Herbert Spencer – Filosofia Evolucionista Seleção de textos por Caldas Cordeiro ÍNDICE Prefácio OS PRIMEIROS PRINCÍPIOS PARTE I O INCOGNOSCÍVEL I - O Espaço e o Tempo II - A Matéria III - O Movimento IV - A Força V - Relatividade do conhecimento PARTE II O COGNOSCÍVEL I - Definição de filosofia II - Dados da filosofia III - Espaço, Tempo, Matéria, Movimento, Força IV - A Indestrutibilidade da Matéria V - Continuidade do movimento VI - A Persistência da Força VII - Persistência das relações entre as forças VIII - Transformação e Equivalência das Forças IX - Direção do movimento X - Ritmo do movimento XI - Recapitulação XII - Evolução e Dissolução XIII - A lei de evolução XIV - A lei de evolução (continuação) XV - A lei de evolução (continuação) XVI - A lei de evolução (fim) XVII - Instabilidade do Homogêneo XVIII - A multiplicação dos efeitos XIX - A segregação XX - O Equilíbrio XXI - A Dissolução XXII - Conclusão PRINCÍPIOS DE BIOLOGIA DADOS DA BIOLOGIA I - Ensaio duma definição da Vida II - Correspondência da Vida com o meio III - O grau da Vida varia segundo o grau da correspondência AS INDUÇÕES DA BIOLOGIA I - Crescimento e aumento de volume II - Desenvolvimento e crescimento de estrutura III - A função IV - Usura e Reparação V - Adaptação VI - A Individualidade VII - A Gênese VIII - A Hereditariedade IX - Variedade X - Classificação e Distribuição. A EVOLUÇÃO DA VIDA I - Aspetos gerais da hipótese das criações especiais II - Aspeto geral da hipótese da evolução III - Argumentos tirados da classificação, da embriologia, da morfologia e da distribuição PRINCÍPIOS DE PSICOLOGIA I - Dados e Induções da Psicologia II - Síntese Especial. - A Lei da Inteligência. Ação reflexa, instinto, memória, razão, sentimento, volição III - Análise Especial. - Unidade de composição dos fenômenos psicológicos. A consciência reduzida a um duplo processo de assimilação e de desassimilação IV - Teoria do conhecimento V - Resumo e conclusão PRINCÍPIOS DE SOCIOLOGIA OS DADOS DA SOCIOLOGIA I - Evolução Superorgânica II - Fatores dos fenômenos sociais III - Teoria Primitiva das Coisas IV - O domínio da sociologia. AS INDUÇÕES DA SOCIOLOGIA I - O que é uma sociedade? II - Uma sociedade é um organismo III - Tipos sociais e constituições IV - Metamorfoses sociais AS INSTITUIÇÕES DOMÉSTICAS I - Conservação da Espécie II - Os interesses diversos da espécie, dos pais e da progenitura III - Passado e futuro da família INSTITUIÇÕES CERIMONIAIS I - Das Cerimonias em geral ORGANIZAÇÃO POLÍTICA. INTEGRAÇÃO E DESINTEGRAÇÃO I - Caracteres gerais da sociedade militar II - Caracteres gerais da sociedade industrial III - Conclusões A MORAL EVOLUCIONISTA I - A boa e a má conduta II - Maneiras de julgar a conduta III - O egoísmo IV - O altruísmo V - Conciliação e fim PREFÁCIO É a primeira vez que em Portugal aparece uma exposição da filosofia evolucionista. Não vá parecer estranho que este trabalho seja feito pelo autor de algumas obras literárias; porque, além do direito concedido a todo o indivíduo de se encaminhar em novas direções, a literatura tem atualmente um campo muito mais vasto e largo do que antes se lhe atribuía, e, não pode ser verdadeiramente digna do nome, sem um grande alcance social. Este alcance social só lhe pode ser concedido quando ela atingir as altas generalizações que se contém na mais complexa de todas as ciências - a sociologia. E para se chegar até aqui é forçoso adquirir essa forma integrada do conhecimento, a que Herber Spencer chama filosofia. Este termo, portanto, não serve para cobrir com tal nome os verbalismos ocos e vazios de sentido a que nas escolas de Portugal, Espanha, França, mesmo da Alemanha, e enfim de quase toda a Europa, se dá o nome de filosofia. Em França, e nos países que lhe recebem a influência, dominam as doutrinas ecléticas e críticas que tiveram como propagadores, entre muitos, Cousin e Joufroy. Eis como Georges Lewes, na sua História da Filosofia, julga tais doutrinas: « Infelizmente pode-se convencer os homens de que temam a verdade, lisonjeando-os e enganando-os. Em França a lisonja foi abertamente confessada. Vitor Cousin apelava francamente para o «patriotismo» do seu auditório a favor das nossas «belas doutrinas». Os apelos para os prejuízos e para os sentimentos são constantes. Quando os argumentos faltam, a eloquência substitui-os, a emoção ocupa o lugar da demonstração. Vitor Cousin deu origem ao patrocínio filosófico e encheu as escolas francesas de professores que eram seus aderentes ou não ousavam confessar abertamente a sua fraqueza. A consequência foi que, sendo duma ignorância grosseira em ciência, conservou a filosofia afastada das influencias científicas. Esqueceram-se os progressos dos séculos e os métodos escolásticos puseram-se de novo em voga. Um mau palavreado filosófico, uma eloquência toda em petição de princípio, substituíram as investigações. O gênio claro e preciso da França envergonhou-se, durante muito tempo da sua clareza; e, temendo parecer imoral, rejeitou o auxílio da ciência e pôs-se a resmungar dum modo lamentável sobre o Eu, o Olho interno, O Infinito, o Verdadeiro, o Belo, Bem.» Hoje os métodos dominantes nas escolas de França, o neokantismo ou o criticismo dos Renouvier, dos Liard e doutros, são apenas uma variante do ecletismo de Cousín e de Jules Simon. É certo que são menos ignorantes dos progressos das ciências, mas, no entanto, empregam na critica o mesmo palavreado oco e os mesmos sofismas intencionais. Entre nós, temos em Lisboa o curso superior de letras, onde se estuda uma filosofia, de que será melhor não falar; e uma coisa chamada ainda em 1897, não sabemos porquê, filosofia da história. O professor desta cadeira, o sr. Jayme Moniz, é uma individualidade muito curiosa e merecia um estudo especial. Com mágoa, porém, diremos que não nos é possível dedicar-lhe, porque, se s. ex.ª oficialmente tem uma certa representação e ocupa postos rendosos, no domínio das ideias mal o podemos julgar, pois que não emitiu nenhuma, e, como escritor, é-nos impossível critica-lo, porque não escreveu nada. Corre com insistência que um compêndio anônimo para uso das escolas de instrução secundaria intitulado Estudo Elementaríssimo da História dos Povos Orientais, foi escrito por s. ex.ª. Não ousamos acredita-lo. Este livro, repertório de assassinatos, roubos, pilhagens e outros feitos de vários indivíduos que para nada interessa saber o nome, não só não contém uma única referência ao desenvolvimento da humanidade, ao progresso lento das instituições humanas, mas até está escrito num estilo de colegial, ignorante das mais elementares regras de pontuação. Há páginas e páginas em que o autor semeia pontos de exclamação sem sentido e sem se saber porquê. Eis uma amostra do que afirmamos: (trata-se dum Sinacherib, que o autor nos diz que foi rei da Assíria, pag. 40): «E também padeceu os revezes da fortuna! A Invasão que arrasou a Judéia, conseguiu de Ezequias o tributo, porém não obteve a conquista de Jerusalém! O exército que devia extinguir a independência do vale do Nilo foi vítima da peste no Delta! O mais velho dos filhos do rei, colocado por ele no governo de Babilônia, perdeu o cetro e caiu prisioneiro! Enfim não raro a vitória que engrinaldou as armas assírias veio a custar um preço que muito a excedeu! «Aproveitando um ensejo favorável, resolveu Sinacherib punir a capital do reino vizinho, sujeitando-a às horrorosas atrocidades de uma vingança tremenda! Cego de cólera deu com as tropas do seu comando sobre Babilônia e obrigou-a cruamente a render-se! Cobriu de cadáveres as ruas! Deixou profanar os templos! Consentiu o insulto aos deuses! Mandou proceder ao saque! Arrasou muralhas e palácios! Entregou parte da cidade às chamas! ............................................. «Morreu às mãos (às quatro mãos?) de dois dos seus filhos. « A história não sabe desculpar a dureza de coração deste soberano, deleitado nas torturas, nas mutilações, nos martírios incomportáveis a que submetia os chefes cativos. O rei folgava com a ruina, a dor e desgraça dos adversários, já inofensivos e miseráveis! Há quem suspeite que Sinacherih concorreu para o crime que pôs fim a vida de seu pai! A acusação carece de prova. Se, porém, assim sucedeu, a morte de Sinacherib pertence à classe de fatos, que a crença vulgar atribui a uma justiça imanente na ordem oculta das coisas!» Note-se que páginas como estas abundam no livro elementar. Não podemos, pois, crer que um professor dum curso superior, com mais de trinta anos de exercício, escreva com este critério - ou antes com esta falta de critério. Embora alguns fatos nos provem que o sr. Jayme Moniz tem uma noção muito errada do que seja a ciência histórica, não o julgamos num estado tão rudimentar de inteligência como o manifestado no Estudo Elementaríssimo dos Povos Orientais. O sr. Jayme Moniz, na regência da sua cadeira, em 1894, ocupou-se durante três aulas a descrever com todos os termos técnicos, com todas as minudencias, com todos os seus detalhes, o castelo medieval! Este mesmo professor chegou um dia ao curso e, desgrenhando com os dedos a sua cabeleira de orador lírico, disse para os alunos: - Um dos senhores dê-me aí três palavras ao acaso para eu começar a minha preleção. E um deles disse as seguintes palavras: caminhos de ferro, magnetismo, telegrafia. O conferente, tendo recebido o mote, começou um exuberante palavreado, que decerto foi coberto de aplausos. Estes dois casos, embora típicos, estão muito longe de ser isolados, e indicam em que estado se acha a mentalidade dum dos representantes mais galardoados da instrução superior em Portugal. Em Espanha, onde o fanatismo religioso impera, onde as torturas inquisitoriais têm sido ultimamente aplicadas aos prisioneiros, o ensino superior ressente-se do regime terrorista. Um professor de geologia é excomungado pelo bispo e tem de abandonar a regência da sua cadeira. Um professor da universidade de Barcelona, o sr. Tarrida del Marmol, é metido a ferros porque professava ideias livres. Só a muito custo consegue fugir para França, onde publica esse esmagador requisitório Les Inquisiteurs de Espaqne. Na própria França as intervenções do estado no ensino são revoltantes. O sr. Chauvin, da faculdade de letras de Paris, foi demitido pelo ministro da instrução publica - e seu colega - o sr. Alfred Rambaud, sabem porquê? Porque, numa conferência feita na província, a que presidira um deputado radical, ousou mostrar predileção pelo imposto progressivo! Parece blague, mas afirmamos que nada há de mais verdadeiro, e, de resto; é fácil consultar os jornais da época em que o fato se deu (maio - de 1897). Na Alemanha, embora a doutrina evolucionista tenha encontrado ilustres propagadores, Haeckel entre outros, na filosofia domina ainda muito o kantismo, e, o que é pior, é que as insanidades de Schopenhauer e dos seus piorados discípulos, Hartmann e Nietzsche, encontram quem as defenda e propague. Nietzsche, que nunca foi lúcido - está há três anos metido num hospício de alienados como doido furioso. Bastava ter lido o que ele escreveu para se concluir que o seu fim logico era esse. E, no entanto, apesar destes fatos evidentes, apesar de inteligências elevadas terem arrasado os devaneios deste mentecapto (Leia-se na Dégénérescence de Nordau, o belo estudo sobre Nietzsche e Hartmann), ele chegou a influenciar até certas correntes literárias da Alemanha, da Áustria, da Rússia, da França e de quase toda a Europa. É citado nestes países como uma espécie de águia genial, que resumiu, em sínteses admiráveis, o decurso de toda a evolução humana. Na Bélgica houve há três anos um bom sintoma de reação contra a influência do partido católico, dominante ainda na política e nas universidades. Quando em 1894 o governo fez adiar indefinidamente um curso de geografia, que o ilustre Elisée Reclus ia abrir em Bruxelas, com o pretexto de que o geógrafo francês acabava de chamar a atenção por certas ocorrências políticas - o reitor da universidade, Hetor Denis, demitiu-se, e foi fundar, com muitos professores, a Universidade Livre de Bruxelas, onde hoje ensinam os irmãos Reclus, Elie e Elisée. Alguns dos fatos expostos provam: primeiro que, embora a teoria da evolução seja aceite por todos os homens de ciência dignos deste nome, nas diversas universidades da Europa o ensino filosófico contem muitos professores que não aderiram a esta filosofia; segundo, que, sendo a liberdade de ensino apenas nominal na maior parte dos países, onde o êxito dos concursos para o professorado depende mais da intriga e da hipocrisia do que da inteligência e da franqueza, a vigilância e a tutela do estado obstam a exposição das doutrinas científicas reconhecidas como verdadeiras. (Na Révue Philosophique, dirigida por Ribot, n.º 8, 1876, vem um programa dos cursos filosóficos professados na Alemanha; e, como conclusão, lê-se: «deve notar-se que assuntos tais como a história das religiões, a filosofia religiosa, o Darwinismo, etc., que ninguém ousaria professar livremente entre nós, são frequentemente tratados na Alemanha») Daqui resulta a divisão dos livros que propagam conhecimentos em duas categorias: - os compêndios oficiais e os livros de ciência. Se nos graus menos elevados do saber humano, a diferença entre as duas categorias não é muito grande, quando se chega a filosofia, o abismo é profundo. As obras da primeira categoria dizem absolutamente o contrário do que as obras da segunda. É a segunda divisão que pertence este trabalho. Em Portugal este livro teve dois precedentes: são os volumes de Theophilo Braga e de Teixeira Bastos sobre Augusto Comte e o positivismo. Mas estes belos trabalhos têm hoje o defeito inerente ao assunto de que tratam, e, por isso, não representam já a forma mais integrada do conhecimento, a que se chama filosofia. A Augusto Comte, pensador genial, deve-se um grande serviço: foi ele o primeiro que expôs nitidamente a dependência que existe entre a biologia e a sociologia. Desta ciência se pode afoitamente dizer que foi Comte quem lhe lançou os alicerces. Mas, esquecendo os métodos que preconizava, cometem erros que tiram bastante alcance às suas descobertas. Em biologia aceitou o dogma das criações especiais, ele o contemporâneo de Geoffroy Saint-Hilaire, e que deve ter assistido ao longo debate na Academia das ciências de Paris entre Saint-Hilaire e Cuvier. A obra de Lamarck sobre a transformação das espécies pela influência do habito, começava a fazer bulha no mundo científico exatamente quando Comte escrevia. O ter morrido em 1857, isto é, dois anos antes do aparecimento da grande obra de Darwin, a Origem das Espécies, que resolveu a questão dum modo definitivo, não o absolve do erro. Em sociologia os seus erros foram ainda mais indesculpáveis. Assimilando a sociedade a um organismo, longe de compreender todo o alcance desta identificação, concluiu erradamente pela rigidez das formas conservadoras de governo e pelos processos de constrangimento para regular as ações humanas. Julgava também que a autoridade haveria sempre de se incarnar num corpo social. E para coroar toda a sua obra criou a religião da humanidade, que provocou um cisma entre os seus próprios discípulos. Os mais sãos dos positivistas - os que não aceitam a religião da humanidade e atribuem a infeliz concepção de Comte a um ataque hemiplégico - são tidos como renegados por aqueles que prestam culto à humanidade com um cerimonial tão rigorista como o do próprio catolicismo. Quando um movimento emancipador como foi o positivismo, degenera numa seita de maníacos, que pretendem jungir outra vez os homens às antigas concepções antropocêntricas, que originaram e originam ainda tantos erros, é que esse movimento caiu numa fase regressiva. A compreensão formulada por Comte dum modo admirável, de que a filosofia, só podendo conhecer o relativo, devia abandonar as especulações metafísicas e ter por fito a unificação dos dados das ciências, eis o grande contingente que o positivismo deu para o progresso da filosofia. Neste ponto o evolucionismo segue o mesmo caminho. Desejando fazer um sumario da doutrina da evolução, não poderia escolher melhor, para resumir esta doutrina, do que a obra do grande pensador, que concluiu o mais vasto monumento da filosofia. «A única exposição completa e metódica que eu conheço do evolucionismo, escreve o ilustre antropólogo Huxley, acha-se no Sistema de Filosofia de Herbert Spencer, obra que devem cuidadosamente estudar todos os que se desejam instruir sobre as tendências atuais do movimento científico» Darwin chamava a Spencer «o grande filósofo da Inglaterra». Georges Lewes na sua História da Filosofia pergunta: «se alguma vez apareceu em Inglaterra um pensador mais eminente, embora só o futuro lhe possa determinar o legar na história». E acrescenta: Dentre os pensadores ingleses foi o único que organizou um sistema de filosofia.» Stuart Mill, no livro Augusto Comte e o Positivismo, diz: Spencer é do pequeno número de pessoas que, pela solidez e pelo caráter enciclopédico dos seus conhecimentos, assim como pelo seu poder de encadear e de coordenar, podem reivindicar a qualidade de igual de Augusto Comte, assim como o direito de sufrágio na apreciação a fazer deste último.» Herbert Spencer nasceu em Derby em 1820. Seguiu a carreira de engenheiro civil e começou desde 1850 a colaborar em algumas revistas da Inglaterra. Em 1851 publica a Estática Social; em março de 1860 aparece um prospeto, anunciando a publicação aos fascículos do todos os volumes que depois constituíram o seu sistema de filosofia. Pode dizer-se que, desde o aparecimento do primeiro volume deste sistema, Os Primeiros Princípios" o nome de Spencer se tornou conhecido em todo o mundo científico. Por vezes os seus admiradores lhe têm oferecido um lugar no parlamento, mas o célebre filosofo tem sempre rejeitado, sob o pretexto de que perderia a sua atividade mental o se esterilizaria. Em 1883, a Academia das Ciências de França, que treze anos antes votara contra a admissão do grande Darwin, nomeia Spencer seu membro; mas ele, escreve uma carta, recusando tal nomeação, visto que a sua obra, feita fora das academias, estava em antítese com o espírito acadêmico. Deu idêntica resposta ao recusar a grã-cruz do mérito da Prússia, com que Guilherme II o agraciou há três anos: estando os seus trabalhos em completa contradição com as tendências do espírito militar da Alemanha, não aceitava essa mercê.» Quanto ao alcance ela obra de Spencer, direi apenas que ela foi a inspiradora da corrente mais avançada do pensamento moderno. No estudo sobre «a grandeza e decadência da Internacional» publicado na Révue des Deux Mondes, 15 de março de 1880, pag. 328-329, diz Laveleye: «No compte-rendu (fala do congresso ele Berne de 1876) só tenho a assinalar uma discussão entre o delegado belga, Cesar de Paepe, que defende o estado, e o delegado italiano, Malatesta, que pede a sua supressão. «A sociedade, diz Malatesta, não é a agregação artificial operada pela força ou por um contrato entre indivíduos naturalmente refratários. É um corpo orgânico vivo, do qual os homens são células concorrendo solidariamente para a vida e para o desenvolvimento do todo. Ela é regida por leis imanentes, necessárias, imutáveis, como todas as leis naturais. O que é, portanto, o estado? Uma superfetação que vive à custa do corpo social e que não tem outro fim e outro efeito senão organizar e manter a exploração dos trabalhadores. Eis porque nós queremos destruir o estado. Como se organizará depois a sociedade? Não podemos sabe-lo. Desconfiamos de todas as soluções utópicas. Já não queremos mais desse socialismo artificial, fantástico, anticientífico, «socialismo de gabinete» e combatê-lo-emos como reacionário. O nosso único fim deve ser destruir o estado.» A influência do positivismo e de Herbert Spencer é manifesta.» Agora algumas palavras sobre o modo como foi elaborado este sumario. Dei grande desenvolvimento aos Primeiros Princípios porque este livro é por assim dizer a chave com que se entra em todas as divisões do vasto edifício construído por Spencer. Para os Princípios de Biologia, de Sociologia e de Moral, servi-me dos livros do escritor inglês. Para a Psicologia, afim de não tornar o volume longo e fastidioso, aproveitei-me do belo trabalho de Th. Ribot, La Psychologie Anglaise Contemporaine, Quando comecei o sumario desconhecia um volume inglês do sr. Howard Collins, intitulado Resumo da Filosofia de Herbert Spencer, de que há uma tradução Francesa do sr. Henry de Varigny. Em meio do trabalho sobre os Primeiros Princípios, tive dele conhecimento e comprei-o, julgando que me pudesse auxiliar. Basta ler algumas páginas para se ver que essa obra, apesar das boas intenções do seu autor está longe de concorrer para o fim a que se destina: o levar os leitores a familiarizarem-se com a filosofia de Spencer. O efeito pode mesmo dizer-se que é contraproducente. O sr. Collins resume capitulo a capitulo, parágrafo a parágrafo, toda a obra do ilustre inglês. Mas resulta deste conjunto uma série de formulas abstratas, quase sem sentido e sem seguimento, que estafam logo a princípio a atenção dos mais pacientes. Spencer num prefacio elogia o esforço do sr. Collins, e diz que as partes que leu lhe pareceram muito bem-feitas. Verdade é que, antes disto, nos previne que o seu estado de saúde lhe impedira de ler o livro por inteiro. Seja como for, o trabalho do sr. Collins não me pareceu bom, e creio que ele não conseguiu nas 500 páginas do volume o que eu desejaria ter, de certo modo, conseguido com este livro: dar uma ideia, a mais exata possível, da doutrina evolucionista. Lisboa, julho, 1897. OS PRIMEIROS PRINCÍPIOS PARTE I O INCOGNOSCÍVEL I - O Espaço e o Tempo O que é o espaço? o que é o tempo? Sobre estas coisas há duas hipóteses: segundo uma, o espaço e o tempo são objetivos; segundo outra, são subjetivos. Na primeira hipótese são exteriores a nós, independentes de nós; na segunda são interiores e pertencem à nossa própria consciência. Analisando isto, temos: Se o espaço e o tempo existem objetivamente, são entidades. A asserção de que sejam não entidades destrói-se por si mesma: as não entidades são não existências, e sustentar que as não existências existem objetivamente, é unir termos contraditórios. De mais, negar que o espaço e o tempo sejam coisas, é no fundo chamar-lhes nadas, é avançar implicitamente o absurdo de que há duas espécies de nadas. Não se podem considerar como atributos duma entidade; ha para isto dois motivos: não só é impossível conceber realmente uma entidade de que sejam os atributos, mas também não podemos figurar-nos que deixem de existir quando mesmo tudo deixasse de existir: ao passo que os atributos desaparecem necessariamente com as entidades a que pertencem. Assim o espaço e o tempo não podem ser nem não entidades, nem atributos de entidades: portanto, temos de tomá-los como entidades. Mas se, na hipótese da objetividade do espaço e do tempo, somos obrigados a considera-los como coisas, a experiencia faz-nos logo ver que é impossível representa-los como coisas. Uma coisa para ser concebida deve sê-lo com atributos. Nós não podemos distinguir alguma coisa de coisa alguma senão pelo poder que essa alguma coisa exerce sobre a nossa consciência: atribuímos-lhe os diversos efeitos que produz na nossa consciência (ou, melhor, as causas hipotéticas destes efeitos): nós chamamos-lhes seus atributos; a ausência destes atributos é a ausência mesmo dos termos em que uma coisa é concebida, e implica a ausência de concepção. Quais são, pois, os atributos do espaço? O único que nos é permitido supor que lhe pertence, é a extensão. Com efeito extensão e espaço são termos convertíveis: por extensão, quando dizemos que é uma propriedade dos corpos, queremos dizer a ocupação do espaço; por conseguinte, dizer que o espaço é, extensão, é dizer que o espaço ocupa o espaço. Não há necessidade de se demonstrar depois disto que não podemos dar um atributo ao tempo. Não é só porque o espaço e o tempo não têm atributos que se não podem conceber como entidades; há uma razão, muito conhecida dos metafísicos, que os exclui desta categoria. Todas as entidades que nós conhecemos como tal são limitadas; e mesmo, quando pudéssemos conhecer e conceber uma entidade ilimitada, separá-la-íamos por isso das entidades limitadas. Mas, ao espaço e ao tempo, não podemos afirmar nem a limitação nem a falta de limitação. Somos completamente incapazes de representarmos uma imagem mental do espaço sem limites, e também completamente incapazes de supor limites, para além dos quais não haja mais espaço. Igualmente, se passamos do infinitamente grande para o infinitamente pequeno, é impossível imaginar um limite á divisibilidade do espaço, e é lambem impossível de o conceber divisível até ao infinito. Vê-se, portanto, sem que seja preciso menciona-las, que estamos sujeitos a iguais incapacidades para o tempo. Assim não podemos conceber o espaço e o tempo como entidades e somos incapazes de concebe-los como não entidades ou atributos de entidades. Somos forçados a supô-los como coisas existentes, e, no entanto, não podemos aproxima-los das condições sob as quais as existências são representadas. Refugiar-nos-emos na doutrina de Kant? Diremos que o espaço e o tempo são formas do entendimento, leis a priori ou condições do espírito consciente? Para escapar a grandes dificuldades, precipitar-nos-emos em dificuldades muito maiores ainda. A proposição em que se baseia a filosofia de Kant, ainda que verbalmente inteligível, não pode por esforço algum exprimir-se no pensamento; não pode ser tomada como uma ideia propriamente dita e fica puramente uma pseudo-ideia. Primeiro, afirmar que o espaço e o tempo, tais como nós os conhecemos são condições subjetivas, é afirmar implicitamente que não são realidades objetivas: se o espaço e o tempo que se encontram no nosso espírito pertencem ao eu, é forçoso que necessariamente não pertençam ao não-eu, o que é absolutamente impossível de conceber. O fato mesmo sobre o qual Kant baseia a sua hipótese, isto é, que a nossa consciência do tempo e do espaço não pode ser suprimida, prova-o, porque esta consciência do espaço e do tempo, de que não podemos desfazer-nos, é a consciência da sua existência objetiva. Não se adianta nada respondendo que esta incapacidade deve ser uma consequência inevitável se são formas subjetivas. A questão que se levanta é: o que é que a consciência afirma diretamente? Ora a consciência afirma diretamente que o tempo e o espaço não são no nosso espírito, mas fora dele, e que se não pode conceber que eles deixassem de existir quando mesmo o espírito deixe de existir. Não só a teoria de Kant é inconcebível no que nega implicitamente, mas também o é no que