionalmente, caso em que o imposto ou taxa recai em grande parte sobre os consumidores de produtos das cidades, residam eles na cidade ou no campo, uma vez que o capital não permanecerá nas cidades se os lucros dele forem inferiores à sua taxa normal, em comparação com os distritos rurais. CAPÍTULO VI Comparação Entre a Taxação Direta e a Indireta § 1. Quais são os impostos ou taxas mais convenientes: os diretos ou os indiretos? Esse problema, que sempre apresenta interesse, ultimamente tem despertado muita discussão. Na Inglaterra, há um consenso popular, de origem antiga, em favor da taxação indireta — ou melhor, contra a taxação direta. Esse consenso não se funda em razões reais, e é de natureza pueril. O que desagrada a um inglês não é tanto a quantia que tem de pagar, mas o ato de efetuar o pagamento. Ele detesta ver diante de si o coletor de impostos, e estar sujeito à sua cobrança peremptória. Além disso, talvez o dinheiro que tem de pagar diretamente de seu bolso seja o único imposto que tem certeza plena de pagar. Certamente, não se pode negar que um imposto sobre o chá, de 1 xelim por libra, ou um imposto de 2 xelins por garrafa de vinho, faz aumentar o preço de cada libra de chá e de cada garrafa de vinho que ele consome, e que esse aumento de preço equivale ao montante do imposto, e até a mais; isso é um fato, é uma coisa intencionada, e o próprio consumidor às vezes está perfeitamente consciente do fato; mas isso dificilmente impressiona de alguma forma os seus sentimentos e associações na prática, não servindo para ilustrar a diferença entre aquilo que apenas sabe ser verdade e aquilo que se sente ser verdade. A impopularidade da taxação direta, em contraste com a maneira fácil como o povo consente em ser esbulhado nos preços das mercadorias, tem gerado em muitos adeptos do aperfeiçoamento um modo de pensar diretamente oposto ao que precede. Estes afirmam que a razão que torna preferível a taxação direta é exatamente o fato de ela ser desagradável. No sistema de taxação direta, cada um sabe quanto realmente paga; quando opta por uma guerra, ou por qualquer outro luxo nacional dispendioso, o público o faz com os olhos abertos para aquilo que isso lhe custa. Se todos os impostos e taxas fossem diretos, a taxação seria muito mais notada do que atualmente, e haveria uma certeza que atualmente não existe: economia nos gastos públicos. Ainda que esse argumento não careça de força, é provável que seu peso esteja diminuindo constantemente. A incidência real da taxação indireta vai sendo cada dia mais compreendida por todos, e todos vão se familiarizando cada vez mais com ela; e qualquer coisa que ainda se diga sobre as mudanças que estão ocorrendo nas tendências da mente humana, penso que dificilmente se pode negar que as coisas são, cada vez mais, avaliadas com base em seu valor computado e cada vez menos com base nos acessórios não essenciais que as acompanham. A simples distinção entre pagar dinheiro diretamente ao coletor de impostos e pagar a mesma quantia por meio do distribuidor de chá ou do comerciante de vinhos já não perfaz toda a diferença entre a antipatia ou a oposição, e a aquiescência passiva. Além disso, ou enquanto ainda subsistir tal fraqueza do pensamento popular, o argumento baseado nele depõe em parte em favor do contrário. Se a nossa receita pública atual, de aproximadamente 70 milhões, fosse toda arrecadada por impostos diretos, certamente surgiria uma insatisfação extrema por ter de pagar tanto; ora, enquanto o espírito humano for tão pouco guiado pela razão quanto estaria implicado em mudança de sentimento devido a uma causa tão irrelevante, uma aversão tão grande em relação à tributação poderia não ser um bem incondicional. Dos 70 milhões em pauta, quase 30 milhões estão penhorados, sob as obrigações mais vinculantes, àqueles cuja propriedade foi tomada emprestada e gasta pelo Estado; e enquanto essa dívida não for paga, um aumento da aversão contra a tributação envolveria grande perigo de abuso de confiança, semelhante àquele que, pela mesma razão, ocorreu nos Estados insolventes da América, e continua a ocorrer em alguns deles. Com efeito aquela parte do gasto público que é destinada à manutenção das instituições civis e militares (isto é, tudo, excetuados juros da dívida nacional) pode comportar muita redução, em muitos de seus itens. Todavia, enquanto grande parte da receita é desperdiçada sob o mero pretexto de serviço público, o governo deixa de fazer tantas coisas — e das mais importantes —, que tudo o que se conseguir economizar de gastos inúteis é urgentemente necessitado para gastos úteis. Quer o objetivo seja a educação, ou uma administração mais eficiente e mais acessível da justiça, quer o objetivo sejam reformas de qualquer gênero, as quais, como a emancipação dos escravos, exigem compensação para os interesses individuais, quer se trate do que é tão importante quanto qualquer um dos citados objetivos, a saber, a manutenção de um corpo suficiente de funcionários públicos capacitados e formados, para legislar e administrar de forma melhor do que a atual maneira desastrada — cada um desses objetivos implica gastos consideráveis, e o alcance de muitos deles tem sido repetidas vezes impedido pela relutância que existia, de solicitar ao Parlamento verbas públicas maiores, ainda que (prescindindo do fato de que os recursos existentes provavelmente bastariam, se aplicados para os fins adequados) o custo fosse compensado, muitas vezes ao cêntuplo, com vantagem pecuniária para a comunidade em geral. Se aumentasse tanto a antipatia do público em relação aos impostos quanto poderia decorrer do fato de só se adotar a taxação direta, as classes que lucram com a má aplicação do dinheiro público poderiam provavelmente conseguir economizar aquilo do qual tiram lucro, à custa daquilo que só seria útil para o público. Há, porém, um argumento invocado com frequência a favor da taxação indireta, que deve ser totalmente rejeitado, por basear-se em uma falácia. Ouvimos muitas vezes que os impostos sobre mercadorias são menos onerosos do que outros impostos, porque o contribuinte pode escapar deles, deixando de usar a mercadoria taxada. Ele certamente pode, se o seu objetivo for privar o governo desse dinheiro; mas, se o fizer, fá-lo-á sacrificando suas próprias comodidades, sacrifício este que (se optar por submeter-se a ele) equivaleria para ele à mesma quantia que lhe seria tirada pelo imposto direto. Suponhamos um imposto sobre o vinho, suficiente para acrescentar 5 libras esterlinas ao preço da quantidade de vinho que o cidadão consome em um ano. Basta (assim se alega) que ele reduza de 5 libras o seu consumo anual de vinho, para escapar desse ônus. Isso é verdade; mas, se estas 5 libras, em vez de serem impostas ao vinho, lhe tivessem sido tiradas por um imposto sobre a renda, ele poderia, gastando 5 libras a menos com vinho, economizar da mesma forma o montante do imposto, de sorte que a diferença entre os dois casos é realmente ilusória. Se o governo tira do contribuinte 5 libras por ano — de uma forma ou de outra exatamente esse montante precisa ser cortado de seu consumo, para deixá-lo na mesma condição financeira que antes, e em ambos os casos a pessoa arca com o mesmo sacrifício, nem mais nem menos. Por outro lado, a taxação indireta tem alguma vantagem: o que esses impostos retiram do contribuinte lhe é tirado em um momento e de forma que provavelmente serão convenientes para ele. Esse imposto é pago em um momento em que de qualquer modo ele tem com que pagar; por isso, tal imposto não causa nenhum incômodo adicional, nem (a menos que se trate de um imposto sobre artigos de primeira necessidade) nenhum inconveniente, a não ser o que é inseparável do pagamento da quantia. O contribuinte pode também, salvo em caso de artigos altamente perecíveis, escolher ele mesmo o momento para acumular um estoque da mercadoria, e consequentemente para o pagamento do imposto. Sem dúvida o produtor ou distribuidor que adianta o pagamento desses impostos às vezes sofre um inconveniente; mas, no caso de mercadorias importadas, esse inconveniente fica reduzido a um mínimo, pelo assim chamado sistema de armazenagem sob o qual, em vez de pagar a taxa no momento da importação, o importador só precisa fazê-lo quando retira as mercadorias para o consumo, o que raramente ocorre antes de ter encontrado um comprador, ou então antes de ter a perspectiva de encontrá-lo imediatamente. A maior objeção contra a arrecadação da totalidade ou da maior parte de uma receita ingente por meio de impostos diretos é a impossibilidade de taxar com justiça, sem uma colaboração conscienciosa da parte dos contribuintes, a qual não se deve esperar enquanto persistir o baixo estágio atual da moralidade pública. No caso de um imposto sobre a renda, já vimos que, a menos que se constate ser exequível isentar totalmente desse imposto as poupanças, não há possibilidade de repartir esse ônus, com uma justiça que se aproxime sequer do aceitável, entre aqueles que auferem seus rendimentos de negócios ou de profissões. Isso é realmente admitido pela maioria dos que advogam a taxação direta, os quais, fico temeroso, geralmente omitem a dificuldade deixando de taxar essas categorias e confinando o projetado imposto de renda à “propriedade realizada”, forma esta em que o imposto certamente tem o mérito de ser uma modalidade muito fácil de esbulho. Entretanto, já dissemos o suficiente para condenar essa solução. Vimos, porém, que um imposto predial é uma forma de taxação direta não sujeita às mesmas objeções que o imposto sobre a renda, e que na realidade se presta a tão poucas objeções de qualquer espécie quanto talvez qualquer um dos nossos impostos indiretos. Entretanto, seria impossível arrecadar, somente com um imposto predial, a maior parte da receita da Grã-Bretanha, sem gerar um acúmulo de população altamente condenável devido à forte motivação que todas as pessoas teriam para evitar o imposto, limitando suas acomodações de moradia. Além disso, mesmo um imposto predial encerra desigualdades, e consequentemente injustiças; nenhum imposto é isento delas, não é nem justo nem boa política fazer todas as desigualdades recaírem nos mesmos itens, exigindo que um único imposto cubra a totalidade ou a parte principal dos gastos públicos. Pelo fato de na Inglaterra já ser tão grande a tributação local na forma de imposto predial, é provável que 10 milhões por ano representariam o máximo que se poderia arrecadar beneficamente para as finalidades gerais, por esse meio. Como vimos, pode-se conseguir, sem injustiça, certo montante de receita mediante imposto especial sobre a renda da terra. Afirmei que, além do atual imposto sobre a terra e de um equivalente da receita hoje auferida de impostos de selo sobre transferências de terra, poder-se-ia, em período futuro, impor algum outro tributo, para permitir ao Estado partilhar do aumento progressivo das rendas dos senhores de terra, em razão de causas naturais. Vimos também que os legados e heranças devem ser sujeitos a um imposto, suficiente para gerar uma receita considerável. Com esses impostos, e mais um imposto predial, de montante adequado, penso que deveríamos ter atingido os limites prudentes da taxação direta, excetuado o caso de uma emergência nacional, tão urgente que constituísse para o Governo uma justificativa para ignorar o montante de desigualdade e injustiça que, em última análise, se pode constatar inseparável de um imposto sobre a renda. O resto da receita teria que ser arrecadado por impostos sobre o consumo; o problema é então saber quais destes são os que menos se prestam a objeções. § 2. Há algumas modalidades de taxação indireta que devem ser peremptoriamente excluídas. Os impostos sobre mercadorias, com o fim de arrecadar receita, não devem operar como taxas protecionistas, mas devem ser arrecadados imparcialmente sobre todas as modalidades de obtenção dos artigos, sejam estes produzidos no país ou importados. Cabe excluir também todos os impostos sobre artigos de primeira necessidade, ou sobre as matérias-primas e instrumentos empregados para produzir tais artigos. Tais impostos sempre arriscam interferir naquilo que deve permanecer isento de tributação, a saber, os rendimentos apenas suficientes para levar uma existência sadia; na hipótese mais favorável — isto é, quando os salários aumentam, para compensar os trabalhadores por tal imposto — tais tributos funcionam como um imposto especial sobre os lucros, o que é ao mesmo tempo injusto e pernicioso para a riqueza nacional. (Alguns argumentam que as matérias-primas e os instrumentos de todos os tipos de produção devem permanecer isentos de tributação; entretanto, quando estes não entram na produção de artigos de primeira necessidade, parecem ser objetos tão adequados para tributação quanto o artigo acabado. Tais impostos têm sido considerados prejudiciais sobretudo com referência ao comércio exterior. Sob o prisma internacional, podem ser considerados como taxas de exportação, e, excetuados casos em que é aconselhável uma taxa de exportação, devem vir acompanhados de um drawback equivalente, por ocasião da exportação. Não há, porém, razão suficiente contra a tributação das matérias-primas e dos instrumentos utilizados na produção de qualquer coisa que seja em si mesma objeto apropriado de tributação). O que sobra são impostos sobre artigos de luxo. Estes apresentam algumas características que recomendam fortemente tais impostos. Primeiramente, tais impostos nunca podem, em hipótese alguma, atingir aqueles cujo rendimento é totalmente gasto com artigos de primeira necessidade, e ao mesmo tempo atingem aqueles que gastam em luxo aquilo que lhes é indispensável simplesmente para viverem com saúde. Em segundo lugar, tais impostos operam, em alguns casos, como uma espécie de lei suntuária útil — aliás, a única lei suntuária útil. Rejeito todo asceticismo, e de maneira alguma desejo que a lei ou a opinião pública desestimule qualquer prazer (consentâneo com os recursos e as obrigações da respectiva pessoa) que seja procurado em virtude de uma inclinação genuína e para desfrutar do próprio objeto que se compra; contudo, grande parte dos gastos das classes mais altas e médias, na maioria dos países, e a maior parte desses gastos, na Inglaterra, não são contraídos em função do prazer proporcionado pelos objetos nos quais o dinheiro é gasto, mas sim em atenção à consideração pública, a uma ideia de que dessas classes se esperam certas despesas, como inseparáveis da posição que ocupam; só posso pensar que é altamente desejável taxar tais tipos de gastos. Se a tributação os desestimular, produz-se algum bem, caso contrário, não se tem nenhum prejuízo; com efeito na medida em que se tributam coisas desejadas e possuídas por motivos desse gênero, ninguém fica em situação pior por isso. Quando uma coisa é comprada não pela sua utilidade, mas porque seu preço é alto, não há nada que recomende barateá-la. Como observa Sismondi, a consequência de se baratear o preço de artigos de vaidade não é que se gastará menos com tais coisas, mas que os compradores substituirão o artigo que baixou de preço por algum outro, que é mais caro, ou por uma qualidade mais refinada do mesmo objeto; e já que uma qualidade inferior atenderia igualmente bem ao objetivo da vaidade, se custar o mesmo preço, um imposto sobre esse artigo na realidade não é pago por ninguém: cria-se receita pública sem que ninguém saia perdendo. ("Na hipótese de só se poder adquirir diamantes de um único país específico e distante, e de só se poder adquirir pérolas de outro país, e no caso de, em razão de causas naturais, duplicar a dificuldade de aquisição desses produtos — das minas no primeiro caso e da pesca, no segundo — o efeito seria simplesmente este: com o tempo, seria suficiente a metade da quantidade de diamantes e pérolas, em relação à quantidade anteriormente necessária, para distinguir certa opulência e posição social. Precisar-se-ia para produzir a quantidade agora reduzida, da mesma quantidade de ouro ou de alguma mercadoria reduzível em última análise a trabalho, de que se precisava para produzir a quantidade anterior maior. Se a dificuldade se devesse à intervenção dos legisladores (...) não poderia fazer nenhuma diferença para a aptidão desses artigos para servirem aos propósitos da vaidade." Suponhamos que se descobrissem meios que permitissem recorrer à vontade ao processo fisiológico que produz a pérola, tendo como resultado que o montante de trabalho gasto para produzir cada pérola viesse a representar apenas a quingentésima parte do que era antes. “O efeito último de tal mudança dependeria de se a pesca de pérola fosse livre ou não. Se ela fosse livre a todos, uma vez que o único custo das pérolas seria o trabalho de pescá-las, poder-se-ia comprar um cordão de pérolas por alguns pence. Com isso, até a classe mais pobre da sociedade teria condições de enfeitar-se com pérolas. Elas se tornariam logo um objeto extremamente vulgar e fora de moda, e portanto, ao final, destituído de valor. Se, porém, em vez de supormos que a pesca de pérolas seja livre, supusermos que o legislador é o proprietário do único local em que se pode pescar pérolas, e esse proprietário tem o controle completo desse local, à medida que a descoberta progredisse, o proprietário poderia impor uma taxa sobre as pérolas, igual à redução do trabalho necessário para consegui-las. Com isso as pérolas passariam a gozar da mesma alta estima que antes. Permaneceria inalterada toda a beleza natural que elas têm. A dificuldade a ser superada para se obterem as pérolas seria diferente, mas de grandeza igual, e portanto elas teriam a mesma serventia para marcar a opulência daqueles que as possuíssem.” A receita líquida obtida com tal imposto “não custaria nada à sociedade. Se não se abusasse da sua aplicação, essa receita constituiria um acréscimo líquido igual aos recursos da comunidade”. RAE. New Principles of Political Economy). § 3. A fim de reduzir ao mínimo possível os inconvenientes, e aumentar as vantagens, dos impostos sobre mercadorias, temos as seguintes regras práticas, que se recomendam por si mesmas. Primeiro: arrecadar o máximo possível de receita — tanto quanto a conveniência o permitir — daqueles artigos de luxo que mais se relacionam com a vaidade e menos com o desfrute efetivo: tais como as qualidades mais caras de todos os tipos de pertences e ornamentos pessoais. Segundo: sempre que possível, cobrar esse imposto não do produtor, mas diretamente do consumidor, já que, quando o imposto é cobrado do produtor, sempre o preço aumenta mais do que o montante do imposto, e muitas vezes muito mais do que isso. A maioria dos impostos menores cobrados na Inglaterra é recomendada por essas duas considerações. Entretanto, no que concerne a cavalos e carruagens, uma vez que há muitas pessoas para as quais, em razão da saúde ou da compleição, estes não são propriamente artigos de luxo, mas de primeira necessidade, deve ser baixo o imposto pago por aqueles que só têm um cavalo para cavalgar, ou apenas uma carruagem, sobretudo quando for de tipo mais barato; o imposto deve, porém, aumentar bem rapidamente à medida que cresce o número de cavalos e carruagens, e aumentar o preço deles. Terceiro: já que os únicos impostos indiretos que proporcionam uma receita ingente são aqueles que recaem sobre artigos de consumo geral ou muito generalizado, já que, portanto, é necessário que haja alguns impostos sobre artigos de luxo reais, isto é, sobre coisas que proporcionam prazer em si mesmas, e são apreciadas por isso, e não tanto por serem caras, esses impostos devem, se possível, ser tais, que recaiam com o mesmo peso proporcional sobre rendimentos pequenos, médios e grandes. Trata-se de matéria complexa, pois as coisas que são objeto dos impostos mais produtivos são, proporcionalmente, consumidas em maior escala pelos membros mais pobres da comunidade do que pelos ricos. O chá, o café, o açúcar, o fumo, as bebidas fermentadas, dificilmente podem ser taxados de maneira que os pobres não arquem com parte desse ônus, superior à que lhes cabe. Algo poderia ser feito, de modo que os impostos sobre as melhores qualidades, que são utilizadas pelos consumidores ricos, sejam muito maiores em proporção ao valor (em vez de serem muito menores, como é a prática quase generalizada, no atual sistema inglês); todavia, afirma-se — não sei com que grau de verdade — que em alguns casos é insuperável a dificuldade de ajustar o imposto ao valor, de forma a impedir a sonegação; assim sendo, acredita-se necessário cobrar o mesmo imposto fixo de todas as qualidades: uma injustiça flagrante para com a classe mais pobre de contribuintes, a menos que seja compensada pela existência de outros impostos, dos quais essa classe esteja totalmente isenta, como o é do atual imposto sobre a renda. Em quarto lugar: na medida em que for compatível com as regras que precedem, a taxação deve concentrar-se de preferência em alguns artigos, antes que distribuir-se sobre muitos, para que as despesas de recolhimento sejam menores, e para que se interfira no menor número possível de ocupações, com esses impostos incômodos e vexatórios. Quinto: entre os artigos de luxo de consumo geral, a taxação deve atingir de preferência estimulantes, pois estes, ainda que em si mesmos constituam prazeres tão legítimos como quaisquer outros, são mais passíveis do que a maior parte dos outros de serem usados em excesso, de sorte que a restrição do consumo, que com naturalidade decorre da taxação, no global é mais bem aplicada a esses artigos do que a outros. Sexto: na medida em que o permitem outras considerações, a tributação deve limitar-se a artigos importados, pois estes podem ser taxados com menor grau de intervenção molesta, e com menor número de maus efeitos incidentais, do que quando um imposto é cobrado no campo ou na oficina. As taxas alfandegárias, coeteris paribus, se prestam muito menos a objeção do que os impostos de consumo; todavia, elas só devem incidir em coisas que não podem ser ou ao menos não serão produzidas no próprio país; ou então, a produção desses artigos no próprio país deve ser proibida (como acontece com o fumo, na Inglaterra), ou sujeita a um imposto de consumo equivalente à taxa alfandegária. Sétimo: nenhum imposto ou taxa deve ser tão elevado, que propicie um motivo à sonegação, forte demais para ser combatido por meios normais de prevenção; em particular, nenhuma mercadoria deve ser taxada tão alto, que desperte uma classe de pessoas sem lei, de contrabandistas, de destiladores ilícitos e similares. Dentre os impostos de consumo e as taxas alfandegárias que existiam até há pouco neste país, foram abolidos, desde as últimas reformas feitas pelo sr. Gladstone, todos aqueles que intrinsecamente não se coadunam com um bom sistema de tributação. Entre estes figuram todos os impostos sobre itens comuns de alimentação, para seres humanos ou para gado; além disso, os impostos sobre a madeira, por recaírem sobre as matérias-primas para construção de moradias, as quais constituem um dos artigos necessários para a existência; todos os impostos sobre os metais, e sobre equipamentos feitos de metal; impostos sobre sabão — que é um artigo de primeira necessidade para a limpeza — e sobre o sebo, matéria-prima do sabão e de alguns outros artigos de primeira necessidade; o imposto sobre papel, instrumento indispensável para quase todo o comércio e para a maioria dos tipos de instrução. Os impostos que atualmente proporcionam a quase totalidade da receita alfandegária e da tributação sobre o consumo, que são os que incidem sobre açúcar, café, chá, vinho, cerveja, bebidas alcoólicas e fumo, são, em si mesmos, impostos altamente apropriados, quando se necessita de uma receita ingente; entretanto, no momento são altamente injustos, por pesarem desproporcionalmente sobre as classes mais pobres; além disso alguns deles (os que incidem sobre as bebidas alcoólicas e o fumo) são tão altos, que geram um montante considerável de contrabando. Provavelmente, a maioria desses impostos poderia sofrer grande redução, sem nenhuma perda substancial para a receita. Tenho que deixar àqueles que dispõem do necessário conhecimento prático decidir de que maneira se poderia taxar mais vantajosamente os artigos manufaturados mais finos, consumidos pelos ricos. A dificuldade residiria em fazer isso sem praticar um grau de interferência inadmissível na produção. Em países que, como os Estados Unidos, importam a parcela principal dos manufaturados mais finos que consomem, a tarefa não oferece grande dificuldade; e mesmo nos países em que só se importa a matéria-prima não processada, esta pode ser taxada, sobretudo as qualidades que são empregadas exclusivamente para os manufaturados utilizados pela classe de consumidores mais ricos. Assim, na Inglaterra, uma elevada taxa alfandegária sobre a seda em estado bruto seria compatível com o princípio; e talvez seria exequível taxar os tipos mais finos de fio de algodão ou de linho, seja ele feito no próprio país, seja importado. CAPÍTULO VII Uma Dívida Nacional § 1. Cabe-nos examinar agora a seguinte questão: até que ponto é correto ou conveniente arrecadar dinheiro para os fins do governo, não impondo tributos no montante exigido, mas tomando emprestada parte do capital do país, fazendo com que a receita pública pague apenas os juros desse empréstimo? Nada precisamos dizer sobre o atendimento de necessidades temporárias tomando dinheiro emprestado: por exemplo, emitindo letras do Tesouro, destinadas a serem resgatadas no máximo dentro de um ou dois anos, com a receita proveniente dos impostos vigentes. Esse é um recurso conveniente, e quando o governo não possui um tesouro ou dinheiro acumulado muitas vezes é um recurso necessário, quando ocorrerem despesas extraordinárias, ou quando as fontes normais de receita falharem temporariamente. O que temos de examinar é se convém contrair uma dívida nacional de caráter permanente, pagando os gastos de uma guerra, ou de alguma emergência difícil, com empréstimos, a serem amortizados muito gradualmente ou em data distante, ou sem sequer amortizá-los. Já tocamos nesse problema no Livro Primeiro. Observamos, naquele contexto, que se o capital emprestado for tirado de fundos engajados na produção ou destinados a serem nela investidos, o desvio de tal dinheiro para esse fim equivale a tirar esse montante dos salários das classes trabalhadoras. Nesse caso, o tomar empréstimo não é um sucedâneo para a arrecadação da verba dentro do ano. Um governo que toma dinheiro emprestado efetivamente toma o montante dentro do ano, e isso com um imposto que recai exclusivamente sobre as classes trabalhadoras; não poderia ter feito coisa pior do que isso, se tivesse atendido às suas necessidades mediante tributação aberta e declarada; e nesse caso, a transação, bem como seus males, teria terminado ao acabar a emergência, ao passo que, recorrendo à modalidade indireta adotada, quem ganha o valor cobrado dos trabalhadores não é o Estado, mas os empregadores de mão-de-obra, e além disso o Estado fica onerado com a dívida, e com os juros desta, para sempre. Pode-se afirmar que o sistema de empréstimos públicos, em tais circunstâncias, é o pior que, no atual estágio da civilização, está ainda incluído no catálogo dos recursos financeiros. Observamos, porém, que há outras circunstâncias nas quais os empréstimos não acarretam essas consequências perniciosas: primeiro, quando o dinheiro emprestado é capital estrangeiro, somas que sobram da acumulação de capital no mundo; segundo, quando é capital que não teria sido sequer economizado, se não se lhe tivesse aberto essa forma de investimento, ou, se economizado, teria sido gasto em empreendimentos improdutivos, ou teria sido enviado para procurar aplicação em outros países. Quando o progresso da acumulação de capital reduziu os lucros ao mínimo último ou ao mínimo virtual — a uma taxa abaixo da qual o capital cessaria de aumentar, ou as novas acumulações seriam enviadas para fora do país —, os governos podem anualmente segurar essas novas acumulações sem interferir nas ocupações ou nos salários das classes trabalhadoras do próprio país, ou talvez nem mesmo nas de nenhum outro país. Até este ponto, portanto, se pode levar o sistema de empréstimos, sem incorrer na condenação absoluta e peremptória que ele merece quando ultrapassa esse limite. O que se necessita é de um índice para determinar se, em dada série de anos, como, por exemplo, durante a última grande guerra, esse limite foi ou não ultrapassado. Esse índice existe, sendo ao mesmo tempo certo e óbvio. Será que o governo, com suas operações de empréstimo, fez aumentar a taxa de juros? Se apenas abriu um canal para um capital que do contrário não teria sido acumulado, ou, se acumulado, não teria sido empregado dentro do país, isso implica que o capital, que o governo tomou e gastou, não teria conseguido encontrar emprego com a taxa de juros vigente. Enquanto os empréstimos não fazem mais do que absorver essa sobra, impedem qualquer tendência a uma queda da taxa de juros, mas não podem gerar nenhum aumento dela. Quando fazem subir a taxa de juros, como fizeram em grau extraordinário durante a guerra contra a França, isso é uma prova decisiva de que o Governo concorre por capital com os canais normais de investimento produtivo, e está levando embora não somente fundos que não teriam encontrado aplicação produtiva dentro do país, mas também fundos que teriam encontrado tal aplicação. Na medida em que, portanto, os empréstimos do Governo, durante a guerra, fizeram com que a taxa de juros superasse a que existia anteriormente e a que existiu desde então, esses empréstimos são responsáveis por todos os males acima descritos. Se a isso se objetar que os juros subiram somente porque os lucros aumentaram, respondo que esse fato não enfraquece o argumento, senão que o reforça. Se os empréstimos do Governo geraram o aumento de lucros pelo grande montante de capital que absorveram, de que maneira podem ter tido esse efeito, a não ser fazendo baixar os salários da mão-de-obra? Alegar-se-á talvez: o que manteve os lucros altos durante a guerra não foram as sangrias feitas pelos empréstimos no capital da nação, mas o rápido progresso dos aperfeiçoamentos industriais. Em grande parte, foi realmente isso que aconteceu, o que sem dúvida aliviou o sacrifício para as classes trabalhadoras, e fez também com que o sistema financeiro que se buscou fosse menos danoso, mas não menos contrário ao princípio. Esses próprios aperfeiçoamentos na indústria criaram espaço para um montante maior de capital; e o Governo, ao absorver grande parte das acumulações anuais de capital, certamente não impediu esse capital de existir (pois ele surgiu com grande rapidez depois do advento da paz), mas impediu que ele existisse no momento, e impediu exatamente esse montante, enquanto durou a guerra, de ser distribuído entre os trabalhadores produtivos. Se o Governo se tivesse abstido de tomar emprestado esse capital, e tivesse deixado que ele chegasse aos trabalhadores, e tivesse arrecadado a receita de que precisava por meio de um imposto direto sobre as classes trabalhadoras, teria produzido (sob todos os aspectos, excetuada a despesa e o inconveniente de recolher o imposto) exatamente os mesmos efeitos econômicos que produziu, exceto o fato de que hoje não teríamos essa dívida. Por conseguinte, o que o Governo fez foi adotar a modalidade pior possível de levantar dinheiro dentro do ano; a única escusa ou justificativa que tem a seu favor (na medida em que essa escusa pudesse ser alegada com razão) foi a necessidade premente, a saber, a impossibilidade de levantar uma soma anual tão grande mediante tributação, sem recorrer a impostos que, pela sua odiosidade, ou pela facilidade de sonegação, teria sido impossível cobrar. Quando os empréstimos do Governo se limitam às sobras do capital da nação, ou àquelas acumulações que não ocorreriam sequer, a não ser que se permitisse a saída delas do país, os empréstimos ao menos não estão sujeitos a essa condenação grave; nesse caso, os empréstimos não acarretam nenhuma privação a ninguém naquele momento, a não ser pelo pagamento dos juros, podendo até ser benéficos para a classe trabalhadora durante o prazo em que são gastos, empregando-se na contratação direta de mão-de-obra, como a de soldados, marujos etc., fundos que de outra forma poderiam simplesmente ser enviados para fora do país. Nesse caso, portanto, a questão real que surge é aquela que comumente se supõe ser em todos os casos, a saber: uma escolha entre um grande sacrifício feito de uma só vez, e um sacrifício pequeno prolongado indefinidamente. Quanto a isso, parece racional pensar que a prudência de uma nação ditará a mesma conduta que a prudência de um indivíduo, a saber, submeter-se imediatamente ao máximo de privação que se pode suportar com facilidade, e somente quando um ônus mais pesado afligisse ou desmantelasse excessivamente a nação, conseguir o dinheiro restante hipotecando sua renda futura. É um princípio excelente fazer com que os recursos atuais sejam suficientes para as necessidades atuais, pois o futuro terá suas próprias necessidades para atender. Por outro lado, pode-se racionalmente levar em conta que, em um país que cresce em riqueza, os gastos necessários do governo não aumentam na mesma proporção que o capital e a população; por isso, qualquer ônus sempre é sentido cada vez menos; e já que aquelas despesas extraordinárias de governo que convém contrair são altamente benéficas para as gerações futuras, não há injustiça alguma em fazer com que a posteridade pague parte desse preço, se for extremamente incômodo à geração atual pagar o total dessa despesa com seus trabalhos e sacrifícios. § 2. Quando um país, prudente ou imprudentemente, contraiu o peso de uma dívida, será conveniente adotar medidas para liquidá-la? Em princípio, é impossível não manter a afirmativa. É verdade que o pagamento dos juros, quando os credores pertencem à mesma comunidade, não representa uma perda para a nação, mas apenas uma transferência. Pelo fato, porém, de a transferência ser compulsória, ela é um mal, e o recolhimento de uma receita extra ingente, por meio de qualquer sistema de tributação, demanda tanto gasto, incômodo e perturbações dos diversos setores de atividades, e outros males, além do simples pagamento do dinheiro necessitado pelo Governo, que sempre vale a pena fazer um esforço considerável para não recorrer a tal tributação. O mesmo montante de sacrifício que teria valido a pena incorrer para evitar de contrair a dívida, vale a pena fazê-lo em qualquer momento subsequente, para liquidá-la. Tem-se apontado dois modos de liquidar uma dívida nacional: ou de uma só vez, pela contribuição geral, ou gradualmente, por meio de uma receita excedente. O primeiro seria incomparavelmente o melhor, se fosse exequível; e seria exequível, sem faltar à justiça, se isso pudesse ser feito tributando somente a propriedade. Se a propriedade arcasse com os juros totais da dívida, poderia, com grande vantagem para ela mesma, liquidá-la, pois isso equivaleria simplesmente a entregar a um credor a soma principal, cujos rendimentos anuais já seriam seus, na totalidade, por lei, equivalendo àquilo que um dono de terra faz quando vende parte de sua propriedade, para liberar o restante de uma hipoteca. Entretanto, é supérfluo observar que a propriedade não paga os juros totais da dívida, e nem se pode com justiça exigir que pague. Sem dúvida, alguns afirmam que pode, alegando que a geração atual só é obrigada a pagar os débitos das gerações anteriores com os bens que delas recebeu, e não com o produto de seu próprio trabalho. Mas, será que só receberam alguma coisa das gerações anteriores aqueles que herdaram propriedade? Será que toda essa diferença que existe, entre a terra como é hoje com as suas clareiras nas florestas e suas melhorias, suas estradas e canais, suas cidades e fábricas, e a terra como era quando nela pisou o primeiro ser humano, só beneficia aqueles que são denominados proprietários do solo? Será que o capital acumulado pelo trabalho e pela abstenção de todas as gerações anteriores só traz vantagem para aqueles que conseguiram a posse legal de parte dele? Porventura não herdamos um acervo de conhecimento adquirido, tanto científico quanto empírico, devido à sagacidade e à aplicação daqueles que nos precederam, cujo benefício é a riqueza comum de todos? Aqueles que nasceram donos de propriedade têm, além desses benefícios comuns a todos, uma herança à parte, e é justo que se atenda a essa diferença, ao regulamentar a tributação. Cabe ao sistema financeiro geral do país levar na devida conta esse princípio, e quanto a isso já indiquei o que, em meu entender, é uma forma apropriada de levar isso em conta, ou seja, um imposto considerável sobre legados e heranças. Determine-se direta e abertamente o que a propriedade deve ao Estado e o que este deve à propriedade, e faça-se com que as instituições públicas sejam regulamentadas com base nessa determinação. Qualquer que seja a contribuição justa que a propriedade deve dar para pagar os gastos gerais do Estado, na mesma proporção — e não em proporção maior — deve ela contribuir para pagar os juros da dívida nacional ou para a liquidação dela. Essa concepção, porém, se admitida, é fatal para qualquer esquema de liquidação da dívida mediante uma tributação geral da comunidade. Pessoas que possuem propriedade teriam condição de pagar sua parte do total sacrificando a propriedade, continuando a ter a mesma renda líquida que antes; mas se daqueles que não têm capital acumulado, mas apenas rendas, se exigisse que integralizassem, com um único pagamento, o equivalente ao encargo anual que para eles representam os impostos mantidos para pagar os juros da dívida, só poderiam fazer isso contraindo uma dívida privada igual à parcela que lhes coubesse pagar da dívida pública; ora, devido à insuficiência das garantias que, na maioria dos casos, teriam condições de oferecer, os juros que teriam que pagar ascenderiam a uma soma anual muito maior do que a sua parte nos juros atualmente pagos pelo Estado. Além disso, uma dívida coletiva paga com impostos tem, sobre a mesma dívida repartida entre indivíduos, a imensa vantagem de ser virtualmente uma garantia mútua entre os contribuintes. Se diminuir a fortuna de um contribuinte, seus impostos diminuem; se ele se arruinar, os impostos cessam por completo, e sua cota da dívida é totalmente transferida aos membros solventes da comunidade. Se o ônus lhe fosse imposto como uma obrigação privada, continuaria sujeito a esse ônus, mesmo quando não tivesse mais um pêni sequer. Quando o Estado possui propriedade, em terras ou de outra forma, e não houver razões fortes, para o bem público, para que ele conserve tal propriedade à sua disposição, esta deve ser empregada, na medida em que for possível, para liquidar dívidas. Qualquer ganho casual, ou qualquer tipo de “dom do céu”, por natureza está destinado ao mesmo fim. Afora isso, a única maneira ao mesmo