afirma abertamente. Não é só porque nós não podemos combinar a ideia de espaço com a da nossa própria personalidade, e considerar uma como a propriedade da outra, embora a nossa impossibilidade em faze-lo prove a inconcebilidade da hipótese, mas porque a hipótese contém ela mesma a prova da sua inconcebilidade. Porque se o espaço e o tempo são formas do pensamento, nunca deles podemos ter uma ideia, pois que é impossível que uma coisa seja ao mesmo tempo a forma dum pensamento e a meteria do mesmo. O espaço e o tempo são objetos da consciência. Kant afirma-o expressamente, dizendo que é impossível suprimir a consciência dum e doutro. Como é que, se são objetos da consciência, podem ser ao mesmo tempo condição da consciência? Se o espaço e o tempo pertencem ao número das condições sob as quais pensamos, é forçoso, quando pensamos o espaço e o tempo neles mesmo, que os nossos pensamentos sejam incondicionados, e, se pode haver pensamentos incondicionados, o que resta da teoria? Resulta, pois, que o espaço e o tempo são completamente incompreensíveis. O conhecimento imediato que julgamos ter, torna-se, quando o examinamos, numa ignorância total. Se, por um lado, acreditamos invencivelmente na sua realidade objetiva, por outro lado, somos incapazes de conhece-la racionalmente. Enfim, avançar a outra alternativa, a não realidade objetiva do espaço e do tempo (que se pode formular, mas que é impossível figurá-la) é apenas multiplicar os absurdos. II - A Matéria A matéria é divisível até ao infinito ou não o é: uma terceira suposição não é possível. Qual devemos aceitar? Se dizemos que a matéria é divisível até ao infinito, aceitamos uma suposição que não nos é possível figurar. Podemos cortar m corpo em dois, depois cada uma destas duas partes em duas, e isto até que reduzamos as partes a um tamanho que já não seja suscetível duma divisão física, podendo ainda assim continuar sem fim a operação. Mas não é isto conceber a divisibilidade infinita da matéria, é somente termos uma concepção simbólica, que é impossível desenvolver, tornar real, e que não tem meio algum de verificação. Por outro lado, afirmar que a matéria não é infinitamente divisível, é afirmar que ela se compõe de partes onde poder nenhum concebível pode operar a divisão; e esta suposição verbal, como a anterior, também não se pode representar; porque, cada uma destas partes elementares, se existe, deve ter uma face superior e uma face inferior, um lado direito e um lado esquerdo, como têm os fragmentos maiores. Ora é impossível imaginar que os lados desta parte elementar estejam tão próximos, que se não possa fazer passar entre eles um plano de seção; e qualquer que seja a força de coesão que se lhe suponha, é-nos impossível excluir a ideia duma força superior capaz de vencer a força de coesão. De sorte que, para a inteligência humana, uma hipótese não vale mais do que a outra, e apesar de tudo a nossa inteligência repugna não aceitar que as duas hipóteses não devam concordar com os fatos. III - O Movimento Empurramos um corpo com a mão e vemos que se move numa direção definida. Á primeira vista, parece que não há meio de duvidar da realidade do seu movimento nem da direção que segue. Não obstante é fácil demonstrar que nós podemos não ter razão, e que de ordinário não a temos. Temos um navio que, para maior facilidade, suporemos ancorado para o equador, a proa voltada para o oeste. Quando o capitão vai da proa a ré, em que direção se move? Na do este, responder-se-á evidentemente, e esta resposta pode aceitar-se provisoriamente. Mas levanta-se a ancora e o navio vaga para o oeste com uma velocidade igual à do capitão que caminha para o este. Em que direção se move agora o capitão, quando vai da proa a ré do seu navio? Não podemos dizer para o este, como há pouco, pois que, enquanto vai na direção de este, o navio leva-o para o oeste. Com relação ao espaço ambiente, ele não se move. Mas estamos certos disso? O capitão está sempre no mesmo ponto? Tendo em conta o movimento da terra sobre o seu eixo, vemos que, longe de estar estacionário, o capitão viaja para este na razão de 1000 milhas por hora; de modo que nem a explicação daquele que o vê, nem a explicação do que tem conta do movimento do navio, se aproxima da verdade. Mas há mais: um exame mais minucioso, fazer-nos-há ver que esta última conclusão, também não vale mais do que as outras. Com efeito esquecemos o movimento da terra na sua orbita. Como é de 68000 milhas por hora, segue-se que, supondo que seja meio-dia, o capitão move-se não na razão de 1000 milhas por hora na direção do este, mas na razão de 67000 milhas na direção do oeste. E, apesar de tudo, ainda não encontrámos o verdadeiro sentido e a verdadeira velocidade do seu movimento. Ao movimento da terra na sua órbita, é preciso juntar o do sistema solar todo para a constelação de Hercules, e, se o fizermos, vemos que o capitão não vai nem para o este nem para o oeste, mas que segue uma linha inclinada sobre o plano da eclíptica e que caminha com velocidade maior ou menor (segundo a época do ano) do que aquela que mencionamos. A isto devemos ajuntar que, se as disposições dinâmicas do nosso sistema sideral nos fossem completamente conhecidas, descobriríamos provavelmente que a direção e a velocidade do movimento real diferem ainda bastante dos resultados obtidos. Vê-se bem quanto as nossas ideias do movimento são enganadoras. O que parece mover-se está realmente parado; o que parece parado move-se na realidade; o que, segundo julgamos, se dirige para uma direção, dirige-se, ao contrário, para direção inversa. Sabemos assim que aquilo de que temos consciência, não é o movimento real dum objeto na sua velocidade ou direção, mas esse movimento medido em relação com um dado ponto. No entanto, concluindo que os movimentos que observamos não são movimentos reais, supomos implicitamente que há movimentos reais. Corrigimos as ideias sucessivas que temos sobre a direção e a velocidade dum objeto, e consideramos certo haver uma direção real e uma velocidade real. Temos por certo que há no espaço pontos fixos com relação aos quais todos os movimentos são absolutos, e vemos que nos é impossível livrar-nos desta ideia. Em todo o caso, o movimento absoluto não pode ser imaginado e muito menos ainda percebido. O movimento, considerado á parte das condições de espaço que de ordinário lhe marcamos, é completamente inconcebível. Com efeito, o movimento é uma mudança de lugar; mas no espaço sem limite a mudança de lugar, é inconcebível, porque o próprio lugar também o é. O lugar só pode ser concebido relacionado com outros lugares, e, não havendo objetos dispersos através do espaço, um lugar só se pode conceber relacionado com os limites do espaço; donde se conclui que, num espaço ilimitado, um lugar é inconcebível. Assim, por uma parte vemo-nos obrigados a pensar que há um movimento absoluto, e por outra que o movimento absoluto é incompreensível. Uma outra dificuldade se levanta quando consideramos a transmissão do movimento. O habito impede-nos que vejamos quanto este fenômeno tem de maravilhoso; familiarizados com ele desde a infância, não vemos nada de notável na propriedade que um objeto em movimento possui de produzir movimento num objeto estacionário. E não obstante é impossível compreender isto. Que diferença há entre um corpo quando recebe um choque de quando estava parado? Que coisa se lhe ajuntou que, sem afetar de uma maneira sensível as suas propriedades, o torna capaz de atravessar o espaço? O objeto é o mesmo, quer em repouso quer em movimento. Num destes estados não tem tendência para mudar de lugar; mas no outro, é preciso que a cada momento mude de posição. O que é a coisa que continua a produzir este efeito sem se esgotar? Porque é que permanece no objeto? Diz-se que o movimento foi comunicado; mas como? E o que foi? O corpo que dá o choque não transferiu uma coisa ao corpo que o recebeu; também não se pode dizer que lhe comunicou um atributo. O que é que foi comunicado? Eis-nos em face do velho enigma do movimento e do repouso. Observamos que os objetos que impelimos com a mão ou doutro modo vão afrouxando gradualmente e por fim param. Segui tanto quanto quiserdes com o pensamento uma velocidade decrescente e vereis que fica sempre ainda alguma velocidade. Tomai a metade e em seguida a metade da soma do movimento, e isto até ao infinito, o movimento existe sempre; e o movimento mais pequeno está separado de zero por um abismo impreenchível. Assim como uma coisa, por mais pequena que seja, é infinitamente grande comparada com o nada; assim também o movimento menos concebível é infinito em comparação do repouso. Portanto, quer nós o consideremos com relação ao espaço, ou a matéria, ou com relação ao repouso, encontramos sempre que o movimento não é um verdadeiro objeto de conhecimento. IV - A Força Levantamos uma cadeira com o dedo ou com a mão toda e a sensação produzida é diversa. A força, tal como a conhecemos, sendo uma impressão da nossa consciência, não podemos do mesmo modo conceber a força que existe na cadeira em comparação com a que existe em nós, a não ser que dotemos a cadeira de consciência. De maneira que é absurdo pensar que a Força ela mesma se pareça com a sensação que nos produz, e, apesar disto, é necessário julga-lo, por menos que queiramos a representar na consciência. Além disto, como podemos compreender a conexão entre a força e a matéria? A matéria só nos é conhecida por manifestações da força: a prova última que temos da existência da matéria, é o ela ser capaz de resistir. Suprimi a resistência, só fica uma extensão vazia. No entanto, por outro lado, a resistência separada da matéria, quer dizer separada dalguma coisa de extensão, é inconcebível. É-nos impossível ter uma ideia clara da força, nela mesmo, e de compreendermos o modo como atua. V - Relatividade do conhecimento Se as interpretações cada vez mais profundas da natureza, que constituem o progresso das ciências, não são mais do que a redução sucessiva de verdades especiais a verdades gerais, e destas a outras ainda mais gerais, resulta evidentemente que a verdade mais geral, não podendo reduzir-se a uma mais geral, não pode ser interpretada. É evidente que, visto o conhecimento o mais geral a que chegamos, não poder ser reduzido a um mais geral, não pode ser compreendido. É evidente que a explicação põe-nos em face elo inexplicável. A conclusão que se impõe quando analisamos o produto do pensamento como se apresenta objetivamente nas generalizações científicas, impõe-se também quando se analisa a operação do pensamento tal como se apresenta subjetivamente na consciência. Para conhecer a causa primeira, o infinito, o absoluto, era preciso que nós pudéssemos concebe-la. Pode ela parecer-se com alguma coisa de que nós possamos ter uma experiencia sensível? Com certeza que não. Entre o que criou e o que foi criado deve haver uma distinção que exceda todas as distinções existentes entre as diversas divisões das coisas criadas. Ou será que o real, embora inconcebível por classificação com a aparência, seria concebível classificando-o com ele mesmo? Esta suposição é tão absurda como a outra. Implica a pluralidade da causa primeira, do infinito, do absoluto: esta contradição contradiz-se por si mesma. Não pode haver mais do que uma causa primeira, pois que a existência de mais do que uma implica a existência duma coisa necessitando duma outra e esta outra seria a verdadeira causa primeira. A suposição de que há dois ou três infinitos destrói-se ela própria. Percebe-se claramente que infinitos, limitando-se, tornar-se-iam finitos. E assim também um absoluto que não existisse só, mas com outros absolutos, cessaria de ser absoluto e tornava-se relativo. Por consequência o incondicionado, visto não poder ser classificado nem com uma forma do condicionado nem com outro incondicionado, não pode classificar-se de modo algum. Admitir que ele não pode ser conhecido como pertencendo a tal ou tal espécie, é admitir que é incognoscível. Todo o pensamento implica relação, diferença, semelhança. Podemos dizer que o incondicionado, não apresentando nenhum destes caracteres, é três vezes inconcebível. Se todo o ato de conhecimento é a formação na consciência duma relação paralela a uma relação no meio, a relatividade do conhecimento é evidente. Se pensar é estabelecer relações, nenhum pensamento se pode exprimir senão por relações. A análise mesmo das ações vitais leva-nos não só a concluir que as coisas por elas mesmas não podem ser conhecidas, mas ensina-nos que o seu conhecimento, a ser possível, seria sem utilidade. Todas as ações, consideradas, não separadamente, mas no conjunto, têm por fim o balanceamento de certas operações exteriores, com certas operações interiores. Há forças exteriores sempre em atividade que tendem para por a matéria de que se compõem os corpos organizados no estado de equilíbrio estável que nos apresentam os corpos brutos; há forças interiores que combatem constantemente esta tendência; e podem-se considerar as mudanças constantes que constituem a vida como efeitos necessários da existência deste antagonismo. Por exemplo, quando se está em pé, é preciso que certos pesos sejam neutralizados por certos esforços: os membros ou os outros órgãos gravitando para a terra, arrastam as partes a que se ligam; têm, pois, necessidade para conservar a sua posição da tensão de certos músculos; ou, por outros termos, o grupo de forças, que se fosse único, lançaria o corpo por terra, deve ser contrabalançado por um outro grupo de forças. Reduzindo-a à sua expressão mais abstrata vemos que a vida pode definir-se uma adaptação continua das relações internas às relações externas. Nesta definição estão compreendidas a vida física e a psíquica. Compreendemos que aquilo a que chamamos inteligência, consiste essencialmente no estabelecimento de adaptações mais variadas, mais completas e mais complicadas; e vemos que os maiores progressos da ciência podem reduzir-se a relações mentais de coexistência e de sequência, coordenadas de tal modo que correspondam rigorosamente a certas relações de coexistência e de sequência, que tem a sua localização no exterior. No espírito dum caçador, a experiencia ligou uma relação entre o aparecimento e o voo duma perdiz e a destruição doutros pássaros, entrando nestes a caça; o caçador tem uma outra entre as impressões visuais que correspondem a certas distancias do espaço e o alcance da espingarda; aprendeu também, por observações repetidas, que é preciso visar um ponto um pouco adiante da ave que voa para atirar com êxito. Se considerarmos a fabricação da espingarda, encontramos relações análogas. As relações de coexistência entre a cor, a densidade dum mineral e o lugar que ocupa na terra, mostraram-nos que contém ferro; e, para o extrair, é forçoso que certos dos nossos atos se juntem a certas afinidades manifestadas pelo minério de ferro, o carvão e a cal, a uma temperatura alta. Se dermos um passo mais e pedirmos ao químico para nos explicar a explosão da pólvora ou ao matemático que nos dê a teoria dos projéteis, vemos ainda que eles apenas nos explicam relações especiais e gerais de coexistência e de sequência entre as propriedades, os movimentos, os espaços, etc. Notamos finalmente que aquilo a que chamamos verdade (os princípios a que nos devemos conformar para sermos bem sucedidos nos nossos esforços de conservar a vida) não é mais do que a correspondência exata das relações subjetivas com as relações objetivas; enquanto o erro, que nos conduz a falta, e por consequência a morte, é a ausência desta correspondência exata. Se, pois, a vida, em todas as suas manifestações, compreendendo a inteligência sob as suas formas mais elevadas, consiste em adaptações continuas de relações internas às relações externas, o caráter necessariamente relativo do nosso conhecimento torna-se evidente. Constatamos coisas simultâneas e coisas consecutivas; e, supondo que o façamos até ao fim, nunca deixaremos de ter senão coexistências e sequências. Resta uma última questão. O que devemos dizer do que excede a consciência? A investigação banirá dos nossos espíritos tudo, à excepção do relativo? Ou devemos acreditar nalguma coisa além do relativo? Somos forçados a ter uma consciência positiva, embora vaga, do que excede a consciência distinta. A nossa consciência do incondicionado, sendo literalmente a consciência incondicionada ou os materiais primeiros do pensamento, as quais, quando pensamos, damos forma definida, segue-se que um sentimento sempre presente da existência real é mesmo a base da nossa inteligência. Podemos, por atos sucessivos do espírito, livrar-nos de todas as condições particulares, e substitui-las por outras, mas não podemos desembaraçar-nos desta substancia indiferenciada da consciência, que é condicionada de novo em cada um dos nossos pensamentos; fica sempre em nós uma convicção irresistível da existência real dalguma coisa que existe sempre, independentemente de condições. Resumindo, a existência do não relativo está implicada no fato de que toda a nossa consciência é relativa, que o relativo mesmo é inconcebível, se não estiver em relação com um não relativo real; que, a não se admitir um não relativo ou absoluto real, o próprio relativo torna-se absoluto; e finalmente que a existência dum não relativo está implícita na operação do pensamento. PARTE II O COGNOSCÍVEL I - Definição de filosofia Acabamos de ver que não podemos conhecer a natureza intima, do que em nós se manifesta. Qual é, pois, o objeto do nosso conhecimento? De que modo o conhecemos? Em que consiste o mais alto grau de conhecimento? Se muitos divergem na opinião que se forma da área da esfera em que se deve compreender a filosofia, concordam todos na realidade, pelo menos ostensivamente, em empregar este termo só quando se trata de conhecimentos fora do vulgar. O que resta como elemento comum das diversas concepções de filosofia, uma vez postos de parte todos os elementos divergentes, é o conhecimento do mais alto grau de generalidade. A inteligência só alcança o relativo; portanto temos de banir do campo da filosofia as antigas concepções que antes faziam parte do seu domínio. O que lhe fica é a parte que ocupa a Ciência. A ciência tem por objeto as coexistências e as sequências dos fenômenos; começa por agrupa-los para formar generalizações simples, e eleva-se gradualmente a generalizações mais altas e mais vastas. Mas o que fica para a filosofia? A filosofia pode ainda ter o nome do conhecimento da mais alta generalidade. A ciência ou o grupo das ciências é a soma dos conhecimentos formados pela contribuição de cada uma, e nada nos ensina do conhecimento da fusão das ciências reunidas. Tal como o vulgo a define, a Ciência compõe-se de verdades mais ou menos isoladas e desconhece a sua integração. Um exemplo fazer-nos-há ver esta diferença. Quando atribuímos a queda de água dum ribeiro a mesma força que produz a queda duma pedra, formulamos uma proposição verdadeira e extensiva a todos os fatos duma certa divisão da Ciência. Se, em seguida, para explicar um movimento num sentido quase horizontal, citamos a lei de que os fluidos submetidos a forças mecânicas reagem com forças iguais em todas as direções, formulamos um fato mais vasto, que compreende a interpretação científica de muitos outros fenômenos, como os das nascentes, da prensa hidráulica, da máquina a vapor, da máquina pneumática. Depois quando esta proposição, que só se estende a dinâmica dos fluidos, se inclui numa proposição de dinâmica geral, compreendendo as leis do movimento dos sólidos e dos fluidos, alcança-se um princípio superior, mas ainda incluído no domínio da ciência. Quando consideramos só as aves e os mamíferos supomos que os animais que respiram o ar livre têm o sangue quente; depois, se nos lembramos que os répteis, que também respiram o ar, só têm um calor próprio do seu meio, dizemos com mais exatidão que os animais têm as temperaturas proporcionadas ao ar que respiram; e, em seguida, pensando em certos peixes, que conservam uma temperatura superior à da água em que nadam, corrigimos a generalização, e afirmamos que a temperatura varia com o grau de oxigenação do sangue; mais tarde, modificando a nossa proposição para satisfazer a novas objeções, chegamos a afirmar, definitivamente, que a relação procurada existe entre a quantidade do calor e a quantidade das mudanças moleculares. Assentámos verdades científicas cada vez mais largas, cada vez mais gerais e mais completas, e chegamos no fim a verdades puramente cientificas. Se, guiados por experiências comerciais, chegamos a concluir que os preços se elevam quando a procura excede a oferta, que os produtos saem dos lugares em que abundam para os lugares em que são raros, e que as indústrias das diversas localidades são determinadas sobretudo pelas facilidades que essas povoações lhes apresentam; e se, estudando as generalizações da economia política, as ligamos todas ao princípio de que cada homem busca satisfazer os seus desejos pelos meios que menos esforços lhe custam, princípio que dirige as ações individuais, dos quais os grandes fenômenos sociais, o valor, o comercio, a indústria, são as resultantes, temos ainda apenas proposições científicas. Como se constitui a filosofia? Dando um passo mais. Enquanto só se conhecem as verdades científicas e as consideramos como independentes, não se pode, sem abandonarmos o sentido das palavras, chamar filosofia mesmo a mais vasta dentre elas. Mas quando, depois de as ter reduzido, uma a um simples axioma de mecânica, a outra a um princípio de física molecular, a terceira a uma lei de ação social, as consideramos todas como corolários duma verdade última, chega-se ao conhecimento que constitui a filosofia propriamente dita. As verdades da filosofa mantêm pois com as mais altas verdades científicas a mesma relação que estas com as verdades cientificas inferiores. Assim como cada uma das generalizações superiores envolve e consolida as generalizações mais restritas da sua seção, também as generalizações da filosofia envolvem e consolidam as generalizações da ciência. Por conseguinte, a filosofia é o produto último da operação, que começa por uma simples coleção de observações secas, que se continua pela elaboração de proposições mais largas e mais livres de casos particulares, e terminando por proposições universais. Para dar a definição a forma mais simples e clara diremos: o conhecimento da espécie mais inferior é o saber não unificado; a ciência, o saber parcialmente unificado; a filosofia, o saber completamente unificado. II - Dados da filosofia Cada pensamento implica todo um sistema de pensamentos e deixa de existir desde que for separado dos seus correlativos. Assim como não podemos isolar um único órgão dum corpo vivo e tratá-lo como tendo uma vida independente do resto, também não podemos separar do organismo das nossas cognições uma única destas cognições e estuda-la como existindo separada. Uma inteligência desenvolvida por completo não se pode organizar com os materiais informes da consciência senão por uma operação que, dando aos pensamentos caráteres definidos, os une entre eles por um laço de dependência, por certas ligações vitais, cuja destruição arrasta imediatamente o aniquilamento de todas. É por desconhecerem esta importante verdade que certos pensadores tomaram de ordinário como ponto de partida um dado ou dados pretendidos simples, que não admitiram nada mais além destes dados, e serviram-se deles como querendo provar ou refutar proposições que, dum modo implícito, estavam já afirmadas incientemente ao mesmo tempo que as outras eram cientemente. Este raciocínio provém dum emprego vicioso de palavras, não mal aplicadas ou invertendo o sentido - que também tem originado muitos erros - mas dum vicio mais profundo e menos evidente. Consiste ele em considerar apenas a ideia indicada diretamente por cada palavra, deixando a parte as numerosas ideias indiretamente indicadas. Por que um termo falado ou escrito pode ser desligado de todos os outros, supõe-se, por engano, que a coisa que esse termo significa pode desligar-se das coisas que todos os outros termos significam. O metafísico cético, desejoso de dar todo o rigor possível ao seu raciocínio diz: «admitirei tal coisa, e nenhuma outra.» Mas não haverá suposições tácitas impossíveis de separar da suposição que ele admite? O metafísico afirma que há uma outra coisa ou outras coisas que ele poderia admitir; com efeito é impossível pensar na unidade sem pensar numa dualidade ou numa pluralidade correlativa. Ainda mesmo quando se impõe limites, o cético conserva e aceita muitas coisas que julga abandonar. De mais, ele dá uma definição do que supõe. Não haverá nada de inexprimido no pensamento duma coisa? Há a ideia dalguma coisa, que a definição exclui; há a ideia duma outra existência. Mas não é tudo. Definir uma coisa ou indicar-lhe limites, implica a ideia dum limite; e é impossível ter a ideia de limite sem uma noção de quantidade, de extensão, de duração, grau. Além disto uma definição é impossível se não contem a ideia de diferença; e não só a diferença é inconcebível, sem duas coisas que difiram, mas implica também a existência doutras diferenças do que as que a definição implica; porque, a não ser assim, um conceito geral de diferença seria impossível. Não é tudo ainda. Toda a ideia implica a intuição de semelhança: a coisa que se supõe abertamente não pode ser conhecida absolutamente como uma coisa única; não pode ser conhecida senão como tal ou tal espécie, senão como classificada com outra coisa, em virtude dum atributo comum. Portanto, ao lado do dado confessado, introduzimos sub-repticiamente muitos outros dados não confessados, - uma existência além daquela de que se fala, a quantidade, o número, o limite, a diferença, a semelhança, o gênero, o atributo. Sem falar de muitos outros dados que uma análise completa poderia descobrir, temos nestes postulados não reconhecidos as linhas duma teoria geral, teoria que não pode provar nem refutar o argumento do metafísico. Qual é, portanto, o caminho que se abre ante a filosofia? A inteligência, na sua maturidade, compõe-se de concepções organizadas e consolidadas de que não pode libertar-se, e sem as quais não pode ter ação, do mesmo modo que o corpo não pode mover-se sem o auxílio dos membros. Por que meio a inteligência, que busca uma filosofia, poderá compreender estas concepções e demonstrar a sua validade ou não validade? Ha apenas um. É forçoso admitir como verdadeiras provisoriamente as concepções que são vitais e que se não podem separar do resto sem implicar a dissolução do espírito. As intuições fundamentais, essenciais à operação do pensamento, devem ser temporariamente admitidas como incontestáveis; e deixar aos resultados o cuidado de justificar esta hipótese, Como é que os resultados a podem justificar? Como justificam outra qualquer suposição, vendo que todas as conclusões, que dela se podem deduzir, correspondem aos fatos da experiência direta, pela concordância das experiencias que essa intuição nos faz presumir com as experiencias reais. Não há outro modo de provar a validade duma crença senão mostrando que ela concorda com todas as nossas outras crenças. Se supomos que uma certa massa que tem uma certa cor, um certo brilho, é a substancia chamada ouro, como fazemos para provar a hipótese de que é ouro? Representamo-nos certas outras impressões que o ouro produz sobre nós e observamos se, sob condições apropriadas, esta massa as produz também. Lembramo-nos que o ouro tem um peso especifico considerável, e se, tomando o peso da substancia, encontrarmos que pesa muito em relação ao seu volume, consideramos a correspondência que se manifesta entre a impressão representada e a impressão recebida como uma nova prova de que a substancia é ouro. Querem-se ainda mais provas? Comparamos outros certos efeitos ideais com outros certos efeitos reais. Sabemos que o ouro, diferindo neste ponto da maior parte dos metais, é insolúvel no ácido nítrico e se, depois de deitarmos uma gota de ácido nítrico, vemos que não lhe produz nem efervescência nem alteração, consideramos esta concordância entre o fato previsto e o fato realizado como uma razão a mais para julgarmos que a substancia é ouro. Se, identicamente, a grande maleabilidade do ouro nos parece poder igualar-se com a desta substancia; se, como o ouro, se derreter a 2000 graus: e se, em todas as condições, lhe suceder o que sucede ao ouro nessas condições, a convicção de que é ouro eleva-se para nós a esse grau que é o da maior certeza. Com efeito, assim como vemos por este exemplo, o que sabemos do ouro é apenas a percepção dum grupo definido de impressões, apresentando - relações definidas, que se revelam sob condições também definidas; e se na experiencia atual, as impressões, as relações e as condições correspondem perfeitamente ás das experiencias anteriores, o conhecimento tem todo o valor que pode ter. De modo que, para generalizar a proposição, as hipóteses, compreendendo as mais simples, que fazemos a cada instante quando reconhecemos objetos, são verificadas quando se acha uma inteira conformidade entre os estados de consciência que as constituem e certos outros estados de consciência dados na percepção ou na reflexão, ou numa e noutra; não ha para nós outro conhecimento possível além do que consiste na intuição, destas conformidades ou não conformidades que lhes correspondem. Por consequência, a filosofia, embora forçada a fazer estas suposições fundamentais, sem as quais o pensamento é impossível, pode justifica-las, mostrando a sua conformidade com todas as outras revelações da consciência. Excluídos, como estamos, de todo o conhecimento do que vai além do relativo, a verdade na sua forma mais elevada, não pode ser para nós mais do que a concordância perfeita, em todo o campo da nossa experiência, entre as representações de coisas que chamamos ideais e as representações de coisas que chamamos reais. Se quando descobrimos que uma proposição não é verdadeira, queremos dizer simplesmente apenas que descobrimos uma diferença entre uma coisa esperada e uma coisa apercebida e nada mais, é forçoso que um corpo de conclusões, em que não haja diferença desta natureza, seja o que chamamos um corpo de conclusões inteiramente verdadeiro. Vemos claramente que, pois que partimos destas intuições fundamentais, cuja verdade admitimos provisoriamente, ou melhor das quais se admite provisoriamente que sejam compatíveis com todas as outras revelações da consciência, a demonstração ou a refutação desta compatibilidade torna-se o objeto da filosofia, e que a demonstração completa dessa compatibilidade é a mesma coisa do que a unificação completa do conhecimento, fim real da filosofia. Qual é esse dado ou antes quais são esses dados de que a filosofia carece? É claro que a proposição formulada implica um dado primordial. Já supusemos implicitamente e devemos continuar a supor que as compatibilidades e as incompatibilidades existem e podem ser conhecidas por nós. Não podemos deixar de admitir a verdade do vereditum da consciência, quando esta nos declara que certas manifestações se assemelham e outras diferem. Se a consciência não é um juiz competente da semelhança ou dessemelhança destes estados, não é possível estabelecer esta compatibilidade que se encontra em todos os nossos conhecimentos e que constitui a Filosofia, e também se não pode estabelece essa não compatibilidade pela qual exclusivamente se pode provar a falsidade de qualquer hipótese filosófica. Vemos com mais nitidez a impossibilidade de avançar, quer na certeza, quer no ceticismo, sem supor esses dados, se notarmos como a cada passo que fazemos num raciocínio, nós os supomos em tudo e sempre. Dizer que todas as coisas duma certa classe são caraterizadas por um certo atributo, quer dizer que todas as coisas conhecidas como semelhantes por diversos atributos notados dum nome comum são também semelhantes pelo atributo particular de que se fala. Dizer que um certo objeto em que se fixa a nossa atenção pertence a esta classe, quer dizer que é semelhante a todos os outros nos diversos atributos conotados pelo seu nome comum. Dizer que esse objeto possui o atributo particular de que se fala, é dizer ainda que é semelhante aos outros debaixo deste aspeto. Ao contrário, a afirmação que o atributo que se atribuía a esse objeto não lhe pertence, implica a afirmação que em lugar da semelhança há uma não semelhança. Por consequência, nem a afirmação nem a negação dum teorema da razão, ou dum qualquer destes teoremas não é possível se se não admite o testemunho da consciência quando afirma que certos de seus estados são semelhantes ou diferentes. Sem dúvida pode provar-se que estados de consciência que se tinham julgado, depois duma comparação cuidadosa, semelhantes, são na realidade diferentes; ou que aqueles que se tinham julgado por engano dissemelhantes são semelhantes. Mas como prová-lo? Simplesmente por uma comparação mais cuidada, feita indiretamente ou diretamente. E a aceitação da nova conclusão o que implica? Simplesmente que um vereditum refletido da consciência é preferível a um vereditum irrefletido; ou, falando com mais precisão, que uma intuição de semelhança ou de diferença que resiste a crítica deve ser admitida de preferência a uma intuição que não resiste; esta resistência é em que deve ser baseada a sua aceitação. Se partirmos da conclusão, já obtida, de que todas as coisas conhecidas são manifestações do Incognoscível, temos que as manifestações consideradas como tais, podem dividir-se em duas grandes classes - as fortes e as fracas. As primeiras, produzindo-se sob as condições de percepção, são originais. As segundas, produzindo-se sob as condições de reflexão, de memória, de imaginação ou de ideação, são copias. É evidente que esta divisão de todas as manifestações do desconhecido nas duas classes apontadas, responde a divisão entre o objeto e o sujeito. Reconhecemos esta distinção, a mais profunda de quantas nos apresentam as manifestações do desconhecido, agrupando-as num eu e num não-eu. As manifestações fracas, que formam um todo continuo diferente do outro pela quantidade, a qualidade, a coesão, as condições de existência das suas partes, que nós chamamos o eu " e as manifestações vivas ligadas no conjunto por um laço indissolúvel, em massas relativamente imensas, com condições de existência independente, que chamamos o não-eu. Ou antes, com mais verdade, cada ordem de manifestações implica irresistivelmente uma força que se manifesta; e, empregando as palavras eu e não-eu queremos dizer, com a primeira a força que se manifesta nas formas fracas) e com a segunda a força que se manifesta nas formas vivas. É forçoso ajuntar que estas concepções que tomaram corpo e receberam um nome próprio, não têm origem numa fonte impenetrável, mas explicam-se pela lei fundamental do pensamento, lei sem apelação. A intuição da semelhança e da diferença impõe-se só pela sua persistência; desafia até o ceticismo, visto que sem ela a dúvida mesma se torna impossível. A divisão primordial do eu e do não-eu é o resultado acumulado da intuição persistente das semelhanças e das diferenças que apresentam as manifestações. Pode dizer-se mesmo que o pensamento só existe para esta espécie de ato que nos leva, a cada momento, a referir certas manifestações a classe com a qual tem muitos atributos comuns, e as outras à outra classe com a qual tenham também atributos comuns. Terminando, os postulados são: uma Força Incognoscível, a existência de semelhanças e diferenças conhecidas, entre as manifestações desta Força, e por consequência uma separação das manifestações em duas classes, as do objeto e as do sujeito. Consideradas em si essas manifestações do Incognoscível não podem ser conhecidas; mas somos forçados a empregar as palavras que as designam e explicar a acepção que lhes damos. III - Espaço, Tempo, Matéria, Movimento, Força A realidade sendo para nós apenas a persistência na consciência, o resultado será o mesmo quer percebêssemos o Incognoscível quer percebamos um efeito produzido invariavelmente pelo Incognoscível. As impressões existentes sendo os resultados persistentes duma causa persistente são na pratica o mesmo para nós do que a própria causa, e podem considerar-se como equivalentes. Assim como as percepções da vista são apenas símbolos das percepções do tato e identificam-se de tal maneira com as nossas percepções táteis que supomos até ver a solidez e a duração, que só podemos inferir, e concebermos como objetos coisas que só são sinais dos objetos; assim também acabamos por considerar estas verdades relativas como se fossem absolutas, em vez de efeitos de realidades absolutas. Vamos interpretar especificamente esta conclusão geral. Já vimos que a relação é a forma universal do pensamento. As relações são de duas ordens: há relações de sequência e relações de coexistência; umas são primitivas, as outras derivadas. A relação de sequência dá-se em cada mudança da consciência. A de coexistência, que não pode ser dada originalmente na consciência, cujos estados se sucedem em series, só aparece quando os termos de certas relações de sequência se apresentam na consciência tão facilmente numa ordem como noutra, ao passo que para as outras relações os termos só se apresentam numa mesma e única ordem. As relações cujos termos se não podem inverter chamam-se sequencias propriamente ditas; aquelas em que os termos aparecem indiferentemente um antes do outro, chamam-se coexistências. Experiencias inumeráveis, que de instante para instante nos mostram estas duas ordens de relações, tornam a sua distinção perfeitamente definida e produzem uma concepção abstrata de cada uma destas duas ordens. A concepção abstrata de todas as sequências é o Tempo. A concepção abstrata de todas as coexistências é o Espaço. De no nosso pensamento o tempo ser inseparável da sequência e o espaço da coexistência, não concluímos que o Tempo e o Espaço são condições primitivas da consciência, onde as sequências e coexistências são conhecidas, mas que as concepções de Tempo e Espaço são produzidas como outros abstratos são produzidos por outros concretos; a única diferença é que, nestes dois casos, a sistematização da experiencia abraça a evolução inteira da inteligência. A análise confirma a síntese. Quando temos consciência do Espaço, é que temos consciência de posições de coexistência. Não se pode conceber uma porção limitada do Espaço senão tendo a representação dos seus limites como coexistentes em certas posições relativas; e cada um destes limites imaginados, linha ou plano, só pode ser concebido como composto de posições coexistentes muito aproximadas. E como uma posição não é uma entidade, como os grupos de posições que constituem uma porção qualquer do espaço e lhe marcam os limites não são existências sensíveis, resulta disto que as posições coexistentes que compõem a nossa intuição do espaço não são coexistências na verdadeira acepção da palavra (que implica a realidade dos seus termos) mas formas vazias de coexistências ou melhor abstrações das coexistências. As experiências que, durante a evolução da inteligência, concorreram para formar esta concepção abstrata de todas as coexistências, são experiencias de posições individuais constatadas pelo tato; cada uma delas implica a resistência dum objeto tocado e a tensão muscular que a mede. É por uma quantidade inumerável de adaptações musculares dissemelhantes, implicando tensões musculares dissemelhantes, que se descobre a existência de posições resistentes diferentes; e, quando podemos sentir estas posições resistentes diferentes tão facilmente numa ordem como noutra, consideramo-las coexistentes. Mas também, como sob outras circunstancias, as mesmas adaptações musculares não produzem contato com posições resistentes, resulta disto os mesmos estados de consciência menos as resistências, quer dizer as formas vazias de coexistências donde os objetos coexistentes, já revelados pela experiência, estão ausentes. É da elaboração destas formas, tão complexas que é impossível desenvolver aqui em detalhe, que resulta a concepção abstrata de todas as relações de coexistência que chamamos Espaço. É preciso indicar uma coisa, que nunca deverá esquecer-se: é que as experiências que dão origem a intuição de espaço são experiencias de força. Uma certa correlação das forças musculares que nós mesmos exercemos é o indicio de cada uma das posições que descobrimos, e a resistência, que nos faz conhecer que alguma coisa existe nesta posição, é uma equivalente da pressão que exercemos com consciência. Assim as experiencias de forças, sob variadas relações, são os materiais donde a abstração tira a intuição de espaço. Demonstrado, como fica, que aquilo a que chamamos Espaço é, pela sua formação e pela sua definição, puramente relativo, o que diremos daquilo que o produz? Haverá um Espaço absoluto de que o Espaço, relativo seja de algum modo a representação? O Espaço em si mesmo é uma forma ou uma condição da existência absoluta, que produz nos nossos espíritos uma forma ou uma condição de existência relativa? Estas perguntas não podem ter resposta. A nossa concepção do Espaço é produzida por alguma manifestação do Incognoscível e a sua completa invariabilidade implica simplesmente uma uniformidade completa nos efeitos produzidos em nós por essa manifestação do Incognoscível. Mas nada nos autoriza a chamar-lhe manifestação necessária. O que se pode afirmar é que o Espaço é uma realidade relativa; que a nossa intuição desta realidade relativa invariável implica uma realidade absoluta igualmente invariável para nós, e que se pode sem hesitação tornar a realidade relativa por base sólida de todos os raciocínios que, bem conduzidos, nos colocam em presença de verdades duma realidade igualmente relativa, as únicas que existem para nós e que poderemos conhecer. O que se diz do Espaço aplica-se também ao Tempo relativo e absoluto. Concebemos a matéria como posições coexistentes que opõem resistência; é a ideia mais simples que dela podemos ter; distinguimo-la assim do nosso conceito do Espaço em que as posições não oferecem resistência alguma. Concebemos o corpo como limitado por superfícies que resistem e como composto de partes que também resistem. Suprimindo mentalmente as resistências coexistentes, a intuição do Corpo desaparece, ficando apenas a intuição de Espaço. Pois que o grupo de posições resistentes coexistentes que constituem uma parte da Matéria pode dar-nos, invariavelmente, impressões de resistência combinadas com diversas adaptações musculares, conforme tocamos no lado próximo ou no afastado, o lado direito ou o esquerdo, resulta daqui que, como diferentes adaptações musculares indicam habitualmente coexistências diferentes, somos forçados a conceber toda a porção da matéria como contendo mais do que uma posição resistente, isto é, como ocupando o Espaço. Daqui a necessidade em que nos vemos de considerarmos os elementos últimos da matéria como extensos e resistentes, ao mesmo tempo; tal é a forma universal das nossas experiências sensíveis da matéria. Destes dois elementos inseparáveis um, a resistência, é primário, o outro, a extensão, é secundário. A extensão ocupada ou Corpo distingue-se na consciência da extensão inocupada ou Espaço pela sua resistência; o que faz com que o atributo de resistência seja anterior na formação da ideia. Esta conclusão não é mais do que um corolário evidente doutra já enunciada. Se, como sustentamos, a nossa intuição do Espaço é o produto de experiencias acumuladas, em parte por nós, mas na maior parte hereditárias; se, como já se indicou, as experiencias de que tiramos por abstração o conceito do Espaço resultam apenas de impressões de resistência produzidas sobre o organismo, resulta daqui necessariamente que as experiencias de resistências, sendo as que originam a ideia de Espaço, o atributo da matéria chamado resistência, deve ser considerado como primordial e o atributo chamado espaço, como derivado. Vemos por aqui que a nossa experiência de força é o elemento de que se compõe a ideia de Matéria. Se tal é o nosso conhecimento da realidade relativa, o que diremos da realidade absoluta? Uma única coisa: é que é uma manifestação do Incognoscível unido a Matéria pela relação da causa ao efeito. A concepção do movimento implica as concepções de espaço, de tempo, de matéria e resulta da síntese das experiencias da força. Esta realidade relativa corresponde a uma realidade absoluta. Chegamos enfim a força, o princípio dos princípios. Todas as outras manifestações da consciência se podem derivar de experiências de Força; mas as experiências da Força não se podem derivar de coisa alguma. Pela relatividade do nosso pensamento somos forçados a conceber vagamente alguma força desconhecida correlativa da força conhecida. O nômeno e o fenômeno apresentam-se na sua relação primordial como dois lados da mesma transformação, e somos obrigados a encara-los ambos como igualmente reais, tanto o último como o primeiro. Os postulados sem os quais não podemos pensar são: uma Causa Desconhecida produzindo efeitos conhecidos a que chamamos fenômenos, semelhanças e diferenças entre estes efeitos conhecidos, e a separação dos efeitos em objeto e sujeito. A mesma razão que nos permite afirmar a coexistência do sujeito e do objeto autoriza-nos a afirmar que as manifestações vivas que chamamos objetivas existem debaixo de certas condições constantes a que estão submetidas as manifestações chamadas subjetivas, IV - A Indestrutibilidade da Matéria Este princípio, longe de ser admitido como uma verdade evidente, foi, nos primeiros tempos, rejeitado como um erro provado. Acreditava-se universalmente que as coisas podiam desaparecer num nada absoluto, ou nascer do nada. Não foi só nas épocas de trevas ou entre os espíritos inferiores que esta crença predominou. O começo e o fim do mundo, explicado pela teologia, baseia-se nesta concepção. Mas a acumulação gradual e a sistematização dos fatos foram pouco a pouco deitando por terra esta convicção, a ponto de que hoje a indestrutibilidade da Matéria tornou-se um lugar comum. Todos os fatos que pareciam provar que alguma coisa provinha do nada, desapareceram perante conhecimentos mais largos. A nuvem que em poucos minutos se forma no céu não se compõe duma sustância que começa a existir, mas duma substancia que existia antes sob uma forma difusa e transparente. O cometa que aparece de repente no céu não é um corpo de criação nova, mas um corpo que, até então, estava fora do alcance da nossa vista. Reciprocamente, uma observação mais exata faz-nos ver que as destruições aparentes da matéria não são mais do que mudanças de estado. A água evaporada pode, por condensação, retomar a sua forma primitiva. Um tiro prova-nos que se a pólvora desapareceu, apareceram em vez dela gazes que, tomando maior volume, motivaram a explosão. Todavia, foi pela química quantitativa que as conclusões tiradas destas experiencias puderam ser postas em harmonia com os fatos. Logo que os químicos, não se contentando em observar apenas as combinações em que certas substâncias podiam entrar, estabeleceram as proporções em que se combinam, e explicaram como uma matéria aparecia ou tornava-se indivisível, a dúvida dissipou-se. Quando a balança mediu o ácido carbônico e água, resultante da combustão duma vela de sebo, que se acendera; quando se demonstrou que os pesos combinados de ácido carbônico e de água resultando disto, eram iguais ao da vela mais o do oxigênio que se juntara aos elementos da vela durante a combustão, ficou fora de dúvida que o carbono e o hidrogênio da vela; já existiam e apenas tinham mudado de estado. Hoje a indestrutibilidade da matéria é uma verdade cuja negação é inconcebível. A criação da matéria também para nós é inconcebível. Sendo o pensar estabelecer relações, é impossível estabelecer uma relação, quando um dos termos relativos está fora da consciência. É impossível pensar que alguma coisa se torne nada assim como é impossível pensar que nada se torne alguma coisa. É preciso acrescentar que nenhuma verificação experimental do princípio da indestrutibilidade da matéria é possível sem o reconhecimento tácito desta verdade. A prova de que certa matéria tratada de certo modo não muda de quantidade depende da hipótese de que uma outra matéria tratada de diverso modo também não muda de quantidade. Temos em resultado que temos uma experiencia positiva da persistência continua da matéria; que a forma do pensamento torna impossível que tenhamos a experiencia da Matéria passando a não-existência, pois que esta experiencia implicaria o conhecimento duma relação da qual um dos termos não seria representável na consciência; que, por conseguinte, a indestrutibilidade da Matéria é, rigorosamente falando, uma verdade a priori, que se certas experiências enganadoras, sugerindo a ideia do seu aniquilamento produziram nos espíritos sem método não só a suposição de que era possível conceber a Matéria tornando-se não-existente, mas a ideia de que ela se tornava, uma observação cuidada, mostrando que o pretendido aniquilamento nunca tivera legar, confirmou a posteriori o conhecimento a priori que, segundo a psicologia, resulta duma lei experimental contra a qual nunca se poderá levantar uma experiência em contrário. (Deve advertir-se que os termos verdade a priori e verdade necessária não devem ser tomados no sentido antigo, como implicando conhecimentos absolutamente independentes da experiência, mas sim implicando conhecimentos tornados orgânicos em resultado duma imensa acumulação de experiências recebidas, em parte pelo indivíduo, mas sobretudo por todos os antepassados, dos quais herda o sistema nervoso). Todavia o que mais importa observar, é a natureza das percepções que nos fornecem perpetuamente exemplos da permanência da Matéria. Estas-percepções, sob todas as formas, reduzem-se simplesmente a isto: que a força exercida por uma dada quantidade de matéria resta sempre a mesma. Esta é a prova em que se baseiam a um tempo o senso comum e a ciência exata. Assim como não temos consciência da Matéria senão pela resistência que ela opõe à nossa atividade muscular, também não temos consciência da permanência da matéria senão pela persistência da resistência que ela nos manifesta direta ou indiretamente. V - Continuidade do movimento Como a indestrutibilidade da Matéria, a continuidade do movimento, ou falando com mais rigor, a continuidade dalguma coisa que tem o movimento como uma das suas formas sensíveis, é uma verdade geral de que depende a possibilidade duma ciência exata e, por conseguinte duma filosofia que unifica os resultados da ciência exata. Esta última verdade fundamental, como a antecedente, não era evidente para os homens primitivos, e não o é ainda para os poucos cultivados. Para estes espíritos o contrário é que parece exato. Estes dois fatos: uma pedra atirada para o ar perde depressa o seu movimento ascendente, e quando cai fica em repouso, parece provarem que o princípio da atividade (Esta palavra não tem, para Spencer, sentido algum metafísico) atestado pelo movimento da pedra pode desaparecer absolutamente. Ha porem fatos que, como implicam uma conclusão completamente oposta à primeira, têm-se imposto e motivado investigações donde pouco a pouco saiu a demonstração da falsidade destas aparências. A descoberta da revolução dos planetas em redor do sol com uma velocidade constante, forçou a que se suspeitasse que um corpo em movimento entregue a si mesmo continua a mover-se sem mudar de velocidade, e sugeriu a ideia que os corpos que perdem o movimento cedem a mesma quantidade de movimento a outros corpos. Para não prolongar o assunto, basta dizer, duma maneira geral, que o movimento molecular que desaparece quando o sino recebe a pancada do badalo reaparece nas Vibrações do sino e nas ondas aéreas que elas produzem; que, quando uma massa em movimento para, por chegar ao contato com outra massa que não pode pôr em movimento, o movimento, que não aparece no som, reaparece como movimento molecular e que, igualmente, o movimento perdido pelo choque, é ganho pelo movimento das moléculas. VI - A Persistência da Força A nossa experiencia distingue duas forças: uma que não opera nenhuma transformação, a outra operando transformações atuais ou potenciais. A primeira destas forças, a que ocupa o espaço, não tem nome especifico. A 2ª recebe vulgarmente ainda hoje o Dome d Energia. É o nome comum da força revelada no movimento das massas e das moléculas. Também estas duas forças se dividem em intrínseca, produzindo-se quando o corpo nos aparece ocupando o espaço, e extrínseca, chamada energia. Ambas são persistentes. A persistência destas espécies de força não se pode provar, pois que, para demonstra-la já é forçoso supô-la em qualquer observação ou experiencia feita com esse fim. Assim como já ficou demonstrado, ligando os princípios derivados aos princípios cada vez mais gerais donde se deduzem, chegamos finalmente a uma verdade mais geral do que todas as outras, mas que a mais nenhuma outra se pode subordinar. Esta verdade que não está ao alcance da demonstração, mas que nem por isso deixa de ser uma verdade comum a Ciência e a Filosofia, é a Persistência da Força. Qual é esta força de que se afirma a persistência? É a Força absoluta de que temos consciência como correlativa necessária da força que