tempo justa e exequível de liquidar ou reduzir uma dívida nacional é por meio de uma receita excedente. § 3. Penso não se poder duvidar de que é desejável, em si, manter uma sobra para esse fim. Certamente, por vezes ouvimos dizer que seria preferível deixar que essa sobra “frutifique nos bolsos da população”. Isso é um bom argumento, sob esse aspecto, contra a cobrança desnecessária de impostos para fins de gasto improdutivo, mas não contra a liquidação de uma dívida nacional. Com efeito, que se entende com o termo frutificar? Se algo significa, significa emprego produtivo: e sendo um argumento contra a tributação, temos de entender que ele afirma que, se o montante fosse deixado à população, ela o economizaria, e o converteria em capital. Sem dúvida, é provável que a população economizaria parte, mas extremamente improvável que economizaria o montante todo, ao passo que se esse montante for arrecadado por impostos, e empregado para liquidar uma dívida, economiza-se o total, e se faz com que ele se torne produtivo. Para o dono de fundos que recebe o dinheiro, este já é capital, e não receita, e ele o fará “frutificar”, para que o capital possa continuar a proporcionar-lhe renda. Portanto, a objeção não somente é infundada, senão que o argumento real depõe em favor da outra parte: há muito mais certeza de o montante frutificar se não for “deixado nos bolsos da população”. Contudo, não é em todos os casos que é aconselhável manter uma receita excedente para liquidar uma dívida. A vantagem, por exemplo, de liquidar a dívida nacional da Grã-Bretanha consiste em que isso nos possibilitaria livrar-nos da metade pior dos nossos impostos. Entretanto, dessa metade pior, algumas partes devem ser piores do que outras, e livrar-se daquelas seria um benefício proporcionalmente maior do que se livrar das partes restantes. Se renunciar a uma receita excedente nos possibilitasse dispensar um imposto, deveríamos considerar como o pior dos nossos impostos exatamente aquele que estamos mantendo para, ao final, abolir impostos não tão maus como ele. Em um país que progride em riqueza, cuja receita crescente lhe dá a possibilidade de livrar-se, de tempos em tempos, das parcelas mais inconvenientes de sua tributação, entendo que a receita acrescida deva ser antes empregada para suprimir impostos, do que para pagar dívida, enquanto permanecer algum imposto muito contestável. No atual estágio da Inglaterra, portanto, sustento ser uma boa política para o Governo, quando dispuser de uma sobra de natureza visivelmente permanente, suprimir impostos, desde que os impostos a serem abolidos sejam corretamente escolhidos. Mesmo que só restem impostos que são adequados para fazerem parte de um sistema permanente, é sabedoria continuar a mesma política mediante reduções experimentais desses impostos, até descobrir-se o ponto em que se possa arrecadar determinado montante de receita com o mínimo de ônus para os contribuintes. Depois disso, entendo que o Estado não deva renunciar à receita excedente que pudesse surgir de qualquer ulterior aumento dos impostos, mas deve aplicá-la no pagamento da dívida. Eventualmente, poderia ser oportuno aplicar para esse fim toda a receita proveniente de impostos específicos, pois haveria mais garantia de se persistir na liquidação da dívida, caso se reservasse o fundo destinado a isso, e este não fosse confundido com as receitas gerais do Estado. Os impostos sobre legados e heranças seriam particularmente apropriados para esse propósito, pois impostos pagos com capital — como é o caso — seriam mais bem empregados para reembolsar capital do que para cobrir gastos correntes. Caso se fizesse apropriação separada, qualquer sobra que posteriormente proviesse da receita maior dos demais impostos, e da poupança dos juros sobre as parcelas sucessivas de dívida liquidadas, poderia constituir base para uma redução de impostos. Tem-se afirmado ser desejável e quase indispensável um certo montante de dívida nacional, como investimento para as poupanças da parcela mais pobre ou mais inexperiente da comunidade. Sob esse aspecto, a conveniência de uma dívida nacional é inegável; contudo (para não falar do fato de que o progresso da indústria está gradualmente oferecendo outras modalidades de investimento quase tão seguras e cômodas como as ações ou obrigações de grandes empresas públicas), a única superioridade real de um investimento nos fundos consiste na garantia nacional, a qual poderia ser assegurada por meios outros que não uma dívida pública que envolve tributação compulsória. Uma das modalidades que atenderia a esse propósito seria um banco nacional de depósitos e descontos, com filiais através do país, banco este que poderia receber qualquer dinheiro a ele confiado, podendo invertê-lo em fundos públicos, a uma taxa de juros fixa, ou então pagando juros a uma taxa flutuante, como fazem os bancos constituídos em forma de sociedades anônimas — sendo que indivíduos podem tomar empréstimos em proporção à segurança maior de um investimento governamental, e sendo que as despesas do estabelecimento seriam pagas pela diferença entre os juros que o banco pagaria e os que ele conseguiria emprestando seus depósitos com base em garantia comercial, fundiária ou de outra espécie. Não há objeções insuportáveis, nem em princípio nem, como acredito, na prática contra uma instituição desse gênero, como meio de oferecer a mesma modalidade conveniente de investimento atualmente oferecida pelos fundos públicos. Ela faria do Estado uma grande empresa de seguros para garantir aquela porção da comunidade que vive dos juros de sua propriedade, contra o risco de perdê-la por falência daqueles aos quais do contrário possivelmente teria que confiá-la. CAPÍTULO VIII As Funções Comuns do Governo, Consideradas em seus Efeitos Econômicos § 1. Antes de discutirmos a linha de demarcação entre as coisas em que o governo deve interferir diretamente e aquelas em que não deve, impõe-se considerar os efeitos econômicos, bons ou maus, que advêm da maneira como o governo desempenha os deveres que lhe cabem em todas as sociedades, e que ninguém nega serem de sua competência. O primeiro desses efeitos é a proteção à pessoa e à propriedade. Não há necessidade de delongar-nos na exposição da influência exercida sobre os interesses econômicos da sociedade pelo grau de plenitude com o qual o governo cumpre esse dever. A insegurança da pessoa e da propriedade equivale a dizer incerteza do nexo entre todo trabalho ou sacrifício humano e o alcance dos objetivos em função dos quais as pessoas a eles se submetem. Significa incerteza sobre se aqueles que hoje semeiam colherão amanhã, se aqueles que produzem hoje consumirão amanhã, e se aqueles que poupam hoje desfrutarão amanhã. A insegurança para a pessoa e para a propriedade significa que o caminho para a aquisição não é apenas o trabalho e a frugalidade, mas também a violência. Quando a pessoa e a propriedade são em certo grau inseguras, todas as posses dos fracos estão à mercê dos fortes. Ninguém pode manter o que produziu, a não ser que tenha mais condições de defendê-lo, do que outros, que não dedicam parcela alguma de seu tempo e de seu trabalho a atividades úteis, têm condições de tirar-lho. Por isso, quando essa insegurança ultrapassa determinado ponto, as classes produtivas, por serem incapazes de se autodefenderem contra a população predatória, são obrigadas a colocar-se em um estado de dependência de algum membro da classe predatória, para que este tenha interesse em protegê-las contra toda predação que não seja a dele mesmo. Foi assim que, na Idade Média, a propriedade alodial geralmente se tornou feudal, e que grande número dos cidadãos livres mais pobres se tornaram voluntariamente, junto com a sua posteridade, servos de algum senhor militar. Entretanto, ao atribuirmos a esse grande requisito — a segurança da pessoa e da propriedade — a importância que é justo reconhecer-lhe, não devemos esquecer que, mesmo para fins econômicos, há outras coisas exatamente tão indispensáveis, cuja presença muitas vezes compensará um grau considerável de imperfeição nas instituições de proteção do governo. Como observei em capítulo anterior, as cidades livres da Itália, do Flandres e da Liga Hanseática estavam habitualmente em condição de tal turbulência interna, alternada com guerras externas destrutivas, que a pessoa e a propriedade desfrutavam de proteção muito imperfeita; e no entanto, durante vários séculos cresceram rapidamente em riqueza e prosperidade, levaram muitas das técnicas profissionais a alto grau de progresso, efetuaram viagens distantes e perigosas de exploração e de comércio com sucesso extraordinário, superaram em poder os maiores senhores feudais, e puderam defender-se até contra os soberanos da Europa — isso porque, em meio à agitação e à violência, os cidadãos dessas cidades desfrutavam de certa liberdade rudimentar em condições de união e colaboração, que, somadas, os transformaram em um povo valente, cheio de iniciativa e espírito elevado, e estimularam a disseminação do espírito público e do patriotismo. A prosperidade desses e de outros Estados livres, em uma época sem lei, mostra que certo grau de insegurança, se houver determinadas combinações de circunstâncias, tem tanto bons como maus efeitos, por fazer com que a iniciativa e a habilidade prática se transformem em condições de segurança. A insegurança só paralisa quando é de tal natureza e grau, que nenhuma energia de que a humanidade em geral é capaz oferece meio algum razoável de autoproteção. Essa é uma das principais razões por que a opressão por parte do governo, cujo poder geralmente é irresistível a quaisquer esforços que possam ser feitos por indivíduos, tem efeito tão mais danoso sobre as molas da prosperidade nacional do que praticamente qualquer grau de ilegalidade e de turbulência em regime de instituições livres. Há nações que adquiriram alguma riqueza, e fizeram certo progresso no caminho do aperfeiçoamento, em condições de união social tão imperfeitas que confinavam com a anarquia, ao passo que jamais houve países que, estando a população exposta ilimitadamente às cobranças arbitrárias dos oficiais do governo, conseguissem continuar a ter iniciativa ou riqueza. Algumas gerações de um governo desse gênero sempre bastam para acabar com esses dois elementos. Algumas das regiões mais formosas da terra, e que já foram as mais prósperas, foram reduzidas, sob o domínio romano, e posteriormente sob o turco, a um deserto, exclusivamente por essa razão. Digo exclusivamente porque se teriam recuperado com a máxima rapidez — como sempre acontece com os países — das devastações da guerra, ou de quaisquer outras calamidades temporárias. Dificuldades e privações muitas vezes não passam de incentivo à iniciativa; o que é fatal para a iniciativa é a crença de que não se deixará que ela produza seus frutos. § 2. A simples tributação excessiva pelo governo, conquanto seja um grande mal, não é comparável, sob o aspecto econômico dos danos causados, a cobranças muito menores em montante, que sujeitam o contribuinte ao mando arbitrário de funcionários do governo, ou são impostas de maneira a colocar a habilidade, a iniciativa e a frugalidade em posição desvantajosa. O peso dos tributos em nosso próprio país é muito grande, e no entanto, uma vez que cada um conhece os limites da tributação, e raramente é obrigado a pagar mais do que espera e mais do que aquilo com que conta, e uma vez que as modalidades de tributação não são de molde a afetar muito as motivações para a iniciativa e a economia, as fontes de prosperidade são pouco afetadas pela pressão dos impostos; pelo contrário, essas fontes podem até acusar incremento, segundo alguns, em virtude dos esforços extras, feitos para compensar a pressão dos impostos. No entanto, nos despotismos bárbaros de muitos países do Oriente, onde a tributação consiste em pressionar aqueles que conseguiram adquirir alguma coisa para confiscá-la, a não ser que o dono compre a sua liberação submetendo-se a pagar alguma quantia grande como compromisso — não podemos encontrar iniciativa voluntária ou riqueza auferida de qualquer outra fonte que não seja o saque. Mesmo em países relativamente civilizados, modalidades inaceitáveis de arrecadar receita têm tido efeitos de tipo similar, ainda que em grau inferior. Autores franceses antes da Revolução apresentavam a talha como causa primordial da condição de atraso da agricultura e da mísera condição da população rural — não propriamente pelo montante da talha, mas porque, sendo ela proporcional ao capital visível do agricultor, o motivava a dar mostras de pobreza, o que bastava para favorecer à indolência. Além disso, os poderes arbitrários de oficiais da Receita, os intendants e os subdélégués eram mais destrutivos para a prosperidade do que um montante muito maior de imposto, porque acabavam com a segurança; havia uma superioridade marcante na condição dos pays d’états, que eram isentos desse flagelo. A venalidade generalizada atribuída aos funcionários russos deve constituir um obstáculo imenso para as capacidades de progresso econômico possuídas em tanta abundância pelo Império russo, pois os emolumentos dos funcionários públicos devem depender do sucesso com que conseguem multiplicar atos vexatórios para o fim de serem comprados com peitas. No entanto, mesmo quando o excesso de tributação não é agravado pela incerteza, constitui sério mal econômico, independentemente de sua injustiça. O mal pode ir tão longe, que desestimula a iniciativa, por insuficiência de remuneração. Muito antes de atingir esse ponto, a tributação excessiva impede ou dificulta muito a acumulação de capital, ou faz com que o capital acumulado seja enviado a outros países para investimento. Os impostos que recaem sobre os lucros, mesmo que esse tipo de renda possa não pagar mais do que lhe cabe por justiça, necessariamente diminuem a motivação para qualquer poupança, a não ser que seja para investimento em outros países em que os lucros sejam mais altos. A Holanda, por exemplo, parece ter há muito tempo atingido o mínimo virtual de lucro; já no século passado seus capitalistas ricos tinham grande parte de suas fortunas investidas nos empréstimos e nas especulações de companhias de sociedade anônima de outros países; essa baixa taxa de lucro é atribuída à tributação pesada, que de certo modo foi imposta ao país pelas circunstâncias de sua posição e de sua história. Sem dúvida, os impostos, além de seu montante elevado, incidiam, muitos deles, sobre artigos de primeira necessidade, um tipo de imposto particularmente prejudicial à iniciativa e à acumulação de capital. Mas quando o montante agregado de impostos é muito grande, é inevitável que se lance mão de impostos inaceitáveis para cobrir parte da receita. Por outro lado, quaisquer impostos sobre consumo, quando elevados, mesmo que não afetem os lucros, partilham até certo ponto do mesmo efeito, induzindo pessoas de recursos razoáveis a viverem no exterior, levando muitas vezes consigo seu capital. Embora pessoalmente de forma alguma me enquadre entre os economistas políticos que pensam não ser desejável nenhum estágio de existência nacional em que não haja um rápido aumento de riqueza, não posso ignorar as muitas desvantagens que advêm a uma nação independente, do fato de atingir prematuramente uma condição estacionária, enquanto os países vizinhos continuam a progredir. § 3. O tema da proteção à pessoa e à propriedade, considerada como uma função do governo, apresenta muitas ramificações, diversificando-se em uma série de variantes indiretas. Abrange, por exemplo, todo o tema da perfeição ou da ineficácia dos meios disponíveis para assegurar direitos e reparar injustiças. Não se podem considerar seguras a pessoa e a propriedade onde é imperfeita a administração da justiça, seja por falta de integridade ou capacidade nos tribunais, seja porque a demora, os incômodos e os gastos que acompanham o funcionamento deles impõem pesado ônus àqueles que a eles recorrem, e fazem com que seja preferível resignar-se a qualquer montante suportável dos males que tais tribunais têm a função de remediar. Na Inglaterra, não se constata falha na administração judicial, em termos de integridade pecuniária — resultado este que se pode supor ter sido atingido também em várias outras nações da Europa, em decorrência do progresso do aperfeiçoamento social. Entretanto, são abundantes as imperfeições legais e judiciais de outros tipos; imperfeições estas que, especialmente na Inglaterra, comprometem muito o valor dos serviços que o governo presta à população em troca de nossa tributação desproporcional. Em primeiro lugar, a incognoscibilidade (como a denominou Bentham) da lei, e a sua indefinição extrema, mesmo para aqueles que melhor a conhecem, muitas vezes fazem com que seja necessário recorrer aos tribunais para se obter justiça, quando não deveria ser necessário nenhum litígio, por não haver possibilidade de contestação quanto aos fatos. Em segundo lugar, os procedimentos dos tribunais são tão demorados, acarretam tantos incômodos e gastos, que o preço pelo qual ao final se obtém justiça é um mal que supera um montante bem considerável de injustiça; e a parte que labora em erro, mesmo aquela que a lei considera tal, tem muitas chances de vencer pelo fato de a outra parte abandonar o litígio por falta de fundos, ou devido a um compromisso no qual se sacrificam direitos justos para pôr fim a um processo, ou devido a alguma sutileza técnica, chegando-se a uma decisão com base em algum outro fundamento que não os méritos. Esse último fato detestável muitas vezes ocorre sem culpa do juiz, sob um sistema legal que em grande parte não repousa sobre princípios racionais adaptados à condição atual da sociedade, mas originalmente se fundava em parte em algum tipo de capricho e fantasia, em parte nos princípios e casualidades do título de posse feudal (que hoje subsistem apenas como ficções legais), sendo que o sistema só foi adaptado muito imperfeitamente, à medida que surgiam os casos, às mudanças ocorridas na sociedade. De todas as partes do sistema judicial inglês, a do Tribunal do Lorde Chanceler, que possui o melhor Direito substantivo, tem sido incomparavelmente a pior no que tange à demora, aos incômodos e aos gastos; ora, esse é o único tribunal competente para a maior parte das classes de casos que por sua natureza são os mais complexos, tais como casos de associação de capital, e para a vasta gama de casos que recaem sob a denominação de confiança ou crédito. As recentes reformas operadas nesse Tribunal têm reduzido esse mal, mas ainda estão longe de tê-lo eliminado. Felizmente, para a prosperidade da Inglaterra, a maior parte do direito comercial é relativamente moderna, tendo sido elaborada pelos tribunais pelo simples processo de reconhecer e dar força de lei aos usos que, por motivos de conveniência, se haviam desenvolvido entre os próprios comerciantes — de sorte que ao menos essa parte do Direito foi substancialmente elaborada por aqueles que mais interesse tinham na boa qualidade das leis; ao mesmo tempo, as falhas dos tribunais têm sido as que na prática se mostram as menos perniciosas com referência às transações comerciais, porque a importância do crédito, que depende do caráter das pessoas, faz com que as restrições da opinião pública representem uma proteção muito poderosa (ainda que, como demonstra a experiência diária, insuficiente) contra aquelas formas de desonestidade comercial que costumam ser reconhecidas como tais. As imperfeições da lei, tanto em seu teor como nos seus procedimentos, atingem com maior peso os interesses ligados ao que se denomina tecnicamente propriedade real, ou, na terminologia geral da jurisprudência europeia, bem imóvel. Com respeito a toda essa parte da riqueza da comunidade, a lei falha tremendamente na proteção que pretende oferecer. Falha, primeiro, pela indefinição e pelo excesso de tecnicismo, que fazem com que seja impossível, para qualquer um, por mais que gaste, possuir um título de propriedade fundiária que possa considerar peremptoriamente inatacável. Em segundo lugar, falha a lei por deixar de proporcionar comprovação hábil das transações, por meio de um registro adequado de documentos legais. Falha, em terceiro lugar, por criar uma necessidade de instrumentos e formalidades dificultosos e caros (independentemente dos ônus fiscais) por ocasião das compras e vendas, ou mesmo da locação ou da hipoteca de bens imóveis. E falha, em quarto lugar, pelos gastos e pela demora intoleráveis dos procedimentos legais em quase todos os casos que se relacionam com a propriedade real. Não cabe dúvida de que os que mais sofrem com essas falhas dos tribunais civis mais altos são os donos de terra. As despesas legais, sejam as de litígio efetivo, sejam as relacionadas com a preparação dos instrumentos legais, representam, penso eu, um item considerável nos gastos anuais da maioria das pessoas que possuem muita propriedade fundiária, sendo que o valor venal de sua terra é altamente prejudicado pela dificuldade de oferecer ao comprador garantia completa quanto ao título de propriedade — isto, prescindindo dos gastos legais que acompanham a transferência da propriedade. No entanto, os senhores de terra, embora tenham sido donos da legislação da Inglaterra — no mínimo, desde 1688 —, nunca fizeram algo no sentido de reformar a lei, tendo-se oposto ferrenhamente a alguns dos aperfeiçoamentos dos quais eles mesmos colheriam o maior benefício — sobretudo aquele grande aperfeiçoamento que é o registro de contratos referentes à terra, o qual, quando proposto por uma comissão de eminentes advogados especializados em propriedade real, e quando apresentado à Câmara dos Comuns pelo Lorde Campbell, desagradou tanto ao conjunto dos senhores de terra em geral, e foi rejeitado com tal maioria, que de há muito não se teve coragem de repetir a tentativa (A recente lei do Lorde Westbury representa uma mitigação substancial dessa séria deficiência do Direito inglês, e provavelmente levará a outros aperfeiçoamentos). Tal hostilidade irracional em face do aperfeiçoamento, em um item em que os maiores beneficiados seriam eles mesmos, deve ser atribuída a um medo intenso quanto aos seus títulos de propriedade, medo este gerado precisamente por aquela lei que se recusam a alterar, bem como a uma ignorância consciente e a uma incapacidade de julgar, que se observa em todos os assuntos legais, e que os faz recorrerem desesperadamente à opinião de seus conselheiros profissionais, esquecendo que toda imperfeição da lei, na proporção em que é onerosa para eles, é uma fonte de ganhos para o advogado. Na medida em que as falhas do Direito representam apenas um peso para o senhor de terra, não afetam muito as fontes de produção; entretanto, a precariedade do título de propriedade da terra necessariamente tem de atuar muitas vezes como grande desestímulo a gastar capital na melhoria da terra; por outro lado, as despesas que se têm com transferência de propriedade têm por efeito impedir que a terra seja comprada por aqueles que a utilizariam da maneira mais rentável; no caso de compras pequenas, as mencionadas despesas ascendem a um montante superior ao preço da terra, equivalendo portanto a uma proibição de comprar e vender terra em porções pequenas, a não ser em circunstâncias excepcionais. Ora, tais compras são quase em toda parte extremamente desejáveis, pois dificilmente há algum país em que a propriedade fundiária não seja excessivamente pequena ou excessivamente grande, exigindo, em consequência, que as propriedades grandes sejam fracionadas, ou que as pequenas sejam compradas e juntadas. Fazer com que a terra possa ser transferida com a mesma facilidade que o capital seria um dos maiores aperfeiçoamentos econômicos que se poderia introduzir em um país — ora, já mostrei repetidas vezes que não há nenhuma dificuldade insuperável para introduzir esse aperfeiçoamento. Além da excelência ou dos defeitos inerentes ao Direito e à Justiça de um país como sistema de instituições destinadas a se atingirem objetivos práticos diretos, muito depende também, mesmo do ponto de vista econômico, das influências morais da lei. Em outra parte deste tratado dissemos o suficiente sobre o grau em que tanto as operações industriais como todas as outras operações associadas da humanidade dependem, quanto à sua eficiência, de as pessoas poderem confiar umas nas outras no tocante à probidade e à fidelidade aos compromissos; a partir daqui, vemos quanto pode ser afetada até a prosperidade econômica de um país, por qualquer coisa em suas instituições que estimule a integridade ou a confiabilidade, ou então as virtudes contrárias. Em toda parte, a lei favorece ostensivamente ao menos à honestidade pecuniária e ao cumprimento dos contratos; ao contrário, se oferecer facilidades para fugir a essas obrigações, por meio de truques e cavilações, ou pelo uso inescrupuloso da riqueza para o fim de instruir litígio injusto ou resistir ao pleito justo, se houver caminhos e meios pelos quais as pessoas possam atingir os objetivos da trapaçaria, com a aparente aprovação da lei — nesta mesma medida, a lei é desmoralizadora mesmo no tocante à integridade pecuniária. Infelizmente, no sistema inglês tais casos são frequentes. Por outro lado, se a lei, por indulgência indevida, protege a preguiça ou a prodigalidade contra as suas consequências naturais, ou trata o crime com penalidades inadequadas, é desfavorável o efeito, tanto para as virtudes prudenciais quanto para as sociais. Quando a lei, pelas suas próprias dispensas e injunções, estabelece a injustiça entre um indivíduo e outro — como o fazem todas as leis que reconhecem qualquer forma de escravatura, como o fazem as leis de todos os países, embora não no mesmo grau, com respeito às relações familiares, e como fazem as leis de muitos países, se bem que em grau ainda mais desigual, no tocante às discriminações entre ricos e pobres — nesses casos, o efeito sobre os sentimentos morais do povo é ainda mais desastroso. Todavia, esses itens introduzem considerações a tal ponto mais amplas e mais profundas do que as da Economia Política, que só chamo a atenção para elas para que não passem totalmente despercebidas coisas cuja importância é maior do que a que cabe àquelas de que trato nesta obra. CAPÍTULO IX Continuação do Mesmo Assunto § 1. Tendo falado até aqui dos efeitos produzidos pelas excelências ou defeitos da legislação em geral, abordarei agora aqueles que resultam da natureza especial de certas partes específicas dela. Já que necessariamente se tem de fazer uma escolha, restringir-me-ei a alguns tópicos básicos. As partes da legislação civil de um país que se revestem de maior importância, do ponto de vista econômico (depois daquelas que determinam a posição do trabalhador como escravo, servo, ou livre), são as que se relacionam com os dois itens da herança e do contrato. Quanto às leis referentes ao contrato, as mais importantes, do ponto de vista econômico, são as relativas à associação de capital, e as que dizem respeito à insolvência. Ora, em todos esses três pontos, há motivo justo para condenar alguns dispositivos da legislação inglesa. Em relação à herança, já apresentei, em capítulo anterior, os princípios gerais sobre a matéria, sugerindo o que, descartando todos os preconceitos, em meu entender constituiriam as melhores medidas a serem adotadas pela lei. Como regra geral, liberdade de doar em testamento, mas limitada por duas coisas: primeiro, que, se houver descendentes, os quais, por serem incapazes de prover a si mesmos, constituiriam um peso para o Estado, se deve reservar, da propriedade, em benefício deles, o equivalente de tudo aquilo que o Estado lhes daria: segundo, que a ninguém se deve permitir adquirir, por herança, mais do que o montante necessário para uma subsistência independente razoável. Em caso de a pessoa morrer sem testamento, a propriedade inteira deveria caber ao Estado, o qual deveria ser obrigado a destinar uma provisão justa e razoável para os descendentes do falecido, isto é, aquela provisão que o pai ou a mãe, ou o antepassado, deveriam ter-lhes destinado, levando-se em conta a situação, as possibilidades e a maneira de educar deles. Entretanto, provavelmente as leis relativas à herança deverão passar por várias fases de aprimoramento, antes de serem seriamente levados em consideração conceitos tão divergentes dos atuais modos de pensar: e uma vez que, entre as maneiras reconhecidas de determinar a sucessão na propriedade, algumas devem ser melhores e outras piores, impõe-se estudar qual delas merece a preferência. Como via intermediária, portanto, recomendaria estender a toda propriedade a legislação inglesa atual sobre a herança, em se tratando de propriedade pessoal (liberdade de fazer testamento, e, no caso de a pessoa falecer sem testamento, divisão igual), com uma exceção: não se deve reconhecer direito algum a parentes em linha colateral, e que a propriedade daqueles que não têm descendentes nem ascendentes, e não fizerem testamento, deve caber ao Estado. As leis das nações atuais divergem dessas máximas de duas maneiras opostas. Na Inglaterra, e na maioria dos países em que as leis ainda se ressentem da influência feudal, um dos objetivos visados quanto à terra e outras propriedades imóveis é não dividi-las, mantendo-as em grandes acervos; em consequência disso, em casos de não haver testamento, a propriedade passa, de modo geral (já que o costume local de alguns lugares é diferente), exclusivamente para o filho mais velho. E embora a regra da primogenitura não obrigue os que fazem testamento — que na Inglaterra têm nominalmente o direito de legar sua propriedade como quiserem, qualquer proprietário pode exercer este seu direito de modo a privar da propriedade o seu sucessor imediato, vinculando a propriedade a uma única linha especial de seus descendentes — o que, além de impedir a propriedade de passar por herança de qualquer outro modo que não seja a maneira prescrita, acarreta a consequência incidental de impedir que a terra seja vendida, já que cada dono sucessivo, por ter interesse na terra somente enquanto viver, não pode aliená-la por um período superior ao da duração de sua vida. Ao contrário, em alguns outros países, como a França, a lei obriga a dividir as heranças: não somente em caso de a pessoa falecer sem testamento, repartindo a propriedade, tanto a real, como a pessoal, com igualdade entre todos os filhos, ou (se não os houver) entre todos os parentes do mesmo grau de parentesco, mas também não reconhecendo nenhum direito de doar em testamento, ou então reconhecendo tal direito apenas sobre uma parte limitada da propriedade, ficando o resto obrigado à divisão compulsória igual. Penso que nenhum desses dois sistemas foi introduzido — ou talvez é mantido —, nos países onde eles existem, em atenção a alguma consideração de justiça, ou a qualquer previsão de consequências econômicas, mas sobretudo por motivos políticos: no primeiro caso, para manter grandes fortunas hereditárias, e uma aristocracia de senhores de terra; no segundo, para acabar com essas duas coisas e impedir que elas ressuscitem. Entendo ser altamente indesejável o primeiro objetivo, como meta de uma política nacional; quanto ao segundo objetivo, assinalei uma que, em minha opinião, é melhor para atingi-lo. Entretanto, o mérito ou demérito dos dois objetivos faz parte da ciência geral da Política, e não do setor restrito da Política sobre o qual versa este nosso tratado. Cada um dos dois sistemas é um instrumento real e eficiente para o propósito perseguido por ele; entretanto, parece-me que cada um dos dois atinge esse objetivo gerando muitos males. § 2. Há dois argumentos de natureza econômica que são aduzidos em favor da primogenitura. Um é o estímulo que se dá à iniciativa e à ambição de filhos mais jovens, fazendo com que eles sejam os construtores de suas próprias fortunas. Esse argumento foi formulado pelo dr. Johnson de uma maneira mais enérgica do que cortês para uma aristocracia hereditária, quando disse, para enaltecer a primogenitura, que ela “produz um louco só em uma família”. É curioso que seja exatamente um defensor das instituições aristocráticas que afirme que o herdar uma fortuna que elimina qualquer necessidade de iniciativa e trabalho posterior é geralmente fatal para uma atividade e para o vigor mental; no atual estágio de educação, porém, pode-se admitir que essa proposição, descontado certo exagero, é verdadeira. Entretanto, qualquer que seja a força que o argumento encerra, ele depõe a favor de limitar tanto o filho mais velho como os demais a uma simples provisão, e de dispensar até o “único louco” que o dr. Johnson estava disposto a tolerar. Se as riquezas não ganhas com o trabalho próprio são tão perniciosas para o caráter, não se vê por que motivo, querendo-se evitar que esse veneno seja tomado pelos filhos mais jovens de uma família, o único caminho seria juntar todas as poções separadas dos filhos mais jovens e ministrá-las na dose máxima a uma única vítima escolhida. Não é possível que seja necessário infligir esse grande mal ao filho mais velho, por não se saber que outra coisa se poderia fazer com uma grande fortuna. Alguns autores, porém, consideram que o efeito da primogenitura no sentido de estimular a iniciativa não depende tanto da pobreza dos filhos mais jovens, mas antes do contraste entre essa pobreza e a riqueza do filho mais velho, acreditando ser indispensável para o vigor e o espírito de iniciativa da colmeia que haja aqui e acolá um grande zangão parasita, para inculcar às abelhas que trabalham o devido senso das vantagens do mel. Falando dos filhos mais jovens, diz o sr. McCulloch: “A inferioridade deles quanto à riqueza, e o desejo que têm de escapar dessa situação inferior, e de atingir o mesmo nível que seus irmãos mais velhos, lhes inspiram uma energia e um vigor que de outra forma não poderiam sentir. Mas a vantagem de preservar grandes propriedades de serem desmembradas por um esquema de divisão igual não se limita à sua influência sobre os filhos mais jovens dos donos dessas propriedades. Esse sistema em toda parte eleva o padrão de abastança e dá nova força às molas que põem em ação a iniciativa. A maneira de viver dos grandes proprietários é o tipo de vida que cada um gostaria de poder desfrutar; os hábitos dos senhores de terra, no tocante aos gastos, embora às vezes sejam prejudiciais para eles mesmos, agem como poderosos incentivos para a ingenuidade e a iniciativa das demais classes, que só consideram suas fortunas suficientemente grandes quando lhes permitem imitar o esplendor dos senhores de terra mais ricos; assim sendo, o costume da primogenitura parece tornar todas as classes mais operosas, e aumentar ao mesmo tempo a massa de riqueza e o nível de prazer”. (Principles of Political Economy. ed. 1848. Há muito mais considerações desse gênero no tratado mais recente do mesmo autor, intitulado On the Succession to Property Vacant by Death). Se bem entendo, a parcela de verdade lembrada por essas observações — pois dificilmente poderia dizer contida nelas — é a seguinte: um estado de igualdade total de fortunas não seria fator favorável para as pessoas se empenharem ativamente no sentido de aumentarem a riqueza. Falando da massa, aplica-se com a mesma verdade à riqueza e à maior parte das outras distinções — de talento, de conhecimento, de virtude — a constatação seguinte: aqueles que já têm ou pensam ter, tanto quanto seus vizinhos, raramente se empenharão em adquirir mais. Mas nem por isso é necessário que a sociedade assegure a um grupo de pessoas grandes fortunas para que cumpram o dever social de serem olhados, com inveja e admiração, pelos pobres que a elas aspiram. As fortunas que as pessoas adquiriram com o próprio trabalho atendem igualmente bem a essa finalidade, e aliás, muito melhor — pois uma pessoa é estimulada de forma mais poderosa pelo exemplo de alguém que ganhou merecidamente uma fortuna, do que apenas vendo alguém que possui uma fortuna; além disso, o que adquiriu uma fortuna com seu trabalho é necessariamente um exemplo de prudência e de frugalidade, tão bem como de iniciativa operosa, ao passo que aquele que a recebeu com mais frequência dá um exemplo de gastos profusos, exemplo este que se espalha, com efeito pernicioso, por aquela mesma classe sobre a qual supostamente a vista da riqueza tem efeito tão benéfico, isto é, aqueles que, em razão de sua pobreza mental e pelo seu gosto pela ostentação, se sentem atraídos com o mais poderoso encantamento pelo “esplendor dos senhores de terra mais ricos”. Na América, há poucas fortunas hereditárias, ou nenhuma, no entanto acredita-se que a energia no trabalho e o ardor de acumular capital não são particularmente reduzidos nessa região do mundo. Uma vez que o país entrou seriamente na atividade industrial, que é a ocupação principal dos países modernos, assim como a guerra constituía a ocupação principal do mundo antigo e do medieval, o desejo de adquirir com o trabalho não precisa de nenhum estímulo artificial: as vantagens naturalmente inerentes à riqueza, e o fato de ela ser um critério pelo qual se costuma medir o talento e o sucesso na vida, representam ampla garantia para se buscar a riqueza com intensidade e ardor suficientes. Quanto à consideração mais profunda, de que o desejável é a difusão da riqueza, e não a concentração da mesma, e que o estado mais sadio da sociedade não é aquele em que fortunas imensas são possuídas por alguns e cobiçadas por todos, mas aquele em que o maior número possível de pessoas possuem e estão satisfeitas com uma abastança razoável, que todos podem esperar adquirir — faço referência a ela, nesse contexto, para mostrar quão enorme é a diferença que vai, em termos de questões sociais, entre toda a concepção dos defensores da primogenitura e a concepção parcialmente enunciada neste tratado. O outro argumento econômico a favor da primogenitura refere-se especialmente à propriedade fundiária. Afirma-se que o hábito de fazer uma divisão igual das heranças, ou uma divisão com igualdade aproximativa, entre os filhos, fomenta a subdivisão da terra em parcelas pequenas demais para serem cultivadas de maneira rentável. Esse argumento, eternamente reiterado, tem sido refutado repetidas vezes por autores da Inglaterra e da Europa continental. Ele parte de um pressuposto totalmente contrário àquele sobre o qual se baseiam todos os teoremas da Economia Política. O argumento supõe que a humanidade em geral agirá habitualmente de forma oposta ao seu interesse pecuniário imediato e óbvio. Com efeito, a divisão da herança não implica necessariamente divisão da terra; ela pode ser possuída em comum, como ocorre com certa frequência na França e na Bélgica; ou então, ela pode permanecer propriedade de um dos coerdeiros, ficando este onerado com as partes dos demais, mediante hipoteca; ou então, os herdeiros podem simplesmente vender a propriedade, dividindo os ganhos apurados. Caso a divisão da terra diminuísse a força produtiva dela, os herdeiros