conhecemos. VII - Persistência das relações entre as forças O primeiro corolário a tirar da verdade última da persistência da força, é a persistência das relações entre as forças. Supondo que uma dada manifestação da força, sob uma forma e dadas condições, seja precedida ou seguida duma outra manifestação, é forçoso que, em todos os casos em que as formas e as condições restem as mesmas, seja precedida ou seguida dessa outra manifestação. Temos duas balas iguais em peso, formas e dimensões, expelidas com uma força igual por cartuxos da mesma quantidade e qualidade, saídas de canos idênticos. É forçoso que, em igual tempo, percorram distancias iguais. Se se disser que uma delas percorrerá um espaço determinado primeiro do que a outra, embora os seus momentos iniciais sejam iguais e tenham a vencer a mesma resistência (porque, se a, resistência for desigual, os antecedentes diferem) equivale a dizer que iguais quantidades de força não fornecerão uma quantidade igual de trabalho, o que não é concebível sem se afirmar que uma força tornou-se nada, ou nasceu do nada. A igualdade que encontramos entre os antecedentes e os consequentes relativamente simples deve existir, qualquer que seja a complicação dos antecedentes e dos consequentes. Esta verdade tornar-se-á cada vez mais nítida à medida que avançarmos. VIII- Transformação e Equivalência das Forças Os instrumentos de precisão concorreram para que se conhecessem diversos fenômenos que os olhos e os dedos não tinham podido distinguir. Completaram assim suplementarmente a obra dos nossos sentidos. Vejamos alguns fatos que nos indicam as transformações das forças físicas. A paragem do movimento pode, como o atrito, produzir calor. O calor pode ser transformado em movimento, como na locomotiva, na pilha termo-eletrica; em luz, como na luz oxídrica; e, indiretamente, pela eletricidade, em magnetismo. As transformações da eletricidade em magnetismo, calor e luz são conhecidas. É pelo movimento que produz que a existência do magnetismo se nos revela. A máquina eletromagnética mostra-nos a sua conexão com a eletricidade, e Faraday constatou-lhe os efeitos sobre a luz polarizada. Um grande número de substancias elementares e complexas são afetadas pela Luz. Em toda e qualquer mudança a força transforma-se; e de novas formas que reveste pode resultar, quer a forma precedente, ou uma qualquer das outras, numa infinita variedade de combinações. As forças físicas não só apresentam entre si correlações qualitativas, mas também correlações quantitativas. Se quisermos compreender bem o sentido deste fato, de que as forças, na sua metamorfose incessante nunca são aumentadas nem diminuídas, é preciso considerarmos as diversas classes dos fenômenos das ciências concretas, na esperança de estabelecermos uma correlação qualitativa que seja bastante quantitativa para poder implicar uma proporção conveniente entre as causas e os efeitos. Os antecedentes das forças manifestadas pelo nosso sistema solar pertencem a um passado de que nunca teremos senão um conhecimento inferencial. Se, todavia, admitimos que a matéria que compõe o nosso sistema solar existia antes em estado difuso, achamos na gravitação das suas partes uma força capaz de produzir os movimentos que atualmente efetuam. As mudanças geológicas são o resultado do calor devido á condensação da nebulosa e que não foi dispendido. Vemos isto diretamente na fusão e aglutinação dos depósitos sedimentários, as nascentes termais, a sublimação dos metais nas fendas, onde os encontramos no estado em que saem da mina. E, indiretamente, vemos isto na ascensão do vapor da água que, condensada, cai como chuva e forma os ribeiros, e ainda nas diferenças de temperatura que causam os ventos, as vagas e as correntes marítimas. As forças manifestadas nas ações vitais derivam do mesmo calor solar. A vida vegetal depende toda do calor e da luz do Sol e a vida animal depende da vida vegetal. Além da correlação qualitativa entre as atividades orgânicas dos vegetais e dos animais, assim como entre cada um deles e as forças inorgânicas, há ainda uma correlação quantitativa rudimentar. Onde abunda a vida vegetal abunda também a vida animal e caminhando da zona tórrida para as zonas temperadas e árticas, as plantas e os animais decrescem gradualmente; dum modo geral, pode dizer-se que os animais adquirem um tamanho maior nas regiões em que a vegetação é abundante do que naquelas em que é rara. Muitos fatos provam-nos que a lei das metamorfoses das forças físicas rege igualmente as chamadas forças mentais. Algumas pessoas assustam-se com esta generalização. É um fato evidente que a atividade mental depende da existência dum certo aparelho nervoso, e que há relação, dissimulada sob numerosas e complicadas condições, mas que se pode seguir, entre este aparelho e a quantidade de ação mental medida pelos seus resultados. Além disto, este aparelho tem uma certa constituição química de que depende a sua atividade, e há nele um elemento cuja quantidade apresenta uma conexão constatada com a quantidade de função realizada; há no cérebro fosforo cuja proporção é mínima na infância, na velhice e na idiotice e máxima na flor da vida. É preciso ainda notar que o pensamento e o sentimento conformam-se com o modo por que o sangue se distribui pelo cérebro. Por outro lado, a cessação da circulação cerebral, em consequência da demora nos movimentos do coração, leva imediatamente á inconsciência. E um excesso de circulação cerebral provoca uma excitação, podendo chegar até ao delírio. Não é só a quantidade, mas também a composição do sangue, que atravessa o sistema nervoso, que influi nas manifestações mentais. As correntes arteriais devem ser bem oxigenadas para produzir uma cerebração normal. Vemos duma parte que, quando o sangue não pode trocar o seu ácido carbônico com o oxigênio, resulta a asfixia com a supressão das ideias e sentimentos. Doutra vemos que a inspiração do protoxido de azote produz uma atividade nervosa e mesmo incoercível. Ao lado da conexão entre o desenvolvimento das forças mentais e a presença duma quantidade suficiente de oxigênio nas artérias cerebrais, encontramos outra semelhante entre o desenvolvimento das forças mentais e a presença dalguns outros elementos nas mesmas artérias. Os centros nervosos carecem de materiais especiais para a sua nutrição e para a sua oxidação. Portanto o que nós chamamos consciência é determinado por elementos constitutivos do sangue, a ponto de que, quando introduzimos na circulação certos elementos químicos como o álcool e os alcaloides vegetais, produz-se uma exaltação. Todos conhecem a influência do café, do chá, e os efeitos fantásticos e imaginários de felicidade produzidos pelo ópio e o haxixe. Há ainda outra prova de que a produção das forças mentais depende diretamente de transformações químicas: os produtos usados que os rins separam do sangue mudam conforme a quantidade do trabalho cerebral. Uma atividade excessiva do espírito é de ordinário seguida da excreção duma quantidade desusada de fosfatos alcalinos. Uma excitação nervosa anormal produz efeitos análogos. Vimos duma maneira muito geral as diversas classes de fatos que se unem para provar a lei das transformações que reinam nas forças físicas, nas mentais e nas sociais. Tudo o que acontece numa sociedade é o efeito de forças orgânicas ou inorgânicas, ou da combinação estas duas, o resultado destas forças físicas sujeitas a direção do homem, ou das forças dos próprios homens. Vejamos primeiro a correlação que apresentam os fenômenos sociais e os da vida. As forças sociais e vitais variam, como de resto todas as coisas, segundo a população. Uma sociedade pouco numerosa, qualquer que seja o caráter de superioridade dos seus membros, não pode desenvolver a mesma soma de ação social do que uma grande. A produção e a distribuição das mercadorias realizam-se aí numa escala relativamente pequena. Uma imprensa numerosa, uma literatura fecunda, uma agitação política poderosa, não são possíveis nessa pequena sociedade. A produção de obras de arte e descobertas científicas não pode aí ser muito numerosa. Todavia, o que demonstra melhor a correlação das forças vitais com as forças físicas, por intermédio das forças vitais, é a diferença entre as quantidades de atividade que a mesma sociedade desenvolve, segundo as quantidades diferentes de forças que os seus membros podem tirar do mundo exterior. Vemos todos os anos um exemplo nas boas e más colheitas. Uma grande diminuição no rendimento dos trigos é seguida dentro de pouco duma diminuição nos negócios. As manufaturas reduzem a metade o seu trabalho ou fecham completamente; as receitas dos caminhos de ferro diminuem, as lojas vendem pouco, a indústria dos navios quase que para; e, se a escassez chega até a fome, a população desbarata-se e a atividade industrial diminui ainda mais. Se interrogarmos donde veem as forças físicas que, por intermédio das forças vitais, originam as forças sociais, obtemos a resposta, já obtida noutros casos, de que elas veem da irradiação solar. A vida da sociedade depende de produtos animais e vegetais; e estes produtos do calor e da luz do sol; resulta daqui que as transformações operadas nas sociedades são os efeitos de forças nascidas da mesma origem do que as que produzem as outras transformações que já analisámos. Não só a força dispendida pelo cavalo atrelado a charrua e pelo lavrador que o guia provem da mesma origem do que a força da catarata que se precipita e do furacão que ruge, mas também se pode definitivamente ligar a essa mesma origem a manifestação das forças mais delicadas e mais complexas que a humanidade desenvolve no corpo social. Muitas pessoas julgam que esta verdade é uma troça e não há meio de convence-las desta dedução inevitável, que é impossível deixar de acentuar. O mesmo se pode dizer das forças físicas, que se transformam diretamente em forças sociais. As correntes do ar e da água que, antes do uso do vapor, eram com a força os únicos agentes empregados nas obras da indústria são, como já vimos, produzidas pelo calor solar. Stephenson foi um dos primeiros a reconhecer que a força que movia a locomotiva provinha do sol. Partimos do movimento do cano de evaporação de água, desta para o calor saído durante a oxidação do carvão, daqui a assimilação do carvão pelas plantas de que são compostos os terrenos de carvão de pedra, daqui para o ácido carbônico de que este carvão se extraiu, daqui até chegarmos aos raios solares, que desoxidaram este ácido carbônico; e vemos ainda que foram as forças do sol dispendidas há milhões de anos na vegetação que cobria a terra, depois sepultada nas suas profundezas, que agora origina os metais de que as máquinas precisam, movem os tornos que dão a estas máquinas a sua forma, põem-nas em ação e enfim distribuem os produtos. Quando a economia de trabalho torna possível o mantimento duma população mais numerosa, dá um supérfluo de força humana que, sem ela, teria sido absorvida em ocupações manuais; favorece assim o desenvolvimento das formas superiores da atividade. O princípio geral de que acabamos de apresentar alguns exemplos é um corolário necessário da persistência da força. Toda a manifestação duma força não pode ser compreendida senão como o efeito duma força antecedente; quer se trate duma ação inorgânica, dum movimento animal, duma ideia ou dum sentimento. Ou é forçoso concordar-se com estas conclusões ou afirmar a espontaneidade de cada um dos nossos estados da consciência. Ou é forçoso aceitar que as forças mentais, assim como as forças corporais, estão em correlação de quantidade com certas forças que se dispendem para produzi-las e com certas outras que suscitam, ou tem de se admitir que nada pode tornar-se alguma coisa e alguma coisa pode tornar-se nada. É preciso optar, ou negar a persistência da força, ou admitir que todo o efeito físico ou psíquico é o resultado de antecedentes, e que de dadas quantidades dessas forças não podem provir nem mais nem menos efeitos físicos ou psíquicos. Visto que a persistência da força, na sua qualidade de dado da consciência, não pode ser negada, o seu corolário necessário tem de aceitar-se. Não é acumulando exemplos sobre exemplos que ele se torna mais certo. IX - Direção do movimento Da coexistência universal das forças de atração e de repulsão, resultam certas leis gerais de todos os movimentos. Temos agora que seguir estas leis gerais através as diversas mudanças que o mundo apresenta. Temos a notar como cada movimento segue a linha de menor resistência ou a sua resultante; como o começo dum movimento em certa linha se torna uma causa para que o movimento continue segundo essa linha, como, apesar de tudo, as mudanças das relações com as forças exteriores fazem sempre desvia-lo desta linha; e como esse desvio aumenta todas as vezes que uma nova influencia se vem ajuntar ás que já se manifestavam. A resultante das forças tangentes e centrípetas é a curva que segue cada planeta e satélite, curva que resulta evidentemente da distribuição assimétrica das forças em redor da mesma direção. As perturbações indicam-nos que a linha do movimento é a resultante de todas as forças empenhadas, e que se torna mais complicada à medida que estas forças se multiplicam. A aridez das terras e o deposito dos terrenos sedimentários proveem do movimento da água para o centro da terra; as linhas de maior tração e de menor resistência indicam o caminho. O fato de os tremores de terra voltarem continuadamente às mesmas localidades e que as erupções se produzem nas mesmas aberturas, implicam que as partes fendidas da crosta terrestre cedem com mais facilidade a pressão. «A formação da raiz das plantas apresenta um bom exemplo da lei pela qual o movimento toma a direção da menor resistência porque ela desenvolve-se insinuando-se, célula por célula, nos interstícios do solo». Os vasos em que o sangue, a linfa, a bílis e as secreções encontram a sua via são os canais em que a resistência é menor. No ponto de vista dinâmico a seleção natural implica transformações, segundo a linha de menor resistência. A multiplicação de uma espécie animal ou vegetal nas localidades favoráveis representa um crescimento, resultando das forças antagônicas serem aí menores do que noutro sitio. Nos fenômenos do espírito temos que o simples riso, descarga espontânea de sentimentos que primeiro afetam os músculos de em redor da boca, depois os do aparelho vocal e respiratório, depois os dos membros, e enfim os da espinha dorsal, basta para fazer ver que, quando uma força abandonada nos centros nervosos não encontra aberto um caminho especial, produz um movimento ao longo das vias que apresentam menor resistência, e se essa força é bastante grande para poder sair por estas vias, faz mover as outras onde encontra resistências cada vez-mais fortes. A passagem de desejos especiais a atos musculares especiais conforma-se com o mesmo princípio. Vemos que as sociedades se desenvolvem onde a média das forças opostas é menor. Para reduzir isto á mais simples expressão podemos dizer que as unidades sociais tem de consagrar os seus esforços combinados ou isolados a livrarem-se das forças inorgânicas e orgânicas que tendem continuamente a destrui-las (ou indiretamente pela oxidação ou por uma subtração anormal de calor, ou diretamente por uma mutilação corporal); que estas forças podem ser, ora neutralizadas por outras disponíveis sob a forma de alimentos, de vestuário, de habitações, de instrumentos de defesa, ou evitadas tanto quanto possível; enfim que a população se alarga nas direções onde encontra meio de evitar mais facilmente a ação dessas forças ou de dispender menos trabalho para adquirir os materiais que lhe sirvam de instrumentos de resistência, ou destas duas vantagens ao mesmo tempo. O emprego do capital em negócios que dão maiores juros, a compra por menos preço, a venda a preço mais elevado, e todas estas variantes do comércio, que são notadas diariamente pelos jornais, são outros tantos movimentos feitos em direções que encontram menores orças opostas. Esta verdade é, como outras, uma dedução lógica da persistência da força, X - Ritmo do movimento As arvores, as folhas e os ramos estremecem ao sopro dos furacões, a ondulação do trigo e da erva nos campos, os sulcos a superfície dos ribeiros e a corrente tortuosa e serpenteante destes, a vibração que acompanha a hélice do vapor, os sons duma corda de viola, e as ondulações etéreas da luz, tudo isto nos mostra o movimento rítmico simples. Mas há um ritmo composto quando há coincidência e antagonismos dos ritmos primários, que se observa na interferência da luz, no crescimento e decrescimento bimensal das marés quotidianas, que são devidas a coincidência e ao antagonismo alternante das atrações solar e lunar. O ritmo produz-se sempre que há um conflito entre as forças que se não equilibram. Como a matéria em movimento não pode manter relações fixas com os princípios de força que produzem o movimento ou o dificultam: cada transporte ao espaço deve alterar a proporção das forças em jogo. As probabilidades são infinitas contra um ritmo verdadeiramente retilíneo ou perfeitamente circular. Nunca há volta completa ou estado primitivo. O ritmo é aparente nos fenômenos astronômicos, na disposição espiral tão comum nas nebulosas difusas; nas estrelas variáveis que brilham e empalidecem; na periodicidade das revoluções dos planetas, dos satélites e dos cometas; na variabilidade da quantidade da luz e de calor que cada parte da terra recebe do sol. Os processos terrestres que dependem diretamente do calor solar apresentam, como é natural, um ritmo que corresponde à quantidade periodicamente variável de calor que recebe cada parte da terra. Ha provas de que as modificações da crosta da terra, devidas a ação ígnea, têm uma certa periodicidade, A periodicidade do ritmo determinado pelo dia e pela noite manifesta-se nas plantas. Os animais mostram-no no movimento peristáltico (de contração) dos intestinos, no sangue que circula nas veias, nos movimentos oscilatórios da locomoção, na necessidade periódica de comer e dormir, as alternativas de vigor maior ou menor, e no caráter intermitente de muitas doenças. Os grupos de seres vivos dão-nos outros exemplos da mesma verdade geral. A paleontologia mostra-nos que certas espécies apareceram, tornaram-se numerosas e desapareceram. Tudo isto basta para provar que a vida, sobre a terra, não tem progredido uniformemente, mas por imensas ondulações. A análise demonstra-nos que um estado mental existente em dado momento não é uniforme, mas decomponível em oscilações rápidas; e ainda que estes estados de espírito atravessam longos intervalos de intensidade crescente e decrescente. A corrente de atividade mental revela-nos que o modo de ação física da dança, da poesia, da música, não é contínuo, mas decompõe-se numa série de pulsações. Podem observar-se ondulações ainda mais longas nas ocasiões de prazer extremo ou de dor extrema. Mesmo quando o sofrimento físico não cessa, há variações na sua intensidade. Nas sociedades nômades, as mudanças de lugar, determinadas habitualmente pelo esgotamento ou insuficiência dos produtos alimentícios, são periódicas, e em muitos casos a sua periodicidade corresponde à das estações. Nas correntes do comercio - na troca, produção, consumo, oferta e procura - ou nas estatísticas dos preços, dos casamentos, das mortes, da doença, do crime e do pauperismo, o caráter de ondulações aparece sempre. Os ritmos sociais dão-nos um belo exemplo da irregularidade, resultando da combinação de muitas causas; porque um certo gênero pode voltar a um preço anterior, mas uma reação política nunca traz o antigo estado de coisas. As únicas condições sob as quais poderia não haver ritmo, isto é, as únicas sob as quais poderia haver um movimento continuo através o espaço numa linha sempre direita, seria a existência dum infinito vazio, não contendo senão o corpo em movimento. Nada disto pode ser representado no pensamento. O infinito é inconcebível: e inconcebível também é um movimento que não tivesse tido começo numa origem preexistente de força. Assim, o ritmo é uma propriedade necessária de todo o movimento. Dada a coexistência universal das forças antagônicas - postulado necessário, como vimos para a forma da nossa experiencia, - o ritmo é um corolário necessário da persistência da força. XI - Recapitulação Vamos agora examinar se os princípios estabelecidos nos capítulos anteriores tendem a formar um corpo de conhecimentos que responda a definição, já dada, de Filosofia. O princípio da indestrutibilidade da matéria é um princípio que não pertence só a mecânica ou só a química, mas que também admitem de comum acordo a física molecular e a física que trata das massas sensíveis, e que o astrônomo e o biólogo consideram igualmente verdadeiro. As divisões da ciência que tratam dos movimentos dos corpos celestes e terrestres supõem o princípio da continuidade do movimento, mas os físicos também precisam deste princípio para explicar os fenômenos de luz e de calor, e as generalizações das chamadas ciências superiores também o supõem. A persistência da força, implicada nestas duas proposições anteriores, tem a mesma generalidade, assim como o seu corolário a persistência das relações entre as forças. Mas que papel desempenham estes princípios, segundo a nossa concepção? Há algum que possa por si só dar uma ideia do cosmos, isto é, da totalidade das manifestações do Incognoscível? Tomados em conjunto, podem dar-nos uma ideia adequada a esse incognoscível? E mesmo sistematizados, compõem essa ideia? Para todas estas perguntas há só uma resposta: não. Estes princípios não constituem o conhecimento integrado que é o fim da filosofia. As explicações sintéticas que dá a ciência, compreendendo mesmo as mais gerais, são mais ou menos independentes umas das outras. Pode haver entre elas elementos semelhantes, mas elas não estão unidas pela semelhança na sua estrutura essencial. As diversas transformações artificiais e naturais, orgânicas e inorgânicas, que distinguimos para nossa comodidade, vistas dum ponto de vista mais elevado, não devem ser distinguidas; porque são todas transformações que se passam no mesmo cosmos e que fazem parte duma mesma e vasta transformação. As forças obedecem essencialmente ao mesmo princípio em tudo até onde chega a nossa inteligência: e, ainda que, pela variedade infinita das suas proporções e combinações, elas produzam resultados em toda a parte mais ou menos diferentes, e que muitas vezes parece não terem ligação alguma entre si, não podemos deixar de admitir que entre estes resultados há uma comunidade fundamental. A pergunta que precisa duma resposta é esta: qual é o elemento comum que se encontra nas descrições de todas as operações concretas? Resta-nos agora buscar uma lei da composição dos fenômenos que compreenda as leis dos seus componentes. Vimos que a matéria era indestrutível, que o movimento é continuo, que a força é persistente; vimos que as forças em toda a parte se transformam, e que o movimento que segue sempre a linha da menor resistência não deixa de ser rítmico; resta agora descobrir a formula que alcança esta invariabilidade e que exprima as consequências combinadas das ações que as formulas anteriores exprimem separadamente. A lei que nós buscamos deve ser a da redistribuição contínua da matéria e do movimento. O repouso absoluto e a permanência absoluta não existem. Cada objeto, bem como o agregado de todos os objetos, passa a cada momento por uma mudança de estado. Gradualmente ou rapidamente recebe movimento ou perde-o. Qual é o princípio dinâmico, verdadeiro desta metamorfose, considerada na totalidade e nos detalhes, que explica estas relações sempre modificadoras? Uma Filosofia que seja digna deste nome tem de resolver este problema, indicando a formula dessa lei geral de transformação. XII - Evolução e Dissolução Admitindo e afirmando que o conhecimento é limitado aos fenômenos, afirmamos implicitamente que a esfera do conhecimento compreende todos os fenômenos, todas as manifestações do incognoscível que podem afetar a consciência. Se o passado e o futuro de cada objeto constitui uma esfera de conhecimento possível, e, se o progresso intelectual consiste em grande parte, se não principalmente, em alargar as nossas posses no domínio do passado e do futuro, é evidente que não teremos adquirido todo o conhecimento de que é capaz a nossa inteligência enquanto não explicarmos, duma maneira ou doutra, todo o passado e todo o futuro de cada objeto e do agregado de objetos. De ordinário, podemos dizer dum objeto, que tocamos e vemos, como é que chegou a possuir a atual forma e consistência; mas estamos plenamente persuadidos-que, partindo logo duma substancia que tinha já uma forma concreta, só fazemos uma história incompleta; o objeto tinha já uma história antes de tomar o estado de que partimos. Resulta daqui que a nossa teoria das coisas, consideradas individualmente ou na sua totalidade, é incontestavelmente incompleta enquanto certas partes quaisquer do passado ou do futuro da sua existência sensível ficarem sem explicação. Não deveremos concluir que incumbe a Filosofia formular esta passagem do imperceptível para o perceptível, e do perceptível para o imperceptível? Não é evidente que a lei geral da redistribuição da matéria e do movimento que, segundo o que acabamos de ver, é necessária para unificar as diversas espécies de transformações, deve ser a lei que unifica as transformações sucessivas que atravessam as existências sensíveis, no todo e em parte? Só com uma formula que combine estes caráteres é que o conhecimento pode tornar-se um todo coerente. Todas as massas, desde um grão de areia até um planeta, irradiam calor para outras massas, e absorvem, calor irradiado por outras; irradiando integram-se, e, recebendo calor, desintegram-se. Em geral em todos os corpos inorgânicos esta dupla ação produz efeitos pouco apreciáveis. Só nalguns casos, como o da nuvem, por ex., é que o conflito produz transformações rápidas e notadas. Esse corpo flutuante composto de vapor de água dilata-se e dissipa-se se a quantidade do movimento molecular que recebe do Sol e da Terra excede o que perde pela irradiação no espaço e superfícies que o cercam; e, ao contrário, se, levado para os cumes frios das montanhas, irradia sobre eles mais calor do que recebe, tem uma perda de movimento molecular, seguida por uma integração crescente de vapor, que por fim se torna em liquido, e cai sob a forma de chuva. Aqui, como em tudo, a integração e a desintegração são um resultado diferencial. Nos agregados vivos e mais especialmente nos animais, estas operações opostas fazem-se com maior atividade, sob diversos aspetos. Não há só o que podemos chamar integração passiva da meteria, que resulta nos seres inanimados de simples atrações moleculares; há ainda a integração ativa da matéria sob a forma de alimentos. Á desintegração superficial passiva a que os objetos inanimados estão sujeitos sob a ação dos agentes exteriores, ajunta-se nos animais uma desintegração interna ativa que eles mesmos produzem absorvendo no seu alimento certos agentes exteriores. Como os agregados inorgânicos comunicam e recebem movimento duma maneira passiva, mas, além disto, absorvem ativamente o movimento latente dos alimentos e gastam-no ativamente. Mas, apesar desta complicação das duas operações e da imensa atividade da sua luta, é constante que há sempre uma tendência diferencial, ora para a integração, ora para a desintegração. Durante a 1ª parte do ciclo das transformações, a integração predomina: dá-se o que chamamos crescimento. A parte media é marcada, não pelo equilíbrio destas duas operações de integração e de desintegração, mas pela alternativa preponderante duma ou doutra. O ciclo fecha-se por um período no qual a desintegração começa a predominar, para por enfim um termo a integração e desfazer o que ela fizera. Não há período de balanceamento em que não haja crescimento ou decrescimento. A estas duas operações, que se mostram sempre em antagonismo, damos os nomes de evolução e dissolução. A evolução, sob a sua forma mais simples e mais geral, é a integração da matéria e dissipação concomitante do movimento; a dissolução é a absorção do movimento e a desintegração concomitante da matéria. Estas designações não preenchem as condições desejáveis: ou, melhor podemos até dizer que, se a segunda corresponde bem ao fim, a primeira precisa de ser explicada. No sentido vulgar, envolver, desprender-se, desenvolver-se, é desenrolar-se, abrir-se, dilatar-se, difundir-se para fora, emitir. Ao passo que, no sentido filosófico que se lhe dá, o ato de evolução, embora implicando o crescimento dum agregado completo, e, por conseguinte uma expansão desse agregado, implica também que as matérias que o compõem passaram dum estado mais difuso para um estado mais concentrado, numa palavra que o agregado se contraiu. O termo antitético de involução expressaria mais fielmente a natureza da operação e daria melhor a ideia de certos caracteres secundários de que nos ocuparemos. Todavia, embora sujeitos a confusão resultante dos diferentes e mesmo contraditórios sentidos da palavra evolução, somos obrigados a servirmo-nos dela para a opor a palavra dissolução. Portanto entender-se-á por dissolução a operação designada por este termo no seu sentido vulgar, a absorção do movimento e a desintegração da matéria; e evolução a operação inversa, que é sempre uma integração da matéria e uma dissipação do movimento, mas que, na maior parte dos casos, é mais ainda. XIII - A lei de evolução Vamos agora ter a prova direta de que o mundo em geral se conforma com esta lei, e para isto seguiremos os fatos que são o objeto da Astronomia, da Geologia, da Biologia, da Psicologia e da Sociologia, mas o mais resumidamente que nos for possível. Admitir a opinião tão plausível de que o sistema solar provém de uma nebulosa, é admitir que se formou por integração da matéria e perda concomitante do movimento. A passagem do sistema solar dum estado incoerente e difuso a um estado coerente e consolidado, mostra-nos um exemplo claro e simples do primeiro aspeto da evolução. A história da Terra, tal como se revela pela sua crosta sólida, leva-nos a esse estado de fusão que implica a hipótese da nebulosa; e as transformações ígneas são consequências da consolidação progressiva da Terra e da perda do movimento que a acompanha. As plantas crescem, concentrando em si elementos que antes estavam disseminados em estado de gases; e cada animal cresce concentrando também os elementos disseminados nas plantas ou animais que o rodeiam. Para mostrar como os organismos, em geral, são dependentes uns dos outros, isto é, integrados, basta primeiramente lembrar que todos os animais vivem diretamente das plantas e as plantas do ácido carbônico produzido pelos animais; em segundo lugar que, entre os animais, os carnívoros não podem existir sem os herbívoros; e, em terceiro lugar, que um grande número de vegetais só se podem perpetuar pelo socorro dos insetos e que, em muitos casos, certas plantas têm necessidade de certos insetos. A Flora e a Fauna de cada habitat constituem um agregado tão bem integrado que muitas das suas espécies morrem se as colocam no meio de plantas e animais dum outro habitat. Deve-se notar que esta integração progride ao mesmo tempo do que a evolução orgânica. Os organismos sociais dão-nos numerosos e claros exemplos de transformações integrativas. A operação pela qual as pequenas dependências dos feudos se agregam em feudos, os feudos em províncias, as províncias em reinos, e os reinos limítrofes num só império, completa-se lentamente pela destruição das primitivas linhas de separação. Vemos efetuarem-se outras integrações pelo desenvolvimento, como por exemplo a junção de Manchester aos seus arrabaldes, o monopólio de certos negócios, a agregação comercial, como a concentração dos livreiros em Paternoster Row, e o estabelecimento de centros comuns, como a Clearing-house dos Banqueiros e a Bolsa e uma infinidade de clubes de diversas sociedades. Aos progressos da estrutura humana individual e socialmente considerados, correspondem os progressos da linguagem. Ha integração progressiva na formação das línguas superiores tiradas das línguas inferiores, reduzindo as polissilábicas em dissilábicas e estas em monossilábicas. O termo anglo-saxão steorra consolidou-se com o tempo em star (estrela), mona em moon (lua). Sunu tornou-se no anglo-saxão sune e no inglês son. Para não multiplicarmos os numerosíssimos exemplos basta lembrar a fusão de God be with you (Deus seja convosco) em Good bye (adeus). A gramatica também mostra esta integração no número de proposições subordinadas que acompanham a principal; nos complementos variados dos sujeitos e atributos, e nas suas numerosas cláusulas qualificativas, todas reunidas num todo complexo. Muitas frases modernas apresentam um grau de integração que se não encontra nas antigas. A Ciência também a cada passo nos dá fatos da mesma ordem. Integrou-se num alto grau, não só no sentido de que cada divisão é feita de proposições dependendo umas das outras, mas também no sentido de que todas as divisões são mutuamente dependentes e auxiliam-se reciprocamente. As artes industriais e estéticas também nos fornecem provas decisivas. Foi um progresso de integração que substituiu o instrumento grosseiro, pequeno e simples por vastas maquinas perfeitas e complexas. Um progresso são os quadros históricos modernos comparados com as pinturas murais dos Egípcios e Assírios; um progresso são as atuais obras de imaginação, comparadas com os simples contos primitivos dos orientais. A Evolução é, pois, no seu aspeto primário, uma passagem duma forma menos coerente para uma forma mais coerente, em consequência da dissipação do movimento e da integração da matéria. É a marcha universal que seguem as existências sensíveis, individualmente e no seu conjunto, durante o período ascendente da sua história. XIV - A Lei da Evolução (Continuação) Disse-se que a integração de cada todo se faz ao mesmo tempo do que a integração de cada uma das partes de que se compõe. Mas como é que o todo se chega a subdividir nas diversas partes? Eis o segundo aspeto sob o qual a evolução deve ser estudada. Vamos para isso ocuparmo-nos das existências de todas as ordens na sua diferenciação progressiva. Lembrando nos que os planetas diferem na inclinação das suas orbitas e dos seus eixos, nas suas gravitações especificas e nas suas constituições físicas, vemos que complexidade se acha manifestada no sistema solar pelas redistribuições secundarias que acompanharam a redistribuição primária. Temos um contraste bem evidente de heterogeneidade entre a nossa Terra tal como existe, cuja crosta mostra fenômenos que não têm sido ainda todos enumeradas pelos geógrafos, geólogos, mineralogistas e meteorologistas, e o globo incandescente donde ela saiu por evolução. Produziu-se simultaneamente uma diferenciação gradual de climas até que cada região extensa alcançasse as condições meteorológicas próprias. Em cada planta, em todo o animal, redistribuições secundárias notáveis acompanham a redistribuição primária. É primeiro uma diferença entre duas partes, em cada uma destas partes produzem-se outras diferenças tão nítidas como a primeira; depois as diferenças crescem em progressão geométrica, até que o grau complexo de combinação, que constitui o adulto, seja alcançado. É a história de tudo quanto vive. Aproveitando-se duma ideia emitida por Harvey, Volff e Baër demonstraram que, durante a sua evolução, cada organismo passa dum estado de homogeneidade a um estado de heterogeneidade. Ha longo tempo que os biólogos aceitaram esta verdade. Se passarmos da forma individual da vida a própria vida em geral e perguntarmos se a mesma lei se encontrará no conjunto das suas manifestações, se as plantas e os animais modernos têm uma estrutura mais heterogênea que os de outrora, se a Flora e a Fauna da nossa atual terra são mais heterogêneas do que as do passado, a resposta é que, embora o nosso conhecimento do passado da terra seja imperfeito, o conhecimento que dele temos autoriza-nos a afirmarmos que essa evolução se deu do simples para o complexo. O progresso do homogêneo para o heterogêneo é sobretudo bem exemplificado na última criatura produzida e na mais complexa, no homem. Não só o organismo humano se tornou mais heterogêneo nas divisões civilizadas da espécie, mas a espécie, como todo, tornou-se mais heterogênea pela multiplicação das raças e pela diferenciação destas raças. Se passarmos para a sociedade, encontramos ainda exemplos mais numerosos desta lei geral. A mudança do homogêneo para o heterogêneo manifesta-se, tanto no progresso da civilização, considerada como todo, como nos progressos de cada tribo ou nação, e opera-se ainda hoje com uma rapidez crescente. Começando numa tribo bárbara, quase homogênea nas funções dos seus membros, o progresso foi e é ainda dirigido no sentido duma agregação econômica de toda a raça humana: torna-se cada vez mais heterogêneo por causa das funções distintas, adotadas pelas diversas nações, pelas seções locais de cada nação, e as funções distintas adotadas pelos operários unidos para produzirem cada objeto útil. Esta lei manifesta-se, com uma igual clareza, pela evolução de todos os produtos do pensamento e da ação humana, concretos ou abstratos, reais ou ideais. A difusão em toda a espécie terrestre que trouxe a diferenciação da raça, levou simultaneamente a diferenciação da linguagem. O progresso da linguagem conformou-se com a lei geral, na evolução das línguas, das famílias, dos termos e das partes da linguagem. Em quanto a linguagem escrita atravessava os primeiros períodos do seu desenvolvimento, a decoração mural que lhe dera nascença, diferenciando-se por sua vez, produzia a pintura e a escultura. Tão novo que isto pareça, não é menos exato que todas as formas da linguagem escrita, da pintura e da escultura têm a sua raiz comum nas decorações político-religiosas dos templos e palácios antigos. As efígies das nossas moedas, as tabuletas das lojas, os brasões e escudos das equipagens e das casas, os papeis pintados, as bonecas, etc., descendem em linha direta das grosseiras esculturas pintadas pelas quais os Egípcios representavam os triunfos e o culto dos seus reis-deuses. É talvez impossível daí um exemplo mais evidente da multiplicidade e da heterogeneidade dos produtos que, no decorrer dos tempos, produzem diferenciações sucessivas do mesmo tronco. A origem coordenada e a diferenciação gradual da poesia, da música e da dança mostram-nos uma outra série de exemplos. O ritmo no discurso, o ritmo no som e no movimento eram, no começo, partes da mesma coisa, e só com o tempo se tomaram coisas separadas. O progresso do homogêneo ao heterogêneo não se manifesta só pela separação destas artes umas das outras e também da religião, mas ainda pelas múltiplas diferenciações que cada uma delas depois recebe. A música, por exemplo, através uma complexidade crescente, resultante da introdução de notas de diferentes durações, da multiplicidade das claves, variedades de medida, modulações, etc., a música de hoje comparada a de outrora mostra como é imenso o progresso da heterogeneidade. O desenvolvimento da literatura, da ciência, da arquitetura, do drama e do costume mostra-nos igualmente que, desde as profundezas do passado mais longínquo que a ciência possa supor, até às manifestações de ontem ou de hoje, o traço essencial da evolução foi a transformação do homogêneo em heterogêneo. Segue-se que podemos, tal como agora a compreendemos, definir a Evolução como a passagem duma homogeneidade incoerente para uma heterogeneidade coerente, em consequência da dissipação do movimento e da integração da matéria. XV - A lei da Evolução (Continuação) A generalização precedente exprimirá toda a verdade? Compreende todos os caráteres essenciais da Evolução? É forçoso buscar ainda uma outra distinção. Ao mesmo tempo que a evolução é uma passagem do homogêneo para o heterogêneo, é uma passagem do indefinido para o definido. Ao lado do progresso da simplicidade para a complexidade, há um progresso da confusão a ordem, duma disposição indeterminada para uma disposição determinada. Era esta a distinção que nos faltava. O progresso do indefinido para o definido manifestar-se-á em tudo? A evolução do sistema solar, tendo nascido da matéria difusa, foi e é um progresso para uma estrutura mais definida. É fácil concluir-se que a transição da terra do seu estado primitivo de fusão para o estado atual devia ter passado por períodos em que os caráteres se tornaram cada vez mais determinados; as diferenças dos climas e das estações tornaram-se mais e mais notáveis à medida que o calor do sol se distinguia melhor do calor da própria terra; e o resultado de condições mais especificas em cada localidade foi auxiliado pela permanência crescente na distribuição dos países e dos mares. Em vez de exemplos dedutivos como os antecedentes, encontramos nos organismos fatos indutivos estabelecidos e, portanto, menos susceptíveis de ser criticados. O processo do desenvolvimento dos mamíferos, por exemplo, fornecer-nos-á a prova de que as transformações em virtude das quais a estrutura geral se desenha com uma precisão lentamente crescente têm o seu paralelo na evolução de cada órgão, quer no aspeto geral, quer nos pormenores da estrutura. Se as espécies vegetais e animais proveem de modificações e transformações sucessivas dumas nas outras, segundo as teorias que têm hoje base científica, a conclusão é que houve um progresso do indeterminado para o determinado. Uma tribo nômade de selvagens, sem localidade fixa e sem organização interna, não é tão bem definida na posição relativa das suas partes do que uma nação. Numa destas tribos as relações sociais são igualmente confusas e mal reguladas. A autoridade política não está bem estabelecida nem é precisa. E, à excepção de ocupações diversas dos homens e das mulheres, não há divisões industriais completas. Todos os resultados organizados da ação social atravessam fases paralelas. Produtos objetivos de operações objetivas, devem apresentar as transformações correspondentes: a Linguagem, a Ciência e a Arte provam-no bem. Lembrando-nos de que a Ciência pode definir-se como o conhecimento definido por oposição ao conhecimento indefinido que possuem as pessoas pouco cultivadas, sabemos que é um pleonasmo dizer que a caraterística dos progressos da ciência consiste no aumento da sua precisão. Se a Ciência, como é inegável, se desenvolveu gradualmente no decurso dos tempos, fora do conhecimento indefinido da gente sem cultura, é preciso que o traço dominante da sua evolução fosse essa precisão que hoje a caracteriza. As artes industriais e estéticas dão-nos um exemplo talvez ainda mais evidente. Ao medirmos a distância que separa os primeiros instrumentos de silex do microscópio, o ídolo grosseiramente talhado da estátua moderna, e o fabuloso conto do oriente do belo romance que tão fielmente descreve os costumes atuais, temos novas provas dessa passagem de estados indefinidos para estados cada vez mais definidos. Mas não devemos esquecer que esta passagem para o definido é um fenômeno secundário. Temos pois já uma ideia mais especifica da Evolução; é a passagem duma homogeneidade indefinida, incoerente, para uma heterogeneidade definida, coerente, acompanhando a dissipação do movimento e a integração da matéria. XVI - A lei de Evolução (fim) Até aqui só nos ocupámos da redistribuição da Matéria, pondo de parte a redistribuição concomitante do movimento. Falou-se algumas vezes da dissipação do movimento; mas nada ainda se disse do que se não dissipa. As ações rítmicas que se operam em cada agregado devem diferenciar-se e integrar-se ao mesmo tempo que a estrutura se diferencia e Integra. Temos, para completar a nossa concepção da Evolução, que considerar em todo o Cosmos as transformações do movimento retido que acompanham as transformações da matéria que o compõem. A matéria da nebulosa que, no estado primitivo, tinha movimentos confusos e indeterminados, sem distinções notáveis, adquiriu, durante a evolução do sistema solar, movimentos claramente heterogêneos. Os movimentos da crosta da Terra indicam um progresso análogo. As elevações e as depressões, ao princípio numerosas, locais e muito idênticas umas às outras, quando a crosta se tornou mais espessa, deviam ter-se estendido a maiores superfícies e tornar-se nas diversas regiões cada vez mais dissemelhantes. Nos organismos, o progresso para uma distribuição mais integrada, mais heterogênea, mais definida do movimento retido, é principalmente o que nós entendemos por desenvolvimento das funções. Durante a evolução, as funções como os órgãos, consolidam-se individualmente e combinam-se mais umas com as outras, ao mesmo tempo que se tornam mais multiformes e mais distintas. Isto compreende-se se nos lembramos que ao lado das diferenciações de estrutura e das integrações do canal alimentar, produzem-se diferenças e integrações dos seus movimentos. Os fenômenos subjetivos das mudanças na consciência, são objetivamente conhecidos como excitações e descargas nervosas que a ciência interpreta como manifestações do movimento. De onde se pode concluir, seguindo a evolução orgânica, que o progresso da integração, da heterogeneidade e do estado definido do movimento retido, deve manifestar-se igualmente, e manifesta-se, nas ações neuromusculares visíveis e nas transformações mentais correlativas. Depois do que fica indicado será supérfluo mencionar o modo como os movimentos ou funções produzidas pelo concurso das ações individuais nas sociedades, aumentam em quantidade, multiformidade, em precisão e complexidade. Temos pois que juntar ao que já ficou dito sobre evolução uma cláusula tão importante como as que a precederam, e concluirmos pela definição seguinte: - Evolução é uma integração de matéria acompanhada duma dissipação de movimento durante a qual a matéria passa duma homogeneidade indefinida, incoerente, para uma heterogeneidade definida, coerente, e durante a qual o movimento retido passa por uma transformação análoga. Mas há ainda a ajuntar alguma coisa sobre o modo de interpretar a evolução. Esta lei é correlativa da lei da direção e do ritmo do movimento, já anteriormente exposta. Os fenômenos da evolução devem, numa palavra, ser deduzidos da Persistência da Força. Temos a examinar as diversas decomposições de forças que acompanham a redistribuição da matéria e do movimento. Devemos ter presente no espírito que, de toda a força incidente que afeta um agregado, a parte efetiva é a que fica depois de se ter separado a parte não efetiva; que estas duas partes devem variar em razão inversa uma da outra, e que as disposições da massa e as modificações moleculares produzidas pela força efetiva permanente variam também em razão inversa, XVII - Instabilidade do Homogêneo Encontramos dificuldades tão grandes, quando queremos seguir as transformações tão complicadas por que todas as existências passaram e passam ainda, que nos parece quase impossível dar uma interpretação precisa ou completa. Não é também possível abraçar o processo total da redistribuição da matéria e do movimento, de maneira a ter-se uma ideia geral dos diversos resultados necessários no seu laço atual de dependência mútua. Todavia há um meio de fazermos uma ideia suficiente do conjunto da operação. Nas disposições que toma um agregado em evolução podem considerar-se diversos fatores; quando interpretarmos os efeitos de cada um dos fatores separadamente, poderemos pela síntese das interpretações ter uma ideia adequada do conjunto. A ordem lógica dá-nos esta primeira proposição: que alguma passagem deve ter lugar; ou mais especificamente dizendo, que a homogeneidade é uma das condições do equilíbrio instável. Isto carece de ser explicado. As palavras equilíbrio instável servem em mecânica para exprimir um balanço de forças tais que a intervenção duma força nova, tão fraca que seja, destrói a disposição previamente existente e produz outra totalmente diferente. Um pau colocado em equilíbrio sobre a sua parte inferior, está em equilíbrio instável; por mais que o coloquemos rigorosamente numa posição vertical, desde que o abandonamos, começa, primeiro imperceptivelmente a inclinar-se para um lado, e depois cai com uma rapidez crescente. Ao contrário um pau suspenso pela sua parte superior está em equilíbrio estável; pode-se empurrá-lo, volta sempre a mesma posição. A proposição significa, pois, que o estado de homogeneidade, como o do pau posto em equilíbrio pela parte inferior, não se pode manter. Vejamos outros exemplos. Dos que nos apresenta a mecânica, o mais comum é o da balança. Se uma balança estiver bem feita e não for falsificada, é impossível manter os seus pratos em equilíbrio perfeito: é forçoso que um dos pratos suba e que o outro desça e que mantenham sempre uma relação heterogênea. Aqueçamos ao fogo um pedaço qualquer de matéria. No começo está quente em toda a parte em que lhe tocamos. Mas depressa o exterior não terá a mesma temperatura do que o interior e passa cada vez mais para uma temperatura mais heterogênea. Exponhamos um pedaço de metal ao ar ou dentro de água e vê-lo-emos no fim de algum tempo revestir-se duma camada de óxido, de carbonato ou dum outro composto: isto mostra que as suas partes exteriores se tornam diferentes das suas partes interiores. Vê-se a instabilidade do homogêneo nas transformações que se operam no interior de uma massa quando ela se compõe de unidades não estreitamente ligadas umas às outras. Os átomos dum precipitado nunca ficam separados nem igualmente distribuídos no fluido em que apareceram. Agregam-se ora em grãos cristalinos contendo cada um deles um número imenso de átomos, em flocos que contêm ainda um maior número; e, quando a porção do liquido é grande e a operação prolongada, estes flocos nunca ficam em distância igual, mas separam-se para formar grupos. Isto significa que há uma destruição do equilíbrio que antes existia entre as partículas difusas, e do que existia entre os grupos formados pela união destas partículas. Ha soluções de substancias não cristalinas nos líquidos extremamente voláteis, que em meia hora passam por uma série de mudanças que se efetuam da maneira já indicada. Por exemplo, se se deitar sobre uma folha de papel um pouco de verniz de laca, a superfície do verniz em pouco tempo se cobrirá de divisões poligonais, que ao princípio se mostram nas bordas da massa para se entender em seguida até ao centro. Resulta daqui que, não só o homogêneo se torna num estado não-homogêneo, mas que mesmo o mais homogêneo tende a tornar-se menos homogêneo. O princípio geral que vamos seguir nas suas aplicações vai agora compreender-se melhor. Não servirá de nada objetar-se que a homogeneidade perfeita não existe; com efeito, quer o estado que nós começamos a observar seja ou não seja a homogeneidade perfeita, a operação realiza-se necessariamente no sentido duma heterogeneidade cada vez maior. O arrefecimento e a solidificação da superfície, ao princípio incandescente, do globo, mostra-nos um caso dos mais simples e dos mais importantes ao mesmo tempo, da passagem dum estado uniforme para um estado multiforme, sucedendo numa massa qualquer em virtude da exposição das suas diferentes partes a condições diferentes. As operações meteorológicas definitivamente estabelecidas na atmosfera terrestre são um outro exemplo; apresentam também a destruição do estado homogêneo, resultante de estarem expostas dum modo desigual a várias forças incidentes. O fato mais reconhecido com respeito às plantas e animais é que, por mais semelhantes em forma e em textura que possam ser as suas diversas partes exteriores, elas adquirem dessemelhanças correspondentes às das suas relações com os agentes exteriores O embrião dum zoófito que, durante o seu período de locomoção só é diferenciado num tecido interno e num tecido externo, só é fixado quando a sua extremidade superior começa a ter uma estrutura que difere da extremidade inferior. As massas humanas, como todas as outras massas, manifestam a mesma tendência. Resulta das diferenças de solo e de clima que os habitantes dos campos, em diversas partes duma nação, têm ocupações especializadas, e distinguem-se por produzirem gado ou cultivarem trigo, centeio, milho, etc. Os que vivem em terras onde se têm descoberto minas de carvão de pedra tornam-se mineiros. O fato de que a instabilidade do homogêneo é um corolário da persistência da força está implicado no fato de que a razão da perda da sua uniformidade se encontra na desigual exposição das partes da sua massa às ações externas. A conclusão de que as transformações pelas quais a evolução começa são motivadas pela lei da permanência da força, tem de juntar-se que estas transformações devem continuar. O absolutamente homogêneo deve perder seu equilíbrio, e o relativamente homogêneo deve passar para um estado relativamente menos homogêneo. O que se aplica a um todo, aplica-se às suas partes. A uniformidade destas partes deve também inevitavelmente perder-se. XVIII - A multiplicação dos efeitos A causa da crescente complexidade, já exposta, é preciso ajuntar uma outra. A ação e a reação sendo iguais e opostas, segue-se que diferenciando as partes em que a força incide, a força deve passar por diferenciações