teriam interesse direto em adotar alguma dessas medidas. Na hipótese, porém, de que — como supõe o argumento —, seja por dificuldades legais, seja devido à sua própria insensatez e primitivismo, os herdeiros por si mesmos não obedecessem aos ditames desse interesse óbvio, mas insistissem em dissecar a terra em parcelas iguais, empobrecendo destarte a si mesmos, isso representaria uma objeção à lei como existe na França, de divisão compulsória, mas não pode constituir motivo para desencorajar os testadores de exercer direito de doação testamentária em conformidade geral com a regra da igualdade, pois sempre teriam o poder de fazer com que a divisão da herança tivesse lugar sem dividir a própria terra. Em outra passagem já mostramos que são igualmente inúteis as tentativas dos partidários da primogenitura, de comprovar as suas ideias contra o costume da divisão igual. Em todos os países, ou regiões de países em que a divisão das heranças vem acompanhada de propriedades pequenas, isso acontece porque as propriedades pequenas são o sistema geral do país, mesmo nas propriedades dos grandes donos. A menos que se possa aduzir um argumento forte para a utilidade social em favor da primogenitura, ela está suficientemente condenada pelos princípios gerais da justiça, por ser uma grande discriminação no tratamento dispensado a uma pessoa e a outra, baseada exclusivamente em um fato casual. Não há, pois, necessidade de aduzir um argumento de dano econômico contra a primogenitura. No entanto, pode-se aduzir tal argumento, e de forma veemente. Um efeito natural da primogenitura é fazer dos senhores de terra uma classe indigente. O objetivo dessa instituição, ou costume, é manter a terra concentrada em grandes acervos, e isso costuma acontecer efetivamente; todavia, o proprietário legal de um grande domínio não é necessariamente o proprietário de boa-fé de toda a renda que ele proporciona. A grande propriedade costuma ser onerada, em cada geração, com provisões em favor dos outros filhos. Muitas vezes a terra é onerada ainda mais pesadamente pelos gastos imprudentes do proprietário. Os grandes senhores de terra geralmente são imprevidentes nos seus gastos: vivem de acordo com suas rendas quando estas atingem o máximo, e se alguma mudança de circunstância reduz seus recursos, tem de passar algum tempo antes que se decidam a reduzir os gastos. Os perdulários de outras classes vão à ruína e desaparecem da sociedade; mas o senhor de terra perdulário normalmente se agarra firme à sua terra, mesmo depois de se ter transformado em um simples recebedor de suas rendas para benefício de credores. O mesmo desejo de manter o “esplendor” da família, que dá origem ao costume da primogenitura, indispõe o proprietário a vender uma parte para liberar o resto da terra; por isso, seus recursos aparentes são habitualmente superiores aos seus recursos reais, e os senhores de terra estão constantemente tentados a fazer com que seus gastos sejam proporcionais aos seus recursos aparentes, em vez de o serem a seus recursos reais. Por motivos como esses, em quase todos os países de grandes proprietários de terra, a maioria das propriedades está seriamente hipotecada, e em vez de terem capital para dedicar às melhorias do solo necessitam de todo o valor acrescido da terra, gerado pelo rápido aumento da riqueza e da população do país, para evitar que a categoria dos senhores de terra empobreça. § 3. Para evitar esse empobrecimento, recorreu-se à invenção do morgadio, fixando-se irrevogavelmente a ordem de sucessão, sendo que cada dono, por ter somente um interesse que durava enquanto vivia, não tinha possibilidade de onerar seu sucessor. Pelo fato de a terra passar, isenta de dívidas, à posse do herdeiro, a família não podia ser arruinada pela imprevidência de seu representante atual. Os males econômicos decorrentes dessa estrutura de propriedade eram em parte do mesmo gênero que os decorrentes da simples primogenitura, e em parte eram diferentes, mas no conjunto eram maiores. Nessa estrutura, o dono não podia arruinar seus sucessores, mas continuava a poder arruinar-se a si mesmo: ele de forma alguma tinha mais probabilidade do que no caso da primogenitura de dispor de mais recursos para melhorar a propriedade, e ao mesmo tempo, ainda que tivesse tais recursos, era ainda menos provável que os empregasse para esse fim, se o benefício disso coubesse a uma pessoa que, devido ao morgadio, era independente dele, enquanto provavelmente tinha filhos mais jovens para prover, em prol dos quais agora não podia onerar a propriedade. Se, pois, por um lado não tinha condições de ele mesmo melhorar a terra, por outro não podia vendê-la a alguém que poderia fazê-lo, pois o morgadio impede a alienação da propriedade. Em geral, o proprietário não podia sequer fazer locações além do prazo em que ele mesmo vivesse; “com efeito, diz Blackstone, se tais locações tivessem sido válidas, nesse caso, sob o pretexto de locações de longo prazo, a prole poderia ter sido virtualmente deserdada”; na Grã-Bretanha, foi necessário abrandar por estatuto o rigor do morgadio, a fim de permitir locações de longo prazo ou então a execução de melhorias na terra, à custa da propriedade. Pode-se acrescentar que o herdeiro de morgado, por ter a garantia de herdar a propriedade da família, mesmo que não o merecesse, e por ter consciência disso desde os primeiros anos, tem probabilidade bem acima das normais de se tornar uma pessoa preguiçosa, desregrada e devassa. Na Inglaterra, o direito de morgadio é mais limitado pela lei do que na Escócia e na maioria dos outros países em que ele existe. Um senhor de terra pode deixar sucessivamente em testamento sua propriedade a qualquer número de pessoas que estiverem vivas no momento, e a uma pessoa não nascida, sendo que quando estas atingirem a idade de 21 anos, o morgado expira, e a terra se torna sua propriedade absoluta. Dessa forma uma propriedade pode ser transmitida, através de um filho, ou através de um filho e um neto que viverem quando o testamento é cumprido, a um filho não nascido desse neto. Tem-se afirmado que esse direito de morgadio não é suficientemente amplo para causar algum mal; na verdade, porém, ele é muito mais amplo do que parece. Os morgadios raramente expiram; o primeiro herdeiro de um morgado, quando atinge a maioridade, junta-se à pessoa que esteja na posse, no momento, de maneira a prolongar o morgado por novo prazo. Por isso as propriedades grandes raramente são livres, durante algum período considerável, das restrições impostas por uma doação rígida — ainda que o mal seja sob um aspecto mitigado, pois na renovação da doação por uma geração a mais, essa propriedade costuma ser onerada com uma provisão para os filhos mais jovens. Sob o ponto de vista econômico o melhor sistema de propriedade fundiária é aquele em que a terra tiver mais condições de ser objeto de comércio, passando rapidamente de um proprietário a outro, quando se puder encontrar um comprador para o qual valha a pena oferecer pela terra uma quantia superior ao valor da renda dela auferida pelo dono atual. Evidentemente, isso não vale para terras destinadas a fins ornamentais, terras essas que são uma fonte de despesas, e não de lucro; vale exclusivamente para terras empregadas para fins de trabalho, e que se possui em função da renda que proporciona. Tudo o que facilita a venda da terra tende a fazer dela um instrumento mais produtivo para a comunidade em geral, e tudo aquilo que impede ou restringe a venda da terra reduz a utilidade da mesma. Ora, não somente o morgado mas também a primogenitura têm esse efeito. O desejo de manter a terra concentrada em grandes acervos, quando isso for feito por outros motivos que não seja promover a sua produtividade, muitas vezes impede mudanças e alienação que fariam aumentar sua eficiência como instrumento. § 4. Por outro lado, também uma lei que, como a francesa, limita o direito de doar em testamento a um círculo pequeno, e obriga a dividir entre os filhos, em partes iguais, a totalidade da propriedade ou a maior parte dela, me parece prestar-se a objeções muito sérias, ainda que por motivos diferentes. A única razão para reconhecer aos filhos qualquer direito a receberem mais do que uma provisão suficiente para lançá-los na vida e possibilitar-lhes encontrar um ganha-pão se baseia no desejo expresso ou presumido do pai ou da mãe, cujo direito de dispor do que efetivamente lhe pertence não pode ser preterido por quaisquer pretensões de outros a receberem o que não lhes pertence. Controlar a justa liberdade de doar, que cabe ao proprietário, criando nos filhos um direito legal superior a esse, é dar preferência a um direito imaginário, sacrificando um direito real. A essa grande e suprema objeção a essa lei pode-se acrescentar numerosas outras, de ordem secundária. Por mais desejável que seja que o pai ou mãe trate os filhos com imparcialidade, e não institua um filho mais velho ou um favorito, a divisão imparcial nem sempre é sinônimo de divisão igual. Alguns dos filhos podem, sem culpa própria, ser menos capazes do que outros para se proverem; alguns já podem estar previstos com recursos outros que o seu próprio trabalho, e portanto a imparcialidade pode exigir que a regra a seguir não seja a da igualdade, mas a da compensação. Mesmo quando o objetivo é a igualdade, às vezes há meios melhores para se consegui-la do que as regras inflexíveis segundo as quais a lei tem de proceder. Se um dos coerdeiros, por ser de caráter briguento e litigioso, insiste nos seus direitos extremos, a lei não tem condições de adotar providências justas; não pode distribuir a propriedade como parecer melhor para o interesse coletivo de todos os envolvidos; se houver várias parcelas de terra, e os herdeiros não conseguirem chegar a um acordo quanto ao valor das mesmas, a lei não poderá dar uma porção a cada um, se não que cada parte separada terá que ser colocada à venda, ou então dividida; se houver uma residência, ou um parque, ou uma área de lazer, que seria destruída como tal, em virtude da subdivisão, ela tem de ser vendida, talvez com grande sacrifício de dinheiro e de afeições pessoais. Mas o que a lei não teria condições de fazer, o pai ou a mãe pode fazê-lo. Concedendo liberdade de doar em testamento, todos esses pontos poderiam ser determinados em conformidade com a razão e os interesses gerais das pessoas envolvidas, e o espírito latente no princípio da divisão igual poderia ser mais bem observado, porque o testador estaria isento da obrigação de seguir à letra essa norma. Finalmente, nesse caso não seria necessário, como é no sistema compulsório, que a lei interfira autoritariamente nos interesses dos indivíduos, não apenas em caso de morte, mas pela vida toda, a fim de impedir as tentativas de pais no sentido de frustrarem os direitos legais de seus herdeiros, sob pretexto de doações e outras alienações entre vivos. Em conclusão: entendo que todos os donos de propriedades devem ter direito de dispor por meio de testamento de qualquer porção dela, mas não de determinar a pessoa que deve ficar com ela depois da morte de todos os que estavam vivos quando o testamento foi feito. Com que restrições se deve permitir doar em testamento propriedade a uma única pessoa para a vida toda, ficando os resíduos para outra pessoa já existente, é uma questão pertencente à legislação geral, e não à Economia Política. Tais instituições não constituiriam obstáculo maior para a alienação do que qualquer caso de propriedade conjunta, pois o consentimento de pessoas efetivamente existentes seria a única coisa necessária para qualquer novo acerto em relação à propriedade. § 5. Da herança passo agora para os contratos, e dentre estes, ao importante tema das leis sobre associações de capital. Até que ponto essas leis são geradoras de bem ou de mal, e quão importante é que tais leis sejam as melhores possíveis, é evidente para todos os que reconhecem na difusão do princípio cooperativo, no sentido mais amplo do termo, a grande necessidade econômica da atividade moderna. Pelo fato de o progresso das técnicas produtivas de produção exigirem que muitos tipos de ocupação industrial sejam efetuados por capitais cada vez maiores, a força produtiva da indústria deve sofrer com tudo aquilo que impeça a formação de grandes capitais mediante a junção de capitais menores. Na maioria dos países não existem, na abundância que seria necessária, capitais da grandeza exigida e característica de proprietários individuais, e esses capitais seriam ainda mais raros se as leis favorecerem a desconcentração da propriedade, em vez de favorecerem a concentração dela, enquanto é altamente indesejável que todos aqueles processos aperfeiçoados, e aqueles meios de eficiência e economia na produção, que dependem da posse de fundos de grande porte, sejam monopólios de alguns indivíduos ricos, devido às dificuldades sentidas por pessoas de recursos médios ou pequenos para juntarem seu capital. Finalmente, devo externar novamente minha convicção de que a economia industrial que divide a sociedade de maneira absoluta em duas porções — os que pagam salários e os que recebem —, sendo que a primeira engloba milhares, e a segunda, milhões, não tem condições de durar indefinidamente, nem é bom que isso aconteça; e que a possibilidade de trocar esse sistema por um sistema de associação sem dependência, e de trocar um sistema de hostilidade organizada por um de associação de interesses, depende exclusivamente dos desenvolvimentos futuros do princípio de associação de capitais. Não obstante, dificilmente há algum país cujas leis não coloquem grandes obstáculos, e na maioria dos casos intencionais, à formação de muitas associações de capital. Na Inglaterra, já representa um desestímulo sério para tais associações o fato de as dissenções entre sócios só serem praticamente dirimíveis pelo Tribunal do Lorde Chanceler — o que muitas vezes é pior do que tirar tais questões da competência da lei, pura e simplesmente, pois qualquer uma das partes disputantes, que for desonesta ou briguenta, pode à vontade envolver as demais nos gastos, no incômodo e na preocupação que inevitavelmente acompanham um processo desse tribunal, sem que estes tenham o direito de se libertarem da pena, mesmo no caso de a associação se dissolver. (O sr. Cecil Fane, Diretor do Tribunal de Falências, em seu depoimento perante a Comissão sobre a Lei das Associações de Capital, afirma o seguinte: “Lembro-me de ter lido, há algum tempo, uma afirmação escrita por dois eminentes advogados, que declararam saber de muitas prestações de contas de tais associações que deram entrada neste Tribunal, mas de nenhuma que tenha saído dele. (...) Muito poucos daqueles que estariam dispostos a entrar em associações desse tipo” (associações cooperativistas de trabalhadores) “têm uma ideia dessa verdade, a saber, que é realmente inexequível a decisão de questões que surgem entre associados. “Porventura não sabem que um dos sócios pode roubar o outro, sem nenhuma possibilidade de obter ressarcimento? — A verdade é essa; mas não sou capaz de dizer se eles estão ou não a par dela". Na opinião do sr. Fane, essa injustiça flagrante é totalmente atribuível às falhas do referido tribunal. “Sou de opinião que se há uma coisa mais fácil do que outra, é a decisão de questões relativas à associação de capital, pela simples razão de que tudo o que se faz em uma associação de capital é registrado e escriturado; a comprovação, portanto, está à disposição; se, por conseguinte, se adotasse uma forma racional de proceder, a dificuldade desapareceria totalmente.” Atas de depoimentos anexadas ao Report of the Select Committee on the Law of Partnership (1851).) Além disso, até há pouco se carecia de uma lei própria do Parlamento para poder constituir legalmente qualquer associação de capital e para esta ter capacidade legal de agir como entidade autônoma. À força de um estatuto aprovado há alguns anos, essa necessidade não existe mais; entretanto, o estatuto em pauta é, segundo autoridades competentes, um “monte de confusão”, sendo que, segundo elas, “nunca se infligiu em tal profusão” toda essa confusão a pessoas que associam seu capital.114 Quando um grupo de pessoas, sejam elas poucas ou muitas, desejam livremente juntar seus fundos para um empreendimento conjunto, não pedindo nenhum privilégio especial, nem o direito de se apoderarem da propriedade de ninguém, a lei não pode ter nenhum motivo justo para colocar obstáculo à concretização de tal projeto. Observando algumas condições simples de publicidade, qualquer grupo de pessoas deve ter o direito de constituir uma sociedade por ações ou société en nom collectif, sem pedir permissão a qualquer funcionário público ou do Parlamento. Já que uma associação de muitos parceiros praticamente tem de estar sob a administração de alguns, deve-se oferecer todas as facilidades para o grupo exercer o controle e a supervisão necessários sobre esses poucos, quer sejam eles mesmos membros da associação, ou simplesmente seus empregados contratados, ora, nesse ponto o sistema inglês ainda está, lamentavelmente, muito longe do padrão de perfeição. § 6. Quaisquer que sejam, porém, as facilidades que a legislação inglesa dê a associações constituídas com base nos princípios da associação comum, há um tipo de sociedade por ações que, até o ano de 1855, não era em absoluto permitida, e que somente podia nascer em virtude de uma lei especial do Parlamento ou da Coroa. Refiro-me às associações com responsabilidade limitada. As associações com responsabilidade limitada são de dois tipos: no primeiro, é limitada a responsabilidade de todos os sócios, ao passo que no outro só é limitada a responsabilidade de alguns deles. O primeiro tipo é a société anonyme do Direito francês, a qual, na Inglaterra, até recentemente, só era conhecida sob o nome de “companhia patenteada”, significando uma sociedade por ações, cujos acionistas, à força de um decreto da Coroa ou de uma disposição especial do Parlamento, estavam isentos de qualquer responsabilidade pelas dívidas da empresa que ultrapassassem o montante de seu capital subscrito. O outro tipo de associação limitada é aquele que o Direito francês chama de commandite; é deste tipo, que na Inglaterra ainda não é reconhecido e é ilegal, que passarei a falar em seguida. Se um grupo de pessoas optam por associar-se para executar alguma operação comercial ou industrial, concordando entre elas, e anunciando àqueles com os quais transacionarão que os membros da sociedade não assumem responsabilidade além do montante do capital que subscrevem, haverá alguma razão para a lei levantar objeções contra tal procedimento, e para lhes impor a responsabilidade ilimitada, que recusam? Por que motivo? Não por causa dos sócios como tais, pois são eles que são beneficiados e protegidos pela limitação da responsabilidade. Deve ser, portanto, em função de terceiros, isto é, aqueles que podem transacionar com a associação, e os quais possivelmente terão de assumir a dívida que for além daquilo que o capital subscrito é suficiente para pagar. Entretanto, ninguém é obrigado a transacionar com a referida associação, e muito menos se obriga quem quer que seja a dar a ela crédito ilimitado. A categoria de pessoas com as quais essas associações transacionam em geral são pessoas perfeitamente capazes de zelar pelos seus interesses, não parecendo haver nenhum motivo para a lei preocupar-se com os interesses delas mais do que o farão elas mesmas — desde que não se lhes apresente nenhuma imagem falsa, e que tenham desde o início consciência sobre aquilo em que têm de confiar. A lei tem razão ao exigir de todas as sociedades por ações com responsabilidade limitada não somente que o montante de capital com o qual dizem operar esteja efetivamente integralizado, ou então esteja lastreado em garantias efetivas (sem dúvida, se houver publicidade completa, essa exigência seria necessária), mas também que se mantenham registros contábeis acessíveis aos indivíduos — e, se necessário, sejam publicados — que possibilitem certificar-se a qualquer momento da situação efetiva dos negócios da sociedade, e para verificar se ainda permanece intacto o capital que constitui a garantia única pelos compromissos que ela assume — sendo a fidelidade desses registros contábeis asseguradas pela cominação de penalidades suficientes. Uma vez que a lei garantiu dessa maneira aos indivíduos todos os meios exequíveis de se conhecerem as circunstâncias que devem entrar nos cálculos prudenciais dos indivíduos e nas suas transações com a respectiva sociedade, não parece haver necessidade maior de interferir no julgamento dos indivíduos nesse gênero de transações, do que em qualquer outro setor da vida privada. A razão que se costuma aduzir para tal interferência é que os administradores de uma associação com responsabilidade limitada, por não arriscarem toda a sua fortuna no caso de perda — ao passo que na hipótese de ganho poderiam tirar proveito amplo —, não têm suficiente interesse em tomar o devido cuidado, e estão sujeitos à tentação de expor os fundos da associação a riscos indevidos. No entanto, está bem comprovado que associações com responsabilidade ilimitada, se os acionistas forem ricos, podem obter, mesmo quando se sabe que são descuidados em suas transações, crédito indevido, em uma extensão que ultrapassa de muito o que se concederia a companhias igualmente mal administradas, cujos credores só tivessem por garantia o capital subscrito. Qualquer que seja o lado para o qual pende o prato da balança desse mal, esta é uma consideração mais importante para os próprios acionistas do que para terceiros, pois, com garantias adequadas para o público, o capital de uma associação com responsabilidade limitada não poderia ser comprometido em riscos que vão além dos que normalmente ocorrem nos negócios que ela faz, sem que os fatos se tornem conhecidos e sejam objeto de comentários, que provavelmente afetariam o crédito da associação, em grau tão grande quanto as circunstâncias o justificariam. Se, com as garantias dadas ao público, se constatasse na prática que empresas constituídas com base no princípio da responsabilidade ilimitada fossem mais bem administradas e com mais cuidado, as empresas de responsabilidade limitada não teriam condições de manter uma concorrência de igual para igual com elas, e, portanto, raramente seriam constituídas, a menos que tal limitação fosse a única condição sob a qual se pudesse levantar o montante necessário de capital — e em tal caso seria muito irracional dizer que se deve proibir a formação delas. Pode-se além do mais observar que, embora com igualdade de capital, uma empresa com responsabilidade limitada ofereça um pouco menos de segurança para aqueles que com ela transacionam, do que uma em que cada acionista empenha toda a sua fortuna, não obstante isso, mesmo a garantia mais fraca dessas duas é sob alguns aspectos maior do que aquela que um capitalista individual tem condições de oferecer. No caso de um indivíduo, temos aquela segurança que se pode fundar em sua responsabilidade ilimitada, mas não aquela que deriva da publicidade das transações, ou de um montante conhecido e grande de capital integralizado. Esse item é bem apresentado em um artigo competente do sr. Coquelin, publicado na Revue des Deux Mondes de julho de 1843. (A citação é tirada de uma tradução publicada pelo sr. H. C. Carey em um periódico americano, Hunt’s Merchant’s Magazine, de maio e junho de 1845). “Enquanto terceiros que comercializam com indivíduos”, diz o referido autor, “dificilmente alguma vez sabem, a não ser de forma aproximada — sendo que mesmo essa aproximação é vaga e incerta —, qual é o montante de capital responsável pelo cumprimento de contratos feitos com eles, aqueles que comercializam com uma société anonyme têm condições de conseguir informações completas, se as procurarem, podendo efetuar suas operações com um sentimento de confiança que não pode existir no outro caso. Além disso, nada mais fácil do que um comerciante individual esconder o montante de seus compromissos, já que ninguém, afora ele mesmo, pode conhecê-lo com certeza. Mesmo o seu funcionário de confiança pode não estar a par disso, já que os empréstimos que se sente obrigado a contrair podem não ser de forma alguma de natureza a exigir registro em seu diário. É um segredo que só ele conhece — um segredo que raramente transpira, e se transpira isso ocorre sempre lentamente; segredo que só aparece depois de ocorrer a catástrofe. Ao contrário, a société anonyme não pode ou não deve assumir empréstimos sem que isso se torne conhecido de todos — diretores funcionários, acionistas, e do público em geral. As operações dessa sociedade partilham sob alguns aspectos, da natureza que caracteriza as operações dos governos. A luz do dia penetra em todas as direções, não podendo haver segredos para aqueles que procuram informação. Assim, tudo é fixado, registrado, conhecido, no caso do capital e das dívidas, em se tratando da société anonyme, ao passo que no caso do comerciante individual tudo é incerto e desconhecido ao público. Perguntaríamos ao leitor: qual dos dois apresenta o aspecto mais favorável, ou a garantia mais segura, para aqueles que transacionam com eles? “Além disso, valendo-se da obscuridade que cerca seus negócios, obscuridade essa que ele deseja que aumente, o comerciante particular pode, enquanto seu negócio se apresenta próspero, produzir impressões, no tocante a seus recursos, que ultrapassam de muito a realidade, e assim consolidar um crédito não justificado por esses recursos. Quando ocorrem perdas, e quando se vê ameaçado pela falência, o público continua a ignorar a situação real dele, o que permite ao comerciante particular contrair dívidas que vão muito além da sua possibilidade de pagamento. Chega o dia fatal, e os credores deparam com uma dívida muito superior à que se havia esperado, ao passo que os meios de que dispõe para pagar são muito inferiores. E não é só isso. A mesma obscuridade que lhe serviu tanto até aqui, quando desejava aumentar seu capital e ampliar seu crédito, proporciona-lhe agora a oportunidade de colocar uma parcela desse capital fora do alcance de seus credores. O capital diminui, se é que não desaparece. O capital se esconde, e nem mesmo remédios legais nem a ação dos credores conseguem tirá-lo dos recantos obscuros em que ele é colocado. (...) Os nossos leitores podem rapidamente e sem problema determinar eles próprios se práticas desse gênero são igualmente fáceis no caso da société anonyme. Não duvidamos de que tais coisas sejam possíveis, mas pensamos que os leitores concordarão conosco em que, pela natureza dessa sociedade, por sua organização e pela necessária publicidade que acompanha todos os seus atos, fica muito reduzida a probabilidade de tais ocorrências.” As leis da maior parte dos países, incluída a Inglaterra, erram de duas maneiras, com relação às sociedades por ações. Se por um lado foram irracionalmente ciosas em permitir a existência de tais associações, sobretudo quando de responsabilidade limitada, geralmente deixaram de exigir a publicidade das operações delas — a qual representa a melhor garantia para o público, contra qualquer perigo que possa advir de tal tipo de associação de capital, garantia tão indispensável no caso das associações do tipo em pauta que, desviando de sua prática geral, as leis permitiram existir. Mesmo no caso do Bank of England, que por lei do Parlamento goza de monopólio, e que tem exercido controle injusto sobre um item de tanto interesse público como a situação do meio circulante, foi somente nesses últimos anos que se exigiu alguma publicidade — publicidade que, de início, foi de natureza extremamente incompleta, ainda que atualmente seja suficiente, para a maioria das finalidades práticas. § 7. O outro tipo de associação limitada de capital é aquele em que os sócios que administram engajam toda a sua fortuna nos compromissos da empresa, mas têm outros sócios, que só contribuem com somas definidas, e não assumem responsabilidade por nada mais que vá além destas, ainda que participem dos lucros com base em qualquer norma que for concordada. É o que se chama associação de capital na forma de comandita, sendo que os sócios com responsabilidade limitada (aos quais, pela lei francesa, fica vedada toda interferência na administração da empresa) são conhecidos sob o nome de comanditários. Tais associações de capital não são reconhecidas pelo Direito inglês; para este, em todas as associações particulares de capital, todo aquele que partilha dos lucros é responsável pelas dívidas na mesma extensão que o sócio que administra. Quanto saiba, nunca se aduziu um argumento satisfatório que explique tal proibição. Nesse caso, não tem aplicação nem sequer a razão insuficiente alegada contra a limitação da responsabilidade dos membros em uma sociedade por ações, pois não há nenhuma redução dos motivos para uma administração cuidadosa, já que todos os que participam de qualquer forma da direção da empresa são responsáveis na extensão total de suas fortunas. Além disso, com respeito a terceiros, aumenta a segurança ou garantia das comanditas, pois o montante de capital subscrito pelos comanditários está totalmente disponível para credores, uma vez que os comanditários perdem todos os seus investimentos antes que qualquer credor possa perder algo, ao passo que, se, em vez de se tornarem sócios nesse montante, tivessem emprestado a respectiva quantia a juros iguais ao lucro que dela aufeririam, teriam partilhado, juntamente com os demais credores, do remanescente da propriedade da empresa, reduzindo pro rata os dividendos que cabem a todos. Ao mesmo tempo que, portanto, a prática das comanditas atende ao interesse dos credores, muitas vezes ela é altamente desejável para as próprias partes contratantes. Os administradores têm condições de conseguir a ajuda de um montante muito maior de capital do que poderiam tomar emprestado com base em suas próprias garantias; por outro lado, as pessoas são induzidas a ajudar em empreendimentos úteis, empatando neles parcelas limitadas de capital, quando não teriam arriscado — e muitas vezes não poderiam prudentemente arriscar — toda a sua fortuna nas chances do empreendimento. Poder-se-ia talvez pensar que onde se facilitam devidamente as sociedades por ações não há necessidade de associações de capital em forma de comandita. No entanto, há certos casos em que o princípio da comandita é mais indicado que o princípio da sociedade por ações. “Suponhamos”, afirma o sr. Coquelin, “o caso de um inventor que procura um capital para pôr em prática a sua invenção. Para conseguir a ajuda de capitalistas, ele tem de oferecer-lhes uma participação nos lucros do benefício esperado; estes precisam associar-se a ele nas chances do êxito da invenção. Em tal caso, que formas o inventor escolheria? Certamente não uma associação de capital na forma comum”; e isto por várias razões, especialmente a dificuldade extrema de encontrar um sócio com capital, disposto a arriscar toda a sua fortuna no sucesso da invenção. ("Tem-se expressado — diz o sr. Duncan, advogado — muita comiseração em relação ao pobre inventor; o alto custo das patentes tem constituído uma opressão para ele; mas a maior opressão para ele tem sido a Lei das Associações de Capital, que o impede de conseguir alguém para ajudá-lo a desenvolver sua invenção. Ele é um homem pobre, e por isso não tem condições de oferecer garantias a um credor; ninguém lhe emprestará dinheiro: a taxa de juros oferecida, por mais elevada que seja, não chega a ser uma atração. Se, porém, alterando-se a lei, ele tivesse condições de fazer com que capitalistas se interessassem por ele e partilhassem dos lucros, permanecendo o risco limitado ao capital que nisso empatassem, há muito pouca dúvida de que muitas vezes ele teria ajuda dos capitalistas, ao passo que, no momento atual, com a legislação que temos, o inventor está completamente anulado, e a sua invenção é inútil para ele: luta um mês após o outro; apela sempre de novo aos capitalistas, mas inutilmente. Sei que isso ocorreu na prática, no caso de duas ou três invenções patenteadas — especialmente uma delas, em que pessoas de capital desejavam entrar em um empreendimento de grande importância em Liverpool, mas cinco ou seis senhores desanimaram de fazê-lo, pois todos sentiam a objeção mais forte contra aquilo que cada um deles chamava de maldita lei sobre a associação de capital." Report. O sr. Fane afirma: “No decurso de minha vida profissional, como diretor do Tribunal de Falências, constatei que a pessoa mais infeliz do mundo é o inventor. A dificuldade que um inventor encontra em conseguir capital o envolve em todos os tipos de problema, e ao final, na maior parte dos casos, ele se torna um homem arruinado, e alguma outra pessoa acaba tomando posse da invenção dele”). “Tampouco o inventor escolheria a société anonyme” ou qualquer outra modalidade de sociedade por ações em pé de igualdade, “na qual ele pudesse ser substituído como administrador. Em tal empresa, o inventor não estaria em situação melhor do que qualquer outro sócio; poderia perder-se na multidão dos sócios, enquanto, pelo fato de a associação existir, digamos assim, por causa dele e para ele, a administração pareceria caber-lhe de direito. Ocorrem casos em que um comerciante ou um manufator, sem ser exatamente um inventor, tem direitos inegáveis à administração de uma empresa, por possuir qualidades particularmente indicadas para promover o sucesso da mesma. Tão grande é, sem dúvida”, continua o sr. Coquelin, “a necessidade, em muitos casos, da associação limitada que é difícil conceber como poderíamos dispensá-la ou substituí-la” — e com referência a seu próprio país, o autor provavelmente tem razão. Onde, como na Inglaterra, existe uma prontidão tão grande, por parte do público, a constituir sociedades por ações, mesmo sem o estímulo de uma limitação de responsabilidades, se pode dizer que a associação de capital em forma de comandita, embora a sua proibição seja totalmente indefensável em princípio, não apresenta, sob uma ótica puramente econômica, a mesma necessidade imperativa que o sr. Coquelin lhe atribui. Contudo, não são pequenos os inconvenientes derivantes indiretamente de dispositivos legais que ordenam que todo aquele que partilha dos lucros de uma empresa tem de assumir todas as responsabilidades características de uma empresa com associação de capital com responsabilidade ilimitada. É impossível dizer quantas modalidades de associação — ou quais modalidades úteis — se tornam inexequíveis em virtude de tais dispositivos legais. Para condenar tais restrições, é suficiente que, a menos que sejam de certo modo abrandadas, não se possam coadunar com o pagamento de salários, em parte com uma percentagem sobre os lucros — em outras palavras, não se possam coadunar com a associação dos operários como sócios virtuais do capitalista. (Constatou-se ter sido possível chegar a isso em virtude da Lei Sobre as Associações de Responsabilidade Limitada, possibilitando ao capitalista e seus operários constituírem uma Companhia Limitada, conforme proposta dos srs. Briggs). É antes de tudo com referência à melhoria e à elevação das classes trabalhadoras que é indispensável a liberdade completa nas condições de associação de capital. Associações de capital como as de operários, descritas em capítulo anterior, constituem o meio mais poderoso para se chegar à emancipação social dos trabalhadores mediante suas próprias qualidades morais. A liberdade de associação de capital é importante não somente pelos seus exemplos de sucesso, mas é igualmente importante em função das tentativas que não lograriam êxito, pois o fracasso delas proporcionaria uma lição mais marcante do que aquela que adviria de qualquer teoria não experimentada na prática. Deve-se permitir, e até encorajar, testar na prática toda teoria de aprimoramento social cujo valor possa ser submetido ao teste da experimentação prática. Partindo de tais experiências, a parcela ativa das classes trabalhadoras tiraria lições que teria dificuldade em aprender do ensinamento de pessoas que os trabalhadores supõem terem interesses e preconceitos adversos ao bem deles; essas experiências nos dariam meios para corrigir, com nenhum custo para a sociedade, tudo aquilo que atualmente há de errado nos conceitos que as classes operárias têm sobre os meios a adotar para se chegar à independência delas, bem como meios para descobrir as condições morais, intelectuais e industriais que são indispensáveis para se conseguir sem injustiça — ou para conseguir tout court — aquela reforma social à qual aspiram. (Em virtude de uma lei do ano de 1852, denominada Lei das Sociedades Providenciárias e Industriais — que a nação deve às iniciativas cheias de espírito público do sr. Slaney —, as associações profissionais de trabalhadores podem gozar dos benefícios estatutários de Sociedades de Socorro Mútuo. Isso não somente as isenta das formalidades aplicáveis às sociedades por ações, mas também provê à decisão de litígios entre os sócios, sem recurso ao Tribunal do Lorde Chanceler. Há ainda algumas falhas nos dispositivos dessa lei que entravam a operação das sociedades sob vários aspectos, como assinala o Almanack of the Rochdale Equitable Pioneers de 1861). A legislação francesa sobre a associação de capital é superior à inglesa por permitir a comandita; superior também por não ter um instrumento tão complicado como o Tribunal do Lorde Chanceler, pelo fato de todos os problemas derivantes de transações comerciais serem julgados de modo relativamente pouco dispendioso e rápido, por um tribunal de comerciantes. Sob outros aspectos, o sistema francês era — e, em meu entender, continua a ser — muito pior que o inglês. Uma sociedade por ações com responsabilidade limitada não pode ser constituída sem autorização expressa do departamento governamental denominado Conseil d’Etat, organismo de administradores, em geral inteiramente estranhos às transações industriais, que não têm interesse algum em promover empreendimentos, e estão inclinados a crer que a finalidade da sua instituição é restringi-los; a aprovação desse organismo, em qualquer caso, não se consegue sem um montante de tempo e trabalho que representa um obstáculo muito sério para se iniciar um empreendimento, enquanto a incerteza extrema de se conseguir tal aprovação constitui grande desestímulo para os capitalistas que estariam dispostos a subscrever capital. No tocante a sociedades por ações sem limitação de responsabilidade, que na Inglaterra existem em número elevado e são constituídas com tanta facilidade, na França está simplesmente excluída a sua existência, pois, nos casos de associação de capital com responsabilidade ilimitada, a lei francesa não permite a divisão do capital em ações transferíveis. As melhores leis existentes sobre a associação de capital parecem ser as dos Estados da Nova Inglaterra. Segundo o sr. Carey, “em parte alguma a associação de capital é tão pouco atravancada por regulamentos