correspondentes. Assim, quando um corpo fere um outro, além do resultado mecânico, pode produzir-se um som, corrente de ar, uma fratura, uma incandescência, e combinações químicas. Uma força incidente decomposta pelas reações dum corpo num grupo de forças dissemelhantes - uma força uniforme reduzida a uma força multiforme - torna-se a causa dum aumento secundário de multiformidade no corpo que a decompõe. Esta multiplicação dos efeitos deve ir aumentando em progressão geométrica. Cada grau da evolução deve caminhar para um grau mais elevado. É fácil ver a multiplicação dos efeitos nos fenômenos do sistema solar se não esquecermos a influência que tem cada membro deste sistema sobre os restantes. A força exercida por um planeta opera um efeito diferente em cada um dos outros; este efeito diferente espalha-se de cada um deles sobre os outros, produzindo-lhes efeitos menores, e assim por diante, como as ondas vão propagando-se, multiplicando-se e enfraquecendo-se. As mudanças múltiplas que produz a continuação duma só causa - a diminuição do calor - aparecem claramente sobre a superfície terrestre. A terra, perdendo o seu calor, deve contrair-se. Por conseguinte, a crosta solida de outrora é atualmente grande demais para o núcleo que diminuiu, e como é incapaz de se sustentar segue o núcleo, o que a faz enrugar-se como a pele da maçã quando o volume do fruto diminui em virtude da evaporação. Á medida que o arrefecimento aumenta e que o involucro se torna espesso, as leves elevações, que acabamos de comparar às rugas dos frutos, tornam-se colinas e montanhas. O último sistema de montanhas assim produzido será o mais alto e o mais extenso. Sem falar doutras forças modificadoras, vemos como a imensa heterogeneidade de superfície provem duma só causa, a perda do calor, heterogeneidade que o telescópio nos mostra também na lua onde não há água nem atmosfera. Sigamos este princípio universal na evolução orgânica. Notemos desde já que numerosas transformações um estimulo enérgico produz num organismo humano. Por exemplo, um barulho assustador, a vista dum objeto que horroriza ou causa repugnância, excita o coração, dá-se um afluxo de sangue ao cérebro, e, se o sistema é fraco, pode provir disto uma doença com muitos sintomas complicados. Pode-se também mencionar os efeitos múltiplos dos remédios, dos alimentos especiais, dum ar melhor. Basta considerar que os numerosos resultados produzidos por uma só força sobre um organismo adulto devem ser análogos num organismo embrionário, para se compreender quanto nestes pequenos organismos, a produção de numerosos efeitos por uma causa única, é a origem duma heterogeneidade crescente. O calor exterior e outros agentes que determinam as primeiras complicações do gérmen provocam, incidindo sobre estas, novas complicações; operando sobre estas ultimas, produzem maiores e mais numerosas ainda, e assim por diante; cada órgão, à medida que se desenvolve, serve pelas suas ações e reações sobre os restantes, para engendrar novas complicações. O crescimento de cada tecido, tomando ao sangue elementos dentro de certas proporções, deve modificar a constituição do sangue e por isso modificar a nutrição de todos os outros tecidos. Uma sensação não desperta um estado de consciência único, mas o estado de consciência que ela desperta compõe-se de diversas sensações representadas; unidas por um laço de coexistência ou de sequência a sensação inicial. Pode concluir-se que, quanto mais elevado for o grau de inteligência, tanto maior será o número das ideias sugeridas. Está provado que cada transformação origina muitas transformações, e que a multiplicação aumenta na proporção da complexidade da superfície afetada. Se se pode ligar, tanto para o corpo como para o espírito, o progresso do homem a uma maior heterogeneidade, com mais forte razão poderemos explicar pelo mesmo princípio o progresso da sociedade para uma heterogeneidade cada vez maior. Tomemos, por exemplo, a locomotiva. Esta máquina foi a causa próxima de todas as redes de caminhos de ferro; mudou as regiões, o curso dos negócios, os hábitos dos habitantes. Passemos por cima da série complicada de transformações que originaram e antecederam a construção dum caminho de ferro, para chegarmos às transformações mais importantes e mais complicadas que os caminhos de ferro em exploração produziram nos países em geral. A organização de todos os negócios é mais ou menos modificada. A rapidez e a barateza dos transportes tendem a especializar cada vez mais as industrias das diferentes regiões e a restringir cada manufatura a fabricação dos artigos melhor apropriados às vantagens de cada localidade. A distribuição econômica iguala os preços e, em média, abaixa-os, pondo diversos artigos ao alcance daqueles que, antes, não tinham possibilidade de os comprar, aumentando assim o seu bem-estar e melhorando os seus costumes. Ao mesmo tempo, viaja-se muito mais. Assim as duas conclusões de que uma parte da causa da Evolução se encontra na multiplicação dos efeitos, e que esta multiplicação cresce em progressão geométrica, à medida que a heterogeneidade aumenta, não têm somente uma origem indutiva, mas podem deduzir-se do princípio, de todos o mais fundamental, o da persistência da força, do qual a multiplicação dos efeitos é um corolário. XIX - A segregação A interpretação geral da Evolução não ficou completa nos capítulos precedentes. Nós não descobrimos a razão por que se não produz uma heterogeneidade vaga e caótica, mas a heterogeneidade harmônica, que vemos na Evolução. Temos ainda que descobrir a causa desta integração local que acompanha a diferenciação local, isto é, a segregação, que se completa gradualmente, das unidades semelhantes num grupo distinto por um caráter claramente separado dos grupos vizinhos, compostos cada um doutras espécies de unidades. Se tomarmos uma mancheia dum pó contendo fragmentos de grandeza desigual e o espalharmos no chão quando soprar uma certa brisa, encontraremos os fragmentos maiores aos nossos pés, os fragmentos um pouco menores irão cair mais longe, os mais pequenos mais longe ainda, e as parcelas do pó serão arrastadas muito longe antes que caiam. Quer isto dizer que a força incidente imprime movimentos diferentes às diversas unidades, na proporção mesma da sua diferença; e, por conseguinte, na proporção da sua dessemelhança, tende a depô-las em lugares diferentes. Há uma causa inversa de segregação que deve ser mencionada. Se unidades diferentes submetidas à ação da mesma força devem tomar movimentos diferentes, as unidades da mesma espécie devem também tomar movimentos diferentes sob a ação de forças diferentes. E eis aqui o princípio complementar: as forças misturadas são separadas pela reação de substancias uniformes, exatamente como substâncias misturadas são separadas pela ação de forças uniformes. A formação e a separação dum anel nebuloso apresentam dois exemplos desta grande lei, conformando-se a lei que, entre unidades semelhantes, expostas a forças dissemelhantes, as que estão em iguais condições separam-se das que estão em diferentes condições. Na história de cada camada geológica, chegamos prontamente a reconhecer que fragmentos misturados, diferindo em volume e em peso, são, quando recebem o choque e o atrito da água e estão sujeitos a atração da terra, escolhidos, separados, depois reunidos em grupos de fragmentos relativamente semelhantes. E vemos que, em igualdade de circunstâncias, a separação é clara na proporção da clareza da diferença das unidades. Assim como no outono o vento arranca as folhas amarelas dentre as verdes, assim as forças exteriores que incidem uniformemente sobre os membros dum grupo orgânico afetam-nos duma maneira semelhante na proporção da sua semelhança, e diferente na proporção da sua diferença; separam assim, por uma escolha, as semelhantes, eliminando de entre elas as dissemelhantes. Que estes membros separados morram como sucede as mais das vezes, ou que sobrevivam como algumas vezes sucede para se multiplicarem e formar uma variedade distinta em consequência da sua adaptação a certas condições um pouco diferentes, isso pouco importa. O primeiro caso, é conforme ao princípio pelo qual as unidades dessemelhantes dum agregado se agrupam com as da mesma espécie e separam quando estão submetidas às mesmas forças incidentes. O segundo a lei correspondente de que as unidades semelhantes dum agregado se separam e se agrupam a parte quando estão submetidas a forças diferentes. Vimos que a evolução mental, sob um dos seus principais aspetos, consiste na formação de grupos de objetos semelhantes e de relações semelhantes, quer dizer na diferenciação das diversas coisas confundidas conjuntamente na mesma reunião, e em uma integração de cada ordem distinta de coisas num grupo distinto. Basta agora ajuntar que a dessemelhança das forças incidentes é a causa destas diferenciações e a semelhança das forças incidentes é a causa destas integrações. Com as unidades tão complicadas como as que constituem uma sociedade, e com as forças também tão complicadas como as que a movem, encontram-se, como se deve esperar, as seleções e separações que causam mais confusão e menos clareza do que em qualquer das que já examinamos anteriormente. Ha sem dúvida anomalias que poderiam, à primeira vista, parecer em contradição com a lei apresentada, mas um estudo mais profundado mostra que, ao contrário, são apenas casos particulares de natureza mais sutil. Basta lançarmos a vista sobre as divisões de castas, os partidos religiosos e as classes da sociedade, para ver que é sempre alguma semelhança entre os membros de cada um destes corpos que determina a sua união. As segregações sociais conformam-se, portanto, com os princípios de todas as outras segregações. O princípio geral de que acabamos de dar vários exemplos pode deduzir-se da persistência da força. E estes fatos levam-nos a duas proposições abstratas: 1ª - em todas as ações e reações de força e de matéria uma dessemelhança em qualquer dos fatores torna necessária uma dessemelhança nos efeitos; 2ª - e a falta de tal dessemelhança, os efeitos devem ser semelhantes. Vê-se, pois, a dependência imediata que liga estas duas proposições ao princípio da persistência da força. XX - O Equilíbrio Para que termo tendem estas transformações? Quer examinemos as operações concretas, quer consideremos a questão abstratamente, sabemos que a Evolução tem um limite infranqueável. Encontramos em tudo uma tendência para o equilíbrio. A coexistência universal de forças antagônicas, que carecem da universalidade do ritmo, e a decomposição de cada força em forças divergentes, força ao mesmo tempo o estabelecimento definitivo do equilíbrio. A Evolução de cada agregado deve prosseguir-se até que um equilíbrio móbil se estabeleça, pois que todo o excesso de força que o agregado possui numa qualquer direção deve dispender-se para vencer as resistências de mudança nesta direção, não deixando atrás de si os movimentos que podem contrabalançar-se mutuamente e formar assim um equilíbrio móbil. Quanto ao estado de estrutura que o agregado ao mesmo tempo adquire, é forçoso evidentemente que ele apresente uma disposição de forças que contrabalancem todas as forças que sobre o agregado se exercem. Enquanto restar uma força em excesso numa qualquer direção, quer seja exercida pelo agregado sobre as partes que o cercam ou pelo meio sobre o agregado, o equilíbrio não existe; e, por conseguinte a redistribuição da matéria deve continuar. Resulta disto que o limite da heterogeneidade para o qual caminha todo o agregado, é a formação de tantas especializações e combinações das partes quantas forem as forças especializadas e combinadas a equilibrar. Estas formas sucessivamente modificadas que, se admitirmos a hipótese da nebulosa, devem ter-se originado durante a evolução do sistema solar, eram outras tantas espécies transitórias do equilíbrio móbil; cederam o lugar a espécies mais permanentes, passos da marcha que leva ao equilíbrio completo. Quando, segundo a hipótese, a matéria da nebulosa, em via de condensação, tomava uma forma esferoidal achatada, dava-se um equilíbrio móbil e temporário parcial entre as partes componentes; equilíbrio móbil que devia lentamente tornar-se mais estável, à medida que se dissipavam os movimentos locais antagônicos. A lei do equilíbrio preside também ao movimento das massas que, durante a Evolução, tendem a difundir-se em movimento molecular do meio etéreo. Embora um tempo muito longo seja necessário para que todos os movimentos das massas se transformem em movimentos moleculares, e todos os movimentos moleculares estejam equilibrados, é para este estado de integração completa e de equilíbrio completo que tendem as transformações que atualmente se produzem no sistema solar. As transformações da terra aparecem-nos como mudanças particulares no estabelecimento do equilíbrio cósmico. Porque, das alterações incessantes por que passa a crosta terrestre e a atmosfera da terra, as que não são causadas pelo movimento ainda incompleto da terra para o seu centro de gravidade, são causadas pelo movimento ainda incompleto do sol para o seu centro de gravidade; a continuação destas integrações, sendo a continuação desta transformação do movimento sensível no movimento insensível, há de atingir o equilíbrio completo. Todo o corpo vivo apresenta, sobre quatro aspectos, o processo já indicado: a cada momento no balanceamento das forças mecânicas; de hora para hora no balanceamento das funções; de ano para ano nas mudanças de estados que compensam as mudanças de condições; e finalmente na paragem completa do movimento vital, pela morte. Os grupos de organismos mostram todos esta universal tendência para o equilíbrio dum modo muito evidente; visto que, cada espécie de planta ou de animal está constantemente sujeita a uma variação rítmica de número, ora pela abundância de nutrição e ausência de inimigos, elevando-se acima da média, ora pela falta de nutrição e abundância de inimigos, descendo abaixo da média. Entre estas oscilações encontra-se esse número médio de espécies em que a tendência para a expansão se equilibra pelas tendências repressivas ambientes. Os equilíbrios das ações nervosas que constituem a vida mental podem ser também classificados como os que constituem a chamada vida corporal. Algumas pessoas terão dificuldade de aceitar a assimilação deste equilíbrio. Mas, a verdade é que a ação física, é a mesma, quer nuns, quer noutros. A existência num indivíduo dum estimulo emocional que esteja em equilíbrio com certas exigências externas, é literalmente a produção habitual de qualquer parte especializada de energia nervosa, equivalente em intensidade a uma certa ordem de resistências externas que encontra habitualmente. Assim pois, o último estado, o limite para que a evolução nos leva, é um estado em que as espécies e as quantidades de energia mental, produzidas e transformadas quotidianamente em movimentos, são equivalentes às diversas ordens e aos diversos graus de forças ambientes que lutam com estes movimentos; ou melhor, estão com elas em equilíbrio. Na sociedade o processo do equilíbrio vê-se nos conflitos entre os Conservadores (que pretendem que a sociedade deve ser senhora do indivíduo) e os Reformistas (que pretendem que o indivíduo deve ser livre em face da sociedade). Este processo continuar-se-á até que a balança entre as forças antagonistas esteja próxima da perfeição. Porque a adaptação da natureza do homem às condições da sua existência só cessará quando as forças interiores, a que chamamos sentimentos, forem em equilíbrio com as forças exteriores que combatem. E o estabelecimento deste equilíbrio será a realização dum estado em que a natureza do homem e a sua organização social seja tal que o Indivíduo só tenha desejos que possam ser satisfeitos sem sair da sua esfera de ação, e que a sociedade não imporá mais limites do que aqueles que o indivíduo aceitar livremente. A abolição definitiva de todos os limites à liberdade de cada um será o resultado do equilíbrio completo entre os desejos do homem e a conduta que as condições do meio imponham. Portanto, da persistência da força, derivam, não só os diversos equilíbrios diretos ou indiretos que se estabelecem em tudo, mas também o equilíbrio cósmico que põe termo a todas as formas da evolução, e ainda também estes equilíbrios menos manifestos que nós vemos nos restabelecimentos dos equilíbrios móveis que foram perturbados. A persistência da força permite que afirmemos que se opera um progresso gradual para a harmonia, entre as condições da existência do homem e a sua natureza mental. Depois de nos termos certificado que daqui se podem deduzir os traços variados e caraterísticos da Evolução, temos razões para acreditar que a Evolução só se pode terminar pelo estabelecimento da maior perfeição e da maior felicidade. XXI - A Dissolução Quando um agregado alcança esse equilíbrio que é o termo das suas transformações, está sujeito a todas as ações do seu meio; estas podem acrescer a quantidade de movimento que contém, e é certo que acabarão por dar ás suas partes, quer lentamente, quer repentinamente, um excesso tal de movimento que tenha como consequência a desintegração. O decurso das transformações na Dissolução assim causada sendo a inversa da Evolução, podemos tomar a ordem inversa para dar dela exemplos. É evidente que a dissolução social que se segue a agressão duma nação por outra, é, no seu aspecto mais largo, a introdução dum novo movimento externo. Quando, assim como sucede algumas vezes, a sociedade é dispersada, a dissolução que dela se apodera é, a letra, a cessação dos movimentos combinados que a sociedade apresentava no seu exército e nas suas associações comerciais, e uma passagem para um estado onde só se encontram movimentos individuais ou isolados, o movimento das unidades substituindo o das massas. Na dissolução orgânica há uma transformação do movimento dos agregados em movimento das unidades. A morte põe um termo a todos os movimentos integrados da evolução; o processo da decomposição indica o crescimento dos movimentos insensíveis no fato de que os gazes produzidos pela decomposição contêm mais movimento do que a matéria donde saem. É evidente que o movimento foi absorvido, pois que se sabe que sem calor, sem movimento, nenhuma decomposição orgânica se poderia produzir. A terra considerada como um todo, depois da sua evolução, deve, assim como os mais pequenos agregados, estar exposta ás contingências do seu meio; e, no decurso destas transformações incessantes num universo em que todas as partes estão em movimento, a terra, em dado período, deve estar submetida a forças capazes de produzir a sua desintegração completa. Se, levando ao extremo o argumento de que a Evolução deve levar a um equilíbrio completo, ou repouso completo, o leitor conclui que haverá a morte universal, nós, ao contrário, inferimos uma nova vida universal. O Movimento e a Matéria, existindo em quantidades fixas, parece que a transformação na distribuição da Matéria operada pelo Movimento chegando, na direção para que se dirige, a um termo, o Movimento indestrutível necessitará duma distribuição inversa. As forças universalmente coexistentes de atração e de repulsão, carecendo dum ritmo em todas as transformações menores do universo, carecem também de ritmo na totalidade das suas transformações e produzem, ora um período incomensurável durante o qual as forças de atração, predominando, produzem uma concentração universal, ora um período igualmente incomensurável durante o qual as forças de repulsão, predominando, produzem uma difusão universal: eras alternadas de Evolução e de Dissolução. Isto sugere-nos a concepção de dum passado durante o qual teria havido Evoluções sucessivas análogas aquelas a que hoje assistimos; e a dum futuro no curso do qual outras Evoluções sucessivas se podem produzir, sempre as mesmas em princípio, mas nunca as mesmas nos seus resultados concretos. Somos forçados a concluir que o processo total das coisas, tal como se manifesta no agregado do Universo, é análogo ao processo que se manifesta nos pequenos agregados. XXII - Conclusão Antes de concluirmos, resta acrescentar que ninguém deve supor que a verdade da teoria da Evolução depende da verdade das proposições secundárias que se empregaram como exemplos. Depende apenas da validade das suas verdades gerais; enquanto estas últimas se não refutarem, nada abalará a nossa confiança. O desenvolvimento do conhecimento num agregado organizado de deduções da persistência da força só poderá acabar-se num futuro muito remoto, e então mesmo talvez se não acabe inteiramente. No entanto uma tentativa de reduzir fatos acumulados a uma certa ordem será a justificação das partes seguintes deste volume; ocupar-nos-emos nelas das divisões do que ao princípio chamámos Filosofia Especial e que compreenderão em detalhe os fenômenos da Vida; do Espírito, da Sociedade, pela Matéria, o Movimento e a Força. PRINCÍPIOS DE BIOLOGIA DADOS DA BIOLOGIA I - Ensaio duma definição da Vida Será escusado lembrar a todos os que aceitam a doutrina Evolucionista que as classificações são apenas concepções subjetivas, que não existem na natureza. Por conseguinte, sempre que quisermos definir alguma coisa de completo, não podemos deixar de incluir na definição mais do que queremos e de excluir alguma coisa que desejaríamos incluir. Para determinar os traços característicos da vitalidade, comparemos as suas duas espécies mais desiguais e vejamos no que elas se assemelham. Escolhendo a assimilação para exemplo da vida do corpo e o raciocínio para exemplo da vida que distinguimos sob o nome de inteligência, teremos a notar que estes dois fatos são operações de transformação. Sem transformação ou mudança, os alimentos não eram absorvidos pelo sangue, nem transformados em tecidos. As transformações vitais, quer viscerais, quer cerebrais, diferem também de doutras transformações pela sua heterogeneidade. Assim os atos da digestão dependem uns dos outros, e aqueles que compõem uma cadeia de raciocínios também estão dependentes. Chegamos assim á formula seguinte: a vida é a combinação definida de transformações heterogêneas ao mesmo tempo simultâneas e sucessivas. Não uma combinação, mas a combinação definida. Esta formula é ainda assim imperfeita, pois que omite a particularidade mais distinta, que se lhe vai juntar. II - Correspondência da Vida com o meio Distinguimos um objeto vivo dum objeto morto, observando se uma transformação nas condições que o rodeiam é ou não seguida dalguma transformação perceptível e apropriada a esse objeto. Ajuntando este traço importante, chegamos a formular assim a nossa concepção da vida: uma combinação definida de transformações heterogêneas ao mesmo tempo simultâneas sucessivas em correspondência com coexistências e sequências externas. Alguns exemplos servirão para nos indicar toda a importância da adição feita a primeira fórmula. Todo o ato de locomoção implica o dispêndio de forças mecânicas internas dispostas, quanto á sua quantidade e direção, de modo que contrabalancem ou excedam certas forças exteriores. O ato de reconhecer um objeto é impossível sem uma harmonia entre as transformações que constituem a percepção e as particularidades particulares que coexistem no meio. Quando um animal escapa ao inimigo, têm de supor-se movimentos no seu organismo que estão em relação, em espécie e em rapidez com os movimentos de fora do seu organismo. A destruição de uma presa reclama uma combinação particular de ações subjetivas apropriadas pelo seu grau e pela sua sucessão a prevalecer sobre um grupo de ações objetivas. Visto que, em todos os casos, podemos considerar os fenômenos externos como simplesmente em relação e os fenômenos internos também como simplesmente em relação, a definição mais larga e mais completa de vida será: a acomodação continua das relações internas às relações externas. Como esta definição é muito abstrata será melhor empregarmos o seu equivalente mais concreto e considerarmos as relações internas como combinações definidas de transformações simultâneas e sucessivas, as relações externas como coexistências e sequências, e o laço que as une como uma correspondência. III - O grau da Vida varia segundo o grau da correspondência Quanto maior for a correspondência do organismo com o meio e melhor for a adaptação ao mesmo meio, tanto maior será a vida. Verdade que para ser aceite, basta lembrarmo-nos da imensa mortalidade que reina nas criaturas de organização inferior, e do aumento gradual de longevidade e a diminuição de fertilidade que encontramos nas criaturas de desenvolvimento cada vez mais elevado. As relações com o meio que devem corresponder às relações com o organismo aumentam em número e em complexidade à medida que a vida se eleva. A história da humanidade demonstra bem esta verdade geral. No decurso do seu progresso, a humanidade ajuntou ao seu meio físico um meio social, indo complicando-se cada vez mais. Os corpos vivos, sendo aqueles que indicam em mais alto grau as mudanças de estrutura que constituem a Evolução, e a vida compondo-se dessas mudanças funcionais que acompanham essas mudanças de estrutura, deve haver uma certa harmonia entre a definição de Evolução e a definição de Vida. Esta harmonia existe com efeito. Esta manutenção duma correspondência entre as relações internas e as relações externas, que reconhecemos constituir a Vida, e cuja perfeição é a perfeição mesmo da vida, responde completamente a este estado de equilíbrio orgânico móbil, que vimos produzir-se no decurso da Evolução e que tende sempre a tornar-se mais completo. Vimos rapidamente o caráter geral das funções Vitais e da Matéria em que se produzem. A ciência da Biologia torna-se a exposição de todos os fenômenos que acompanham a execução destas funções por esta Matéria, de todas as condições, concomitantes e consequentes, sob as diversas circunstâncias a que estão sujeitos os corpos vivos. AS INDUÇÕES DA BIOLOGIA I - Crescimento e aumento de volume O crescimento do organismo é talvez a indução mais vasta e conhecida da Biologia. Todavia, enquanto que este traço característico nos é apresentado pelas plantas e animais duma maneira vulgar e evidente, não lhe é particular. Em condições favoráveis o aumento de volume produz-se nos agregados inorgânicos assim como nos agregados orgânicos. Os cristais crescem e muitas vezes mais rapidamente do que os corpos vivos. O crescimento é concomitante da Evolução, e a Evolução sendo universal, o crescimento também o é, no sentido de que todos os agregados o apresentam de algum modo e em dado momento da sua duração. II - Desenvolvimento e crescimento de estrutura Von Baër descobriu que nos primeiros