como na Nova Inglaterra; a consequência disso é que lá essa associação é praticada em extensão maior — particularmente no Massachusetts e em Rhode Island — do que em qualquer outro lugar do mundo. Naqueles Estados, pululam as sociedades compagnies anonymes — companhias patenteadas — para quase todas as finalidades imagináveis. Cada cidade é uma corporação para a administração das suas estradas, pontes e escolas — as quais, portanto, estão sob o controle direto daqueles que as pagam, e consequentemente são bem administradas. Academias e igrejas, liceus e bibliotecas, caixas econômicas e companhias fiduciárias existem em número proporcional às necessidades da população, e todas são sociedades anônimas. Cada distrito tem seu banco local, de porte adequado para as suas necessidades, cujo capital é propriedade dos pequenos capitalistas da vizinhança, e é administrado por eles mesmos; em decorrência disso, em nenhuma parte do mundo o sistema bancário é tão perfeito — tão pouco sujeito à oscilação no montante de empréstimos —, e como consequência necessária, em nenhuma outra parte o valor da propriedade é tão pouco afetado por mudanças do montante ou do valor da moeda, resultantes dos movimentos de suas próprias instituições bancárias. Nos dois Estados aos quais nos referimos em especial, os bancos são quase em número de duzentos. O Estado de Massachusetts, sozinho, se apresenta com 53 agências de seguros, de tipos diferentes, espalhadas pelo Estado, e todas constituídas em pessoas jurídicas. As fábricas são pessoas jurídicas, sendo possuídas em forma de ações; e toda pessoa que tem qualquer participação na administração das suas firmas, desde a compra da matéria-prima até a venda do artigo manufaturado, é coproprietário, enquanto todo empregado nessas firmas tem uma perspectiva de se tornar coproprietário, se usar de prudência, for diligente e econômico. Associações de caridade existem em grande número, e são pessoas jurídicas. Os barcos de pesca são possuídos em forma de ações, por aqueles que operam a navegação dos mesmos, e a remuneração dos marinheiros de um navio para pesca de baleia depende em alto grau, quando não exclusivamente, do êxito da viagem. Todo capitão de navio que faz comércio no oceano Atlântico é um coproprietário, e o interesse que tem constitui forte estímulo ao trabalho e à economia; com isso o povo da Nova Inglaterra está eliminando da concorrência outras nações que comercializam naquela região. Onde quer que estejam estabelecidos, apresentam a mesma tendência à associação e à cooperação. Em Nova York, são os proprietários principais das linhas de vapores de carreira, estando a propriedade dividida em ações, possuídas pelos construtores dos navios, pelos comerciantes, pelo capitão e pelos ajudantes — sendo que estes últimos geralmente acabam por adquirir os recursos para se tornarem eles mesmos capitães, a que se deve seu grande sucesso. Esse sistema é o mais democrático que existe no mundo. Oferece a cada trabalhador, a cada marinheiro, a cada operário, homem ou mulher, a perspectiva de progredir; e seus resultados são exatamente aqueles que com razão esperaríamos. Em nenhum lugar do mundo há tanta certeza de serem generosamente recompensados o talento, a iniciativa e a prudência”. Os casos de insolvência e de fraude da parte das sociedades anônimas na América, que geraram tanto prejuízo e tanto escândalo na Europa, não ocorreram nos Estados da União aos quais se refere o extrato supra, mas em outros Estados, onde o direito à associação de capital é muito mais entravado por restrições legais, e nos quais, portanto, as associações em forma de sociedades por ações não são comparáveis, em número e variedade, àquelas da Nova Inglaterra. O sr. Carey acrescenta: “Penso que um exame atento dos sistemas de vários Estados dificilmente deixará de convencer o leitor da vantagem resultante de se permitir às pessoas determinarem elas mesmas as condições em que se associarão, e de se permitir às associações que vierem a ser constituídas combinarem com o público as condições nas quais comercializarão, seja com responsabilidade limitada dos sócios, seja com responsabilidade ilimitada”. Este princípio foi adotado como fundamento de toda a legislação inglesa recente sobre a matéria. § 8. Passo agora a falar sobre as leis relativas à insolvência. Quanto a esse item, é de importância que as leis sejam boas, primeiro e primordialmente, em salvaguarda da moralidade pública; esta em nenhum ponto é mais afetada pela lei — tanto para o bem como para o mal — do que em matéria tão eminentemente pertencente ao âmbito da lei relativa à preservação da integridade pecuniária. Entretanto, a boa qualidade das leis nessa matéria é também de grande importância a partir de um enfoque simplesmente econômico. Primeiro, porque o bem-estar econômico de um povo, e da humanidade, depende de modo especial da capacidade de fidelidade mútua nos compromissos. Em segundo lugar, porque um dos riscos, ou gastos, das operações industriais é o risco ou a despesa das dívidas insolvíveis e toda economia que se puder fazer nesse item representa uma redução do custo de produção, por se dispensar um item de despesa que de forma alguma conduz ao objetivo desejado, e que tem de ser pago pelo consumidor da mercadoria ou com os lucros gerais do capital, conforme o ônus for específico à mercadoria em pauta ou for geral. As leis e a prática das nações nessa matéria quase sempre têm sido extremadas. As leis antigas da maioria dos países se distinguiam pela severidade em relação ao devedor. Davam ao credor direito à coerção, mais ou menos tirânico, que podia usar contra o seu devedor insolvente, seja para extorquir-lhe a entrega de propriedade escondida, seja para conseguir tirar dele uma satisfação de tipo vindicativo, que pudesse consolá-lo pelo não pagamento da dívida. Em alguns países, esse direito arbitrário ia até ao ponto de obrigar o devedor insolvente a se transformar em escravo do credor — sistema este, aliás, em que havia pelo menos algo de bom senso, pois possivelmente poderia ser considerado como um sistema para fazer o devedor pagar com seu trabalho o que devia ao credor. Na Inglaterra, a coerção assumiu a modalidade mais suave da prisão normal. Tanto uma medida como a outra eram recursos primitivos de uma época inculta, repugnando ambas à justiça e ao senso de humanidade. Infelizmente, a reformulação dessas medidas, como a do direito criminal em geral, foi efetuada com base nos princípios do senso de humanidade, e não com base nos princípios da justiça; assim é que o senso de humanidade atualmente em voga, que é essencialmente uma questão de ideia unilateral, desembocou, nesse caso como em outros, em uma reação violenta contra o rigor antigo, podendo-se supor que o fato de ter perdido ou dilapidado a propriedade alheia é visto como um título ou direito especial à indulgência. Foi sendo gradualmente abrandado, ou totalmente abolido, tudo aquilo que na lei impunha penalidades de consequências desagradáveis aos que transgridem neste ponto — até que o efeito desmoralizante desse abrandamento se tornou tão evidente, que determinou, na legislação mais recente, um movimento salutar, ainda que insuficiente, na direção oposta. A indulgência das leis para aqueles que se tornaram incapazes de pagar suas dívidas justas costuma ser defendida com a alegação de que o único objetivo da lei deve consistir, no caso de insolvência, não em coagir a pessoa do devedor, mas em apossar-se de sua propriedade e distribuí-la com justiça entre os credores. Na suposição de este ser, e dever ser, o único objetivo, a mitigação da lei foi de início tão longe, que acabou sacrificando esse objetivo. A prisão a critério de um credor era realmente um meio poderoso para tirar do devedor qualquer propriedade que tivesse escondido ou tivesse feito desaparecer de qualquer outra forma; cabe ainda à experiência mostrar se, tirando esse direito dos credores, a lei, mesmo na forma recentemente corrigida, lhes deu algum outro meio equivalente de salvaguardar seus direitos. Entretanto, a doutrina de que a lei fez tudo o que dela se deve esperar, uma vez que passou aos credores a propriedade de um devedor insolvente é em si mesma um item totalmente inadmissível de um humanismo espúrio. É obrigação da lei impedir que se cometa o mal, e não apenas consertar as consequências do mal, uma vez cometido. A lei deve cuidar que a insolvência não seja uma boa especulação pecuniária, que as pessoas não tenham o privilégio de pôr em risco a propriedade de outros sem o conhecimento e o consentimento destes, apossando-se dos lucros da empresa, se esta tiver sucesso, e se ela fracassar, descarregando o prejuízo sobre os donos legítimos, e que não é justo tais devedores se colocarem em uma situação de incapacidade de pagar suas dívidas justas, gastando o dinheiro dos seus credores em comodidades pessoais. Admite-se que é justo sujeitar à punição aquilo que tecnicamente se denomina falência fraudulenta, isto é, a alegação falsa da incapacidade de pagar, uma vez descoberta. Entretanto, será que, do fato de poder ser verdadeira a incapacidade de pagar, porventura segue que a insolvência não é a consequência de administração abusiva? Será que, pelo fato de o mal já estar consumado e o dinheiro ter desaparecido, e se o devedor foi um perdulário, ou um aventureiro, possuidor de propriedade sobre a qual seus credores tinham direito prioritário, tal devedor deve ser declarado são e salvo? Há porventura alguma diferença substancial, em termos de moralidade, entre esse tipo de conduta e aqueles tipos de desonestidade que se conhecem sob o nome de fraude e apropriação indébita? Tais casos não representam uma minoria entre as insolvências, mas grande maioria. As estatísticas referentes à falência demonstram esse fato. “A grande maioria de todas as insolvências provém de má administração notória: demonstram-no os processos do Tribunal de Devedores Insolventes e do Tribunal de Falências. Compra excessiva e injustificável de mercadorias, ou especulação altamente absurda com mercadorias, apenas porque o infeliz especulador ‘pensava que o preço subiria’, mas sem que o respectivo seja capaz de dizer por que motivo imaginou isso. Entre as causas mais ingênuas de falência figuram estas: especulação com lúpulo, chá, seda, trigo — coisas com as quais o especulador não está absolutamente familiarizado; além disso, investimentos ingênuos e absurdos em fundos estrangeiros, ou em capitais conjuntos.” (De um volume publicado em 1845, intitulado Credit the Life of Commerce, de J. H. Elliott). O autor experiente e inteligente que acabo de citar corrobora sua afirmação com o testemunho de vários síndicos oficiais de massa falida do Tribunal de Falências. Um deles afirma: “A julgar pela contabilidade e pelos documentos fornecidos pelas vítimas de falência, parece-me que”, na totalidade dos casos que ocorreram durante determinado período, no Tribunal ao qual ele estava adscrito, “catorze se arruinaram por especulações com coisas com as quais não estavam familiarizados; três, por negligenciarem a contabilidade; dez, por comercializarem além de seu capital e recursos, com a consequente perda e despesa com letras de favor; 49 se arruinaram por gastarem mais do que lhes permitia uma expectativa razoável de seus lucros, mesmo que seu negócio lhes assegurasse retorno razoável; nenhuma das falências ocorreu em virtude de alguma calamidade generalizada, ou em virtude da decadência de algum setor comercial específico”. Outro desses síndicos diz que, durante um período de dezoito meses, “me foram confiados 52 casos de falências. É minha convicção de que 32 destes se deveram a gastos imprudentes, e cinco, em parte por essa razão, e em parte devido a uma pressão sobre a atividade na qual trabalhavam os falidos. Quinze deles, atribuo-os a especulações imprudentes, em muitos casos associadas ao fato de a pessoa levar um padrão de vida muito acima do que lhe competia”. A essas citações, o autor acrescenta as seguintes afirmações, baseadas em dados de seu conhecimento pessoal: “Muitas insolvências são geradas pela negligência dos comerciantes; não mantêm contabilidade, ou mantêm uma contabilidade imperfeita, e nunca fazem balanço; nunca faz inventário; se a sua atividade é grande, utilizam o serviço de empregados, mas são negligentes até para supervisioná-los, e aí se tornam insolventes. Não é exagero afirmar que metade de todas as pessoas que fazem comércio, mesmo em Londres, nunca fazem sequer inventário; passam um ano após outro sem saberem como andam seus negócios, e ao final, como uma criança de escola, constatam com surpresa que o que têm no bolso não passa de meio pêni. Arrisco-me a dizer que nem sequer 1/4 de todas as pessoas das províncias, sejam manufatores, comerciantes ou exploradores de terra, nunca fazem inventário; na realidade, nem a metade deles jamais mantém escrituração contábil que mereça outro nome senão agendas simples. Conheço suficientemente as firmas de quinhentos pequenos comerciantes nas províncias, para poder dizer que nem sequer 1/5 deles jamais faz inventário ou mantém sequer os registros contábeis mais comuns. Quanto a esses comerciantes, tenho condições de dizer, com base em tabelas cuidadosamente preparadas — dando toda vantagem quando houve alguma dúvida quanto às causas de sua insolvência — que, onde nove das falências ocorrem em virtude de extravagâncias ou desonestidade, no máximo uma pode advir exclusivamente da má sorte”. É porventura razoável esperar das classes comerciais algum alto senso de justiça, de honra ou de integridade, se a lei possibilita a pessoas que agem dessa forma descarregarem as consequências de sua má conduta ou administração sobre aqueles que tiveram a grande infelicidade de confiar neles, e se na prática a lei proclama que considera a insolvência assim gerada como “má sorte”, e não como infração? Naturalmente, não se nega que haja insolvências que ocorrem por motivos que escapam ao controle do devedor, e que em casos muito mais numerosos a culpabilidade deste não é grande; a lei deve fazer distinção em favor de tais casos, mas não sem investigação exaustiva; tampouco se deveria jamais encerrar o caso sem haver-se constatado, da maneira mais completa possível, não somente o próprio fato da insolvência, mas também a causa dela. O fato de alguém haver recebido em confiança dinheiro ou coisa que vale dinheiro, e tê-lo perdido ou gasto, é a priori prova de algo errado, e não cabe ao credor provar — o que não tem condições de fazer em um único caso, dentre dez — que houve crime, mas cabe ao devedor refutar a presunção, apresentando o demonstrativo completo das suas operações e mostrando que não houve má administração, ou que esta foi de natureza escusável. Se o devedor deixar de fazer isso, nunca deve-se liberá-lo sem uma punição proporcional ao grau de culpa que parece justo dever-se-lhe imputar. Essa punição, porém, deve ser abreviada ou mitigada, na proporção em que ele demonstrar a probabilidade de empenhar-se em reparar a injustiça cometida. Os que aprovam um sistema suave de leis sobre a insolvência costumam argumentar que o crédito é um mal, excetuadas as grandes operações comerciais — e que privar os credores de ressarcimento legal é um meio acertado para impedir a concessão de crédito. Sem dúvida, o crédito que comerciantes varejistas concedem a consumidores improdutivos é um mal considerável, no correspondente montante excessivo em que for dado. Mas isso só é verdade em relação a créditos grandes, especialmente se dados para prazo longo, pois há crédito sempre que as mercadorias são pagas somente ao deixarem a loja ou, ao menos, a guarda do vendedor, e seria muito inconveniente pôr fim a esse tipo de crédito. Mas grande parte das dívidas sobre as quais têm efeito as leis concernentes à insolvência são as dos pequenos comerciantes em relação aos distribuidores que os abastecem, e sobre nenhum tipo de dívida a desmoralização ocasionada por uma legislação má tem efeitos mais perniciosos. Estes são créditos comerciais que ninguém deseja ver reduzidos; sua existência é de grande importância para a atividade geral do país, e para muitas pessoas honestas e bem-comportadas dotadas de poucos recursos, para as quais seria grande injustiça impedi-las de conseguir o crédito de que necessitam e não abusariam, devido à omissão da lei em prover remédios justos contra tomadores desonestos ou descuidados. Entretanto, ainda que fosse certo que são um mal as transações no varejo com base não no pagamento à vista, e se admitisse que a supressão total de transações a crédito seria boa meta a ser colimada pela legislação, dificilmente se conseguiria inventar um modo pior de atingir esse objetivo, do que permitindo àqueles em que outros depositaram confiança enganá-los e roubá-los sem impunidade. A lei geralmente não escolhe os vícios da humanidade como instrumento apropriado para inflingir castigo a pessoas relativamente ingênuas. Quando ela procura desencorajar algum tipo de ação, fá-lo aplicando estímulos próprios, e não proscrevendo os que agem da maneira que ela considera condenável, e deixando soltos os instintos predatórios da porção má da humanidade para alimentar-se deles. Se uma pessoa cometeu homicídio, a lei a condena à morte, mas não promete imunidade a quem quer que eventualmente o mate para lhe roubar o dinheiro. A infração de acreditar na palavra de outrem, mesmo precipitadamente, não é tão odiosa que, para desestimulá-la, se deva introduzir em cada casa o espetáculo da velhacaria triunfante, amparada pela lei, zombando das vítimas dela. Tem-se exibido amplamente esse exemplo pestilencial, desde o abrandamento das leis sobre a insolvência. É inútil esperar que, mesmo privando totalmente os credores de todo ressarcimento legal se restringiria realmente muito o tipo de crédito que se considera censurável. Os velhacos e trapaceiros ainda são exceção entre os homens, e as pessoas continuarão a confiar umas nas promessas das outras. Grandes distribuidores, com grande volume de negócios, recusariam crédito, como já fazem muitos deles; entretanto, na ávida concorrência de uma cidade grande, ou na posição de dependência em que se encontra um lojista de aldeia, que se pode esperar de um comerciante para o qual cada cliente é de importância, talvez o iniciante que esteja tentando montar seu negócio? Ele assumirá o risco, mesmo que este fosse ainda maior; ele se arruína se não conseguir vender suas mercadorias, e só pode arruinar-se caso for fraudado. Tampouco resolve dizer que ele deve fazer as pesquisas apropriadas, e certificar-se do caráter confiável daqueles aos quais fornece mercadorias em confiança. Em alguns dos casos mais flagrantes de devedores dissolutos que têm comparecido perante o Tribunal de Falências, o trapaceiro foi capaz de apresentar — e apresentou efetivamente — excelentes referências. (Os extratos transcritos a seguir, do Code de Commerce francês (na tradução do sr. Fane), mostram até que ponto o Direito francês faz as distinções justas, bem como as sindicâncias que são feitas. Contudo, a palavra banqueroute, que só pode ser traduzida em inglês por “bankruptcy” (falência), na França se restringe à insolvência culpável, que se distingue em falência simples e em falência fraudulenta. Eis casos de falências simples: “Instaurar-se-á processo, na categoria de falência simples, contra todo insolvente que, na investigação feita acerca de suas operações, puder ser acusado de uma ou mais das seguintes infrações: “Se suas despesas de casa, que é obrigado a lançar regularmente em um diário, se demonstrarem excessivas; “Se tiver gasto quantias consideráveis no jogo, ou então em operações de puro azar; “Se for constatado que tomou grandes empréstimos, ou revendeu mercadorias com prejuízo, ou abaixo do preço corrente, depois de se comprovar, com base em seu último balanço, que suas dívidas superavam seu ativo pela metade; “Se emitiu títulos negociáveis até três vezes o montante de seu ativo disponível, segundo seu último balanço. “Pode-se instaurar processo também, na categoria de falidos simples, contra as pessoas que seguem: “Aquele que não declarou sua própria insolvência na forma prescrita pela lei; “Aquele que não se apresentou e se entregou no prazo delimitado se não tiver uma escusa legítima que justifique a não apresentação; “Aquele que não apresentar registros contábeis, ou apresentar contabilidade irregular, mesmo que as irregularidades não denotem fraude”. A pena para “falência simples” é prisão por um prazo não inferior a um mês e não superior a dois anos. Os que seguem são casos de falência fraudulenta, punida com trabalhos forçados durante certo tempo: “Se tiver tentado justificar sua propriedade com despesas e perdas fictícias, ou se não justificar plenamente todas as suas entradas; “Se houver ocultado fraudulentamente qualquer soma de dinheiro ou qualquer soma a ele devida, ou qualquer mercadoria ou outros bens móveis; “Se houver efetuado vendas ou doações fraudulentas de sua propriedade; “Se houver permitido comprovar dívidas fictícias contra a sua propriedade; “Se, tendo-se-lhe confiado propriedade, seja somente para conservá-la, seja com diretrizes especiais quanto à maneira de usá-la, se tiver apropriado dela para sua própria utilidade; “Se tiver comprado propriedade real em nome alheio; “Se tiver ocultado sua escrituração. “Pode-se também instaurar processo, de maneira similar, contra “Aquele que não tiver mantido escrituração contábil, ou cuja contabilidade não exibir sua situação real no tocante a suas dívidas e créditos; “Aquele que, tendo conseguido uma proteção (sauf-conduit), não tiver correspondido devidamente a ela” Estes diversos dispositivos referem-se apenas à insolvência comercial. As leis relativas a dívidas comuns são muito mais rigorosas para com o devedor. CAPÍTULO X Interferências Governamentais Baseadas em Teorias Errôneas § 1. Das funções necessárias do governo, e dos efeitos produzidos sobre os interesses econômicos da sociedade pelo bom ou mau desempenho das mesmas, passaremos às funções que se enquadram naquilo que, na falta de designação melhor, denominei funções opcionais — aquelas que às vezes são assumidas pelos governos e às vezes não, e em relação às quais não se admite com unanimidade que devam ser exercidas pelos governos. Antes de abordarmos os princípios gerais que regem a matéria, será aconselhável eliminar de nosso caminho todos aqueles casos em que a interferência governamental tem efeitos maus por basear-se em conceitos falsos a respeito da matéria em que se opera a interferência. Tais casos não têm conexão alguma com nenhuma teoria relativa aos limites adequados da interferência governamental. Há algumas coisas nas quais os governos não devem interferir, e outras em que devem, sendo que, porém, tal interferência, correta ou incorreta em si mesma, necessariamente tem efeitos maus, se o governo, por não entender a matéria em que entra, interfere para produzir um resultado que seria danoso. Começaremos, portanto, por passar em revista várias teorias falsas, que de tempos em tempos deram azo a atos governamentais mais ou menos nocivos, do ponto de vista econômico. Autores anteriores de Economia Política acharam necessário dedicar muito trabalho e espaço a este capítulo da matéria. Felizmente, hoje é possível, ao menos aqui na Inglaterra, abreviar muito essa parte puramente negativa de nossa exposição. As falsas teorias de Economia Política que fizeram tanto mal em tempos passados estão totalmente desacreditadas entre todos aqueles que não ficaram estagnados no progresso geral da opinião pública; por outro lado, poucas são as leis antigas baseadas nessas teorias que ainda ajudam a deformar a ordem jurídica. Uma vez que os princípios em que se baseia a condenação dessas teorias já foram amplamente apresentados em outras partes deste tratado, podemos aqui contentar-nos com algumas indicações breves. Dessas teorias falsas, a mais notável é a doutrina de proteção da atividade nacional — expressão que designa a proibição de importar mercadorias estrangeiras que podem ser produzidas no país, ou o desestímulo a tais importações, mediante duras taxas alfandegárias. Se a teoria envolvida nesse sistema fosse correta, as conclusões práticas nela baseadas não teriam sido irracionais. Segundo a teoria, comprar coisas produzidas no país representa um benefício para a nação, e a importação de mercadorias estrangeiras de modo geral é uma perda para a nação. Por ser ao mesmo tempo evidente que o interesse do consumidor é comprar mercadorias estrangeiras de preferência às produzidas no país, toda vez que forem mais baratas ou de melhor qualidade, parecia que o interesse do consumidor sob esse aspecto era contrário ao interesse do país; abandonado às suas inclinações, o consumidor com certeza faria aquilo que, segundo essa teoria, seria prejudicial para o país como tal. Todavia, em nossa análise sobre os efeitos do comércio internacional, mostramos — como havia sido muitas vezes demonstrado por autores anteriores — que a importação de produtos estrangeiros, no curso normal do comércio, só ocorre quando é um bem para a nação, do ponto de vista econômico, fazendo com que o mesmo montante de mercadorias seja obtido a um custo menor de trabalho e de capital para o país. Por isso, proibir essa importação, ou impor taxas que a impeçam, equivale a tornar a mão-de-obra e o capital do país menos eficientes na produção do que do contrário seriam, e a aceitar obrigatoriamente um desperdício da diferença entre o trabalho e o capital necessários para a produção da mercadoria no país e o montante de mão-de-obra e capital exigido para produzir as coisas com as quais a mercadoria pode ser comprada do exterior. O montante de prejuízo nacional assim gerado é medido pelo excedente do preço ao qual a mercadoria é produzida, em relação ao preço ao qual ela poderia ser importada. No caso de bens manufaturados, toda a diferença entre os dois preços é absorvida para indenizar os produtores pelo desperdício de mão-de-obra ou do capital que sustenta essa mão-de-obra. Os que supostamente são beneficiados, isto é, os fabricantes dos artigos protegidos pelas taxas de importação, não obtêm lucros maiores do que o de outras pessoas (a menos que constituam uma empresa exclusiva e tenham monopólio contra seus próprios patrícios e contra os produtores estrangeiros). Tudo acaba em puro prejuízo tanto para o país como para o consumidor. Quando o artigo protegido pela taxa de importação é um produto agrícola — pelo fato de o desperdício de mão-de-obra não ocorrer sobre a totalidade da produção, mas somente sobre aquilo que se pode chamar de última porção dela — o preço extra só em parte representa uma indenização pelo desperdício, já que o resto é uma taxa paga aos donos de terra como renda. A política restritiva e proibitiva fundamentava-se originalmente no que se chama Sistema Mercantil o qual, com base na crença de que a vantagem do comércio exterior consistia exclusivamente em trazer dinheiro para o país, estimulava artificialmente a exportação de mercadorias e desfavorecia sua importação. As únicas exceções ao sistema eram as exigidas pelo próprio sistema. As matérias-primas e os instrumentos de produção constituíam alvo de uma política oposta, a qual, porém, visava ao mesmo objetivo; havia para tais artigos liberdade de importação, não sendo permitido exportá-los, a fim de que os fabricantes, recebendo itens necessários para a manufatura a preço mais baixo, pudessem vender mais barato, e, portanto, exportar mais. Por motivo similar, a importação era permitida, e até favorecida, quando limitada aos produtos de países que supostamente comprassem do nosso país ainda mais do que nós comprássemos deles, enriquecendo-nos assim por meio de uma balança comercial favorável. Dentro do mesmo sistema, fundaram-se colônias em função da suposta vantagem de obrigá-las a comprar as nossas mercadorias, ou, em todo caso, a não comprar as de nenhum outro país, sendo que em troca dessa restrição o nosso país geralmente estava disposto a assumir uma obrigação equivalente com respeito aos produtos básicos dos colonizadores. As consequências dessa teoria foram levadas tão longe, que era frequente até conceder subsídios à exportação, e induzir outros países estrangeiros a comprar de nós, antes que de outros países, a um preço mais baixo produzido artificialmente por nós, que pagávamos parte do preço dessas mercadorias com os nossos próprios impostos. Isso é um exagero que vai além do ponto jamais atingido por qualquer comerciante privado na concorrência comercial. Acredito que nenhum lojista jamais adotou a prática de subornar clientes, vendendo-lhes mercadorias com prejuízo permanente, e cobrindo esse prejuízo com outros fundos de sua propriedade. O princípio da teoria mercantil está hoje abandonado, mesmo por autores e governos que ainda aderem ao sistema de restrições. Toda força que esse sistema tem sobre as pessoas, independentemente dos interesses privados, expostos a prejuízo real ou imaginário em decorrência do abandono dessa teoria, provém de falácias diferentes do velho conceito dos benefícios decorrentes de acumular dinheiro no país. A mais eficiente delas é a alegação capciosa de dar emprego aos nossos próprios patrícios e à nossa atividade nacional, em vez de alimentar e sustentar a atividade de países estrangeiros. A resposta a essa alegação, partindo dos princípios assentados em capítulos anteriores, é evidente. Sem voltarmos ao teorema fundamental exposto em uma passagem anterior deste tratado, sobre a natureza e as fontes de emprego para mão-de-obra, é suficiente dizer — o que têm costumado dizer os defensores do livre comércio — que a alternativa não é entre dar emprego à nossa própria população e dar emprego a estrangeiros, mas entre dar emprego a uma categoria ou outra da nossa própria população. A mercadoria importada sempre é paga, direta ou indiretamente, com os produtos de nosso próprio trabalho, sendo que essa atividade se torna ao mesmo tempo mais produtiva, pois, com o mesmo trabalho e gasto, podemos possuir nós mesmos uma quantidade maior do artigo em questão. Os que não examinaram bem o assunto estão propensos a supor que o fato de exportarmos um equivalente em nossos próprios produtos, em troca dos artigos estrangeiros que consumimos, depende de contingências — do consentimento de países estrangeiros em proceder a um abrandamento correspondente de suas próprias restrições, ou da questão de se aqueles de quem compramos são induzidos por essa circunstância a comprar mais de nós; tais pessoas são também propensas a crer que, se isso, ou algo semelhante a isso, não acontece, o pagamento tem de ser feito em dinheiro. Ora, primeiramente, o pagamento em dinheiro não é em nada mais censurável do que o pagamento com qualquer outra coisa, se pela situação do mercado a remessa de dinheiro constituir a solução mais vantajosa; além disso, o próprio dinheiro foi primeiro adquirido, e será novamente reposto, pela exportação de um valor equivalente de nossos próprios produtos. Em segundo lugar, um período muito breve de pagamento em dinheiro haveria de fazer os preços baixarem tanto que cessaria parte da importação ou surgiria uma demanda estrangeira de nossos produtos, suficiente para pagar as importações. Concedo que essa perturbação do equilíbrio da demanda internacional reverteria até certo ponto em desvantagem para nós, na compra de outros artigos importados, e que um país que proíbe a importação de algumas mercadorias estrangeiras compra, coeteris paribus, aquelas que produz a um preço inferior àquele que do contrário teria que pagar. Formulando a mesma coisa em outros termos: um país que destrói totalmente certos setores do comércio exterior, aniquilando com isso um ganho geral para o mundo que seria partilhado em alguma proporção entre ele e outros países atrai para si em certas circunstâncias, à custa de outros países, uma parcela maior do que aquela que lhe caberia, do ganho decorrente da porção de seu comércio exterior que permite subsistir. Mesmo isso, porém, ele só pode conseguir se os países estrangeiros não mantiverem proibições ou restrições equivalentes contra as suas mercadorias. Em qualquer hipótese, não é necessário discutir muito sobre a justiça ou a conveniência de destruir um dentre dois ganhos, visando a apoderar-se de uma parcela maior do outro — pois também o ganho destruído é, em proporção com a magnitude das transações, o maior dos dois, pois é aquele que o capital supostamente procura de preferência, se não houver interferência artificial. Derrotada como teoria geral, a doutrina protecionista encontra apoio em alguns casos especiais, com base em considerações que, quando realmente corretas, envolvem interesses que superam a simples economia de trabalho: os interesses da subsistência e da defesa nacional. As discussões em torno das leis sobre o comércio de trigo familiarizaram a todos com a alegação de que não devemos depender de países estrangeiros quanto aos alimentos para a população; por outro lado, as leis sobre a navegação se basearam, na teoria e por profissão, na necessidade de manter uma “sementeira de marujos” para a esquadra. Quanto a esse último item, admito de imediato que o objetivo vale o sacrifício, e que um país exposto à invasão por mar, se de outra forma não conseguir ter navios e marinheiros próprios em quantidade suficiente para assegurar a operação de uma esquadra adequada, por ocasião de uma emergência, tem toda razão em adquirir tais meios, mesmo com um sacrifício econômico em termos de baixo preço de transporte. Quando se promulgaram as leis inglesas sobre a navegação, os holandeses, devido à sua perícia marítima e em razão da sua baixa taxa de juros no país, tinham condições de efetuar o transporte em favor de outras nações, incluindo a Inglaterra, a preços mais baixos do que o podiam fazer elas mesmas — o que colocou todos os outros países em posição de grande desvantagem relativa à obtenção de marujos experientes para seus navios de guerra. As leis de navegação, que sanaram essa falha, e ao mesmo tempo foram um golpe desfechado contra o poder marítimo de uma nação com a qual a Inglaterra na época mantinha frequentes hostilidades, representaram provavelmente medidas convenientes, do ponto de vista político, ainda que economicamente fossem desvantajosas. Hoje, porém, os navios e os marujos ingleses podem navegar a preço tão baixo quanto os de qualquer outro país, mantendo no mínimo uma concorrência de igual para igual com as outras nações marítimas, mesmo em seu próprio comércio. Os objetivos que uma vez podem ter justificado as leis de navegação não as exigem mais, e não constituiriam hoje razão alguma para manter essa exceção odiosa à regra geral do livre comércio. Quanto à subsistência, o argumento dos protecionistas foi respondido tantas vezes e com tanto brilhantismo que pouco precisamos ocupar-nos com ele neste contexto. O país que tem suprimento mais constante e mais abundante de alimentos é aquele que tira seu abastecimento da maior superfície de terra. É ridículo basear um sistema geral de política em um perigo tão improvável como o de estar em guerra com todas as nações do mundo ao mesmo tempo, ou então supor que, mesmo se inferior no mar, um país inteiro poderia ser bloqueado como uma cidade, ou que os produtores de alimentos em outros países não estariam tão preocupados em não perder um mercado vantajoso, quanto nós estaríamos preocupados em não ficarmos privados do trigo deles. Quanto ao item da subsistência. porém, há um ponto que merece consideração especial. Em casos de escassez efetiva ou temida, muitos países da Europa estão habituados a suspender a sua exportação de alimentos. Isso será ou não uma política sadia? Não pode haver dúvida de que, no atual estágio da moral internacional, não se pode censurar um povo — como não se pode censurar um indivíduo — por não passar fome ele mesmo para alimentar outros. Entretanto, se o fim visado pelas máximas da conduta internacional fosse o montante máximo de bem para a humanidade como um todo, tal avareza coletiva certamente seria condenada por ela. Suponhamos que, em circunstâncias normais, o comércio de alimentos fosse completamente livre, de sorte que o preço em um país não poderia habitualmente superar o vigente em qualquer outro, a não ser no montante equivalente ao custo de transporte, mais um lucro razoável para o importador. Seguiria como consequência uma escassez geral, que afetaria todos os países, mas em graus desiguais. Se o preço subisse em um país mais do que em outros, teríamos uma prova de que naquele país a escassez seria a mais rigorosa, e que, permitindo-se o livre envio de alimentos para lá, de qualquer outro país, esses alimentos seriam desviados do atendimento de uma necessidade menos urgente para atender a uma necessidade mais urgente. Quando, portanto, se levam em conta os interesses de todos os países, a livre exportação é desejável. Para o país exportador considerado em separado, isso pode, ao menos naquela ocasião específica, ser um inconveniente; todavia, levando-se em conta que o país que atualmente fornece será em alguma estação futura o que receberá, e aquele que é beneficiado pela liberdade de exportar, só posso pensar que se poderia tornar evidente, mesmo aos especuladores de alimentos, que em tais casos devem fazer a outros o que gostariam que se fizesse a eles. Em países em que a teoria protecionista está declinando, mas ainda não foi abandonada, como os Estados Unidos, assomou à ribalta uma doutrina que é uma espécie de compromisso entre o livre comércio e a restrição, isto é, que é inaceitável a proteção em função dela mesma, mas que não há nada de censurável em ter tanta proteção quanta puder incidentalmente advir de uma tarifa projetada exclusivamente para arrecadar receita. Mesmo na Inglaterra, por vezes se lamenta que não se manteve uma “taxa fixa razoável” para o trigo, em vista da receita que esta acarretaria. Entretanto, independentemente da falta de senso político inerente à imposição de taxas sobre artigos de primeira necessidade, essa doutrina deixa de levar em conta o fato de que a receita é recebida somente pela quantidade importada, enquanto a taxa é paga sobre a quantidade total consumida. Fazer a população pagar muito, para que o erário possa receber um pouco, não é uma forma boa de arrecadar uma receita. No caso de artigos manufaturados, a doutrina envolve uma incongruência palpável. O objetivo da taxa, como meio de arrecadar receita, não se compagina com o fato de ela oferecer alguma proteção, mesmo incidentalmente. Ela só pode funcionar como proteção na medida em que impedir a importação; e em qualquer grau em que impedir a importação, a taxa não proporciona receita. O único caso em que, com base em meros princípios de Economia Política, são defensáveis as taxas protecionistas, é quando são impostas em caráter temporário (sobretudo em um país jovem e que está crescendo), na esperança de nacionalizar uma indústria estrangeira, que é em si mesma perfeitamente adequada para as circunstâncias do país. A