períodos da sua existência todos os organismos se assemelham na maior parte dos seus caráteres; que depois o organismo adquire traços que separam o embrião em via de desenvolvimento dos grupos de embriões com que ele se parecia no princípio, e pouco a pouco estas semelhanças vão diminuindo até que entram na classe das formas idênticas ás da espécie a que pertence. Exemplo: o embrião do homem, primitivamente semelhante a todos os outros, diferencia-se primeiro dos embriões vegetais, depois dos embriões invertebrados, até tomar os caráteres dos mamíferos, depois os dos mamíferos placentários, depois os dos mamíferos ungulados, e finalmente os do homem. Ao mesmo tempo que se dá a diferenciação progressiva de cada organismo dos outros, observamos uma diferenciação progressiva do seu meio, semelhante a diferenciação progressiva do meio que observamos nas formas da vida, ao passo que subimos na escala dos seres. Considerando os diferentes graus de organismos na sua ordem ascendente, encontramos, em princípio, que se distinguem cada vez mais do seu meio pela estrutura, a forma, a composição química, a importância especifica, a temperatura, a mobilidade espontânea. Quanto mais um animal se assemelha fisicamente ao meio, tanto mais está sujeito passivamente às transformações que nele se produzem; ao passo que quanto maior for o seu poder de reagir contra essas transformações, tanto mais ele se diferenciará do meio. Se examinarmos sob este ponto de vista a relação que mantem um organismo superior com o seu meio durante as sucessivas fases da sua existência, encontraremos uma série análoga de contrastes. Assim pode dizer-se que o desenvolvimento dum organismo individual é ao mesmo tempo uma diferenciação que distingue o todo consolidado do seu meio; e, que, no último, como no primeiro ponto de vista, existe uma analogia geral entre a progressão dum organismo individual, e a das ordens inferiores de organismos para com as ordens superiores. Por estes dados, vemos que o desenvolvimento é uma passagem dum estado de homogeneidade incoerente e indefinida para uma heterogeneidade coerente e definida. Vemos também que, assim como o crescimento dum organismo completo se opera à custa das substâncias do meio que o organismo assimila, assim a produção de cada órgão no organismo, realiza-se à custa das substancias contidas no organismo, de que este órgão particular carece. É uma assimilação seletiva demonstrando o grande princípio de que as unidades semelhantes tendem a separar-se e que a preexistência dum conjunto de certas unidades produz provavelmente, pela atração polar, uma tendência nas unidades difusas da mesma sorte em agregarem-se a este conjunto de preferência a qualquer outro. III - A função Huxley notou, a respeito dos Rhizopodes inferiores, que não apresentam nenhuma parte distinta e, no entanto, se nutrem, crescem e movem-se, que eles são um exemplo da vida sem organização. Por consequência é preciso considerar a função como sendo um passo a mais sobre a estrutura e não a estrutura sobre a função. A função pode dividir-se em estática, como a do esqueleto, e dinâmica, como a da nutrição. A primeira indução que devemos tirar é bem evidente e bem conhecida: a complexidade da função é correlativa com a complexidade da estrutura. Outra generalização quase tão evidente como a precedente é que as funções, como os órgãos, se formam por diferenciações sucessivas. Assim como um órgão é, primeiro, um rudimento indefinido, tendo apenas de comum certos caráteres gerais com a forma que finalmente deve revestir, assim também uma função começa como uma espécie de ação que não se parece com a espécie de ação que se tornará mais tarde, senão duma maneira vaga. E no desenvolvimento das funções como no dos órgãos, o traço principal que ao princípio se manifesta é seguido doutros traços de menor importância. O mesmo sucede com toda a série descendente dos organismos, e em todos os períodos de cada organismo. Para se compreender bem a passagem da homogeneidade para a heterogeneidade da estrutura, é preciso estuda-la sob o ponto de vista oposto. Ao passo que as funções se diferenciam, integram-se também. Enquanto que nas criaturas bem desenvolvidas a distinção das funções é muito notável, a sua combinação está muito ligada: a cada momento a aeração do sangue supõe que certos músculos respiratórios foram postos em estado de contração por certos nervos, e que o coração se ocupa regularmente em levar o sangue ao local onde ele é posto em contato com o ar. Para que o coração possa pulsar, é preciso que a cada instante seja excitado pelas descargas de certos gânglios; e as descargas destes gânglios só são possíveis com a condição de receberem a todo o momento uma volta de sangue - que o coração impulsiona. Se o número das diversas partes de um agregado deve determinar o número das diferenciações produzidas nas forças que o atravessam; se a distinção das suas partes umas das outras deve implicar a distinção nas suas reações, e por consequência a distinção entre as divisões da força diferenciada, não pode deixar de existir um paralelismo completo entre o desenvolvimento da estrutura e o desenvolvimento da função. Se a estrutura progride de simples e de geral para complexa e especial, deve acontecer o mesmo a função. IV - Usura e Reparação Deixando o reino vegetal e passando para os animais, vemos pouca usura nos seres que produzem pouco desse movimento insensível e sensível chamado calor e movimento muscular como os actínios; ao contrário a usura é evidente naqueles que, como os mamíferos, produzem muito movimento. No mesmo ser ha mais usura quando há mais movimento. Embora a Usura e a Reparação, variem em razão respectiva, nunca deixam de produzir-se. Quando a função é levada ao excesso, pode produzir uma tão grande usura que a reparação se não possa fazer completamente durante a duração ordinária do repouso quotidiano: podem daqui resultar incapacidades permanentes. A reparação, ou a faculdade de reproduzir certas partes lesadas ou mesmo perdidas, é maior nos organismos inferiores do que nos superiores onde quase que desaparece. Isto vê-se na Hydra; uma parte qualquer dela pode produzir outras; ao passo que nos mamíferos e nas aves, é muitas vezes difícil curar as feridas. A reparação dum tecido usado pode considerar-se devida a forças análogas aquelas em virtude das quais um cristal reproduz o vértice, quando quebrado, sendo colocado numa solução idêntica àquela em que se formou. No caso do cristal atribui-se esta reintegração a polaridade, força cuja natureza nos é completamente desconhecida. Todavia, qualquer que seja a sua natureza, é provável que o poder pelo qual certos órgãos se reparam à custa de substancias nutritivas que neles circulam seja da mesma ordem. A aptidão dum organismo para recompletar-se, quando uma das suas partes foi cortada, como a reprodução da pata cortada de um lagarto, ou o desenvolvimento de uma nova begônia do fragmento duma folha, é da mesma ordem do que a dum cristal danificado que se recompleta ele mesmo. Não existe nome apropriado a esta faculdade. Se substituirmos a esta perífrase - o poder que têm certas unidades de se dispor numa forma especial - o termo de polaridade orgânica, sem nele incluir mais do que está provado, servir-nos-emos deste termo de polaridade das unidades orgânicas para designar a causa próxima das aptidões dos organismos em reproduzir as partes que perderam. V - Adaptação Os órgãos chegados ao seu pleno desenvolvimento possuem uma certa faculdade de se modificar, de tal modo que, durante que o organismo, como todo, conserva pouco mais ou menos o seu volume, as proporções das suas partes podem ter variado consideravelmente. As suas variações, de que tratamos aqui sob o título de Adaptação, dependem de especialidade da ação individual. Acabamos de ver que as ações dos organismos provocam reações sobre esses organismos; e que estas especialidades de ação provocam especialidades de reação. Resta ajuntar que isto se não dá apenas temporariamente, mas permanentemente. Se, num animal adulto, a Usura e a Reparação em todas as partes, se encontrassem exatamente balanceadas, é evidente que nenhuma mudança se produziria no volume relativo dos órgãos. Mas esta balança exata não existe. Quando o excesso da função e, por conseguinte, o excesso da usura, é moderado, não é simplesmente compensado, mas mais do que isto, pela reparação; há um certo crescimento de volume. O crescimento dos músculos submetidos a um trabalho mais do que ordinário é um fato evidente. E é também um princípio geral que, além dum certo limite, que depressa se alcança, só se obtém pouca ou nenhuma modificação. Ao cabo de certo tempo, nenhum esforço aumentará as forças dum atleta. Porque é que estas modificações adaptativas de um animal chegam depressa a um limite? e porque é que nos descendentes deste indivíduo, este limite só muito lentamente pode ser recuado? Ha aqui a relação entre a causa e o efeito. Pois que é preciso não esquecer que num animal adulto, isto é, um animal tendo atingido o equilíbrio entre a assimilação e o dispêndio de força, não pode haver nele um aumento na nutrição de alguns órgãos, sem que haja diminuição na doutros órgãos, e um estabelecimento orgânico de aumento implica um estabelecimento orgânico de diminuição, e mudanças maiores ou menores dos processos e das estruturas em todo o organismo. E isto explica a razão porque os animais que estão ainda a crescer estão sujeitos a adaptações com uma facilidade incomparavelmente maior do que os animais adultos. Por que, enquanto há excesso de nutrição, é possível que certas partes exercitadas duma maneira especial cresçam duma maneira especial, sem que outras partes estejam sujeitas a uma subtração positiva. Basta que haja uma subtração negativa, isto é, uma diminuição no crescimento de outras partes. Conclui-se daqui que os organismos e as espécies voltam depressa às suas estruturas primitivas, quando voltam às condições primeiras. Daqui pode inferir-se da relativa estabilidade dos tipos orgânicos. VI - A Individualidade O que é um indivíduo? Falamos habitualmente duma arvore com os seus troncos e ramagens, como se fosse um indivíduo: portanto, há fortes razões para a considerar como muitos indivíduos. Os pólipos novos, com bocas e tentáculos separados, mas tendo apenas um canal alimentício comum, são indivíduos distintos ou só um? É fácil prever dificuldades desta espécie na teoria da Evolução. Se a Vida, em geral começou por formas simples e muito pequenas, e se as transições destas unidades primordiais para os organismos compostos de grupos destas unidades teve lugar por graus, é claro que as individualidades da primeira ordem, as mais simples, foram absorvidas gradualmente por as de uma ordem maior e mais complexa, e estas por sua vez, nas duma ordem tendo um volume e uma organização superior, tornando-se difícil afirmar em que ponto cessaram as individualidades inferiores e começaram as individualidades superiores. Não há uma definição única de individualidade que seja incontestável. Contentemo-nos com a que nos exponha ao menor número de inconvenientes, isto é, consideremos como um indivíduo todo o centro ou eixo capaz de prosseguir, duma maneira independente, nesta acomodação contínua das relações internas às relações externas que constitui a Vida. VII - A Gênese Escolhemos o termo gênese como sendo menos especial do que os de geração e de reprodução, para designar a multiplicação dos indivíduos. A gênese divide-se em Homogênese ou Gamogênese, onde as gerações sucessivas são todas semelhantes, e a multiplicação sempre sexual; segundo Heterogênese, onde as gerações sucessivas se não parecem, e a multiplicação é assexual, com regressões acidentais à multiplicação sexual. Em todas as espécies que se multiplicam por homogênese cada geração e a que se lhe segue, compõe-se de machos e fêmeas; e o gérmen fecundado produz apenas um indivíduo. As divisões principais da homogênese são: os ovíparos, exemplo: as aves; os vivíparos, exemplo, os mamíferos; os ovovivíparos, intermediários, exemplo: os escorpiões. A Heterogênese ou gênese assexual ou Agamogênese é interrompida, mais ou menos frequentemente, por gamogênese: isto quer dizer que, duma geração de machos e fêmeas, provem uma geração de indivíduos não sendo machos nem fêmeas, mas produzindo a geração seguinte por renovamento; muitos indivíduos neste caso saem dum único gérmen fecundado. A heterogênese pode dividir-se em: Partenogênese, onde se encontra ao lado da gamogênese uma forma da gamogênese que se lhe assemelha exatamente, com a diferença de que não se produz por fecundação, mas reproduzindo-se por intermédio de mães virgens; segundo Metagênese, onde na agamogênese os novos indivíduos se reproduzem por renovamento, não de partes reprodutoras especializadas dos pais, mas de não importa que parte não especializada. Se os indivíduos assim reproduzidos crescem no exterior dos pais, a metagênese é externa; se no interior, é interna; terceira - a Pseudo-Partenogênese, intermediária entre as duas, é apenas uma agamogênese prosseguindo-se sobre um órgão reprodutor, processo este de que os Afídeos são um exemplo vulgar. A gênese sob todas as suas formas é um processo de desintegração negativa ou positiva; e, nesta acepção, essencialmente oposta ao processo de integração, que é um elemento da evolução individual. A desintegração negativa encontra-se nos casos onde, como nos hidrozoários compostos, se faz um desenvolvimento continuo de novos indivíduos por gomoscencia sobre os, corpos de indivíduos mais velhos, e os indivíduos mais velhos são por isto impedidos de chegar a um volume maior, ou de alcançar um grau mais alto de integração. A desintegração positiva apresenta-se no caso de agamogênese, onde a formação de novos indivíduos é descontínua, e em todos os casos da gamogênese. Ha diversos graus de desintegração. Sob cada uma das suas diversas formas, o ato essencial da gamogênese é a união de dois centros ou células, produzidas por organismos diferentes, a célula espermática sendo o produto macho, e a célula germinativa o produto fêmeo. Sem nos demorarmos nas circunstâncias variáveis e concomitantes da gamogênese, e limitando a nossa atenção ao que nela existe de constante, encontramos: - que há, habitualmente, se não universalmente, uma fusão de duas porções de substancia orgânica, que são, ou de indivíduos distintos eles mesmos, ou das partes emitidas por indivíduos distintos; que estas porções de substância orgânica, que, contrariamente ao que se poderia esperar, são distinguidas umas das outras pelo seu grau inferior de especialização, chegando a estados de repouso natural ou equilíbrio; que se não são unidas, este equilíbrio chega a dissolução; mas quando, pela sua mistura, este equilíbrio é destruído, uma nova evolução começa. Quais são as condições sob as quais se opera a Gênese? Como é que certos organismos se multiplicam por homogênese e outros por heterogênese? Como é que, quando a agamogênese é a regra, é de tempos a tempos substituída pela gamogênese? Estas perguntas não podem ter ainda uma resposta decisiva. No estado atual da Biologia devemos contentar-nos em buscar a direção em que se deva procurar a resposta. O estudo dos fatos revela-nos certas relações que, se não são universais, são muito gerais para não ter uma significação. A lei geral com que se conformam a homogênese e a heterogênese, parece ser que os produtos dum gérmen fecundado continuam a acumular-se pelo simples crescimento durante todo o tempo em que as forças, de que o crescimento resulta, excedem as forças antagonistas, mas, quando a diminuição duma série de forças ou o acréscimo doutra serie, ,traz uma diminuição considerável desse excesso, e um estado que se aproxima do equilíbrio, gérmens fecundados aparecem de novo. Que o produto gérmen se organize em redor dum centro ou eixo ou em torno de muitos centros ou eixos, nascendo por agamogênese, - que o desenvolvimento seja continuo ou descontínuo, não importa. VIII - A Hereditariedade Compreendida na sua integridade a lei da transmissão hereditária quer que cada planta ou cada animal produza outros da mesma espécie do que ele, a semelhança especifica não consistindo tanto na repetição dos traços como na reprodução duma mesma estrutura geral. O fato de que todo o organismo, no decurso do seu desenvolvimento, toma definitivamente a forma da classe, da ordem, do gênero e da espécie de que provém, tornou-se banal, a força de se repetir. Todos reconhecem há muito que a gota, a tísica e a loucura são doenças hereditárias. Ninguém ignora que nos Estados Unidos os descendentes dos emigrantes irlandeses perdem a sua fisionomia céltica e americanizam-se. Sucede o mesmo aos alemães que para lá emigram. Também se podem notar modificações especiais. As pessoas de quem os antepassados viveram pelos trabalhos das mãos, herdaram mãos grossas, ao passo que os descendentes dos que se não entregaram aos trabalhos manuais têm de ordinário as mãos pequenas. A prova mais evidente da hereditariedade das alterações de estrutura causadas pelas alterações de função é fornecida pela doença. Sabe-se em geral que, nas pessoas até certo tempo com boa saúde, a tísica pode manifestar-se em resultado de condições de existência desfavoráveis: uma nutrição má ou insuficiente, casas pouco asseadas, húmidas, mal arejadas, ou até mesmo prolongadas inquietações. Sabe-se também que a diátese tuberculosa se transmite dos pais aos filhos. Não se pode também omitir a volta nos filhos de certas particularidades que os pais não tinham, mas que tinham os avós ou os antepassados afastados. Há ainda uma segunda particularidade da Hereditariedade: a limitação da Hereditariedade pelo sexo, isto é, os limites de certas particularidades transmitidas pelos pais, que as possuíam, ao filho do mesmo sexo. IX - Variedade Ao lado do princípio de que todo o organismo apresenta uma semelhança geral com os pais, há um outro, não menos evidente: é que um organismo nunca é exatamente semelhante aos pais. Não ha duas plantas que se não possam distinguir; e não é possível encontrar dois animais que não apresentem diferenças. A Variedade tem um domínio tão vasto como a Hereditariedade. A transmissão destas variedades é por ela mesma variável, e varia em declinação ou em aumento. Uma particularidade pertencente a um dos pais pode ser contrabalançada pela influência do outro, a ponto de nos aparecer nos descendentes, ou, se não é assim contrabalançada, o descendente pode tê-la, ou no mesmo grau, ou num grau menor, ou mesmo num ainda superior. As causas da variedade são muitas; entre elas, há o fato de que os pais são mais ou menos desiguais. Cada pai recebeu por hereditariedade pelo menos duas ordens de unidades fisiológicas. Segundo a lei geral das probabilidades, pode concluir-se que, se as influências complicadas se neutralizam habitualmente uma por outra, deve, de tempos a tempos, resultar disto combinações de natureza a produzir divergências muito notáveis. A variedade, como a hereditariedade, resulta necessariamente da persistência da força. Visto que os membros duma espécie devem estar submetidos a agregados de forças diferentes em todo o território que habitam e devem tornar-se diferentes, neles mesmos e na sua progenitura; negar que diferenças nas forças não produzirão diferenças nos efeitos, é negar a persistência da força. Devemos dizer que, em todos os casos, a mudança adaptativa das funções é a causa primeira e sempre ativa da mudança de estrutura que constitui a variedade, e que esta, parecendo espontânea, é derivada e secundária. X - Classificação e Distribuição Assim como a moderna classificação das plantas, a dos animais, que é atualmente aceite, não apresenta a ordem linear. Vemos na de Huxley, que as relações entre os grandes grupos do reino animal, os protozoários, os celenterados, anelados, moluscos, vertebrados, são esquematicamente representados, colocando estes grupos no fim de cinco raios de largura diversa, divergindo em ângulos diferentes dum mesmo centro. O fato das classificações se tomarem cada vez mais naturais, faz, portanto, nascer a ideia errônea de que as espécies, os gêneros, as ordens e as classes são uniões dum valor definido. Não devemos esquecer que isto é falso. Embora os sucessivos grupos subordinados tenham uma certa correspondência com as realidades, tem também o inconveniente de dar inevitavelmente às realidades um caráter de regularidade, que não existe. Os fatos que indicam a influência do meio são abundantes e conhecidos. Para bem se compreender as ações dos agentes orgânicos ou inorgânicos que limitam os territórios em que habitam os organismos de diversas espécies, é preciso considera-los no conjunto e não separadamente, É forçoso notar também o princípio geral de que os organismos se ocupam constantemente em invadir as esferas de existências respectivas. A tendência que as raças humanas indicam para invadir e ocupar os territórios umas das outras, é uma tendência que existe de qualquer maneira em todas as classes de organismos. A EVOLUÇÃO DA VIDA Temos a escolher entre duas hipóteses com respeito a origem dos corpos vivos. Uma, a das Criações Especiais, implica que os organismos foram criados separadamente. Outra, a da Evolução, implica que se produziram por graus insensíveis, sobre a influência de forças que nós vemos ainda hoje. Vejamos qual delas concorda melhor com os fatos verificados. 1- Aspetos gerais da hipótese das criações especiais A hipótese das criações especiais, sendo primitiva, é provavelmente errônea; porque os homens dos primeiros tempos tendo-se enganado nas suas interpretações da natureza em outras direções, enganaram-se neste ponto, onde a verdade está relativamente oculta, Um caráter ainda maior de improbabilidade vem-lhe de estar associada a uma classe de crenças errôneas, que o progresso dos conhecimentos deitou por terra, desde que em tudo se apagou a concepção antropomórfica da causa desconhecida. Abandonou-se pouco a pouco este método de interpretação, que atribui os fenômenos a uma vontade análoga à vontade humana, procedendo por processos análogos aos processos humanos. Esta hipótese não é só desprovida de provas que a apoiem exteriormente, mas também porque não é possível fazer dela uma ideia coerente. Esta hipótese, puramente verbal, que os homens aceitam por preguiça, como susceptível de ser verdadeira ou lógica, é da mesma natureza da que se fundasse sobre a observação da vida humana dum dia e daqui concluísse que cada homem e cada mulher tinham sido especialmente criados, por que não apresentam nenhuma mudança de estrutura no decurso deste curto período. É uma hipótese sugerida, não por provas, mas pela falta de provas; uma hipótese, onde a ignorância absoluta, toma o aspeto aparente de dum conhecimento positivo. No corpo do homem habitam parasitas, internos e externos, animais e vegetais, que formariam no total, duas ou três dezenas de espécies; alguns são particulares ao homem, muitos causam-lhe grandes sofrimentos, e até a morte, Segundo a hipótese das criações especiais, todos estes parasitas foram criados para o gênero de vida que lhe é própria. Diremos que o homem foi criado para servir de habitat a estes parasitas? ou diremos que esses seres degredados, incapazes de pensar e de gozar, foram criados para atormentar o homem? Uma ou outra destas alternativas deve ser escolhida por aqueles que pretendem que todas as espécies de organismos foram criados separadamente pelo Criador. Qual preferem? Por qualquer lado que a examinemos, a hipótese das criações especiais acha-se sem valor: sem valor pela sua origem, sem valor pela sua incoerência intrínseca, sem valor como absolutamente desprovida de provas, sem valor como não dando satisfação alguma, a nenhuma necessidade do espírito, sem valor porque não satisfaz as nossas necessidades morais. Consideramo-la, portanto, como nula. II - Aspeto geral da hipótese da evolução Ao contrário a hipótese da evolução é favorecida pela sua origem, tendo nascido em tempos adiantados e entre os espíritos instruídos desta época. Cada progresso novo dos conhecimentos confirma a crença na unidade da Natureza, e a descoberta de que a evolução se produziu na filosofia, na ciência e nas artes, autoriza-nos a acreditar que não há uma única divisão na Natureza em que se não produza. Se uma célula, em condições favoráveis, se torna um homem no espaço de alguns anos, não pode haver dificuldade em admitir-se que, em condições apropriadas uma só célula tenha podido, no decurso de milhões inumeráveis de anos, dar origem a espécie humana. Esta hipótese, que se pode concebe duma maneira definida, além de que numerosas analogias a sustentam, é também apoiada por provas definitivas: temos a prova positiva de que um processo do gênero daquele de que se trata se prossegue ainda hoje; e embora os resultados deste processo, tal como o vemos atualmente, sejam ínfimos em comparação da totalidade dos seus resultados anteriores, dão-se entretanto numa proporção muito considerável. A hipótese da Evolução recomenda-se pela sua origem, a sua consistência, as suas analogias, as suas provas diretas, e tudo o que ela implica. Examinemos agora as diversas ordens de fatos que indiretamente a apoiam, notando primeiro a harmonia que existe entre ela e muitas das induções da Biologia. III - Argumentos tirados da classificação, da embriologia, da morfologia e da distribuição As relações que existem entre as espécies, os gêneros, as ordens e as classes de organismos não poderiam explicar-se como resultados das causas a que vulgarmente se atribuem. Poderão ser interpretadas como resultados da Evolução? É impossível deixar de notar-se o fato de que os naturalistas tenham sido obrigados a dispor os organismos em grupos subordinados a outros grupos, e que isto seja exatamente a disposição que se produz, pela descendência, nas famílias e nas raças humanas. O fato de que, enquanto que os pequenos grupos são mais próximos uns dos outros e que existe entre os grandes sub-reinos contrastes profundos de estrutura, é muito para ser notado pois que, sempre que se dá a Evolução, se produzem precisamente esses pequenos grupos pouco distintos dum lado e por outro lado esses grandes grupos muito diferenciados. Além disto, assim como entre as espécies, os gêneros, ordens, classes, etc., que os naturalistas estabeleceram há graus de transição, também entre os grupos, subgrupos e sub-sub-grupos sujeitos a Evolução há grupos de valor intermediário. Estas três correspondências adquirem ainda maior valor pelo fato de que o parentesco dos grupos se nota mais nas suas formas inferiores do que nas superiores, o que é exatamente o mesmo gênero de parentesco que a hipótese da Evolução