superioridade de um país sobre outro, em um ramo de produção, muitas vezes vem apenas do fato de ter começado antes. Pode ser que não haja nenhuma vantagem intrínseca de um lado, ou desvantagem do outro, mas apenas uma superioridade momentânea de habilidade e experiência adquiridas. Um país que ainda não adquiriu essa habilidade e essa experiência, pode sob outros aspectos ser mais adequado para essa produção do que aqueles que começaram antes no ramo; além disso, o sr. Rae tem razão em observar que nada tende mais a promover aperfeiçoamentos em qualquer setor de produção do que a sua tentativa em um novo conjunto de circunstâncias. Não se pode, porém, esperar que indivíduos, a seu próprio risco, ou melhor, com prejuízo certo, introduzam nova manufatura, e arquem com o ônus de mantê-la, até os produtores serem formados ao nível daqueles para os quais os processos são tradicionais. Uma taxa protecionista, prolongada por um período razoável, poderia às vezes ser a maneira menos inconveniente de a nação poder taxar-se a si mesma para apoiar tal experimento. Mas é essencial que a proteção se limite a casos em que há bons motivos de garantia de que a atividade que a taxa favorece tenha condições de dispensá-la, depois de algum tempo; além disso, nunca se deve permitir que os produtores internos esperem que a taxa protecionista seja mantida para eles além do período necessário para uma tentativa honesta daquilo que são capazes de realizar. O único autor, de alguma reputação como economista político, que atualmente adere à doutrina protecionista, o sr. H. C. Carey, baseia a sua defesa, do ponto de vista econômico, sobretudo em duas razões. Uma delas é a grande economia no custo de transporte, que decorre da produção de mercadorias no lugar em que elas devem ser consumidas, ou muito perto dele. Todo o custo de transporte, tanto para as mercadorias importadas quanto para as exportadas em troca destas, Carey considera como um ônus direto para os produtores, e não para os consumidores, como é obviamente o caso. Seja qual for o país que arque com esse ônus, sem dúvida o custo de transporte é um peso que recai sobre a atividade do mundo. Mas é manifesto (e uma das muitas coisas surpreendentes no livro do sr. Carey é que ele não vê isso) que só se arca com esse peso em vista de uma vantagem mais do que equivalente. Se a mercadoria for comprada em um país estrangeiro com produtos internos apesar do custo duplo de transporte, esse fato demonstra que, por mais pesado que seja esse ônus, a economia que ocorre no custo de produção supera esse custo, e a mão-de-obra do país é, no conjunto, mais bem remunerada do que se o artigo fosse produzido no próprio país. O custo de transporte é uma taxa natural de proteção que o livre comércio não tem condições de abolir, e se a América não ganhasse mais, comprando seus manufaturados com seu trigo e seu algodão, do que perde em custo de transporte, o capital empregado para produzir trigo e algodão em quantidades que aumentam a cada ano, para o mercado externo, seria aplicado às manufaturas. As vantagens naturais que acompanham um tipo de atividade na qual é menor o custo de transporte a pagar no máximo só podem ser uma justificativa para uma proteção temporária e aceita à guisa de tentativa. Pelo fato de as despesas de produção serem sempre as mais elevadas no início pode acontecer que a produção no próprio país, embora seja realmente a mais rentável, só o seja depois de certo período de prejuízo pecuniário, prejuízo este que não se deve esperar que especuladores privados incorram, para que os sucessores deles possam beneficiar-se com sua ruína. Eis por que admiti que, em um país jovem, pode ser às vezes economicamente defensável uma taxa protecionista temporária — sob condição, porém, que ela seja rigorosamente limitada em termos de tempo, e adotando-se medidas para que durante o último período de sua existência a taxa protecionista vá decrescendo gradualmente. Tal proteção temporária é da mesma natureza que uma patente, devendo ser regida por condições semelhantes. O outro argumento do sr. Carey em favor dos benefícios econômicos do Protecionismo só se aplica a países cujas exportações consistem em produtos agrícolas. Argumenta ele que, com um comércio desse gênero, o país efetivamente manda embora o seu solo, pois os consumidores estrangeiros não restituem ao solo do país os elementos fertilizantes que tiram dele, ao contrário do que fariam os consumidores internos. Esse argumento merece atenção, devido à verdade física na qual se fundamenta — uma verdade que só recentemente se chegou a compreender, mas que a partir de agora está destinada a ser um elemento permanente nas preocupações dos estadistas, como sempre deveria ter ocorrido nos destinos das nações. Para a questão do Protecionismo, porém, essa verdade é irrelevante. Que o imenso cultivo de matérias-primas na América, a serem consumidas na Europa, está progressivamente exaurindo o solo dos Estados do Leste, e mesmo dos Estados mais velhos do Oeste, e que ambos já são muito menos produtivos do que antes, eis uma verdade digna de crédito por si mesma, ainda que não houvesse nenhuma testemunha para esse fato. Mas o que já disse com respeito ao custo de transporte vale também quanto ao custo da adubação. O livre comércio não obriga a América a exportar trigo; ela deixaria de fazê-lo, se a exportação já não lhe acarretasse vantagem. Portanto, assim como a América não persistiria em exportar matérias-primas e em importar manufaturados a não ser enquanto a mão-de-obra que economizasse, fazendo isso, ultrapassasse o que lhe custaria o transporte, da mesma forma, quando fosse necessário para ela repor no solo os elementos de fertilidade que houvesse exportado, se a economia no custo de produção não fosse mais do que equivalente ao custo de transporte e ao de adubação juntos, ela importaria adubo; do contrário, cessaria a exportação de trigo. É evidente que uma dessas duas coisas já teria acontecido, se não existisse à disposição uma sucessão constante de solos novos, ainda não esgotados em sua fertilidade, e cujo cultivo permite ao país — inteligentemente ou não — adiar a questão do adubo. Tão logo deixar de ser melhor arrotear solos novos do que adubar solos velhos, a América se tornará um importador regular de adubos, ou então, sem recorrer a taxas protecionistas, passará a cultivar trigo somente para seu uso, bem como passará a manufaturar produtos para si mesma, e fará seu adubo no próprio país, como deseja o sr. Carey. (A isso o sr. Carey replicaria (na realidade já replicou antecipadamente) que, de todas as mercadorias, o adubo é a menos suscetível de ser transportada para pontos distantes. Isso é verdade quanto aos provenientes de esgoto e de estábulos, mas não é verdade com respeito aos ingredientes aos quais esses adubos devem a sua eficácia. Pelo contrário, esses ingredientes são sobretudo substâncias que contêm grande força fertilizante em volume reduzido — substâncias das quais o organismo humano necessita apenas uma quantidade pequena, e, portanto, são particularmente suscetíveis de serem importadas: os álcalis minerais e os fosfatos. Na realidade, o problema diz respeito sobretudo aos fosfatos, pois em se tratando dos álcalis o carbonato de sódio pode ser conseguido em toda parte, ao passo que o potássio, por ser um dos elementos constituintes do granito e das outras rochas feldspáticas, existe em muitos subsolos, sendo que sua decomposição progressiva renova o subsolo, e também uma grande quantidade é encontrada nos depósitos dos rios. Quanto aos fosfatos, na forma muito conveniente de ossos pulverizados, constituem um artigo normal de comércio, importado em grande escala pela Inglaterra; aliás, é certo que serão importados por qualquer país em que, dadas as condições da indústria, valha a pena pagar o preço). Por essas razões óbvias, considero os argumentos econômicos do sr. Carey em favor do Protecionismo como totalmente inválidos. Acontece que o aspecto econômico está longe de ser o ponto de vista mais forte nesse caso. Os protecionistas americanos muitas vezes raciocinam muito mal, porém é injustiça para com eles supor que sua fé no Protecionismo repouse apenas sobre um erro econômico. Muitos deles chegaram a essa convicção muito mais por considerações em prol dos interesses superiores da humanidade do que por motivos meramente econômicos. Eles, com o sr. Carey à testa, consideram como condição necessária para o aperfeiçoamento humano que haja abundância de cidades, que os homens se associem no trabalho, por meio do intercâmbio — com vizinhos próximos, dotados de objetivos, capacidades e cultura intelectual diferentes dos deles, intercâmbio esse que seja com povos próximos o suficiente para aguçar mutuamente o engenho e ampliar as ideias —, antes do que com povos que vivem no lado oposto do globo. Acreditam que uma nação em que todos estão ocupados com o mesmo ou quase com o mesmo objetivo — uma nação em que todos trabalham na agricultura não pode atingir alto estágio de civilização e cultura. Ora, essa afirmação fundamenta-se em uma boa base racional. Se essa dificuldade puder ser superada, os Estados Unidos, com suas instituições livres, sua escolaridade geral, e sua imprensa onipresente, são o povo indicado para fazer isso; mas continua a ser um problema saber se isso é possível ou não. Na medida, porém, em que se deve visar ao objetivo de impedir a dispersão excessiva da população, o sr. Wakefield assinalou um caminho melhor: modificar o método atual de vender as terras desocupadas, aumentando o preço, em vez de baixá-lo, ou, então, cedendo gratuitamente a terra, como se faz em grande escala desde a aprovação da Lei Sobre a Propriedade Fundiária. Para resolver o problema à maneira do sr. Carey, pelo Protecionismo, seria necessário que Ohio e Michigan fossem protegidos contra Massachusetts e contra a Inglaterra, pois as manufaturas da Nova Inglaterra, não mais do que aquelas da velha Inglaterra, realizam o desideratum dele, de levar uma população manufatureira às portas do fazendeiro do Oeste. Boston e Nova York não suprem melhor do que Manchester a falta de cidades locais para as campinas do Oeste, sendo igualmente difícil trazer de volta adubo de Boston ou de Nova York quanto de Manchester. Há ainda apenas uma parte do sistema protecionista que demanda análise: sua política em relação às colônias e domínios no exterior, de obrigá-los a comercializar exclusivamente com o país dominador. Um país que assegura dessa forma uma demanda exterior extra de suas mercadorias indiscutivelmente garante para si uma vantagem na distribuição dos ganhos gerais do mundo comercial. Contudo, uma vez que isso faz com que o trabalho e o capital da colônia sejam desviados de canais que comprovadamente são os mais produtivos — na medida em que são aqueles para os quais o trabalho e o capital tendem espontaneamente a fluir — há uma perda, no conjunto, para as forças produtivas do mundo, e a pátria-mãe não sai ganhando tanto quanto faz a colônia perder. Se, portanto, a pátria-mãe se recusa a reconhecer qualquer reciprocidade de obrigações, ela impõe de maneira indireta um tributo à colônia, tributo este que é muito mais opressivo e prejudicial do que o direto. Mas se, dentro de um espírito mais justo, a pátria-mãe se submete a restrições correspondentes em benefício da colônia, o resultado de toda a transação é ridículo: as duas partes perdem muito, para que a outra possa ganhar um pouco. § 2. Depois do sistema do Protecionismo entre as interferências danosas no curso espontâneo das transações industriais, podemos fixar-nos em algumas interferências nos contratos. Um dos exemplos é o das leis sobre a usura. Estas tiveram origem em um preconceito religioso contra o recebimento de juros sobre o dinheiro, o qual derivou daquela fonte fecunda em males, na Europa moderna, que é a tentativa de adaptar ao cristianismo doutrinas e preceitos decorrentes da lei judaica. Nas nações maometanas, é formalmente vedado receber juros, e a população se abstém rigorosamente disso; aliás, Sismondi apontou como uma das causas de inferioridade industrial das regiões católicas da Europa, em confronto com as protestantes, o fato de a Igreja Católica medieval ter aderido ao mesmo preconceito — preconceito este que subsiste em grau menor, porém real, em toda parte onde se reconhece a religião católica. Onde a lei ou os escrúpulos de consciência impedem emprestar dinheiro a juros, o capital pertencente a pessoas não engajadas no comércio está perdido para fins produtivos, ou só pode ser empregado produtivamente em circunstâncias pessoais peculiares, ou então por um subterfúgio. A indústria fica assim limitada ao capital dos empresários, e àquilo que estes podem tomar emprestado de pessoas não obrigadas às mesmas leis ou à mesma religião que eles. Em países muçulmanos, os banqueiros e os agentes financeiros são hindus, armênios ou judeus. Em países mais evoluídos, a legislação já não desestimula o recebimento de um equivalente por dinheiro emprestado; no entanto, ela em toda parte interferiu na livre ação do prestamista e do prestatário, fixando um limite legal para a taxa de juros, e determinando que fosse infração legal o recebimento de juros acima do máximo prescrito. Essa restrição, embora aprovada por Adam Smith foi condenada por todas as pessoas esclarecidas, desde o brilhante ataque que lhe foi desferido por Bentham em suas Cartas Sobre a Usura às quais ainda se pode fazer referência como sendo o melhor escrito que existe sobre a matéria. Os legisladores podem ser levados por dois motivos, ao promulgarem e manterem leis contra a usura: conceitos de política pública, ou preocupação com o interesse das partes contratantes — neste último caso, de apenas uma das partes, o tomador. Em termos de política, possivelmente o conceito básico é que o bem geral exige que os juros sejam baixos. No entanto, denota compreensão errônea das causas que influenciam as transações comerciais supor que a lei faça realmente baixar a taxa de juros, mais do que o faria o jogo espontâneo da oferta e da procura. Se a concorrência entre os tomadores, no caso de não haver interferência, fizesse a taxa de juros aumentar para 6%, isso provaria que a 5% a procura de empréstimos seria maior do que o capital em oferta no mercado. Se, nessas circunstâncias, a lei não permitir juros além de 5%, alguns prestamistas, não optando por desobedecer à lei, e não podendo empregar seu capital de outra forma, se contentarão com a taxa legal; mas outros, vendo que em um momento de procura urgente têm condições de ganhar, com seu capital, e com outros meios, mais do que a lei lhes permite ganhar emprestando-o a outros, não o emprestarão — e então, o capital destinado a empréstimos, que já é excessivamente reduzido em razão da demanda existente, diminuirá ainda mais. Dentre os tomadores não atendidos haverá muitos, em períodos desses, que precisam atender às suas necessidades de dinheiro a qualquer preço, e estes encontrarão prontamente um terceiro grupo de prestamistas, que não se negarão a associar-se a eles na violação da lei, seja recorrendo a transações indiretas que envolvem fraude, seja confiando na honradez do tomador. O gasto extra desse procedimento indireto, mais um equivalente pelo risco de não receber o pagamento e pelas possíveis penalidades legais, têm de ser pagos pelo tomador, além dos juros extras que dele exigiria a situação geral do mercado. Dessa maneira, as leis que se destinavam a fazer baixar o preço pago pelo tomador necessitado de dinheiro, acabam fazendo aumentar de muito esse preço. Essas leis têm também uma tendência diretamente desmoralizadora. Sabedores da dificuldade de detectar uma transação pecuniária ilegal entre duas pessoas, na qual não está envolvida nenhuma terceira pessoa, enquanto as duas partes envolvidas têm interesse em manter o segredo, os legisladores recorreram ao expediente de tentar o tomador para que ele seja o informante, fazendo com que a anulação da dívida fizesse parte da penalidade imposta à infração: remunerando assim as pessoas, primeiro, por conseguirem apossar-se da propriedade de outros mediante promessas falsas, e depois, não somente por recusarem pagamento, mas também por invocarem penas legais sobre aqueles que os haviam ajudado na sua necessidade. O senso moral da humanidade com muita razão infama aqueles que resistem e por outro lado reclamam justamente com base na usura, e ao mesmo tempo tolera tal alegação somente quando a ela se recorre como a melhor defesa disponível contra uma tentativa que realmente é considerada como fraude ou extorsão. Mas exatamente essa severidade da opinião pública torna tão difícil o cumprimento das leis, e faz com que seja tão rara a imposição das penalidades, que quando isso ocorre ela vitima apenas um indivíduo, não tendo nenhum efeito sobre a prática geral. Na medida em que o motivo para restringir a usura não se deve a uma política pública, mas à consideração pelo interesse do tomador de empréstimo, seria difícil apontar algum caso em que seja mais descabida essa piedade por parte do legislador. Deve-se presumir que uma pessoa de mente sadia — e na idade na qual as pessoas são legalmente capazes de conduzir seus próprios negócios — seja um defensor idôneo de seus interesses pecuniários. Se tal pessoa pode vender uma propriedade, ou perdoar uma dívida, ou dar toda a sua propriedade, sem controle por parte da lei, parece altamente supérfluo que o único negócio que ele não possa fazer sem a intervenção da lei deva ser tomar um empréstimo financeiro. A lei parece presumir que aquele que dá dinheiro emprestado, por lidar com pessoas necessitadas, pode tirar proveito das necessidades delas, e exigir condições limitadas apenas pelo seu próprio bel-prazer. Assim poderia ser, se os tomadores só tivessem acesso a um emprestador de dinheiro. Mas quando há a possibilidade de se recorrer à totalidade do capital em dinheiro de uma comunidade rica, nenhum tomador está colocado em posição de desvantagem no mercado, somente em decorrência do estado de necessidade em que se encontra. Se ele não tiver condições de tomar empréstimos à taxa de juros paga por outras pessoas, deve ser porque não tem condições de oferecer o mesmo grau de garantia, e nesse caso a concorrência limitará a procura extra a um equivalente justo pelo risco de se demonstrar a insolvência do tomador. Embora a lei deseje favorecer o tomador, nesse caso é sobretudo contra ele que a lei comete injustiça. Que injustiça maior do que o fato de uma pessoa que não tem condições de oferecer garantias totalmente seguras ser impedida de tomar empréstimos de pessoas que estão dispostas a emprestar-lhe dinheiro, não permitindo a estas receberem a taxa de juros que seria uma remuneração justa pelo risco que assumem? Devido à piedade equívoca da lei, tal tomador tem de ficar sem o dinheiro que talvez seja necessário para livrá-lo de perdas muito maiores, ou então é obrigado a recorrer a expedientes de tipo muito mais ruinoso, que a lei não teve possibilidade de proibir, ou eventualmente na realidade não proibiu. Adam Smith expressou precipitadamente a opinião de que há somente dois tipos de pessoas, os “pródigos e os especuladores”, que poderiam vir a precisar de dinheiro emprestado a uma taxa de juros superior à do mercado. Ele deveria ter incluído todas as pessoas que estão em dificuldades financeiras, por mais temporárias que estas sejam. Pode acontecer a qualquer pessoa de negócios ver-se privada dos recursos com os quais havia contado para cumprir algum compromisso, cujo não cumprimento em um dia fixado equivaleria à falência. Em períodos de dificuldade comercial, essa é a condição de muitas empresas comerciais prósperas, que concorrem pelo pequeno montante de capital disponível, que em um tempo de desconfiança geral os proprietários estão dispostos a emprestar. Na vigência das leis inglesas contra a usura, hoje felizmente abolidas, as restrições impostas por essas leis foram sentidas como um agravamento muito sério de cada crise comercial. Comerciantes que poderiam ter conseguido o empréstimo de que precisavam, a juros de 7 ou 8% para prazos curtos, eram obrigados a pagar 20 ou 30%, ou então recorrer a vendas forçadas de produtos, arcando com prejuízos ainda maiores. Tendo o Parlamento tomado conhecimento de tais males, chegou-se a esse tipo de compromisso, do qual a legislação inglesa oferece tantos exemplos, e que faz com que as nossas leis e a nossa política apresentem aquele acervo de incongruências que as caracteriza. Reformulou-se a lei da maneira como se conserta um sapato apertado: abre-se um buraco no sapato onde ele aperta mais, continuando a usar o sapato. Conservando o princípio errôneo como uma norma geral, o Parlamento permitiu uma exceção no caso em que o verdadeiro mal era mais flagrante. Deixou de abolir as leis sobre a usura, mas isentou delas as letras de câmbio com prazo de vencimento não superior a três meses. Alguns anos mais tarde, as leis foram abolidas com respeito a todos os outros contratos, mas continuaram em vigor para todos os contratos relacionados com a terra. Não havia razão alguma para fazer essa distinção extraordinária, mas a “mentalidade agrícola” era de opinião que subiriam ainda mais os juros sobre hipotecas, ainda que dificilmente jamais atingissem o ponto permitido; e se mantiveram as leis contra a usura para que os donos de terra pudessem — como imaginavam — tomar empréstimos abaixo da taxa de juros de mercado, da mesma forma como foram mantidas as leis de comercialização de trigo para que a mesma classe de pessoas pudesse vender trigo a preço superior à taxa de mercado. A modéstia dessa pretensão era digna da inteligência que poderia pensar que a meta colimada era de alguma forma facilitada pelo meio utilizado. Quanto aos “pródigos e especuladores” de que fala Adam Smith: nenhuma lei consegue impedir um pródigo de arruinar-se, a não ser impondo restrições efetivas a ele ou à sua propriedade, conforme a prática injustificável do Direito Romano e de alguns dos sistemas jurídicos do continente europeu, fundados no Direito Romano. O único efeito de leis antiusura para um pródigo é tornar mais ágil a ruína dele, levando-o a recorrer a uma classe de agentes financeiros que não merecem respeito, tornando as condições mais onerosas pelo risco extra criado pela lei. Quanto aos projectors (ou especuladores) — termo que é aplicado injustamente em sua acepção pejorativa, a toda pessoa que tem um projeto —, as leis antiusura podem colocar um veto à realização do empreendimento mais promissor, quando planejado — como geralmente ocorre — por uma pessoa que não possui capital adequado para conduzi-lo ao sucesso. Muitos dos maiores aperfeiçoamentos foram de início olhados de esguelha por capitalistas, e tiveram que esperar muito tempo, antes de encontrarem um capitalista suficientemente dotado de espírito de aventura para ser o pioneiro em uma caminhada nova; passaram muitos anos antes de Stephenson poder conseguir convencer até mesmo o público mercantil empreendedor de Liverpool e de Manchester da vantagem de substituir as rodovias com pedágio por ferrovias; projetos em que se gastaram muito trabalho e grandes somas, com pouco resultado visível (o período de sua evolução em que são mais frequentes as profecias sobre o seu fracasso), podem vir a ser suspensos indefinidamente, ou então apenas abandonados, perdendo-se por completo o que se gastou, se, ao se esgotarem os fundos iniciais, a lei não permitir levantar mais dinheiro, nas condições nas quais as pessoas estão dispostas a expor seu dinheiro às vicissitudes de um empreendimento que ainda não tem sucesso assegurado. § 3. Os empréstimos não são o único tipo de contrato em que os governos se têm considerado qualificados para regular as condições melhor do que as pessoas interessadas. Dificilmente há alguma mercadoria cujo preço, em algum lugar ou tempo, não tenham tentado fazer subir ou baixar mais do que teria ocorrido, se tal intervenção se efetivasse. O caso mais plausível de baratear artificialmente o preço de uma mercadoria é o dos alimentos. Em se tratando desse caso, não se pode negar que o objetivo visado é desejável. Entretanto, uma vez que o preço médio dos alimentos, como o de outras coisas, depende do custo da produção, adicionando-se o lucro usual, se o agricultor não esperar esse preço, ele, a menos que seja obrigado por lei, só produzirá a quantidade de que precisa para seu consumo, e portanto a lei, se estiver absolutamente decidida a baratear o preço dos alimentos, tem de substituir as motivações normais para cultivar por um sistema de penalidades. Se deixar de fazer isso não tem outro recurso senão taxar a nação inteira, dar um subsídio ou ágio ao produtor ou importador de trigo, proporcionando assim pão barato a todos, a à custa de todos — na realidade, um gesto de generosidade para com aqueles que não pagam impostos, às expensas daqueles que os pagam —, o que é uma das modalidades de uma prática essencialmente má, a de converter as classes trabalhadoras em classes não trabalhadoras, dando-lhes de presente o que necessitam para a subsistência. Mas o que os governos têm procurado reduzir não é tanto o preço geral ou médio dos alimentos, mas antes seu alto preço ocasional, em épocas de emergência. Em alguns casos, como por exemplo o famoso célebre “máximo” do Governo revolucionário de 1793, a regulamentação compulsória dos preços foi uma tentativa, por parte dos governantes, de neutralizar as consequências necessárias de suas próprias leis: espalhar uma abundância infinita do meio circulante com uma mão, e com a outra manter baixos os preços — coisa manifestamente impossível em qualquer regime, excetuado o de terror sem restrições. Em caso de escassez efetiva, os governos muitas vezes são obrigados — como ocorreu na emergência irlandesa de 1847 — a adotar alguma medida para fazer baixar o preço dos alimentos. Todavia, o preço de uma coisa não pode aumentar, por falta de oferta, além do que é suficiente para gerar uma redução correspondente do consumo; e se um governo impede que essa redução seja produzida por um aumento do preço, não resta nenhuma forma de conseguir isso a não ser apoderando-se de todo o estoque de alimentos, e distribuindo-o em rações, como em uma cidade sitiada. Na emergência de uma escassez real, nada pode proporcionar um alívio geral a não ser a determinação, por parte das classes mais ricas, de diminuírem seu próprio consumo. Se estas continuarem a comprar e a consumir sua quantidade usual de alimentos, e se limitarem a pagar em dinheiro, não ajudam em nada. O preço sobe forçosamente, até os concorrentes mais pobres não terem meios de concorrer, e a privação de alimentos recai exclusivamente sobre os indigentes, sendo as outras classes afetadas apenas pecuniariamente. Quando a oferta é insuficiente, alguém tem de consumir menos e se cada pessoa rica decidir não ser esse alguém, a única coisa que o governo faz, subsidiando seus concorrentes mais pobres, é forçar o preço a subir ainda mais, o que não tem outro efeito senão enriquecer os distribuidores de trigo — exatamente o inverso do que desejam aqueles que recomendam tais medidas. A única coisa que os governos podem fazer, nessas emergências, é aconselhar uma moderação generalizada no consumo, e proibir tipos de consumo que não sejam de importância primária. Em qualquer outro caso; cometem erro grosseiro. Em tais casos, os especuladores privados não arriscarão concorrer com o governo; e embora um governo possa fazer mais do que qualquer comerciante individual, não pode nem de longe fazer tanto quanto todos os comerciantes juntos. § 4. No entanto, os governos são com mais frequência responsáveis por terem tentado — e com sucesso excessivo — fazer o preço das coisas subir, do que por terem procurado, com meios errados, fazer o preço baixar. O meio usual para fazer o preço subir artificialmente é o monopólio. Dar um monopólio a um produtor ou distribuidor, ou a um grupo de produtores ou distribuidores não demasiado numeroso para seus membros se associarem entre si, equivale a dar-lhes o poder de arrecadar qualquer montante de taxas da população, para seu benefício individual, o que, aliás não fará a população passar sem a mercadoria. Quando os detentores do monopólio são tão numerosos e estão a tal ponto espalhados, que não há possibilidade de se aliarem, o mal é bem menor; mas mesmo assim a concorrência não é tão ativa entre um número limitado quanto entre um número ilimitado. Os que se sentem seguros de boa participação nos ganhos médios em geral raramente desejam com avidez uma parcela maior, abrindo mão de parte de seus lucros. Uma limitação da concorrência, por mais parcial que seja, pode ter efeitos danosos, totalmente desproporcionais em relação à causa aparente. Sabe-se que, mesmo na Inglaterra, a simples exclusão de concorrentes estrangeiros de um setor de atividade aberto à livre concorrência de todo cidadão nativo fez com que esse setor ficasse alheio à regra geral da grande atividade industrial do país. A manufatura da seda na Inglaterra permaneceu muito aquém da de outros países da Europa, enquanto se proibiu a entrada de manufaturados de seda do exterior. Além da taxa arrecadada para pagar o lucro dos monopolizadores — real ou imaginário — o consumidor paga assim uma taxa adicional pela preguiça e incapacidade deles. Quando se liberam os produtores e distribuidores do estímulo imediato da concorrência, eles se tornam indiferentes aos ditames de seu interesse pecuniário final, preferindo aderir à rotina, em vez de abraçarem perspectivas mais promissoras. Um homem que já está em estado de prosperidade raramente abandona sua trilha para iniciar uma melhoria, ainda que lucrativa — a menos que seja levado pela motivação adicional do medo de que algum rival o suplante, tomando posse dela antes que ele o faça. A condenação dos monopólios não deve abranger as patentes, em virtude das quais se permite ao inventor de um processo melhor desfrutar, durante um período limitado, do privilégio exclusivo de usar sua própria invenção. Isso não significa encarecer a mercadoria em benefício dele, mas simplesmente adiar parte do maior barateamento que a população deve ao inventor, a fim de compensá-lo e remunerá-lo pelo serviço prestado à comunidade. Não se negará que ele deva ser compensado e remunerado por isso; tampouco se negará que, se a todos se permitisse de imediato tirar proveito do engenho dele, sem terem partilhado dos trabalhos ou das despesas que ele teve para concretizar na prática a sua ideia, ou tais despesas e trabalhos só seriam assumidos por pessoas muito opulentas e altamente dotadas de espírito público, ou então o Estado teria que cobrar um valor pelo serviço prestado por um inventor, e dar-lhe uma remuneração pecuniária. Isso tem sido feito em alguns casos, e pode ser feito sem inconveniente em casos de benefício público insigne; em geral, porém, é preferível um privilégio exclusivo, de duração temporária; isso porque assim não se deixa nada ao bel-prazer de ninguém; também porque a recompensa conferida pelo Estado depende de se constatar que a invenção se comprovou útil, e quanto maior a utilidade, tanto maior a recompensa — e também porque a invenção é paga exatamente pelas pessoas às quais o serviço é prestado, isto é, os consumidores da mercadoria. Essas considerações são tão decisivas que, se o sistema de patentes fosse substituído pelo de recompensas por parte do Estado, a melhor modalidade que estas poderiam assumir seria a de uma pequena taxa temporária, imposta em benefício do inventor, a todas as pessoas que fizessem uso da invenção. Em relação a esse sistema, porém, ou em relação a qualquer outro sistema que desse ao Estado o direito de decidir se um inventor deve auferir alguma vantagem pecuniária do benefício público que ela proporciona, as objeções são evidentemente mais fortes e mais fundamentais do que as objeções mais fortes que se possam aduzir contra as patentes. Admite-se geralmente que as atuais leis sobre patentes precisam melhorar muito; nesse caso, porém, como no caso bem análogo do direito autoral, a lei seria extremamente imoral se desse a todos a liberdade de utilizar o trabalho de uma pessoa sem o consentimento dela, e sem pagar-lhe o devido. Vi com verdadeiro alarme várias tentativas recentes, partindo de pessoas revestidas de certa autoridade, no sentido de impugnarem inteiramente o princípio das patentes; essas tentativas, se tivessem sucesso na prática, entronizariam o roubo livre sob a denominação prostituída de livre comércio, e transformariam as pessoas dotadas de inteligência — mais ainda do que acontece atualmente — em criados e dependentes necessitados das pessoas endinheiradas. § 5. Passo para outro tipo de interferência governamental, no qual tanto o objetivo como os meios usados são igualmente odiosos, mas que existiu na Inglaterra até nada menos de uma geração atrás, e na França até o ano de 1864. Refiro-me às leis contra a associação de trabalhadores para aumento de salário — leis promulgadas e mantidas com o propósito declarado de manter os salários baixos como foi aprovado, por um parlamento composto de empregadores, o célebre Estatuto dos Trabalhadores, para impedir a classe trabalhadora — quando o seu contingente havia sido dizimado por uma peste — de tirar vantagem da redução da concorrência para conseguir salários mais altos. Tais leis revelam o espírito infernal do patrão de escravos, quando não era mais possível manter as classes trabalhadoras confessadamente em estado de escravidão. Se fosse possível às classes trabalhadoras, mediante associação mútua, aumentar ou manter alta a taxa geral de salários, é supérfluo dizer que isso não seria uma coisa punível, mas uma coisa digna de elogio e de regozijo. Infelizmente, esse efeito está bem além do que se pode conseguir com esse meio. As multidões que compõem a classe trabalhadora são por demais numerosas, e muito espalhadas para poderem associar-se e muito mais para se associarem de maneira eficaz. Se pudessem fazer isso, sem dúvida poderiam conseguir diminuir as horas de trabalho e ganhar o mesmo salário trabalhando menos. Teriam também um poder limitado de conseguir, por meio da associação, um aumento dos salários em geral, à custa dos lucros. Mas os limites desse poder são restritos; e se tentassem ampliar tal poder além desses limites isso só se conseguiria mantendo permanentemente desempregada parte dos trabalhadores. Uma vez que a caridade pública naturalmente recusaria o sustento àqueles que poderiam conseguir trabalho e não o aceitassem, o ônus de sustentá-los seria descarregado sobre o sindicato ao qual pertencessem; por conseguinte, os trabalhadores, coletivamente, não ficariam em situação melhor do que antes, por terem que sustentar o mesmo número de companheiros com o mesmo montante global de salários. Dessa maneira, porém, a classe seria forçada a voltar sua atenção para o fato de um excesso de contingente, bem como para a necessidade, se tivessem salários altos, de empenhar-se para que a oferta de mão-de-obra fosse proporcional à procura. Associações para manter altos os salários por vezes são bem-sucedidas em profissões em que os operários são pouco numerosos e estão reunidos em um número reduzido de centros locais. Pode-se duvidar de que jamais as associações tiveram o mínimo efeito sobre a remuneração permanente dos fiandeiros ou dos tecelões; afirma-se, todavia, que os oficiais fundidores de tipos de impressão, mediante uma associação íntima, têm condições de manter alta uma taxa salarial muito acima daquela que é comum em ocupações de dureza e habilidade iguais; pensa-se que até os alfaiates, uma classe muito mais numerosa, têm tido, até certo ponto, êxito semelhante. Um aumento de salários, assim limitado a ocupações específicas, não é pago à custa dos lucros (como acontece no caso de um aumento geral dos salários), senão que faz aumentar o valor e o preço do respectivo artigo, recaindo sobre o consumidor; o capitalista que produz a mercadoria só é prejudicado na medida em que o preço alto tender a restringir o mercado — e mesmo assim, a não ser que a redução do mercado ocorra em proporção maior do que o aumento do preço; com efeito, embora, com salários mais altos ele empregue, com determinado capital, menos trabalhadores e produza quantidade menor da mercadoria, não obstante isso, se conseguir vender a quantidade total, ainda que reduzida, a preço mais alto, seu lucro será tão grande como antes. Esse aumento parcial de salário, desde que não seja ganho à custa do restante dos trabalhadores, não deve ser considerado como um mal. Sem dúvida, quem tem de pagar esse aumento salarial é o consumidor; mas o barateamento das mercadorias só é desejável quando se dever ao fato de sua produção custar pouco trabalho, e não ao fato de a respectiva mão-de-obra ser mal remunerada. Certamente pode parecer à primeira vista, que os salários altos dos fundidores de tipos de impressão (para dar um exemplo) são obtidos às expensas gerais da classe trabalhadora. Essa remuneração alta faz com que essa ocupação passe a oferecer emprego a menos pessoas, ou então leva a investir mais capital nela, em prejuízo de outras profissões: no primeiro caso, despeja-se no mercado geral um contingente adicional de trabalhadores; no segundo, retira desse mercado parte da demanda; ora, os dois efeitos são prejudiciais para as classes trabalhadoras. Esse seria, sem dúvida, o resultado de uma associação bem-sucedida, em uma ocupação ou em ocupações específicas, durante algum tempo depois da constituição dela; mas quando a associação é coisa permanente, os princípios em que tantas vezes insistimos neste tratado mostram que ela não pode ter esse efeito. Os ganhos habituais das classes trabalhadoras em geral só podem ser afetados pelas exigências habituais da população trabalhadora; estas podem certamente mudar, mas, enquanto permanecerem inalteradas, os salários jamais caem permanentemente abaixo do padrão dessas exigências e não permanecem por muito tempo acima desse padrão. Se não tivesse havido associações em profissões específicas, e os salários dessas ocupações nunca tivessem sido mantidos acima do nível comum, não há razão para supor que o nível comum teria sido mais alto do que é hoje. Teria havido simplesmente um número maior de pessoas no global, e um número menor de exceções à baixa taxa normal de salários. Se, portanto, não se devesse esperar nenhuma melhoria nas circunstâncias gerais das classes trabalhadoras, o sucesso de parte delas, por menor que fosse, em manter seus salários acima da taxa de mercado mediante associação, seria apenas motivo de satisfação. Mas quando a elevação do caráter e da condição de toda a classe trabalhadora ao final se transformou em uma coisa não além do alcance do esforço racional, é tempo de as categorias de artífices qualificados mais bem remunerados procurarem sua própria vantagem em comum com seus colegas trabalhadores, e não os excluindo. Enquanto estes continuarem a colocar suas esperanças em se enclausurarem contra a concorrência e em protegerem seus próprios salários fechando a outros o acesso a suas profissões, não se pode esperar nada melhor deles do que aquela ausência total de metas grandiosas e generosas, aquela incúria quase aberta por todos os outros objetivos que não sejam salários altos e pouco trabalho para seu próprio grupo reduzido, que tão lamentavelmente se evidenciaram nos procedimentos e nos manifestos da “Amalgamated Society of Engineers” durante a contenda que tiveram com seus empregadores. O sucesso, mesmo que atingível, em cultivar uma classe protegida de trabalhadores, atualmente seria um obstáculo — e não uma ajuda — para se chegar à emancipação das classes trabalhadoras em geral. Entretanto, ainda que as associações com o intuito de manter altos salários raramente sejam eficazes, e quando o são, raramente sejam desejáveis, pelos motivos que assinalei, o direito de fazer essa tentativa não pode ser negado a nenhuma parcela da população trabalhadora, sem cometer grande injustiça, ou sem a probabilidade de fatalmente enganá-los em relação às circunstâncias que determinam sua condição. Enquanto as associações para aumento salarial eram proibidas por lei, os operários tinham a impressão de que a lei era a causa real dos salários baixos — e efetivamente não se pode negar que a lei tenha feito o máximo para isso. A experiência das greves foi a melhor mestra das classes trabalhadoras no tocante à relação entre salários e procura e oferta de mão-de-obra; e é da mais alta importância que esse curso de instrução não seja interrompido. É grande erro condenar, em si e de maneira absoluta, os sindicatos ou a ação coletiva das greves. Mesmo admitindo-se que uma greve inevitavelmente tem de fracassar toda vez que tenta elevar os salários acima da taxa de mercado que é fixada pela procura e pela oferta, a procura e a oferta não são fatores físicos, que garantam a um trabalhador determinado salário, sem a participação de sua própria vontade e de seus atos. A taxa salarial de mercado não é fixada para o trabalhador por algum instrumento automático, mas é o resultado de barganha entre seres humanos — daquilo que Adam Smith denomina “regateio do mercado”; e aqueles que não pechincham por muito tempo continuarão a pagar pelas suas compras, mesmo em um balcão, um preço superior ao preço de mercado. Mais ainda poderiam trabalhadores pobres, que têm de lidar com empregadores ricos, permanecer por muito tempo sem o salário justificado pela procura da respectiva mão-de-obra, se para usar uma expressão comum não “teimassem” por ele; ora, como podem eles brigar por condições melhores, se não se associarem? Que chance teria qualquer trabalhador que brigasse individualmente por um aumento salarial? Como poderia ele sequer saber se a situação do mercado comporta um aumento, a não ser consultando seus companheiros, o que naturalmente leva à ação em conjunto? Não hesito em afirmar que associações de trabalhadores, de natureza similar aos sindicatos, longe de serem um obstáculo para um mercado livre de mão-de-obra, constituem o instrumento necessário para tal mercado livre — o meio indispensável para possibilitar aos vendedores de mão-de-obra cuidarem devidamente de seus próprios interesses em um sistema de concorrência. Há outra consideração, de muita importância, para a qual chamou a atenção, pela primeira vez, o Prof. Fawcett, em um artigo publicado na Westminster Review. Com o tempo, a experiência permitiu às ocupações mais qualificadas medir de maneira razoavelmente correta as circunstâncias das quais depende o sucesso de uma greve para aumento salarial. Os trabalhadores estão hoje mais ou menos tão bem informados quanto o patrão, sobre a situação do mercado para as mercadorias dele: têm condições de calcular os ganhos e as despesas dele, sabem quando seu negócio é próspero ou não, e somente quando o negócio é próspero têm probabilidade de fazer greve por motivos salariais, e se for esse o caso, em geral os seus empregadores estão dispostos a conceder o aumento, pois sabem da prontidão deles em partir para a greve. Por conseguinte, a tendência desse estado de coisas é fazer com que um aumento salarial em alguma profissão específica normalmente seja consequência de um aumento dos lucros, o que, como observa o sr. Fawcett, é um início daquela participação regular dos trabalhadores nos lucros auferidos de seu trabalho; ora, pelas razões apresentadas em capítulo anterior, é por demais importante encorajar toda tendência nessa direção, pois sobretudo é nisso que temos de persistir, se quisermos chegar a algum aprimoramento radical das relações sociais e econômicas entre o trabalho e o capital. Por isso, as greves, e os sindicatos que tornam as greves possíveis, não são, por essas múltiplas razões, um componente nocivo do mecanismo atual da sociedade, mas, pelo contrário, um componente valioso do mesmo. Todavia, uma condição indispensável para se tolerar as associações de trabalhadores é que sejam voluntárias. Não há rigor, necessário para esse fim, que seja excessivo contra tentativas de forçar trabalhadores a se associarem a um sindicato, ou a participarem de uma greve sob ameaças ou violência. Em se tratando de simples coação moral mediante a livre expressão da opinião, a lei não deve interferir; cabe, no caso, a uma opinião mais esclarecida impedir tal tipo de coação, retificando os sentimentos morais das pessoas. Quando, porém, a associação, sendo voluntária, se propõe objetivos realmente contrários ao bem público, surgem outras questões. Aumento salarial e redução de horas de trabalho geralmente são objetivos sadios, ou, em todo caso, podem sê-lo; contudo, em muitos sindicatos, uma das regras é que não deve haver serviço pago por tarefa ou peça, ou nenhuma diferença salarial entre os trabalhadores mais qualificados e os menos qualificados, ou que nenhum membro deve ganhar mais do que certa quantia por semana, para que haja mais emprego para os restantes; aliás, a abolição do trabalho pago por peça ou tarefa, com modificação maior ou menor, ocupava lugar importante entre as exigências levantadas pela “Amalgamated Society”. Há associações que visam a objetivos perniciosos. O sucesso delas, mesmo quando apenas parcial, é um mal para a sociedade; e se tal sucesso fosse completo, seria um mal praticamente tão grande quanto quase todo mal decorrente de uma legislação economicamente má. Dificilmente se pode dizer algo pior quanto às piores leis sobre o trabalho e sua remuneração, se quisermos manter a liberdade pessoal do trabalhador, do que isto: elas colocam em pé de igualdade o trabalhador de iniciativa e o indolente, o qualificado e o incompetente; ora é a isso que tendem diretamente as normas desses sindicatos, na medida em que é em si mesmo possível. Desse fato, porém, não segue como consequência que a lei declare ilegal e punível a formação de tais associações. Independentes de todas as considerações de liberdade constitucional, os interesses mais elevados do gênero humano exigem imperiosamente que se dê a mais completa liberdade para fazer todas as experiências econômicas, desde que empreendidas voluntariamente, e que a força e a fraude sejam os únicos recursos proibidos às classes menos afortunadas da comunidade, na tentativa de se beneficiarem. (Todo aquele que desejar entender o problema dos sindicatos como é visto pela população trabalhadora deve familiarizar-se com um opúsculo publicado em 1860, sob o título de Trade Unions and Strikes, their Philosophy and Intention, de J. T. Dunning, secretário da London Consolidated Society of Bookbinders (Sindicato dos Encadernadores). Esse estudo competente expressa muitas opiniões com as quais só concordo em parte, e algumas com as quais não concordo em absoluto. Mas a obra encerra também muitos argumentos bons, além de uma exposição instrutiva das falácias comuns nos adversários. Os leitores pertencentes a outras classes verão com surpresa não somente quão grande é a parcela de verdade que os sindicatos têm a seu favor, mas também que até mesmo os seus erros são muito menos flagrantes e condenáveis, quando enfocados pelo prisma sob o qual é perfeitamente natural que os vejam as classes trabalhadoras). § 6. Entre as maneiras de exercício indevido do poder do governo que comentei neste capítulo incluí somente modalidades que se fundam em teorias que ainda circulam, em grau maior ou menor, nos países mais evoluídos. Não falei de algumas que geraram mal ainda maior em tempos não muito remotos, mas que hoje em geral foram abandonadas, ao menos em teoria — já que na prática ainda resta delas o suficiente para que continue a ser impossível catalogá-las como erros superados. Por exemplo, pode-se dizer que se abandonou totalmente, como tese geral, o conceito de que cabe ao governo escolher opiniões pelo povo, e que não deve permitir que se imprimam ou professem publicamente quaisquer doutrinas de política, moral, Direito ou religião, a não ser aquelas que o governo aprova. Compreende-se bem, hoje, que um regime desse tipo é fatal para toda prosperidade, mesmo do ponto de vista econômico; entende-se que a mente humana, quando é impedida de exercer livremente suas faculdades no tocante aos assuntos mais importantes, seja por medo da lei ou por medo da opinião pública, atinge um estado de torpor e imbecilidade geral, características estas que, quando alcançam determinado ponto, impedem o espírito humano de efetuar quaisquer avanços notáveis, até mesmo nas coisas comuns da vida; se estas características se intensificarem ainda mais, fazem com que o espírito humano chegue a perder gradualmente o que já havia conseguido. Não pode haver para isso um exemplo mais decisivo do que a Espanha e Portugal, durante dois séculos após a Reforma. O declínio desses países em grandeza nacional, e mesmo em civilização material, enquanto quase todas as outras nações europeias progrediam ininterruptamente, tem sido atribuído a várias causas, mas há uma que está à base de todas elas: a Santa Inquisição, e o sistema de escravidão mental de que a Inquisição é um símbolo. Entretanto, embora essas verdades sejam amplamente reconhecidas, e em todos os países livres se admita como axioma a liberdade de opinião e de discussão, essa liberalidade e tolerância aparentes estão ainda tão longe de terem conseguido a autoridade de um princípio, que o teorema está sempre pronto a ceder lugar ao medo ou ao horror em face de algum tipo específico de opinião. No decurso dos últimos quinze ou vinte anos, vários indivíduos foram presos por terem professado publicamente, às vezes de forma bem moderada, sua descrença na religião; e é provável que tanto a opinião pública quanto o governo, ao primeiro sinal de pânico que surgir no tocante ao chartismo ou ao comunismo, recorra a meios similares para impedir a propagação de doutrinas democráticas ou contrárias à propriedade particular. Em nosso país, porém as restrições efetivas à liberdade intelectual provêm muito menos da lei ou do Governo do que da intolerância do caráter nacional; tais restrições já não provêm sequer de uma fonte digna de respeito como o fanatismo, mas antes do hábito generalizado, tanto na mente quanto na conduta, de aderir ao costume como regra de vida, exigindo, com penalidades sociais, a observância de tal costume contra todas as pessoas que, sem terem quem lhes dê respaldo, reivindicam a sua autonomia individual de pensamento. CAPÍTULO XI Os Fundamentos e os Limites do Princípio do “Laisser-Faire” ou da Não-Interferência § 1. Chegamos agora à última parte de nossa empresa — à discussão, na medida em que é consentânea com este tratado (ou seja), na medida em que é um problema de princípio, e não de detalhe, sobre os limites das atribuições governamentais, a saber: a questão, a que itens pode ou deve estender-se a intervenção governamental nos assuntos da sociedade, para além daqueles que necessariamente entram na esfera de sua competência. Nenhum assunto tem sido mais intensamente debatido na época atual; todavia, o debate tem versado prevalentemente sobre certos pontos selecionados, com apenas incursões fugazes no restante da matéria. Sem dúvida, aqueles que discutiram alguma questão específica sobre a interferência governamental, tais como a condição da educação (religiosa ou secular), a regulamentação das horas de trabalho, um fundo público para os pobres etc., muitas vezes se detiveram longamente em argumentos gerais, ultrapassando de muito a aplicação especial feita por eles, e demonstraram uma tendência suficientemente forte a favor da não-interferência ou a favor da interferência, mas raramente declararam ou decidiram claramente até que ponto defenderiam qualquer um dos princípios. Os defensores da interferência têm-se contentado em afirmar um direito e dever geral, da parte do governo, de interferir, toda vez que tal intervenção seja útil; e quando os pertencentes à assim chamada escola do laisser-faire tentaram alguma delimitação da esfera de competência do governo, normalmente restringiram a intervenção do governo à proteção da pessoa e da propriedade contra a força e a fraude — definição à qual nem eles nem ninguém pode aderir deliberadamente, pois ela exclui, como demonstrei em capítulo anterior, alguns dos deveres governamentais mais indispensáveis e mais unanimemente reconhecidos. Sem pretender suprir totalmente essa lacuna de uma teoria geral, em uma questão que, como entendo, não comporta uma solução universal, procurarei oferecer uma pequena ajuda para a solução dessa categoria de problemas à medida que surgem, examinando, sob o ponto de vista mais geral sob a qual a matéria pode ser sufocada, quais são as vantagens da interferência governamental, e quais são os males ou inconvenientes que ela acarreta. Temos de começar distinguindo dois tipos de intervenção por parte do governo, os quais, ainda que possam referir-se ao mesmo assunto, diferem muito quanto à sua natureza e ao seus efeitos, e demandam, para serem justificados, motivos de grau de urgência muito diferente. A intervenção pode estender-se ao controle da livre ação dos indivíduos. O governo pode proibir a todas as pessoas de fazerem certas coisas, ou de fazê-las sem a autorização dele; ou então, pode prescrever-lhes que façam certas coisas, ou pode prescrever-lhes apenas determinada maneira de fazer coisas, que em si mesma deixa à opção dos indivíduos fazer ou deixar de fazer. Essa é a interferência autoritária do governo. Há outra espécie de intervenção, que não é autoritária, a saber, quando um governo, em vez de emitir uma ordem e de exigir seu cumprimento mediante penalidades, adota o expediente ao qual é tão raro os governos recorrerem, e do qual se poderia fazer um uso tão importante, o de assessorar e de publicar informações; ou então, quando, deixando aos indivíduos a liberdade de utilizar os seus próprios meios para conseguir algum objetivo de interesse geral, o governo, sem interferir, mas ao mesmo tempo não deixando o assunto inteiramente entregue aos cuidados deles, cria, a par das providências dos indivíduos, um órgão de estrutura própria para o mesmo fim. Assim, uma coisa é manter uma Igreja oficial, e outra é recusar tolerância e outras religiões, ou as pessoas que não professam religião alguma. Uma coisa é dar escolas ou colégios, e outra é exigir que ninguém trabalhe como instrutor da juventude sem um certificado do governo. Poderia haver um banco nacional, ou uma manufatura nacional, sem monopólio algum contra bancos ou manufaturas particulares. Pode haver um grupo de engenheiros do governo para fins civis, permanecendo cada um livre de abraçar a profissão de engenheiro civil. Pode haver hospitais públicos, sem restrição alguma para a prática da medicina ou da cirurgia por particulares. § 2. É evidente, mesmo à primeira vista, que a forma autoritária de intervenção governamental tem uma esfera muito mais limitada de ação legítima do que a não autoritária. Em todo caso, exige-se uma necessidade muito mais forte para justificá-la, e ao mesmo tempo existem amplos setores da vida humana dos quais essa forma deve ser excluída sem reservas e imperiosamente. Qualquer que seja a teoria que adotemos quanto ao fundamento da união social, e quaisquer que sejam as instituições políticas em que vivermos, existe em torno de cada ser humano individual um círculo que a nenhum governo — quer se trate do governo de uma pessoa ou do governo de alguns, ou do governo da comunidade — deve ser permitido ultrapassar; há uma parte da vida de cada pessoa que já chegou ao uso da razão dentro da qual a individualidade dessa pessoa deve reinar, sem ser controlada por algum outro indivíduo nem pelo público em geral. Que há, ou deve haver algum espaço, na existência humana, assim reservado e protegido contra a intromissão autoritária, eis uma coisa que não será contestada por ninguém que dispense a mínima consideração à liberdade ou à dignidade humana; o que resta determinar é onde se deve colocar o limite, ou seja, quão grande é o âmbito da vida humana que esse território reservado deve abarcar. Entendo que ele deve abranger toda aquela parte que diz respeito exclusivamente à vida, interna ou externa, do próprio indivíduo e não afeta os interesses de outros, ou só os afeta por meio da influência moral do exemplo. Com respeito ao domínio da consciência interna, dos pensamentos e sentimentos, e àquela parte da conduta externa que é exclusivamente pessoal não envolvendo consequências para outras pessoas — pelo menos nenhuma de tipo doloroso ou prejudicial —, sustento que é direito de todos — e em se de tratando das pessoas mais profundas e cultas, muitas vezes é um dever — afirmar e publicar com toda a força de que são capazes sua opinião sobre o que é bom ou mau, digno de admiração ou de censura, mas não obrigar outros a aceitarem tal opinião — quer a força de que se lance mão seja a coerção extralegal, quer seja ela exercida por meio da lei. Mesmo naqueles setores da conduta que afetam o interesse de outrem, o ônus de provar sempre cabe aos que defendem proibições legais. Não será uma infração meramente subentendida ou presumível por outros que justificará a interferência da lei na liberdade individual. Ser impedido de fazer o que se tem propensão a fazer ou de agir segundo o que é desejável no julgamento da própria pessoa, não somente é sempre penoso, mas sempre tende, na mesma medida, a fazer definhar o desenvolvimento de alguma parcela das faculdades corporais ou mentais, sejam elas sensitivas ou ativas, e a menos que a consciência do indivíduo concorde livremente com as restrições legais, tal interferência partilha da degradação da escravatura, em grau baixo ou elevado. Dificilmente algum grau de utilidade, abaixo da necessidade absoluta, justificará uma norma proibitiva, a menos que se consiga que a coisa seja aceita pela consciência coletiva, a menos que pessoas normalmente dotadas de boas intenções já acreditem ou possam ser induzidas a crer que a coisa proibida é uma coisa que não devem desejar fazer. Não ocorre o mesmo com interferências governamentais que não restringem a liberdade de ação individual. Quando um governo oferece meios para atingir determinado objetivo, deixando aos indivíduos liberdade para utilizarem meios diferentes que na opinião deles são preferíveis, não se infringe a liberdade, não existe nenhuma restrição penosa ou degradante. Nesse caso inexiste uma das objeções principais à interferência do governo. Há, porém, em quase todas as formas de ação governamental, uma coisa que é compulsória: a provisão de recursos pecuniários. Estes são tirados dos impostos; ou então, se os recursos existirem na forma de dotação derivante de propriedade do Estado, mesmo então geram uma tributação compulsória, cujo montante equivale ao que resultaria da venda ou dos rendimentos anuais da respectiva propriedade. (Os únicos casos em que a ação governamental não tem nada de compulsório são os raros casos em que, sem um monopólio artificial, o governo paga suas próprias despesas. Um caso desses é uma ponte construída com dinheiro público, na qual se recolhe pedágio suficiente para pagar não somente todas as despesas correntes, mas também os juros do investimento original. As ferrovias do governo na Bélgica e na Alemanha são outro exemplo. Outro seria o correio, caso se abolisse o monopólio no setor, e mesmo assim ele pagasse os seus gastos). E a objeção que necessariamente milita contra contribuições compulsórias é quase sempre altamente agravada pelas cautelas dispendiosas e pelas restrições onerosas que são indispensáveis para impedir a sonegação de uma taxa ou imposto compulsório. § 3. Uma segunda objeção de ordem geral à interferência do governo é que todo aumento das funções confiadas ao governo equivale a um aumento de seu poder, tanto na forma de autoridade, como — e ainda mais — na forma indireta de influência. A importância dessa consideração, em relação à liberdade política, em geral tem sido bem reconhecida, ao menos na Inglaterra; muitos, porém, nos últimos tempos, têm estado propensos a pensar que a limitação dos poderes do governo só é essencial quando o próprio governo está mal constituído — quando ele não representa o povo, mas é o órgão de expressão de uma classe, ou de uma coalizão de classes — e que a um governo de embasamento ou constituição suficientemente popular se pode confiar qualquer montante de poder sobre a nação, pois o poder de que desfruta esse governo não seria outra coisa senão o poder que uma nação tem sobre si mesma. Isso poderia ser verdade, se a nação, em tais casos, não significasse, na prática, uma simples maioria da nação, e se as minorias só fossem capazes de oprimir, mas não de serem oprimidas. No entanto, a experiência prova que os depositários do poder que são simples delegados do povo, isto é, de uma maioria, têm exatamente a mesma prontidão (quando pensam poder contar com o apoio popular) que quaisquer órgãos oligárquicos a assumir poder arbitrário e interferir indevidamente na liberdade da vida particular. O público, como coletividade, está extremamente propenso a impor não apenas seus pontos de vista, em geral estreitos, sobre seus interesses, mas também suas opiniões abstratas, e até mesmo os seus gostos, como leis que obrigam os indivíduos. Por outro lado, a civilização atual tende tão fortemente a fazer do poder de pessoas que agem em massa a única força substancial na sociedade, que nunca houve mais necessidade de cercar a independência individual de pensamento, expressão e comportamento, com as garantias mais poderosas, a fim de salvaguardar aquela originalidade de espírito e aquela individualidade de caráter de são as únicas fontes de qualquer progresso real, bem como da maior parte das qualidades que tornam a espécie humana muito superior a qualquer rebanho de animais. Eis por que não é menos importante em um governo democrático do que em qualquer outro tipo de governo, que se encare com temor incessante toda tendência por parte das autoridades públicas, no sentido de ampliarem sua interferência, e de assumirem qualquer tipo de poder que se possa facilmente dispensar. Talvez isso seja até mais importante em uma democracia do que em qualquer outra forma de sociedade política, pois, onde a opinião pública é soberana, um indivíduo que é oprimido por esse tipo de soberano não encontra — ao contrário do que acontece na maior parte das outras situações — nenhum poder rival ao qual possa apelar para conseguir liberdade, ou em todo caso, solidariedade. § 4. Uma terceira objeção geral à ação governamental baseia-se no princípio da divisão de trabalho. Toda função adicional assumida pelo governo é uma nova ocupação imposta a um organismo já sobrecarregado de obrigações. Uma consequência natural disso é que a maior parte das coisas acaba sendo malfeita, e muitas nem sequer são feitas, porque o governo não é capaz de fazê-las sem demoras que são fatais para a finalidade visada; decorre daí também que as funções mais incômodas e menos vistosas, dentre aquelas que passam a ser assumidas pelo governo, são adiadas ou negligenciadas havendo sempre uma escusa para essa negligência enquanto as preocupações dos chefes da administração estão de tal modo voltadas para detalhes oficiais — por mais perfunctória que seja a supervisão que sobre eles exercem — que não têm tempo nem interesse a dedicar aos grandes interesses do Estado e à preparação de medidas de maior alcance para o aprimoramento social. Contudo, esses inconvenientes, se bem que reais e sérios, provém mais da má organização dos governos do que da amplitude e da variedade dos deveres por eles assumidos. Governo não é sinônimo de determinado funcionário, ou de um número definido de funcionários; pode haver praticamente qualquer montante de divisão de tarefas dentro do organismo administrativo como tal. O mal em pauta é sentido em grande escala em alguns dos governos vigentes na Europa continental, onde seis ou oito homens, vivendo na capital do país e conhecidos sob o nome de ministros, exigem que todos os assuntos públicos do país passem — ou tenham supostamente que passar — por eles individualmente. Esse inconveniente seria reduzido a uma proporção bem aceitável, em um país em que houvesse uma distribuição adequada de funções entre os funcionários do governo central e do governo local, e no qual a administração central estivesse dividida em um número suficiente de departamentos. Quando o Parlamento achou oportuno conferir ao governo uma autoridade de inspeção e em parte de controle sobre as ferrovias, não acrescentou a supervisão das ferrovias às funções do ministro do Interior, senão que criou um Conselho para as Ferrovias. Quando determinou ter uma autoridade central de supervisão para a administração da ajuda aos indigentes, criou a Comissão para as leis de assistência aos pobres. Há poucos países em que os funcionários públicos desempenham maior número de funções do que em alguns Estados da União Americana, especialmente os da Nova Inglaterra: e, no entanto, é muito grande a divisão de tarefas nos negócios públicos; a maior parte desses funcionários nem sequer se reporta a algum superior comum, senão que desempenha suas funções livremente, havendo duas maneiras de averiguar o seu bom desempenho: por meio do voto dos seus concidadãos e por meio da responsabilidade civil e criminal que assumem perante os tribunais. Sem dúvida, é indispensável para um bom governo que os chefes da administração, sejam eles permanentes ou temporários, exerçam controle, ainda que genérico, sobre o conjunto de todos os negócios confiados, em qualquer grau que seja, à responsabilidade do poder central. Isso, porém, com uma boa organização interna do mecanismo administrativo, deixando aos subordinados — e, na medida do possível, aos subordinados locais — não somente a execução, mas em grande parte também o controle dos detalhes; além disso, exigindo deles contas, mais dos resultados de seus atos do que dos atos como tais, a não ser na medida em que estes cheguem ao julgamento dos tribunais; além disso, adotando as garantias mais eficazes para nomeação de pessoas honestas e capazes, abrindo ampla possibilidade de promoção dos graus inferiores da escala administrativa para os graus superiores, deixando ao funcionário, a cada passo, um campo mais amplo para decisões, de modo que, no grau máximo possível, em cada setor a deliberação possa concentrar-se nos grandes interesses coletivos do país. Se tudo isso fosse feito, provavelmente o governo não se sobrecarregaria com nenhum problema, que sob outros aspectos poderia ser enfrentado e resolvido por ele — ainda que a sobrecarga permanecesse como um acréscimo sério aos inconvenientes decorrentes do fato de o governo assumir algum problema que fosse inadequado. § 5. Todavia, embora uma organização melhor dos governos reduzisse de muito a força da objeção contra a simples multiplicação de suas funções, continuaria de pé que em todas as comunidades mais avançadas a maioria das coisas é menos bem-feita pela intervenção do governo do que o seria, se as executassem — ou fizessem executar — os indivíduos mais interessados no assunto, caso se lhes desse liberdade de ação. Os motivos dessa verdade estão expressos com bastante precisão no dito popular de que as pessoas entendem melhor de suas próprias coisas e de seus próprios interesses, e deles cuidam melhor, do que o faz o governo, ou se pode esperar que o faça. Essa máxima tem validade no âmbito da maior parte das coisas da vida, e onde quer que ela seja verdadeira, devemos condenar todo tipo de intervenção governamental que conflite com ela. Por exemplo, a inferioridade da ação governamental, em qualquer uma das operações comuns da indústria ou do comércio, está comprovada pelo fato de que dificilmente ela alguma vez é capaz de se manter, em regime de concorrência de igual para igual com a iniciativa individual, onde os indivíduos possuem o necessário grau de iniciativa empresarial e dispõem do necessário controle dos meios e recursos. Nem mesmo todas as facilidades de acesso a informações, de que goza um governo, nem mesmo todos os recursos que possui para remunerar bem, e portanto para contratar os melhores talentos disponíveis no mercado, representam um equivalente pela grande desvantagem que leva, a saber, a de ter menos interesse no resultado. Além disso, importa recordar que, mesmo se o governo fosse superior em inteligência e conhecimento a qualquer indivíduo da nação, considerado em separado, ele é necessariamente inferior à totalidade dos indivíduos da nação, considerados em conjunto. O governo não pode possuir em si mesmo, nem pode contratar para seu serviço, mais do que parte das aptidões e capacidades contidas no país e aplicáveis a qualquer finalidade determinada. Necessariamente há muitas pessoas de qualificação igual, para o trabalho, àquelas que o governo emprega, mesmo que este selecione seus recursos abstraindo de qualquer outra consideração que não seja a capacidade deles. Ora, é exatamente a essas pessoas que, nos casos que mais ocorrem, um sistema de iniciativa individual tende naturalmente a confiar o serviço, porque elas são capazes de executá-lo melhor, ou a preço mais baixo, que quaisquer outras pessoas. Na medida em que o caso é esse, é manifesto que o governo, ao excluir, ou até ao sobrepor-se à iniciativa individual, substitui um instrumento mais qualificado por um menos qualificado, ou, em todo caso, coloca sua própria maneira de executar o serviço em lugar de toda a multiplicidade de maneiras que seriam tentadas por uma série de pessoas igualmente qualificadas, visando à mesma meta — uma concorrência muito mais propícia para o avanço no caminho do aperfeiçoamento do que qualquer uniformidade de sistema. § 6. Reservei para o último lugar uma das razões mais fortes contra a ampliação da interferência governamental. Mesmo que o governo pudesse abarcar em si mesmo, em cada setor, toda a capacidade intelectual mais eminente e todo talento ativo da nação nem mesmo assim seria menos desejável deixar que grande parte dos negócios da sociedade seja conduzida pelas pessoas diretamente interessadas neles. A prática da vida constitui um componente essencial da formação prática de um povo; sem ela, o livro e a instrução escolar, ainda que sejam altamente necessários e salutares, não bastam para conduzir os negócios e para adaptar os meios aos fins. A instrução é apenas um dos desiderata do aperfeiçoamento mental; outro quase tão indispensável quanto esta, é um exercício vigoroso das energias vitais: o trabalho, o espírito inventivo, o discernimento e o autocontrole — e o estímulo natural para essas coisas são as dificuldades da vida. Essa doutrina não deve ser confundida com o otimismo complacente, que concebe os males da vida como coisas desejáveis por suscitarem qualidades aptas para combatê-los. Se têm algum valor as qualidades adequadas para combater as dificuldades, é somente porque estas últimas existem. Como seres práticos incumbe-nos a tarefa de eliminar da vida humana o máximo possível das dificuldades que ela apresenta, e não manter um estoque delas, da maneira como os caçadores preservam a caça, para se exercitarem na arte de caçar. Entretanto uma vez que só se pode reduzir a necessidade de talento ativo e de discernimento prático nas coisas da vida, não sendo possível eliminá-la — nem mesmo na hipótese mais favorável — é importante que esses dotes sejam cultivados não somente em alguns poucos escolhidos, mas em todos, e que esse cultivo seja mais variado e completo do que aquele que a maioria das pessoas seria capaz de encontrar na esfera restrita de seus interesses puramente individuais. Um povo no qual não há nenhum hábito de ação espontânea em prol de um interesse coletivo — que costuma esperar que o governo o comande ou o empurre em todos os assuntos que envolvem o interesse coletivo — um povo que espera que o governo faça por ele tudo, afora aquilo que é questão de simples hábito e rotina, tal povo só consegue desenvolver metade das suas faculdades; a educação desse povo é falha em um dos seus elementos mais importantes. O cultivo das faculdades ativas pelo exercício, difundido através da comunidade inteira, não é em si mesmo apenas uma das qualidades mais valiosas da nação; ele se torna mais necessário — e não menos necessário — quando um alto grau dessa cultura indispensável é sistematicamente mantido nos chefes e funcionários do Estado. Não pode haver uma combinação de circunstâncias mais perigosa para o bem-estar humano do que aquela em que a inteligência e o talento se mantêm em um padrão alto dentro de uma corporação que governa, ao passo que entre a população esses dotes definham e são desestimulados. Tal sistema, mais do que qualquer outro encarna o conceito do despotismo, colocando uma nova arma, a da superioridade intelectual, nas mãos daqueles que já detêm o poder legal. Ele se assemelha, tanto quanto o comporta a diferença orgânica existente entre seres humanos e outros animais, ao governo de ovelhas pelo seu pastor, mas sem algo que se assemelhe àquele interesse tão grande que o pastor tem pela prosperidade do rebanho. A garantia única que se tem contra a escravidão política é a vigilância que se mantém sobre os governantes, por meio da difusão da inteligência, da iniciativa e do espírito público entre os governados. A experiência demonstra como é extremamente difícil manter um padrão suficientemente elevado dessas qualidades — dificuldade esta que aumenta, à medida que o progresso da civilização e da segurança elimina, uns após os outros, as durezas, as dificuldades e os perigos contra os quais antigamente os indivíduos não tinham outro recurso senão a sua própria força, habilidade e coragem. É pois, de importância suprema que todas as classes da comunidade, até as mais baixas, tenham chance de fazer muito por iniciativa própria; que se exija de sua inteligência e de sua virtude tudo aquilo que são capazes de dar, sob todos os aspectos; que o governo não somente deixe, o quanto possível, que as próprias pessoas e classes, usando de suas faculdades administrem tudo aquilo que só a elas diz respeito, mas também que lhes permita, ou melhor, as estimule a administrar o máximo possível de suas tarefas conjuntas por cooperação voluntária — pois essa discussão e administração dos interesses coletivos é a grande escola daquele espírito público, e a grande fonte daquela inteligência das coisas públicas, que sempre são considerados como a característica que distingue o povo de países livres. Uma constituição democrática não estribada, em detalhe, em instituições democráticas mas limitada ao governo central, não somente não é liberdade política, mas muitas vezes cria exatamente o espírito oposto, contagiando os segmentos mais baixos da sociedade com o desejo e a ambição da dominação política. Em alguns países, o que o povo deseja é não ser tiranizado, mas em outros o que se deseja é que cada um tenha chance igual para tiranizar. Infelizmente, esse último desejo é tão natural à humanidade quanto o primeiro, e em muitas situações, mesmo de povos civilizados, encontra exemplos muito mais abundantes. Na medida em que o povo for habituado a resolver seus problemas com sua própria iniciativa, em vez de deixar a solução a cargo do governo, os seus desejos se voltarão para a rejeição da tirania, em vez de se voltarem para a prática de tiranizar; ao contrário, na proporção em que toda a iniciativa e a direção real residirem no governo, e os indivíduos habitualmente se sentem e agem como tutelados perpétuos do governo, as instituições populares não desenvolvem neles o desejo de liberdade, mas um apetite desmedido por posição e poder — desviando a inteligência e a iniciativa do país da sua atividade primordial para uma mísera concorrência pelas recompensas egoístas e pelas mesquinhas vaidades burocráticas. § 7. Expusemos acima as razões principais, de caráter geral, que militam no sentido de se restringir ao mínimo a intervenção da autoridade pública na vida da comunidade; e poucos contestarão que essas razões são mais do que suficientes para descarregar, em cada caso, o ônus de argumentar com vigor não sobre aqueles que resistem à interferência governamental, mas sobre aqueles que a enaltecem. Em suma, o laisser-faire deve ser a prática geral; qualquer desvio dessa prática é um mal certo, a menos que isso seja exigido em função de algum bem ingente. As épocas futuras provavelmente terão dificuldade em acreditar até que ponto essa máxima foi até hoje infringida pelos governos, mesmo nos casos nos quais ela é aplicável com mais evidência. Podemos formar uma ideia disso pela descrição que o sr. Dunoyer (De la Liberté du Travail) faz das restrições impostas às operações manufatureiras sob o antigo governo da França, pelo espírito da intromissão e de regulamentação das leis. “O Estado exercia sobre a atividade manufatureira a jurisdição mais ilimitada e arbitrária. Dispunha sem escrúpulos dos recursos dos manufatores; decidia a quem se devia permitir trabalhar, o que cada um podia fazer, que matérias-primas deviam ser utilizadas, que processos tinham que ser adotados, que conformação se devia dar aos produtos. Para fazer melhor não bastava fazer bem, era preciso fazer conforme as normas. Todos conhecem a lei de 1670, que prescrevia que se apreendessem e pregassem no pelourinho, juntamente com os nomes dos fabricantes, mercadorias não conformes às regras, e, repetindo-se uma segunda vez a infração, mandavam que também os manufatores fossem presos. Tinha-se que atender às prescrições da lei, e não ao gosto dos consumidores. Estavam encarregados da execução dessas leis legiões de inspetores, comissários, controladores, jurados e guardas. Quebravam-se máquinas, queimavam-se produtos, quando não eram conformes às regras; condenavam-se aperfeiçoamentos multavam-se inventores. Havia conjuntos de regras diferentes para mercadorias destinadas ao consumo interno e para as destinadas à exportação. Um artesão não podia escolher o lugar em que quisesse estabelecer-se, nem podia trabalhar em todas as estações, nem para todos os clientes. Existe um decreto, datado de 30 de março de 1700, que limita a dezoito cidades o número de localidades em que se podiam tecer meias. Um decreto de 18 de junho de 1723 impõe aos manufatores de Rouen suspender seus trabalhos de 1º de julho até 15 de setembro, a fim de facilitar a colheita. Luís XIV, quando pretendeu construir a colunata do Louvre, proibiu todas as pessoas privadas de empregarem trabalhadores sem sua permissão, sob uma multa de 10 mil libras francesas, e proibiu aos trabalhadores de trabalharem para pessoas privadas, sob pena de prisão para a primeira infração, e de trabalhos forçados para a segunda.” Que estes e outros regulamentos similares não eram letra morta e que a intromissão oficial e vexatória do Estado se prolongou até a Revolução Francesa, testemunha-o Roland, o ministro girondino: “Vi — diz ele — cortarem em pedaços e destruírem completamente oitenta, noventa, cem peças de fazenda, de algodão ou de lã. Testemunhei cenas semelhantes cada semana, durante anos. Vi confiscarem produtos manufaturados, vi aplicarem pesadas multas aos manufatores; algumas peças manufaturadas eram queimadas em lugares públicos, e nas horas de mercado; outras eram afixadas ao pelourinho, com o nome do manufator inscrito nelas, sendo que o próprio manufator era ameaçado com o pelourinho, em caso de segunda infração. Tudo isso acontecia sob as minhas vistas, em Rouen, em obediência a regulamentos ou ordens ministeriais vigentes. Qual era o crime que merecia uma punição tão cruel? Alguns defeitos nos materiais empregados, ou na estrutura do manufaturado, ou mesmo em alguns dos fios da medidura. “Com frequência vi manufatores serem visitados por um bando de subordinados que espalhavam a confusão entre todos, nos seus estabelecimentos, espalhavam terror entre suas famílias, arrancavam os tecidos dos caixilhos, arrancavam o tecido medido dos teares, e os levavam como provas da infração; os manufatores eram intimados e condenados, suas mercadorias eram confiscadas; cópias da sentença de confisco eram afixadas em cada logradouro público; a fortuna, a reputação, o crédito, perdia-se e destruía-se tudo. E em troca de que infração? Porque haviam feito de estambre uma espécie de tecido chamado shag, como aquele que os ingleses costumavam manufaturar, e até vender na França, enquanto as normas francesas estabeleciam que esse tipo de tecido fosse feito de mohair. Vi tratarem da mesma forma a outros manufatores, por terem feito chamalotes de uma largura específica, usada na Inglaterra e na Alemanha, que eram muito procurados na Espanha, Portugal e outros países, e em várias regiões da França, enquanto as normas francesas prescreviam outras larguras para chamalotes”. Foi-se o tempo em que se tentariam, mesmo no país menos evoluído da comunidade de nações da Europa, aplicações como essas do princípio do “governo paternal”. Em casos como os citados, têm validade todas as objeções gerais que militam contra a interferência governamental, e várias delas são válidas quase no grau máximo. Entretanto, precisamos agora passar para a segunda parte da nossa tarefa e voltar nossa atenção para casos em que estão totalmente ausentes algumas dessas objeções gerais, enquanto aquelas das quais nunca é possível livrar-se de todo são superadas por considerações contrárias, de importância ainda maior. Observamos que, como regra geral, as coisas na vida são mais bem-feitas quando se deixa liberdade de ação àqueles que têm um interesse imediato envolvido, sem controle por parte da lei ou da intromissão de algum funcionário público. As pessoas ou algumas das pessoas que executam o trabalho têm probabilidade de julgar melhor do que o governo, sobre a maneira ou os meios de se atingir o objetivo específico visado. Mesmo supondo — o que não é muito provável — que o governo conseguiu o melhor conhecimento que tivesse sido adquirido até determinado tempo pelas pessoas mais qualificadas na respectiva ocupação, mesmo então os indivíduos têm um interesse tão mais forte e mais direto no resultado, que há muito mais probabilidade de aperfeiçoar os meios, se isso se deixar à livre escolha deles. Mas, se é verdade que o trabalhador é geralmente quem melhores condições tem para escolher os meios, poder-se-á porventura afirmar, com a mesma universalidade, que o consumidor, ou a pessoa servida, é o juiz mais competente sobre o fim a atingir? Estará o comprador sempre qualificado para fazer um julgamento sobre a mercadoria? Se a resposta for negativa, se aplica ao caso a presunção a favor da concorrência do mercado; e caso se tratar de uma mercadoria cuja qualidade apresenta muito interesse para a sociedade, a balança das vantagens pode pender a favor de algum modo e grau de intervenção por parte dos representantes autorizados do interesse coletivo do Estado. § 8. Ora, a proposição de que o consumidor é um juiz competente sobre a mercadoria só pode ser admitida com numerosas reservas e exceções. Ele geralmente é o melhor árbitro (embora mesmo isto não seja verdade em todos os casos) sobre os objetos materiais produzidos para seu uso. Estes se destinam a atender a alguma necessidade física, ou a gratificar algum gosto ou inclinação, e com respeito a esses desejos ou inclinações o único juiz é a pessoa que os sente; ou então, esses objetos materiais são os meios e utensílios específicos de alguma ocupação, para uso das pessoas que a exercem, e nesse caso se pode presumir que tais pessoas são os árbitros a respeito das coisas necessárias em sua própria ocupação habitual. Há, porém, outras coisas cujo valor de maneira alguma pode ser testado pela demanda do mercado: coisas cuja utilidade não consiste em atender a inclinação, nem em servir aos usos diários da vida, e cuja falta é menos sentida exatamente onde a necessidade é maior. Isso é particularmente verdade quanto àquelas coisas que são úteis sobretudo como meios que tendem a melhorar o caráter dos seres humanos. As pessoas incultas não podem ser juízes competentes em questões relativas à sua cultura. Os que mais precisam crescer em sabedoria e melhorar moralmente via de regra são os que menos o desejam, e, se o desejassem, seriam incapazes de encontrar com suas próprias luzes o caminho para chegar a isso. Acontecerá continuamente, no sistema de iniciativa voluntária, que, pelo fato de o fim não ser desejado, não se criarão sequer os meios para atingi-lo, ou que, pelo fato de as pessoas que precisam de aperfeiçoamento terem uma concepção imperfeita ou totalmente errônea sobre aquilo de que necessitam, a oferta despertada pela demanda do mercado de maneira alguma será aquela de que realmente se precisa. Ora, qualquer governo bem-intencionado e razoavelmente civilizado pode pensar sem presunção, que possui ou deveria possuir um grau de conhecimento acima da média da comunidade que governa, e que portanto deveria ser capaz de oferecer ao povo educação e instrução melhores do que as exigidas espontaneamente pela maior parte da população. A educação, portanto, é uma dessas coisas que é admissível, em princípio, ao governo ter que proporcionar ao povo. Trata-se de um caso ao qual não se aplicam necessária e universalmente as razões do princípio da não-interferência. (Contrariamente a essas opiniões, um autor, com o qual concordo em muitos pontos, mas cuja hostilidade à intervenção governamental me parece ser excessivamente indiscriminada e irrestrita, o sr. Dunoyer observa que a instrução, por melhor que seja em si mesma, só pode ser útil para o povo na medida em que ele estiver disposto a recebê-la, e que a melhor prova de que a instrução atende às finalidades da população é o sucesso dela como empreendimento financeiro. Esse argumento não parece mais concludente em relação à instrução para o espírito, do que seria em relação à medicina para o corpo. Nenhum remédio fará bem ao paciente se não se conseguir induzir este a tomá-lo; todavia, não somos obrigados a aceitar como corolário disso que o paciente escolherá o remédio correto sem ajuda. Não será provável que uma recomendação, vinda de qualquer pessoa que o paciente respeite, possa induzi-lo a aceitar um remédio melhor do que o que ele mesmo teria escolhido espontaneamente? Quanto à educação, é esse o ponto preciso sobre o qual versa a questão. Sem dúvida, uma instrução que é tão avançada para o povo, que este não pode ser induzido a utilizá-la, vale para ele tanto quanto se não existisse. Mas entre aquilo que o povo escolhe espontaneamente e aquilo que recusará aceitar quando oferecido, há uma diferença proporcional à deferência para com quem recomenda. Além disso, em se tratando de uma coisa na qual o povo é mau juiz, pode ser necessário que ela lhes seja mostrada e seja imposta à sua atenção durante muito tempo, e que se lhe mostrem as vantagens dessa coisa por meio de uma longa experiência, antes que aprenda a apreciá-la, o que poderá acontecer, ao final; ora, possivelmente nunca o povo teria chegado a isso, se a referida coisa não lhe tivesse sido efetivamente imposta, mas somente lhe tivesse sido recomendada em teoria. Ora, uma especulação financeira não pode aguardar anos, ou talvez gerações, para ter sucesso: ela tem de acusar sucesso rapidamente, ou então não o acusará em absoluto. Outra consideração que o sr. Dunoyer parece não ter levado em conta é que instituições e maneiras de ensinar que nunca se conseguem popularizar o suficiente para pagar com lucro, os gastos com elas incorridos podem ter um valor inestimável para a multidão, por se dar uma educação da melhor qualidade a uns poucos, e por se manter a sucessão perpétua de inteligências superiores, por meio das quais o conhecimento progride, e a comunidade toda progride em civilização). No tocante à educação elementar, penso que a exceção às regras com uns pode, justificadamente, ir ainda mais longe. Há certos elementos primários e certos meios de conhecimento, que é altamente desejável sejam adquiridos durante a infância por todos os seres humanos incorporados à comunidade. Se os pais dessas crianças, ou aqueles de quem dependem, tiverem condições de conseguir essa instrução para elas, e deixam de fazê-lo, faltam a um duplo dever: em relação às próprias crianças e em relação aos membros da comunidade em geral, que estão todos sujeitos a sofrer seriamente em consequência da ignorância e da falta de educação de seus concidadãos. É, pois, um exercício legítimo dos poderes do governo impor aos pais a obrigação legal de dar instrução elementar aos filhos. Ora, isso não pode ser feito adequadamente sem adotar medidas para assegurar que tal instrução seja sempre acessível às crianças, quer gratuitamente, quer com uma despesa insignificante. Sem dúvida, pode-se objetar que a educação dos filhos é uma dessas despesas que os pais, mesmo em se tratando da classe trabalhadora, devem pagar — que é desejável sentirem que cabe a eles o dever de prover com seus próprios recursos ao cumprimento de suas obrigações, e que, dando educação à custa de outros, da mesma forma que dando a subsistência, baixa proporcionalmente o necessário padrão de salários, enfraquecendo-se na mesma medida as molas da iniciativa e do autocontrole. Na melhor das hipóteses, esse argumento só poderia ser válido se a questão fosse a de introduzir uma provisão pública em lugar daquilo que indivíduos, do contrário, fariam eles mesmos, se todos os pais pertencentes à classe trabalhadora reconhecessem e praticassem o dever de assegurar instrução a seus filhos às próprias custas. Mas, na medida em que os pais não cumprem esse dever, e não incluem a educação entre aquelas despesas necessárias que devem ser pagas com seus salários, a taxa geral de salários não é suficientemente alta para cobrir tais despesas, devendo estas serem pagas com alguma outra fonte. Esse não é um dos casos em que a oferta de ajuda perpetua aquela situação que faz com que a ajuda seja necessária. A instrução, quando é realmente tal, não enfraquece as faculdades ativas, mas as reforça e amplia; de qualquer maneira que seja adquirida essa instrução, seu efeito sobre a mente é favorável ao espírito de autonomia: e quando, se não for gratuitamente, essa instrução não ocorrer de forma alguma, a ajuda nesse caso tem tendência oposta àquilo que em tantos outros casos a torna objetável; é ajuda para daí em diante se poder agir sem necessidade de ajuda. Na Inglaterra, e na maioria dos países europeus, a instrução elementar não pode ser plenamente paga com o salário comum da mão-de-obra não qualificada, e se pudesse, não o seria. Por conseguinte, a alternativa não é entre a ação lucrativa governamental e a privada, mas entre uma provisão dada pelo governo e a caridade voluntária: entre a interferência do governo e a interferência da parte de associações de indivíduos, que subscrevem seu próprio dinheiro em prol dessa finalidade, como as duas grandes Sociedades Escolares. Naturalmente, não é desejável que se faça com fundos provenientes de impostos compulsórios uma coisa que já é suficientemente bem-feita pela liberalidade individual. Até que ponto esse é o caso da instrução escolar, é uma questão de fato, em cada exemplo específico. A educação dada neste país com base na contribuição voluntária tem sido tão debatida ultimamente, que é supérfluo neste contexto criticá-la com minúcia; limitar-me-ei a expressar minha convicção de que, mesmo em termos quantitativos, ela é — e provavelmente permanecerá — totalmente insuficiente, ao passo que, quanto à qualidade, ainda que se note leve tendência a melhorar, ela nunca é boa, a não ser em virtude de algum acaso, e em geral é tão má, que não passa muito de uma educação puramente nominal. Considero, pois, dever do governo sanar essa lacuna, dando apoio financeiro às escolas primárias, para torná-las acessíveis a todos os filhos de pais pobres, não pagando os pais nada, ou então uma quantia irrisória. Sobre uma coisa cabe insistir com vigor: que o governo não deve reclamar monopólio para a educação que fornece, quer nos níveis mais baixos, quer nos mais elevados; ele não deve exercer nem autoridade nem influência para induzir as pessoas a recorrerem a seus professores, de preferência a outros, e não deve dar vantagens especiais àqueles que se formaram nas suas escolas. Embora os professores do governo provavelmente sejam superiores à média dos professores da rede particular, não terão todo conhecimento e sagacidade que se encontram em todos os professores da rede particular, tomados em conjunto, e é desejável deixar abertos tantos caminhos quanto for possível, para atingir o fim que se deseja. Não é tolerável que um governo, de direito ou de fato, tenha controle total sobre a educação do povo. Possuir tal controle e exercê-lo efetivamente é despotismo. Um governo que puder moldar as opiniões e os sentimentos do povo, desde a adolescência, pode fazer com ele o que bem entender. Ainda que, portanto, o governo possa, e em muitos casos deva criar escolas e colégios, não deve nem obrigar nem aliciar ninguém a frequentá-los; tampouco é admissível fazer depender em qualquer grau de autorização governamental o direito de os indivíduos criarem estabelecimentos de ensino que concorram com os do Estado. Seria justificável exigir de todos que tenham instrução em certas coisas, mas não prescrever como e de quem devem obtê-la. § 9. Em matéria de educação, a intervenção do governo é justificável, porque não se trata de um caso em que o interesse e o discernimento do consumidor oferecem garantia suficiente para o bem da comunidade. Consideremos agora outra categoria de casos na qual ninguém está na condição de consumidor, e o interesse e o discernimento em que se deve basear a decisão são os do próprio agente como acontece na condução de qualquer negócio no qual a própria pessoa é a única interessada, ou quando a pessoa assume algum contrato ou compromisso ao qual a ela própria se obriga. O fundamento do princípio prático da não-interferência deve aqui ser o seguinte: a maioria das pessoas tem uma visão mais precisa e mais inteligente de seu próprio interesse, e dos meios para atender a esse interesse, do que a que possa ser prescrita a elas por uma lei geral, ou a que possa ser apontada em um caso específico por um funcionário público. Essa máxima é incontestavelmente válida como norma geral; contudo, não é difícil perceber algumas exceções muito amplas e importantes a tal princípio. Essas exceções podem enquadrar-se em vários itens. Primeiro: o indivíduo que acredita ser o melhor juiz acerca de seus próprios interesses pode ser incapaz de julgar ou de agir por si mesmo: pode ser um lunático, um idiota, uma criança; ou então embora não seja totalmente incapaz, pode ser ainda jovem demais e não ter amadurecido para a faculdade de discernir. Nesse caso falha completamente o fundamento do princípio do laisser-faire. A pessoa mais interessada não é, no caso, o melhor juiz na matéria, não é nem mesmo um juiz capaz de julgar. Pessoas dementes em toda parte são consideradas como sujeitos adequados para cuidados do Estado. (A prática do Direito inglês com respeito aos dementes, em especial no ponto importantíssimo da demonstração da demência, exige reforma urgentíssima. Atualmente, nenhuma pessoa cuja propriedade seja digna de ser cobiçada, e cujos parentes mais próximos sejam inescrupulosos, ou então estejam em más relações com ela, está segura contra um atestado de demência. A instância de pessoas que tirariam proveito do fato de o dono da propriedade ser declarado demente, é possível constituir um júri e efetuar uma investigação à custa da propriedade, investigação esta na qual todas as peculiaridades individuais da pessoa em questão com todos os acréscimos feitos pelo compadre mentiroso de empregados servis, são comunicadas a doze lojistas crédulos e mesquinhos, que são ignorantes em tudo, afora o que se refere à sua própria classe, e que consideram todo traço de individualidade de caráter ou de gosto como excentricidade, e toda excentricidade como insanidade ou como perversidade. Se esse “sábio” tribunal emitir o veredicto desejado, a propriedade talvez acabe sendo passada às últimas pessoas às quais o verdadeiro proprietário teria desejado ou admitido passá-las. Alguns exemplos recentes desse tipo de investigação têm representado um escândalo para a administração judiciária. Quaisquer que sejam as outras mudanças que se possam fazer nesse setor da legislação, ao menos duas são imperiosas: primeiro, que, como em todos os outros processos judiciais, as despesas não devam ser pagas pela pessoa sob investigação, mas pelos que promovem a investigação, sendo-lhes reembolsados os custos, em caso de êxito: segundo, que a propriedade de uma pessoa declarada demente em caso algum seja passada a herdeiros enquanto viver o proprietário, devendo ser administrada por um oficial do Estado até a morte deste ou até a recuperação do mesmo). No caso de crianças e adolescentes é comum afirmar que, embora não possam julgar por si mesmos, têm seus pais ou outros parentes para julgarem por eles. Mas isso faz com que a questão passe a outra categoria; já não será uma questão se o governo deve interferir nos indivíduos para dirigir sua própria conduta e interesses, mas se o governo deve dar absolutamente a indivíduos o poder de dirigir a conduta e os interesses de outra pessoa. O poder dos pais é tão suscetível de abuso quanto qualquer outro poder, e de fato é constantemente objeto de abuso. Se as leis não conseguem impedir que os pais tratem seus filhos com brutalidade, e mesmo os matem, muito menos se deve presumir que os pais nunca sacrificarão os interesses dos filhos, de maneira mais comum e menos revoltante, ao seu egoísmo e à sua ignorância. Tudo aquilo que visivelmente os pais devem fazer ou deixar de fazer no interesse dos filhos a lei pode, se tiver condições, obrigá-los a fazer ou deixar de fazer, e geralmente tem a obrigação de fazer isso. Tomemos um exemplo do âmbito específico da Economia Política: é justo que as crianças e pessoas que ainda não atingiram a idade do discernimento sejam protegidas contra a obrigação de trabalharem em excesso — no âmbito que puder ser supervisionado pelo Estado. Não se deve permitir-lhes trabalhar um número excessivo de horas por dia ou executar serviços que vão além de sua capacidade, pois se isso lhes for permitido, sempre poderão ser obrigados a fazê-lo. Liberdade de contrato, no caso de crianças, não é outra coisa senão sinônimo de liberdade de coação. Também a educação — a melhor que nas circunstâncias puderem receber — não é uma coisa que os pais ou os parentes têm o direito de negar aos filhos, por indiferença, rivalidade ou avareza. As razões em prol da intervenção legal a favor das crianças aplicam-se, com não menos força, ao caso desses escravos e vítimas infelizes da parcela mais brutal da humanidade, os animais irracionais. É em virtude do mais grosseiro equívoco sobre os princípios da liberdade que se tem considerado como interferência governamental ilegítima o fato de a lei infligir punição exemplar à crueldade praticada com estas criaturas indefesas — como se isso fosse uma interferência na vida familiar. A vida familiar de tiranos familiares é uma das coisas em que é mais imperioso a lei interferir; deve-se deplorar que escrúpulos metafísicos no tocante à natureza e à fonte da autoridade do governo induzam muitos defensores entusiastas das leis contra a crueldade em relação aos animais a procurar uma justificação dessas leis nas consequências acidentais que, caso se tolerassem tais hábitos ferozes, adviriam para os interesses humanos, em vez de justificar tais leis com base no respeito devido aos animais como tais. Os atentados que seria dever de um ser humano, dotado de necessária força física, impedir pela força, se o atentado fosse cometido na sua presença, esse mesmo abuso cabe à sociedade em geral reprimir, com o mesmo grau de obrigatoriedade. As leis inglesas vigentes nessa matéria falham sobretudo por limitarem a pena, mesmo nos casos mais graves, a um máximo insignificante, que muitas vezes é puramente nominal. Entre os membros da comunidade cuja liberdade de contrato deve ser controlada pelo Parlamento, a bem da proteção dos respectivos, em razão (como se diz) de sua posição de dependência, propõe-se com frequência incluir as mulheres; e com efeito, nas Leis para as Manufaturas vigentes, o trabalho delas, juntamente com o de pessoas jovens, foi colocado sob restrições especiais. No entanto, o fato de se enquadrar na mesma categoria mulheres e crianças, para esta e outras finalidades, parece-me ser algo indefensável em princípio e também algo pernicioso na prática. Os filhos abaixo de determinada idade não têm capacidade de julgar ou de agir por si mesmos; até a uma idade consideravelmente maior, são inevitavelmente incapazes, em grau maior ou menor, de agir com autonomia; ao contrário, as mulheres são tão capazes quanto os homens para avaliar e conduzir seus próprios interesses, e a única coisa que as impede de fazê-lo provém da injustiça da sua atual posição social. Quando a lei dispõe que tudo o que a mulher adquire é propriedade do marido, e ao mesmo tempo, por obrigá-la a viver com ele, a força, a submeter-se a qualquer tipo de tirania moral e até física que o marido queira infligir-lhe há certo fundamento para considerar todo ato praticado por ela como um ato praticado sob coação; mas o grande erro dos reformadores e filantropistas do nosso tempo consiste em criticar as consequências de um poder injusto, em vez de reparar a injustiça como tal. Se as mulheres tivessem, em relação à sua pessoa e a seu patrimônio ou ao que adquirem, um controle tão absoluto como os homens, não se pleitearia mais a necessidade de limitar as horas em que trabalhariam para si mesmas, a fim de poderem dispor de tempo para trabalhar para seu marido, naquilo que os defensores da restrição denominam o lar dele. As mulheres empregadas em fábricas são as únicas mulheres de condição operária cuja posição não é de escravas ou servas — precisamente porque não podem ser obrigadas com facilidade a trabalhar e ganhar salário em fábricas contra sua vontade. Ao contrário, para melhorar a condição das mulheres, dever-se-ia ter por objetivo dar-lhes o mais pronto acesso à ocupação industrial independente, em vez de fechar-lhes, totalmente ou em parte, o acesso que já lhes está franqueado. § 10. Uma segunda exceção à doutrina de que os indivíduos são os melhores árbitros de seus próprios interesses ocorre quando um indivíduo tenta decidir hoje, em caráter irrevogável aquilo que será melhor para seus interesses em alguma data futura e remota. A presunção a favor do julgamento individual só é legítima quando o julgamento se funda na experiência pessoal efetiva, e sobretudo na experiência pessoal que se tem no momento — e não quando esse julgamento é feito antes de se possuir a experiência, e não se permite poder alterá-lo, mesmo depois que a experiência o tenha condenado. Quando pessoas se obrigaram por um contrato não apenas a fazer alguma coisa, mas a continuar a fazer uma coisa para sempre, ou por um período longo, sem terem direito algum de revogar o compromisso, não existe a presunção de que a perseverança delas nessa conduta, ao contrário deporia em favor do caráter vantajoso desse compromisso para elas; por outro lado, geralmente é quase nula qualquer presunção desse gênero que se possa fundar no fato de as pessoas terem assumido voluntariamente o contrato, talvez em uma idade jovem, e sem terem conhecimento real daquilo que estavam empreendendo. O princípio prático de não interferir na liberdade de fazer contratos não é aplicável, a não ser com grandes limitações, no caso de compromissos assumidos para a vida toda, e a lei deve ser extremamente ciosa com tais compromissos: ela deve recusar-se a sancionar tais contratos, quando as obrigações que estes impõem são tais, que a parte contratante não possa ser um juiz competente na matéria: e se a lei eventualmente sancionar tais contratos, deve adotar todas as garantias possíveis para que eles sejam feitos com previsão e deliberação, e, em compensação, por não permitir às próprias partes revogarem o seu compromisso, a própria lei deve declará-las isentas do compromisso, no momento em que se aduzirem razões suficientes perante uma autoridade imparcial. Essas considerações aplicam-se, em grau eminente, ao casamento, o mais importante de todos os casos de compromisso para a vida toda. § 11. A terceira exceção que mencionarei à doutrina de que o governo não tem condições de conduzir os negócios dos indivíduos tão bem quanto eles mesmos relaciona-se com a grande categoria de casos em que os indivíduos só podem administrar o negócio por meio de terceiros, e nos quais a assim chamada administração privada dificilmente tem, na realidade, mais direito de ser chamada de administração feita pelas pessoas interessadas do que a administração feita por um funcionário público. Tudo aquilo que se deixado à ação espontânea só puder ser feito por sociedades por ações muitas vezes será feito tão bem, e às vezes é feito até melhor pelo Estado, no que diz respeito ao serviço efetivo. Sem dúvida, a administração governamental proverbialmente é abusiva, descuidada e ineficiente, mas isso tem em geral acontecido também com a administração feita por sociedades por ações. É verdade que os diretores de tais sociedades sempre são acionistas; mas também os membros de um governo são invariavelmente pagadores de impostos, e no caso de diretores, tanto quanto no caso de governos, a sua participação proporcional nos lucros de uma boa administração é igual ao interesse que possivelmente tenham na má administração, mesmo sem reconhecer a vantagem de sua tranquilidade. Poder-se-ia objetar que os acionistas, em seu caráter coletivo, exercem certo controle sobre os diretores, e quase sempre têm poder pleno para demiti-los. Na prática, porém, constata-se que é tão grande a dificuldade de exercer esse direito, que ele dificilmente é alguma vez exercido, a não ser em casos de ineficiência tão flagrante ou, ao menos, de administração tão malsucedida, que geralmente também produziria a demissão de administradores nomeados pelo governo. Contra a garantia altamente precária oferecida por assembleias de acionistas, bem como pela inspeção e sindicâncias individuais dos mesmos, pode-se colocar a maior publicidade, bem como a discussão e os comentários mais ativos que se esperam em países livres com respeito às coisas nas quais o governo geral participa. Portanto, as falhas da administração governamental não parecem ser necessariamente muito maiores — se é que são necessariamente maiores — do que as de uma administração feita por diretores de sociedades por ações. As razões verdadeiras para deixar que as associações voluntárias façam tudo aquilo que têm capacidade de fazer existiriam, com força igual, se fosse certo que o trabalho como tal seria feito tão bem ou melhor por funcionários do governo. Essas razões já foram apontadas: o abuso de sobrecarregar os executivos principais do governo, exigindo que estes desviem a atenção de obrigações que só eles podem cumprir e se voltem para metas que poderiam ser atingidas suficientemente bem sem eles; além disso, o perigo de inflacionar desnecessariamente o poder direto e a influência indireta do governo, e de multiplicar as ocasiões de conflito entre os seus funcionários e os cidadãos privados, bem como a inconveniência de concentrar em uma burocracia toda habilidade e experiência na administração de grandes interesses, e todo o poder de ação organizado que existe na comunidade — uma prática que mantém os cidadãos em uma relação com o governo semelhante àquela que existe entre crianças e seus tutores e que representa uma causa primordial daquela capacidade menor para a vida política que até hoje tem caracterizado os países de governo centralizado do continente europeu, tenham eles ou não as formas de governos representativos. (Pode-se encontrar um exemplo paralelo na falta de gosto pela política, e na ausência de espírito público, que no atual estágio da sociedade caracterizam as mulheres como classe, fatos estes que muitas vezes são sentidos e lamentados por reformadores políticos, mas sem que isso os disponha a reconhecer ou os faça desejarem eliminar sua causa. Esses fatos provêm obviamente de as mulheres serem ensinadas, tanto pelas instituições como por toda a sua educação, a se considerarem totalmente alheias à política. Em toda parte onde as mulheres tiveram posição na política, demonstraram tanto interesse pela matéria, e tanta aptidão para a política, conforme o espírito de seu tempo, quanto os homens dos quais foram contemporâneas: por exemplo, naquele período da História em que Isabel de Castela e Elizabeth da Inglaterra foram não exceções raras, mas simplesmente exemplos brilhantes de um espírito e de uma capacidade muito difundidos entre as mulheres de elevada posição e cultura na Europa). Embora, porém, por essas razões, a maior parte das coisas que apresentam probabilidade de serem razoavelmente executadas por associações voluntárias devam, em geral, ser deixadas a estas, disso não segue que o governo deva deixar de exercer qualquer controle sobre a maneira como essas associações executam seu trabalho. Há muitos casos em que o órgão que executa um serviço — de qualquer natureza que seja o órgão — com certeza é virtualmente único, devido à natureza do caso, e assim sendo é inevitável que surja um monopólio prático, com todo o poder que este tem de onerar a comunidade. Já adverti mais de uma vez para o caso das companhias fornecedoras de gás e água, entre as quais, embora haja liberdade total de concorrer, na realidade não ocorre nenhuma concorrência, e na prática se constata que essas companhias são até mais irresponsáveis do que o governo, e mais inatingíveis por queixas individuais, do que o próprio governo. No caso, existem os gastos característicos da pluralidade de órgãos, mas sem as vantagens inerentes a essa pluralidade, e o que se cobra por serviços indispensáveis à população representa, substancialmente, uma taxação tão compulsória quanto a imposta por lei do governo; poucos são os moradores que fazem alguma distinção entre sua “taxa de água” e os outros impostos e taxas locais que têm de pagar. No caso desses serviços específicos — bem como nos de pavimentação e limpeza das ruas — predominam as razões a favor da execução deles não certamente pelo governo geral do Estado, mas pelas autoridades municipais da cidade, e a favor de os gastos serem pagos com uma taxa local, como atualmente acontece. Entretanto, nos diversos casos análogos que é melhor entregar à iniciativa voluntária, a comunidade precisa de alguma outra garantia, além do interesse dos administradores para assegurar a boa execução do serviço, e cabe ao governo impor condições razoáveis para assegurar o bem da comunidade, ou então reter um poder tal sobre a matéria, que os lucros advindos do monopólio, no mínimo, sejam creditados à comunidade. Isso aplica-se ao caso de uma estrada, um canal, ou uma ferrovia. Estes são sempre, em grande parte, praticamente monopólios, e o governo que outorga tal monopólio, sem reservas, a uma companhia particular faz mais ou menos o mesmo que faria permitindo a um indivíduo ou a uma associação impor as taxas que quiser, em seu próprio benefício, sobre todo o malte produzido no país, ou sobre todo o algodão importado pelo país. Outorgar uma concessão por tempo limitado é geralmente justificável, com base no mesmo princípio que justifica as patentes concedidas a invenções; contudo, o Estado deve reservar-se a reversão da propriedade de tais obras públicas, ou então deve manter e exercer livremente o direito de fixar um teto máximo para taxas e encargos e de alterar periodicamente esse máximo. Talvez seja necessário observar que o Estado pode ser o proprietário de canais ou ferrovias, sem que ele mesmo os opere, e que quase sempre será melhor que tais serviços sejam operados por uma companhia à qual o Estado arrenda a ferrovia ou o canal por período limitado. § 12. Há um quarto caso de exceção para o qual solicito atenção especial, pois é um caso que, em meu entender, ainda não despertou a atenção dos economistas políticos. Há assuntos nos quais a interferência da lei é necessária, não para revogar o julgamento dos indivíduos no tocante a seu próprio interesse, mas para dar efeito a esse julgamento, já que os indivíduos não têm condições de fazê-lo, a não ser mediante ação conjunta, ação esta que, por sua vez, só pode ser eficaz se receber validade e sanção da lei. A título de ilustração, e sem querer emitir um juízo antecipado sobre esse particular, chamo a atenção para o problema da redução das horas de trabalho. Suponhamos — e podemos fazer tal suposição, seja ela verdadeira ou não — que uma redução geral das horas de trabalho em fábrica, digamos de dez para nove, fosse vantajosa para os operários — que estes passassem a receber por nove horas de trabalho o mesmo ou aproximadamente o mesmo salário que recebem por dez. Alguém poderia ponderar: se o resultado fosse esse, e se os operários em geral estivessem convencidos disso, essa redução seria adotada espontaneamente. Respondo que ela não será adotada a não ser que os trabalhadores, em conjunto, se unam e se comprometam uns com os outros a adotar essa medida. Um trabalhador que se recusasse a trabalhar mais do que nove horas, enquanto houvesse outros que trabalhassem dez, não encontraria emprego, ou, se aceito como empregado teria que submeter-se a perder 1/10 de seu salário. Portanto, por mais convencido que ele possa estar de que é interesse da categoria trabalhar menos, contraria seu próprio interesse dar o exemplo, a menos que esteja bem certo de que todos ou a maioria dos outros seguirão seu exemplo. Suponhamos, porém, uma concordância geral da classe inteira: será que isso não poderia realizar-se sem a sanção da lei? Não, a menos que a decisão fosse apoiada pela opinião pública, com força praticamente igual à de uma lei. Com efeito, por mais benéfica que possa ser a observância dessa norma para a classe coletivamente, o interesse imediato de cada indivíduo seria no sentido de violá-la, e quanto mais numerosos fossem os que aderissem à norma, tanto mais sairiam ganhando os indivíduos que não seguissem a norma. Se quase todos se limitassem a trabalhar nove horas todos os que optassem por trabalhar dez horas ganhariam todas as vantagens da restrição da limitação de horas, além do lucro derivante do fato de infringir essa limitação: ganhariam salário de dez horas por nove horas de trabalho, além disso o salário de uma hora. Concedo que, se grande parte aderisse às nove horas, não haveria prejuízo algum: o benefício estaria assegurado, no essencial, à classe, ao passo que os indivíduos que desejassem trabalhar mais e ganhar mais teriam oportunidade de fazê-lo. Essa seria certamente a situação a desejar; e na hipótese de poder ocorrer uma redução de horas sem nenhuma redução de salário e sem eliminar a respectiva mercadoria de algum de seus mercados — o que, em cada caso específico, é uma questão de fato, e não de princípio —, a maneira mais desejável de se obter esse efeito seria pela mudança tranquila no costume geral da profissão: o horário reduzido se tornaria, por opção espontânea, a prática geral, mas respeitando-se a plena liberdade daqueles que optassem por se manter fiéis ao horário mais longo. Provavelmente, porém, seriam tantos os que prefeririam manter o horário de dez horas, em condições melhores, que não se conseguiria manter como prática geral a redução de horas; o que alguns teriam feito por opção, outros logo seriam obrigados a fazer por necessidade, e os que haviam optado pelo horário longo para ganhar salário mais alto, ao final seriam forçados a trabalhar dez horas pelo mesmo salário que antes se pagava por dez horas de trabalho. Na suposição, portanto, de que fosse realmente interesse de cada um trabalhar apenas nove horas, se pudesse ter a certeza de que todos os demais fariam o mesmo, não poderia haver outro meio de se atingir esse objetivo senão transformando seu suposto acordo mútuo em um compromisso sob pena de punição, consentindo que esse compromisso fosse reforçado pela lei. Não estou expressando nenhuma opinião a favor da medida, que nunca foi exigida neste país, e que eu, pessoalmente, com certeza não recomendaria, nas circunstâncias atuais; mas o exemplo serve para ilustrar a maneira como certas categorias de pessoas podem necessitar da ajuda da lei, para dar efeito à sua opinião coletiva deliberada no tocante ao seu próprio interesse, oferecendo a lei a cada indivíduo uma garantia de que seus concorrentes adotariam a mesma medida, sem o que ele mesmo não pode adotá-la com segurança. Outro exemplo do mesmo princípio, nós o temos no assim chamado sistema de colonização Wakefield. Esse sistema baseia-se no importante princípio de que o grau de produtividade da terra e da mão-de-obra depende do fato de haver uma proporção devida entre os dois itens; no princípio de que, se algumas pessoas, em um país recém-fundado, tentarem apropriar-se de uma área grande, ou se cada trabalhador se tornar, cedo demais, um ocupante e cultivador de terra, há perda de força produtiva, e grande retardamento do progresso da colônia, em riqueza e civilização; que, não obstante isso, o instinto (assim se pode denominá-lo, praticamente) de apropriação e os sentimentos que em países velhos se associam à propriedade fundiária induzem quase todo emigrante a tomar posse de uma área de terra tão grande quanto conseguir adquirir, e cada trabalhador a transformar-se logo em um proprietário, cultivando sua própria terra apenas com a ajuda de sua família. Caso se pudesse restringir até certo ponto essa propensão à posse imediata de terra, e se pudesse induzir cada trabalhador a trabalhar, durante determinado número de anos, como assalariado, antes de se tornar proprietário de terra, se conseguiria manter um contingente constante de assalariados, disponíveis para construção de estradas, canais, obras de irrigação etc., e para criar e manter diferentes setores de trabalho nas cidades; com isso, o trabalhador, quando ao final se tornasse proprietário de terra, encontraria sua terra valendo muito mais, devido ao acesso aos mercados e à facilidade de conseguir mão-de-obra assalariada. Por isso, o sr. Wakefield propôs limitar a ocupação prematura da terra e a dispersão da população, impondo a todas as terras sem dono um preço bem elevado, sendo que o dinheiro resultante da venda dessas terras seria gasto para transportar trabalhadores que emigrassem da pátria-mãe. Acontece que essa medida salutar tem sido alvo de objeção, em nome e sob a autoridade daquilo que se pretende apresentar como o grande princípio da Economia Política, a saber, que os indivíduos são os melhores juízes acerca de seus próprios interesses. Tem-se afirmado que, quando se deixam as coisas correrem por si mesmas, a apropriação e a ocupação da terra acontece por opção espontânea dos indivíduos, nas quantidades e nos tempos mais vantajosos para a pessoa, e portanto para a comunidade em geral, e que colocar obstáculos artificiais à compra de terra pelos indivíduos é impedi-los de adotarem as medidas que em seu entender são mais benéficas para eles, com base em uma ideia pretensiosa do legislador, de que este saberia melhor do que os indivíduos o que mais lhes convém. Ora, essa objeção denota compreensão errônea do sistema como tal, ou do princípio com o qual se diz conflitar o sistema. O erro é semelhante ao que acabamos de exemplificar, no tocante às horas de trabalho. Por mais benéfico que possa ser para a colônia, no global, e para cada indivíduo que a compõe, que ninguém ocupe mais terra do que a área que tem condições de cultivar adequadamente, nem que se torne proprietário antes que haja outros trabalhadores prontos para tomar seu lugar como trabalhadores assalariados, nunca um indivíduo pode ter interesse em abster-se de comprar terra, se não tiver a garantia de que outros também farão o mesmo. Cercado por colonizadores, dos quais cada um possui seus 1000 acres, de que maneira ele se beneficiaria limitando-se a comprar 50? Ou então, que é que um trabalhador ganha, adiando simplesmente a aquisição de terra por alguns anos, se todos os outros trabalhadores se apressam em transformar seus primeiros ganhos em propriedades na selva, à distância de várias milhas uns dos outros? Se esses colonizadores, ocupando terra, impedem a formação de uma classe de trabalhadores assalariados, ele, adiando o momento em que se tornará proprietário, não terá condições de empregar a terra com vantagem maior do que quando a comprar efetivamente; para que então se colocará em uma posição que tanto a ele como a outros se apresenta como de inferioridade, permanecendo trabalhador assalariado, quando todos ao redor dele são proprietários? O interesse de cada um manda fazer aquilo que é bom para todos, mas isso somente sob a condição de os outros fazerem a mesma coisa. O princípio de que cada um é o melhor juiz de seu próprio interesse, se compreendido como o entendem os citados objetantes, provaria que o governo não deve cumprir nenhum de seus deveres reconhecidos como tais — na realidade, provaria que os governos nem sequer devem existir. É de elevado interesse da comunidade, coletiva e individualmente que uns não roubem nem fraudem outros; e no entanto é necessário que haja leis para punir o roubo e a fraude. Com efeito, embora cada um tenha interesse em que ninguém roube ou engane, não é verdade que cada um tem interesse em abster-se de roubar e enganar outros, se a outros se permitir que o roubem e enganem. Se existem leis penais, é sobretudo por essa razão: mesmo uma convicção unânime de que determinada linha de conduta atende ao interesse de todos nem sempre faz com que o interesse de cada indivíduo o mande aderir a essa linha de conduta. § 13. Quinto: o argumento contra a interferência governamental, baseado na máxima de que os indivíduos são os melhores árbitros de seu próprio interesse, não pode aplicar-se à numerosa classe de casos em que aqueles atos dos indivíduos, nos quais o governo reclama o direito de interferir, não são executados por esses indivíduos em seu próprio interesse, mas no de outras pessoas. Isso inclui, entre outras coisas, o item importante e muito debatido da caridade pública. Embora no geral se deva deixar que os indivíduos façam em favor de si mesmos tudo aquilo que razoavelmente se pode esperar sejam capazes de fazer, não obstante isso, quando em todo caso não podem ser abandonados a si mesmos, mas devem ser ajudados por outras pessoas, surge esta questão: será melhor que recebam essa ajuda de indivíduos e portanto de maneira incerta e casual, ou será melhor que a recebam por meio de estruturas sistemáticas, nas quais a sociedade age por intermédio de seu órgão, o Estado? Isso nos leva às Leis dos Pobres — matéria que seria muito menos importante se os hábitos de todas as classes da população fossem moderados e prudentes, e a distribuição da propriedade fosse satisfatória; e, no entanto, é um item de máxima importância em uma situação que, sob os dois aspectos, é tão contrária a isso, caso como o que se observa nas ilhas britânicas. Prescindindo de quaisquer considerações metafísicas no tocante ao fundamento da moral ou da união social, admitir-se-á ser correto que os seres humanos se ajudem entre si, e isso, tanto mais quanto mais urgente for a necessidade; ora, ninguém precisa de ajuda com tanta urgência quanto alguém que está sofrendo de inanição. Por isso, o direito à ajuda, gerado pela indigência, é um dos mais fortes que possam existir; por conseguinte, de saída existe a razão mais forte para fazer com que o atendimento de uma necessidade tão extrema seja, para aqueles que dessa ajuda precisam, tão certo e seguro quanto for possível, por meio de quaisquer estruturas e instituições sociais. Por outro lado, em todos os casos de ajuda, deve-se levar em conta dois conjuntos de consequências: as que decorrem da ajuda como tal, e as que decorrem do fato de os socorridos confiarem na ajuda. A primeira série de consequências geralmente é benéfica, ao passo que a segunda, na maioria dos casos, engloba consequências perniciosas — tão perniciosas que em muitos casos superam em muito o valor do benefício. E isso nunca tem mais probabilidade de acontecer do que exatamente nos casos em que a necessidade de ajuda é mais intensa. Poucas coisas existem em que seja mais nocivo as pessoas confiarem na ajuda habitual dos outros, do que no caso dos meios de subsistência, e infelizmente não há nenhuma lição que aprendem com mais facilidade. Por conseguinte, o problema a ser resolvido é uma questão particularmente difícil e importante: como dar o máximo de ajuda indispensável, estimulando ao mínimo a atitude de ficar confiando indevidamente nessa ajuda? Acontece que o vigor e a autonomia pessoal podem ser comprometidos tanto pela ausência de ajuda quanto pelo excesso de ajuda. Para a iniciativa é até mais fatal não ter esperança de conseguir sucesso com ela, do que ter certeza de ter sucesso sem ela. Quando a condição de alguém é tão desastrosa que suas energias são paralisadas pelo desânimo, a ajuda é um tônico, não um sedativo; nesse caso, a ajuda tonifica as faculdades ativas, e não as mata — isso, naturalmente, desde que a ajuda não seja tal, que dispense o indivíduo de ajudar-se a si mesmo, vindo assim a substituir o trabalho, a habilidade e a prudência da própria pessoa socorrida, quando a ajuda deve limitar-se a dar-lhe maior esperança de atingir sucesso por esses meios legítimos. Esse é, portanto, um teste ao qual devem submeter-se todos os planos de filantropia e benevolência, tenham eles por objetivo beneficiar indivíduos ou classes, e sejam eles conduzidos com base na iniciativa particular voluntária ou pela ação governamental. Na medida em que a matéria comporta alguma doutrina ou máxima de ordem geral, parece-me que o princípio seria este: se a ajuda for dada de tal forma, que a condição da pessoa ajudada se torne tão desejável quanto a da pessoa que consegue fazer a mesma coisa sem ajuda, o socorro é pernicioso, se for possível prever isso com antecipação; se, porém, a ajuda, sendo acessível a cada um, der a cada um motivação forte para passar sem ela, se puder, nessas condições, a ajuda é benéfica, na maioria dos casos. Esse princípio, aplicado a um sistema de caridade pública, é o que inspira a Leis dos Pobres de 1834. Se a condição de uma pessoa que recebe ajuda se torna tão boa quanto a de um trabalhador que se sustenta com seu próprio trabalho, o sistema mina pela raiz toda iniciativa individual e autogoverno, e, se posto plenamente em prática, exigiria como suplemento um sistema organizado de coação para governar e levar a trabalhar, como gado, aqueles que se privaram das motivações específicas que agem sobre seres humanos. Se, porém, sem deixar de oferecer garantia a todos em caso de necessidade absoluta, se conseguir manter a condição dos assistidos pela caridade legal bem menos desejável do que a condição daqueles que se auto sustentam, só podem advir consequências benéficas de uma lei que torna impossível qualquer pessoa morrer por insuficiência de alimento, a não ser que ela mesma opte por isso. Que na Inglaterra se pode concretizar no mínimo essa suposição, comprova-o a experiência de um longo período anterior ao fim do século passado, bem como a experiência de muitos distritos eivados de pobreza, em tempos mais recentes, nos quais se extirpou a miséria com a adoção de normas rigorosas de administração da Lei dos Pobres, beneficiando muito e em caráter permanente toda a classe trabalhadora. Provavelmente não há nenhum país em que, variando-se os meios adequados, em conformidade com o caráter da população, não se possa compatibilizar uma provisão legal para os indigentes com a observância das condições necessárias para que tal ajuda não seja nociva. Sob essas condições, entendo ser altamente desejável que a garantia de subsistência seja assegurada por lei aos indigentes fisicamente capazes, em vez de a solução do problema ficar na dependência da caridade voluntária. Em primeiro lugar, a caridade quase sempre faz demais ou de menos: ela espalha e até dissipa a generosidade em um lugar, e deixa pessoas morrerem de fome em outro. Em segundo lugar, uma vez que o Estado necessariamente tem de garantir a subsistência dos criminosos pobres enquanto estiverem pagando a pena, o não fazer o mesmo com os pobres que não cometeram infração equivaleria a premiar o crime. E, finalmente, se os pobres forem abandonados à caridade individual, é inevitável uma multidão de mendigos. O que o Estado pode e deve deixar à caridade privada é a tarefa de fazer a triagem dos casos de real necessidade. A caridade privada pode dar mais aos que merecem mais. O Estado tem de agir com base em normas gerais. Ele não pode assumir a tarefa de fazer a distinção entre os indigentes que merecem e os que não merecem. Aos primeiros deve apenas a subsistência, e aos segundos não pode dar menos do que isso. O que se diz sobre a injustiça de uma lei que não dispensa tratamento melhor aos pobres simplesmente desafortunados do que aos pobres de má conduta, funda-se em uma compreensão errônea do Direito e da autoridade pública. Os que administram a ajuda aos pobres não têm a função de inquisidores. Os curadores e provedores encarregados da assistência aos pobres nas paróquias não são pessoas indicadas para se lhes confiar a tarefa de dar ou negar o dinheiro alheio com base no julgamento que fizerem sobre a moralidade da pessoa que solicita; aliás, seria uma demonstração de grande desconhecimento da mente humana supor que tais pessoas, mesmo no caso quase impossível de serem qualificadas, se darão ao trabalho de verificar e vasculhar a conduta passada de uma pessoa necessitada, de modo a formar um juízo racional sobre tal conduta. A caridade privada tem condições de fazer essas distinções e, por estar doando o seu próprio dinheiro, tem o direito de fazer essa distinção conforme o seu próprio julgamento. Ela deve entender que é esse o seu setor específico e apropriado, e que isso é recomendável ou não, na medida em que exerce essa função com discernimento maior ou menor. Quanto aos administradores de um fundo público, porém, não se deve exigir deles que façam mais, por alguém, do que o mínimo devido às piores pessoas. Se deles se exigir isso, muito rapidamente adotarão como regra a indulgência generalizada, e só a título de exceção recusarão ajuda a alguns, movidos, em grau maior ou menor, pelo capricho e pela tirania pessoais. § 14. Outra categoria de casos que recaem dentro do mesmo princípio que o caso da caridade pública são aqueles em que os atos praticados por indivíduos, embora visem exclusivamente ao benefício deles mesmos, envolvem consequências que se estendem indefinidamente para além deles, atingindo interesses da nação ou da prosperidade, aos quais somente a sociedade, com sua capacidade de ação conjunta, pode e deve atender. Um desses casos é o da colonização. Se é desejável — e ninguém negará que o seja — implantar colônias não com vistas exclusivamente nos interesses privados dos primeiros fundadores, mas levando deliberadamente em consideração o bem-estar permanente das nações que posteriormente surgirem desses inícios modestos, essa consideração só pode ser assegurada colocando o empreendimento, desde o seu início, sob normas elaboradas com a previsão e o descortínio de legisladores judiciosos; ora, somente o governo tem poder para elaborar tais normas ou para exigir sua observância. A questão da intervenção governamental na obra de colonização envolve os interesses futuros e permanentes da própria civilização, e ultrapassa em muito os limites relativamente estreitos de considerações puramente econômicas. Entretanto, mesmo atendo-se apenas a esse tipo de consideração, a transferência de população, das regiões superpovoadas da superfície terrestre para as regiões desocupadas, constitui uma dessas obras de eminente utilidade social que exigem em alto grau a intervenção do governo, e que ao mesmo tempo melhor pagam essa intervenção. Para avaliar os benefícios da colonização, ela deve ser considerada em sua relação não com um único país, mas com os interesses econômicos coletivos da humanidade. Encara-se em geral essa questão exclusivamente como um problema de distribuição, ou seja, de aliviar um mercado de trabalho e suprir outro. Certamente a colonização é isso; mas é também um problema de produção e de emprego mais eficiente possível dos recursos produtivos do mundo. Muito se tem dito sobre a boa economia que se faz importando mercadorias do lugar em que se pode comprá-las ao preço mais baixo, enquanto relativamente pouco se pensa na boa economia que se faz produzindo-as onde elas podem ser produzidas a preço mais baixo. Se transportar bens de consumo dos lugares em que superabundam para os lugares em que escasseiam é uma boa especulação pecuniária, não é porventura uma especulação igualmente rentável fazer a mesma coisa com respeito à mão-de-obra e aos instrumentos de produção? A exportação de trabalhadores e de capital, de países velhos para países novos, de um lugar em que sua força produtiva é menor para um lugar onde é maior, faz aumentar no mesmo montante a produção total do trabalho e do capital do mundo. Essa transferência acrescenta à riqueza conjunta do país velho e do novo algo que, em pouco tempo, equivale a muitas vezes o simples custo necessário para efetuar tal transferência. Não precisamos hesitar em afirmar que a colonização, na atual conjuntura do mundo, é o melhor negócio em que se possa empregar o capital de um país antigo e rico. É igualmente óbvio, porém, que a colonização em larga escala só pode ser empreendida, como negócio, pelo governo, ou por alguma associação de indivíduos em entendimento perfeito com o governo — a não ser que se trate de circunstâncias muito peculiares, como as que sucederam à fome irlandesa. A emigração com base no princípio da iniciativa voluntária raramente exerce alguma influência substancial no sentido de aliviar a pressão populacional no país velho, se bem que, na medida em que ela for exequível, represente indubitavelmente um benefício para a colônia. É raro que as pessoas trabalhadoras que emigram voluntariamente sejam as muito pobres; são pequenos arrendatários de terra dotados de algum capital, ou trabalhadores que economizaram algo, e que, ao retirarem apenas o seu próprio trabalho do mercado de mão-de-obra saturado, retiram do capital do país um fundo que sustentava e dava emprego a outros trabalhadores, além deles próprios. Além disso, essa parcela da população da comunidade é numericamente tão limitada, que poderia ser removida por completo sem deixar nenhum sinal sensível no contingente total da população, ou mesmo no aumento anual dela. Toda emigração considerável de mão-de-obra só é exequível quando seu custo é coberto, ou pelo menos adiantado, por outros, e não pelos próprios emigrantes. Quem então pagará antecipadamente esse custo? Poder-se-ia dizer: naturalmente, os capitalistas da colônia, que precisam dessa mão-de-obra, e tencionariam empregá-la. Mas há um obstáculo para isso: um capitalista, depois de submeter-se ao gasto de levar trabalhadores, não tem nenhuma garantia que será ele quem auferirá algum benefício dessa mão-de-obra. Se todos os capitalistas da colônia se associassem, e arcassem coletivamente com a despesa por meio da subscrição de dinheiro, mesmo assim não teriam garantia alguma de que os trabalhadores, uma vez chegados lá, trabalhariam para eles. Depois de trabalharem por um período breve e ganharem algumas libras esterlinas, os trabalhadores emigrados sempre — a menos que sejam impedidos pelo governo — apoderam-se de uma extensão de terra desocupada e passam a trabalhar só para si mesmos. Repetidamente se tentou experimentar se era possível impor contratos de trabalho ou reembolsar o dinheiro da passagem de emigrantes àqueles que o haviam adiantado e o incômodo e o gasto sempre superaram a vantagem. O único recurso que sobraria, afora esse, são as contribuições voluntárias de paróquias ou indivíduos, para se livrarem do excesso de trabalhadores que já têm de — ou que provavelmente deverão — ser sustentados localmente com a taxa destinada aos pobres. Se esse negócio se generalizasse poderia levar trabalhadores a emigrarem, em número suficiente para absorver a população desempregada existente, mas não para aumentar os salários dos trabalhadores empregados, e a mesma coisa teria que ser repetida, num período inferior ao de uma nova geração. Uma das principais razões pelas quais a colonização deve ser um empreendimento nacional está em que só assim — excetuados casos excepcionais — a emigração pode sustentar-se. Pelo fato de a exportação de capital e mão-de-obra para um país jovem ser, como acima observamos, um dos melhores negócios, é absurdo pensar que ela, como outros negócios, não pague seus próprios gastos. Não pode haver nenhuma razão para deixar de reter uma parcela suficiente do grande acréscimo que tal emigração traz para a produção do mundo, a fim de reembolsar a despesa incorrida com ela. Por motivos já indicados, nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos têm condições de reembolsar-se pelas despesas incorridas: o governo, porém tem condições de fazê-lo. Ele pode tirar do aumento anual de riqueza, gerado pela emigração, a parcela que basta para reembolsar com juros os custos da emigração. As despesas de emigração para uma colônia devem ser pagas pela colônia; ora, isso em geral só é possível quando são pagas pelo governo da colônia. Dentre as maneiras de levantar na colônia um fundo para sustentar a colonização, nenhuma é comparável, em vantagem, àquela que foi sugerida — e defendida com tanta competência e perseverança — pelo sr. Wakefield: o sistema de fixar um preço para toda terra desocupada, e de destinar o dinheiro da venda à emigração. Em uma passagem anterior deste capítulo já respondi às objeções infundadas e pedantes feitas a esse projeto; cabe-nos agora falar das suas vantagens. Primeiramente, ele evita as dificuldades e os descontentamentos inerentes à arrecadação de uma quantia anual grande por meio de impostos — coisa que é praticamente inútil tentar, em se tratando de uma população de colonizadores espalhados pelas selvas, os quais, como prova a experiência, raramente podem ser obrigados a pagar impostos diretos, a não ser a um custo que ultrapassa o montante dos impostos; quanto à taxação indireta, em uma comunidade de fundação recente, ela logo atinge seu limite. A venda de terras é, portanto, decididamente a maneira mais fácil para levantar os fundos necessários. Mas o sistema apresenta outras vantagens, e ainda maiores. Este sistema representa um obstáculo benéfico à tendência de uma população de colonizadores de adotarem os gostos e as propensões da vida selvagem, e de se dispersarem tanto, ao ponto de perderem todas as vantagens do comércio, dos mercados, da divisão de ocupações e da associação de mão-de-obra. Pelo fato de obrigar os que emigram à custa do citado fundo a ganhar uma soma respeitável antes de poderem ser proprietários de terra, o sistema possibilita manter uma sucessão constante de trabalhadores assalariados, que em todo país são auxiliares altamente importantes, mesmo para camponeses proprietários; além disso, por diminuir a avidez dos especuladores agrícolas no sentido de aumentarem seu domínio de terras, o sistema conserva os colonizadores ao alcance uns dos outros, para efeito de cooperação, mantém um grupo numeroso deles dentro de uma distância relativamente pequena de cada centro de comércio exterior e de atividade não agrícola, e assegura a formação e o crescimento rápido de cidades e de produtos urbanos. Essa concentração, comparada com a dispersão que invariavelmente ocorre quando se pode comprar terras desocupadas, por nada, acelera grandemente o alcance da prosperidade, e aumenta o fundo disponível para a emigração de novas levas. Antes de se adotar o sistema Wakefield, os primeiros anos de todas as colônias novas estavam repletos de dureza e dificuldade: a última colônia fundada com base no princípio antigo, a de Swan River, é um dos exemplos mais característicos disso. Em toda a colonização subsequente agiu-se com base no princípio de Wakefield — embora imperfeitamente, já que apenas parte do dinheiro apurado na venda de terra foi destinada à emigração; a despeito disso, onde quer que se tenha introduzido esse sistema, como no sul da Austrália, em Victoria, e na Nova Zelândia, o obstáculo colocado à dispersão dos colonizadores e a injeção de capital gerada pela garantia de se poder conseguir mão-de-obra assalariada produziram, apesar de muitas dificuldades e muita má administração, prosperidade tão repentina e tão rápida, que mais se assemelha a uma fábula do que à realidade. (As objeções que foram levantadas, com tanta virulência, em algumas dessas colônias, contra o sistema Wakefield aplicam-se, na medida em que têm alguma validade, não ao princípio como tal, mas a algumas medidas que não fazem parte do sistema e foram enxertadas nele, sem necessidade alguma e com extrema impropriedade — por exemplo, a de colocar à venda somente uma quantidade limitada de terra, e de que a oferta seja por leilão, e em lotes não inferiores a 640 acres, em vez de vender toda a terra que é alvo de procura, e de deixar ao comprador liberdade ilimitada de escolha, tanto em relação à quantidade quanto à localização, a um preço fixo). O sistema de colonização autossustentada, uma vez implantado, aumentaria de eficiência a cada ano; seu efeito tenderia a aumentar em progressão geométrica. De fato, uma vez que todo emigrante fisicamente capaz acrescenta à riqueza do país, até este estar plenamente povoado, em tempo muito curto, além de seu próprio consumo, tanto quanto cobriria o custo de trazer outro emigrante, segue que, quanto maior for o número de emigrantes já enviados, tanto maior será o número que se poderá continuar a enviar, sendo que cada emigrante coloca os fundamentos para uma sucessão de outros emigrantes a intervalos curtos e sem novas despesas, até a colônia atingir a população que comporta. Valeria a pena, portanto, a pátria-mãe acelerar os primeiros estágios dessa progressão, mediante empréstimos às colônias para a finalidade de emigração, empréstimos estes que podem ser reembolsados com o fundo proveniente das vendas de terra. Adiantando assim os recursos para efetuar uma emigração imediata em grande escala, a mãe-pátria estaria investindo esse montante de capital da maneira que, entre todas as outras, é a mais benéfica para a colônia; e o trabalho e as poupanças desses emigrantes apressaria a chegada do momento em que se disporia de um grande fundo, arrecadado das vendas de terra. Seria necessário, para não saturar o mercado de mão-de-obra, agir em combinação com as pessoas dispostas a transferir seu próprio capital para a colônia. O fato de se saber que se disporá de grande contingente de mão-de-obra assalariada, em um setor de emprego tão produtivo, asseguraria grande emigração de capital de um país em que, como na Inglaterra, os lucros são baixos e a acumulação de capital é rápida; seria apenas necessário não enviar de uma vez um número de trabalhadores superior àquele que esse capital pudesse absorver e empregar com salários altos. Na medida em que, nesse sistema, determinado montante de gastos, uma vez incorrido, atenderia não somente a uma única emigração, mas a uma torrente constante de emigrantes, a qual aumentaria em amplitude e profundidade à medida que evoluísse, essa maneira de aliviar a superpopulação apresenta uma vantagem que não se encontra em nenhum outro plano jamais proposto para fazer frente às consequências do aumento populacional sem restringir o próprio crescimento populacional: há um elemento de indefinição nela; ninguém é capaz de prever precisamente até onde poderia ir sua influência, como válvula de escape para o excedente populacional. Por conseguinte, o governo de um país como o nosso, que apresenta uma população excessiva e tem sob seu domínio continentes desocupados, tem a obrigação estrita de construir, por assim dizer, e manter aberta, em combinação com os governos das colônias, uma ponte entre a pátria-mãe e esses continentes, implantando o sistema auto custeado de colonização em tal escala, que possa sempre ocorrer um montante de emigração tão grande quanto as colônias puderem em cada momento acomodar, sem que a emigração custe nada aos próprios emigrantes. A importância dessas considerações, no tocante às ilhas britânicas, tem diminuído muito, ultimamente, em razão do descomunal montante de emigração espontânea da Irlanda — emigração não apenas de pequenos arrendatários de terra, mas também da classe mais pobre de trabalhadores agrícolas, e que é ao mesmo tempo voluntária e autossustentada, pois a sucessão de emigrantes é mantida por fundos provenientes dos ganhos dos parentes e conhecidos que emigraram antes deles. A isso tem acrescido grande montante de emigração voluntária aos lugares em que se descobriu ouro, emigração esta que em parte atendeu às necessidades das nossas colônias mais distantes, as quais, tanto por interesses locais como por interesses nacionais, eram as que mais precisavam de emigrantes. Todavia, já diminuiu consideravelmente a torrente dessas duas emigrações, e embora a da Irlanda desde então tenha revivido em parte, não é certo que a ajuda do governo, de uma forma sistemática e na base do princípio da emigração auto custeada, não se torne novamente necessária para manter aberta a comunicação entre os trabalhadores que na Inglaterra precisam de trabalho e aqueles que alhures precisam de mão-de-obra para o trabalho. § 15. O mesmo princípio que aponta a colonização e a ajuda aos indigentes como casos aos quais não se aplica a objeção à interferência governamental abrange também uma variedade de casos, nos quais se trata de executar importantes serviços públicos, e até agora não há nenhum indivíduo particularmente interessado em prestá-los, e tampouco esses serviços assegurariam natural ou espontaneamente uma remuneração adequada. Tomemos como exemplo uma viagem de exploração geográfica ou científica. A informação procurada pode ser de grande valor público, e, no entanto, dela nenhum indivíduo auferiria qualquer benefício que compensasse o gasto incorrido com a preparação e execução da expedição, e por outra parte não há, no caso, maneira alguma de reter o benefício que vai para os que dela tiram proveito, a fim de reservar uma parte para remunerar os autores da mesma. Tais viagens são — ou poderiam ser — empreendidas mediante contribuições privadas, mas isso é um recurso raro e precário. São mais frequentes os exemplos em que a despesa é paga por companhias públicas ou por associações filantrópicas; mas em geral tais empreendimentos têm sido conduzidos à custa do governo, o qual tem assim a possibilidade de confiá-los a pessoas que, no critério dele, são mais qualificadas para a tarefa. Além disso, é uma função própria do governo construir e manter faróis no mar, colocar boias etc., para a segurança da navegação — pois, já que é impossível fazer os navios em viagem, que se beneficiam de um farol, pagarem uma taxa na ocasião de utilizá-los, ninguém haveria de construir faróis por motivos de interesse pessoal, a menos que fosse indenizado e recompensado por uma arrecadação compulsória feita pelo Estado. Há muitas pesquisas científicas, de grande valor para uma nação e para a humanidade, que exigem dedicação assídua em termos de tempo e trabalho, e não raro grandes gastos, por parte de pessoas que têm condições de obter alto preço por outros serviços que prestam. Se o governo não tivesse poder para indenizar as pessoas por tais gastos e remunerá-las pelo tempo e trabalho assim despendidos, tais pesquisas só poderiam ser efetuadas por aquelas pessoas, reduzidíssimas em número, que, além de possuírem uma fortuna independente, têm conhecimento técnico, hábitos laboriosos e muito espírito público, ou então um desejo ardente de celebrizar-se na ciência. Ligada a essa matéria está a questão de prover mediante dotações ou honorários, à manutenção daquilo que se tem denominado classe de eruditos. O cultivo do conhecimento especulativo, embora seja uma das ocupações mais úteis, constitui um serviço prestado à comunidade coletivamente, e não individualmente, sendo, portanto, um serviço pelo qual é, à primeira vista, razoável a comunidade pagar coletivamente — isto porque tal serviço não dá a nenhum indivíduo direito a alguma remuneração pecuniária, e porque, se não houver uma provisão de algum fundo público para tais serviços, não haverá nenhum estímulo para prestá-los, mas sim tanto desestímulo quanto o envolvido na impossibilidade de ganhar a vida com tal trabalho, e na consequente necessidade que se impõe à maioria daqueles que seriam capazes de prestar tais serviços, de empregarem grande parte de seu tempo para ganhar a subsistência. Contudo, o mal é maior na aparência do que na realidade. Tem-se afirmado que as maiores coisas têm sido realizadas geralmente por aqueles que dispunham de menos tempo; aliás, tem-se constatado que a dedicação de algumas horas por dia a uma ocupação rotineira é compatível com as realizações mais brilhantes em literatura e filosofia. Há, porém, investigações e experimentos que demandam não somente dedicação longa, mas também dedicação contínua de tempo e atenção; há também ocupações que absorvem e cansam tanto as faculdades mentais, que tornam impossível a pessoa aplicar-se com vigor a outros assuntos, mesmo em horas de lazer. É, pois, altamente desejável que haja uma forma de assegurar ao público os serviços de cientistas e talvez de algumas outras classes de sábios, assegurando-lhes os meios de subsistência sem que tenham que desistir de dedicar uma parte suficiente de seu tempo às suas pesquisas específicas. As bolsas de estudo das Universidades representam uma instituição extraordinariamente adequada para tal fim; entretanto, é raro serem aplicadas para essa finalidade, por serem outorgadas, na melhor das hipóteses, como recompensa por desempenho já apresentado, perpetuando, portanto, a memória daquilo que foi feito por outros, e não como honorários por trabalhos futuros para o progresso do conhecimento. Em alguns países, fundaram-se Academias para o incremento da ciência, do estudo da Antiguidade, da História etc., atribuindo-lhes emolumentos. O sistema mais eficiente, e ao mesmo tempo o menos sujeito a abusos, parece ser o de conferir cátedras de professor, com a obrigação de ministrar ensino. A ocupação de ensinar determinada matéria, ao menos em se tratando dos níveis mais altos, é antes uma ajuda do que um obstáculo para o cultivo sistemático da matéria em pauta. As obrigações inerentes a uma cátedra universitária quase sempre deixam muito tempo disponível para pesquisas originais; aliás, os maiores progressos que se têm feito nas várias ciências, tanto morais como físicas, provêm daqueles que eram professores públicos das respectivas matérias — desde Platão e Aristóteles até os grandes nomes das Universidades escocesas, francesas e alemãs. Não menciono as Universidades inglesas, porque até bem recentemente suas cátedras têm sido, como bem se sabe, mais ou menos nominais. Além disso, no caso de um docente em um instituto de educação de porte, o grande público tem um meio de emitir um julgamento, se não sobre a qualidade do ensino, ao menos sobre o talento e a iniciativa do professor — e é mais difícil abusar do poder de nomear pessoas para tal cargo, do que do poder de distribuir pensões e honorários a pessoas não expostas tão diretamente ao controle público. De maneira geral, pode-se dizer que tudo o que é desejável deve ser feito em prol dos interesses gerais da humanidade ou de gerações futuras, ou em prol dos interesses atuais daqueles membros da comunidade que precisam da ajuda de outrem; mas a natureza desses serviços não permite remunerar os indivíduos ou as associações que os prestam — isso é em si mesmo uma coisa que convém ser assumida pelo governo, recordando, porém, que, antes de assumir essa função, os governos devem sempre considerar se existe alguma probabilidade racional de o serviço ser assumido com base no princípio da iniciativa voluntária, e, se for esse o caso, se há probabilidade de o serviço ser feito de maneira melhor ou mais eficiente por órgãos governamentais do que pelo zelo e liberalidade de indivíduos. § 16. Quanto saiba, os itens acima mencionados englobam todas as exceções ao princípio virtual de que os problemas da sociedade podem ser mais bem resolvidos pela ação privada e voluntária. É necessário, porém, acrescentar que, na prática, o governo nem sempre tem condições de parar aquém do limite que define os casos intrinsecamente adequados para a intervenção dele. Nas circunstâncias específicas de determinada época ou nação, dificilmente há alguma coisa realmente importante para o interesse geral que não possa ser desejável, ou até necessário, que o governo assuma — não porque os particulares não tenham condições de fazê-lo eficientemente, mas porque não o farão. Há épocas e lugares em que não haverá estradas, estaleiros, portos, canais, obras de irrigação, hospitais, escolas, colégios, tipografias, se o governo não criar tudo isso — pois a população ou é muito pobre para dispor dos recursos necessários, ou é muito pouco evoluída intelectualmente para apreciar os objetivos, ou não está suficientemente treinada para o trabalho em equipe, para ser capaz de utilizar os meios necessários. Isso é verdade, em grau maior ou menor, em todos os países habituados ao despotismo, e particularmente naqueles nos quais existe uma defasagem muito grande entre o povo e o governo, em termos de civilização — como acontece naqueles que foram conquistados e são mantidos em sujeição por um povo mais dotado de iniciativa e mais evoluído. Em muitas regiões do mundo, o povo não é capaz de fazer por si mesmo nada que demande grandes recursos e trabalho conjunto, e em consequência tais coisas deixam de ser feitas, se o Estado não as executar. Em tais casos, a maneira de o governo demonstrar com mais segurança a sinceridade com a qual tem por meta buscar o bem máximo de seus súditos consiste em fazer, sim, aquelas coisas que, devido à falta de capacidade da comunidade, é obrigado a assumir, mas de uma forma que não tenda a fazer aumentar e perpetuar esta incapacidade, mas a corrigi-la. Um bom governo dará toda a sua ajuda de uma forma capaz de encorajar e fomentar no povo quaisquer rudimentos que puder encontrar de um espírito de iniciativa individual. Será assíduo em remover obstáculos e desestímulos à ação voluntária, e em propiciar quaisquer facilidades e qualquer guia que possam ser necessários; seus recursos pecuniários serão aplicados, quando for exequível, em ajudar os esforços privados, mais do que em substituí-los, e acionará seu mecanismo de recompensas e honrarias para suscitar tais esforços. A ajuda governamental, quando ministrada apenas por falta de iniciativa privada, deve ser dada de modo a ser, na medida do possível, um curso de educação para o povo na arte de realizar grandes objetivos por meio da ação individual e da cooperação voluntária. Não considerei necessário insistir aqui naquela função do governo que todos admitem ser indispensável, a saber, a de proibir e punir nos indivíduos aquela conduta que, no exercício de sua liberdade, for manifestamente lesiva a outras pessoas, trate-se do caso de força, fraude ou negligência. Mesmo na melhor condição que a sociedade já atingiu, é lamentável pensar quão grande é a percentagem de todos os esforços e talentos existentes no mundo que são utilizados simplesmente para neutralizarem-se uns aos outros. A meta apropriada do governo deve consistir em reduzir esse infeliz desperdício ao mínimo possível, adotando as providências que façam com que as energias atualmente gastas pela humanidade em prejudicar os outros, ou então em se proteger contra as injustiças de outrem, sejam canalizadas para o emprego legítimo das faculdades humanas, a saber, o de compelir as forças da natureza a servirem cada vez mais ao bem físico e moral.