supõe. Ha, pois, boas razões para acreditar com Darwin (que a proximidade do tronco genealógico, única causa conhecida da semelhança entre os seres organizados, é o laço, oculto de certo modo por modificações mais ou menos consideráveis, que nos é em parte revelado pelas classificações dos naturalistas) (Origem das Espécies). A lei geral das semelhanças embriológicas é restringida por irregularidades, na maior parte pequenas, muitas vezes consideráveis, e algumas vezes grandes. A hipótese da Evolução supõe a necessidade destas irregularidades. As substituições e as supressões de órgãos pertencem ao número dos fenômenos embriológicos secundários que concordam com a hipótese da Evolução, mas que não podem concordar com nenhuma outra doutrina. Ha casos onde, durante os primeiros tempos do seu desenvolvimento, um embrião possui órgãos que depois desaparecem, porque se formam outros órgãos que desempenham as mesmas funções. Ha também casos em que os órgãos aparecem, crescem até um certo ponto, não têm nenhuma função a desempenhar, e desaparecem por reabsorção. A unidade do plano sobre que se formaram os organismos aparentados, no estado adulto, supõe também a ideia da Evolução. Não pode ser por acaso que vinte segmentos caracterizam o pirilampo, a borboleta, a pulga, o caranguejo e a lagosta. Os desvios acidentais deste plano, como por exemplo no caso das aranhas e das traças, que têm menos de vinte segmentos, ao passo que fazem por de parte a ideia dum desígnio, reforçam a conclusão de que as formas orgânicas veem de troncos comuns por divergências e redivergências perpétuas. Além destas analogias entre os órgãos de diversas espécies existem outras entre os diferentes órgãos dum mesmo organismo como nas sépalas, pétalas, estames e pistilos, numa qualquer flor, que são todos construídos sobre o mesmo molde. Estas semelhanças mascaradas por dessemelhanças seriam ininteligíveis se se supusesse que os organismos foram formados separadamente como hoje aparentam; mas explicam-se com facilidade se se julgar que cada espécie é o resultado de modificações. A presença, em todas as espécies de animais e de plantas, de órgãos rudimentares, sem utilidade, correspondendo a partes funcionalmente uteis em animais e em plantas aparentadas com esses, é ainda um fato que concorda com a Evolução. Eis o que diz Darwin na Origem das Espécies, já citado: « Parece bem claro que as asas foram formadas para voar, e apesar disto quantos insetos ha em que encontramos as azas tão reduzidas, que são incapazes de servir para voar, ou até dobradas debaixo dos élitros.» Dada a tendência universal que leva o superior a invadir os habitats do inferior, quais serão os efeitos, sob o ponto de vista das relações geográficas, das espécies segundo a hipótese da evolução? Como as raças de organismos se espalham e são modificadas na sua estrutura pelas variadas forças incidentes, segue-se que não será difícil achar parentescos manifestos entre organismos de territórios adjacentes, quando não há grandes obstáculos à migração; que as divergências maiores no espaço indicarão períodos mais longos durante os quais os descendentes dum tronco comum terão sido sujeitos ás condições modificadoras, e daqui, que os mais pequenos contrastes de estrutura serão limitados aos mais pequenos territórios; e que, onde as forças incidentes variam muito em dados territórios, estas transformações serão mais numerosas do que nos territórios equivalentes que apresentarem condições menos variadas. É necessário examinar agora como a hipótese da Evolução corresponde aos fatos de distribuição em meios diferentes. Sendo a água o meio onde se encontram as formas mais elementares, concluiu-se que a terra e o ar foram colonizados por seres vindos da água. As grandes dificuldades, que parece que se opõe a esta hipótese, desaparecem quando se considera o que se passa à beira mar. Duas vezes por dia o fluxo e o refluxo da maré cobrem e descobrem alternativamente inumeráveis plantas e animais. Os moluscos e os articulados fornecem-nos numerosos exemplos dos seres que vivem ora em terra, ora no mar. Ha muitos crustáceos, como o caranguejo, que correm nas praias húmidas e que se afastam para longe da água. É preciso notar também o fato de que cada uma destas formas assim acostumada a mudança de meio está aparentada com formas principalmente ou inteiramente terrestres. As migrações dum meio para outro, que a evolução pressupõe, aparecem assim mais aceitáveis. Além disto, se considerarmos as relações entre as formas antigas da vida e as que hoje nos rodeiam, encontramos uma relação em harmonia perfeita com a hipótese da Evolução. As últimas camadas do nosso globo contêm restos de espécies que ainda hoje existem, ao passo que, à medida que as camadas se tornam mais antigas, as espécies que hoje existem desaparecem e dão lugar a formas extintas. Há também uma relação particular da mesma natureza entre as formas do passado e as do nosso tempo em cada grande região geográfica. Esta divergência e redivergência de formas orgânicas, que era representada obscuramente pelas verdades da classificação e da embriologia, é assim acentuada de novo pelas verdades da distribuição. PRINCÍPIOS DE PSICOLOGIA I - DADOS E INDUÇÕES DA PSICOLOGIA O que distingue a psicologia das ciências a que se liga, é que ela tem por objeto, não a conexão dos fenômenos internos, não a conexão dos fenômenos externos, mas a conexão entre estas conexões. Uma proposição psicológica contem pois quatro termos e duas proposições: uma diz respeito ao sujeito, a outra ao objeto. Dêmos um exemplo: sejam A e B dois fenômenos externos - a cor e o gosto de um fruto; - sejam a e b as sensações visuais e gustativa produzidas no organismo por este fruto: enquanto examinamos a relação A B fazemos um estudo físico; enquanto examinamos a relação a b fazemos um estudo de fisiologia. Mas passamos para o domínio da psicologia logo que investigamos como pode existir no organismo uma relação entre a e b que, duma maneira ou de outra, responda a relação entre A e B. A psicologia ocupa-se exclusivamente desta conexão entre A B e a b; procura o valor desta conexão, a origem, a significação. Os dados da psicologia devem ser procurados em grande parte no estudo da estrutura e das funções do sistema nervoso. Spencer tirou da histologia, da anatomia descritiva e da fisiologia tudo quanto pode ser útil ao psicólogo. Estes dados servem de base às primeiras induções da psicologia. Pode perguntar-se logo de começo o que é o espírito? Esta pergunta, entendida no sentido dos metafísicos, isto é, ligando-se a uma substancia incognoscível, é ociosa e insolúvel. O mais que a análise pode fazer é chegar a algum elemento último, que, nos limites da experiência, nos faça compreender a composição do espírito. Pelas investigações dos físicos e sobretudo pela decomposição dos elementos primitivos das sensações, sabemos que toda a sensação é produzida por uma integração, uma fusão de choques nervosos. É possível e até provável que alguma coisa da mesma ordem daquilo a que chamamos um choque nervoso, seja a última unidade da consciência, e que todas estas diferenças entre os nossos estados de consciência, resultem de diferentes modos de integração desta última unidade. Os estados de consciência primitivos são os materiais das ideias; isto é, o conhecimento propriamente dito. A ideia é a unidade do conhecimento. E, assim como uma sensação é uma série integrada de choques nervosos, assim também a ideia é uma série integrada de sensações idênticas. A ideia é produzida por uma fusão de resíduos, pela fusão dum estado de consciência atual com os estados de consciência anteriores e semelhantes. Os Princípios de Psicologia, de que até aqui apenas indicamos os preâmbulos, tem por objeto estabelecer, por um duplo processo de análise e de síntese, a unidade de composição dos fenômenos do espírito e a continuidade do seu desenvolvimento. De mais, como o indica o termo «princípios» não se trata aqui simplesmente duma descrição dos fatos da consciência, duma enumeração completa dos fenômenos, de uma revista onde nada seja omitido; seria isto fazer uma espécie de repertório psicológico, no qual todos os fatos fossem descritos, pouco mais ou menos como o são as doenças ou as plantas nos tratados de patologia ou de botânica. Este trabalho teria a sua utilidade; mas não é este o fim que se propôs Spencer. A sua empresa é mais filosófica e sistemática. O primeiro resultado da lei de continuidade, é que entre os fatos fisiológicos e os fatos psicológicos, não há linha precisa de marcação, e que toda e qualquer distinção absoluta é ilusória. Sensações, sentimentos, instintos, inteligência, tudo isto constitui um mundo à parte, mas que sai da vida animal, que nela mergulha as suas raízes e são dela como que a florescência. Entre a mais humilde função e o pensamento mais elevado, não há oposição natural, mas diferença de grau, sendo ambos apenas uma das inumeráveis manifestações da vida. A vida do corpo e a vida mental são espécies de que a vida, propriamente dita é o gênero. E ao passo que a psicologia ordinária, fundada exclusivamente na observação interior e no emprego do método subjetivo, chega a restringi-la ao estudo do homem, sem dar nenhuma importância às formas inferiores da vida intelectual, a psicologia experimental aspira a descobrir, descrever e classificar os diversos modos da sensação e do pensamento, e a seguir-lhes a evolução lenta e continua, desde o infusório até ao homem branco e civilizado. É, pois, um estudo não só estático, mas dinâmico; não constata só os fatos, estuda-lhes a formação, o seu desenvolvimento, as suas transformações. Ainda não é tudo: enquanto que a psicologia vulgar separa o ser pensante do seu meio, reduzindo-se assim a abstração, a psicologia experimental nunca separa estes dois termos. Entre o mundo externo e o mundo interno uma correspondência constante, necessária. Não é senão pela ação de fora para o interior e pela reação do interior para o exterior, que a vida mental é possível. É no mundo material que é necessário buscar razão última da natureza dos nossos pensamentos, da sua ordem, da sua ligação. Onde está a origem das nossas ideias de simultaneidade e de sucessão, senão nas coexistências e sequências externas? Qual seria a causa do processo de encadeamento das nossas ideias, a não ser na experiencia anterior? A psicologia compreende o estudo analítico e estudo sintético. O estudo sintético parte da vida puramente fisiológica e mostra como a vida intelectual, que ao princípio se não distinguia, começa a sua lenta evolução e constitui-se pouco a pouco por adições sucessivas; como a atividade mental, que só reproduzia ao princípio as modificações mais simples e mais elementares do mundo externo, chega a exprimir duma maneira completa as relações exteriores mais variadas e mais complexas. O estudo analítico, que também se poderia chamar subjetivo, por oposição ao antecedente, que é antes objetivo, tem por fim levar cada espécie de conhecimento aos seus últimos elementos. Examina primeiro os raciocínios mais complicados e por decomposições sucessivas, resolvendo o que é mais complexo no que é menos, descendo sempre para o que é simples, primitivo, irredutível, chega por fim aos princípios constitutivos e ás condições indispensáveis a qualquer pensamento. II - SÍNTESE ESPECIAL A Lei da Inteligência. Ação reflexa, instinto, memória, razão, sentimento, volição Duas ideias fundamentais dominam a psicologia: a da continuidade dos fenômenos psicológicos, a da relação intima entre o ser e o seu meio. Estes dois pontos formam por assim dizer toda a doutrina desta ciência. Na natureza nada está isolado, tudo se encadeia e forma serie; cada fenômeno deriva dos que o precedem e contem em gérmen os que se lhe seguirão. Mas o espírito humano é feito de modo tal que só pode tomar conhecimento dos objetos, quando lhe aparecem sob determinadas formas, isto é, quando eles apresentam caráteres suficientemente diferenciados. Toda a ciência deve delimitar o seu objeto; a ciência só é possível sob esta condição; mas muitas vezes esta delimitação é arbitraria, e os fenômenos não se deixam aprisionar nas nossas divisões convencionais. Assim a vida mental sai da vida fisiológica em virtude da lei de progresso contínuo, lentamente, pouco a pouco, por transformações infinitesimais, e sem que se possa dizer: eis de onde nascem. A vida psíquica, embora saindo pouco a pouco da vida orgânica e animal, constitui uma ordem de fatos bastante vasta para se tornar o objeto dum estudo especial. Resta-nos encetar este estudo e mostrar como os fenômenos psicológicos mais complexos saem dos mais simples em virtude dum processo natural. Eis o objeto da síntese especial. Neste ponto, pode tentar-se determinar os caracteres que distinguem a vida física da vida mental. Entretanto devemos precavermo-nos contra qualquer má interpretação. Só é possível fazer essa distinção aproximativa e apenas verdadeira em conjunto; nada tem de talhado, nem de absoluto; a lei de continuidade não sofre excepções. As duas classes de fenômenos vitais que a fisiologia e a psicologia abraçam respectivamente são nitidamente distintas por isto: é que, ao passo que uma das duas classes contém transformações ao mesmo tempo simultâneas e sucessivas, a outra classe contém apenas transformações sucessivas. Ao passo que os fenômenos que são o objeto da fisiologia, se produzem sob a forma dum número imenso de series diferentes ligadas no conjunto, os fenômenos que são o objeto da psicologia, ao contrário, a penas se produzem sob a forma duma simples série. Basta ligar uma pequena atenção às diversas ações contínuas, que constituem a vida do corpo em geral, para se ver que estas ações são sincrônicas, - que a digestão, a circulação, a respiração, a excreção, a secreção, etc., em todas as suas diversas subdivisões se realizam ao mesmo tempo e numa dependência mútua. O mais leve estudo basta também para indicar claramente que as ações que constituem o pensamento, se produzem, não ao mesmo tempo, mas umas depois doutras. Uma crítica rigorosa exigiria sem dúvida que a distinção estabelecida fosse restrita; mas esta restrição não seria suficiente para diminuir a verdade geral. A vida sendo uma combinação definida de transformações heterogêneas, ao mesmo tempo simultâneas e sucessivas em correspondência com as coexistências e as sucessões externas, as duas grandes divisões da vida podem distinguir-se nisto: uma é uma correspondência ao mesmo tempo simultânea e sucessiva; a outra é uma correspondência somente sucessiva. Á primeira vista, pode supor-se que isto constitui uma tal distinção, que a passagem duma para a outra não seja possível. No entanto na realidade não sucede tal. Quando mesmo esta distinção absoluta existisse entre a mais alta vida psíquica e a vida física (e veremos daqui a pouco as razões que ha para duvidar) não seria menos verdade que a vida psíquica nos seus graus elevados se não distingue da outra; mas tal distinção só se fez no decurso dessa progressão na qual a vida, em geral, alcançou as formas mais perfeitas. Assim pois, as duas grandes divisões da vida consistem, uma numa correspondência ao mesmo tempo simultânea e sucessiva, a outra numa correspondência só sucessiva. E isto é uma necessidade. Porque o caráter mais essencial dos fenômenos psicológicos é serem conscientes; e como um estado de consciência exclui necessariamente qualquer outro, estes estados devem-se produzir sob a forma duma simples serie. Esta tendência dos fenômenos psíquicos para formarem degraus sucessivamente, apenas é exata em teoria e nunca chega à sua completa realização. As ações vitais, que são o objeto da psicologia, embora se não distingam das outras pela sua tendência a tomar a forma duma simples série, nunca chegam a esta forma duma maneira absoluta. Ao princípio, as diversas manifestações da atividade mental são mais simultâneas do que sucessivas; por consequência mais físicas do que psicológicas. Temos provas: nos radiados de ordem mais elevada, cada uma das partes semelhantes que formam o corpo, está ligada a um centro ganglionar, que apenas parece servir para as funções da parte que lhe é própria; por conseguinte as mudanças psíquicas que se produzem no animal localizam-se simultaneamente nas diversas partes do seu corpo. Nos moluscos, as ações dos diversos gânglios são muito imperfeitamente coordenadas. Enfim os articulados têm uma estrutura que os torna aptos para provarem essa dispersão da vida psíquica. Se se corta a cabeça dum centípede enquanto ele estiver em movimento, o corpo continuará a andar só pela seção dos pés, e o mesmo sucede nas partes separadas se o corpo é cortado em muitas porções distintas. Pouco a pouco, entretanto, a forma simultânea decresce diante da forma sucessiva, levando novos progressos à vida psíquica. De resto, para que a correspondência seja possível entre o ser e o seu meio, é necessário que, a medida que o organismo está exposto a impressões mais numerosas, estas impressões se coordenem nele, se centralizem e tendam constantemente para a unidade. A forma em série é, pois, o caráter especial da inteligência. Uma série contínua de transformações, sendo também o assunto da psicologia, a sua obra consiste em determinar a lei da sua sucessão. Que estas transformações se não produzem ao acaso, eis o que é evidente. Que se seguem umas às outras duma maneira particular, a existência mesmo da inteligência é disso o testemunho. O problema está, pois, em determinar-lhes a ordem, isto é, em determinar a lei própria da inteligência. A inteligência, como a vida, consiste numa correspondência. É necessário que haja um paralelismo entre o ser pensante e as coexistências ou sequências externas que reflitam o seu pensamento. Mas estas coexistências e sequências têm entre si todas as relações possíveis. Há as que estão unidas por relações imutáveis, fixas, sem excepções conhecidas, há as cuja ligação é tão fraca que só foram dadas pela experiencia uma vez, quando muito, como associadas. Entre estas duas espécies de relações, uma intima e a outra fortuita, há todos os graus possíveis de coesão. Para que a correspondência se realize, é necessário que a inteligência reproduza também todos estes graus. Às sequências e coexistências fortuitas, ou simplesmente possíveis, corresponderá uma atração muito fraca entre os estados internos que as representam, e assim por diante. Numa palavra, a lei da inteligência pode formular-se assim: A força da tendência que tem o antecedente duma transformação psíquica de ser seguido pelo seu consequente é proporcionada a persistência da união entre os objetos externos que eles representam. Dizer, no entanto, que eis aqui a lei da inteligência, não quer de modo algum dizer que é desempenhada por toda a inteligência conhecida. É a lei da inteligência in abstrato e as inteligências existentes realizam-na, em graus mais ou menos imperfeitos. A inteligência, considerada na sua essência, reduz-se, pois, a associação de ideias, que dela é como que a propriedade fundamental. As associações indissolúveis de ideias (verdades necessárias doutras escolas de filosofia) resultam para Spencer da transmissão hereditária. Estas associações têm uma força invencível, porque são a consequência das experiencias registradas não só no indivíduo, mas em todos os seus antepassados humanos, e não só nestes, mas em todos os organismos animais, de que os homens derivam por evolução. Spencer marca a lei da associação uma base fisiológica. O processo de associação dos estados de consciência é automático. Cada estado de consciência entra instantaneamente na classe, ordem, gênero, espécie e variedade dos estados de consciência anteriores semelhantes a ele. Assim a sensação do encarnado é imediatamente enfileirada na sua classe (epiperiférica), na sua ordem (visual), no gênero (vermelho), na espécie (escarlate), etc. Em resumo, não há senão uma lei de associação: é que cada fenômeno se agrega com o seu semelhante no tempo. Mas há aqui um paralelismo entre os fatos subjetivos e os fatos objetivos que se passam na estrutura nervosa. As transformações nas células nervosas são os correlativos objetivos do que nós conhecemos subjetivamente como fatos de consciência; e as descargas que atravessam as fibras que unem as células são os correlativos objetivos daquilo a que chamamos relações. Resulta disto que, assim como a associação dum estado de consciência com a sua classe, ordem, gênero, espécie, corresponde a localização da transformação nervosa nalguma grande massa de células, numa parte desta massa, numa parte desta parte, etc.; assim também a associação duma relação com a sua classe, ordem, gênero e espécie responde a localização da descarga nervosa nalgum grande agregado de fibras nervosas, nalguma divisão deste agregado, nalgum feixe desta divisão. Depois de determinada a lei da inteligência, examinemos agora as fases sucessivas do seu desenvolvimento. Ação reflexa no seu grau mais baixo, torna-se, instinto; e daqui saem, duma parte, as manifestações cognitivas: memória, razão; doutra parte os poderes afetivos: sentimento, vontade. A ação reflexa é apenas uma manifestação da vida psíquica. Tem, portanto, a sua importância, sob o nosso ponto de vista, porque faz a transição da vida puramente física para o instinto. Empregando a palavra instinto, não como faz o vulgo quando quer designar todas as outras manifestações da inteligência que não sejam as do homem, mas restringindo-o a sua significação própria, o instinto pode ser definido: uma ação reflexa composta. Restritamente falando, não se pode tirar uma linha de marcação entre ele e a ação reflexa simples, da qual sai por sucessivas complicações. Ao passo que na ação reflexa simples uma só impressão é seguida de uma só contração; ao passo que nas formas mais desenvolvidas da ação reflexa, uma única impressão é seguida duma combinação de contrações; na que se distingue sob o nome de instinto, uma combinação de impressões produz uma combinação de contrações, e na forma mais elevada, no instinto em extremo complexo, há coordenações que tendem ao mesmo tempo a dirigir e a executar. A transformação da ação reflexa simples em ação reflexa composta, isto é, em instinto, explica-se pela acumulação das experiencias e a transmissão hereditária. Mas o instinto, à medida que cresce em complexidade, caminha para o seu termo; porque, à medida que os instintos se tornam mais elevados, as diversas transformações psíquicas que os compõem, tornam-se menos coerentes, coordenam-se duma maneira cada vez menos perfeita; e deve chegar um momento em que a sua coordenação deixe de ser regular. Então estas ações começarão a perder o caráter automático, que as distingue, e o que chamamos instinto transformar-se-á gradualmente nalguma coisa mais elevada. Daqui resulta a memória. Estas duas manifestações da inteligência transformam-se uma na outra. Assim como o instinto pode ser considerado como uma espécie de memória organizada, assim também a memória pode ser considerada como um instinto nascente. Vejamos como o instinto se torna memória. Lembrar-se alguém da cor vermelha é estar num fraco grau nesse estado psíquico que a vista da cor vermelha produz. Lembrarmo-nos dum movimento feito com o braço, é sentir, num fraco grau, a repetição desses estados internos que acompanham o movimento. A lembrança é, pois, um começo de excitação nervosa. Consiste ela em experimentar, num fraco grau, um movimento, uma sensação, uma impressão. Mas quando o instinto se torna muito complexo para se produzir com a exatidão automática que lhe é própria, resulta daqui um conflito entre todos os movimentos. Aqueles que não chegam a realizar-se, permanecem no estado de simples tendências, isto é, de movimentos simplesmente concebidos; e estas impressões internas suscitando outras, forma-se assim essa sucessão de ideias, regular ou irregular, a que chamamos memória. Vejamos agora como a memória se torna instinto, isto é, volta ao seu ponto de partida. Aqui os exemplos comuns abundam. Temos o exemplo do pianista que executa instintivamente e com uma certeza automática os trechos que aprendeu. Fica claramente implicado, em tudo o que precede, que a linha de marcação, que vulgarmente se traça entre o instinto e a razão, não existe. Ambos são uma adaptação das relações internas às relações externas, com esta única diferença que, no instinto a correspondência é muito simples e muito geral, ao passo que na razão, a correspondência existe entre as relações internas e externas que são complexas ou especiais, ou abstratas, ou raras. A hipótese experimental basta-nos para explicar o progresso das mais baixas às mais altas formas da razão. Deste raciocínio do particular ao particular, que é o das crianças, dos animais domésticos e, em geral, dos mamíferos superiores, ao raciocínio indutivo ou dedutivo, o progresso é determinado pela acumulação de experiencias. E o mesmo se dá com o progresso de todos os conhecimentos humanos, até às suas mais largas generalizações. Ninguém ignora as lutas célebres que a natureza da razão provocou, e como desde a antiguidade até hoje, esta questão motivou disputas entre o empirismo e o idealismo. Spencer não é nem a favor de Locke, nem da doutrina contraria das «formas do pensamento.» Defender a asserção inaceitável de que, anteriormente à experiência, o espírito é uma tabua rasa, é não ver o fundo da questão, que consiste em saber: - donde vem a faculdade de organizar as experiencias? - donde proveem as diferenças graduais desta faculdade, possuída por diversas raças de organismos e indivíduos diversos da mesma raça? Se, á nascença, não existe mais do que receptividade passiva de impressões, por que não poderá um cavalo receber a mesma educação do que um homem? Se objetarem que a linguagem faz toda a diferença, então porque é que o gato e o cão, submetidos às mesmas experiências, que lhes proporciona a vida doméstica, não chegarão a um grau igual e a mesma espécie de inteligência? Compreendida sob a sua forma corrente, a hipótese experimental implica que a presença dum sistema nervoso, organizado duma dada maneira, é uma circunstância sem importância, um fato que não é necessário tomar em conta! No entanto é este o fato importante por excelência, o fato contra o qual, num sentido, as críticas de Leibniz e doutros se dirigiam, o fato sem o qual uma assimilação de experiencias é completamente inexplicável. Por outro lado, se a doutrina das formas do pensamento é inaceitável, no sentido transcendente de Leibniz e de Kant, contém, entretanto, um fundo de verdade; apenas é necessário dar-lhe uma transformação fisiológica. Este caráter inato das formas de pensamento, que tem provocado tanto barulho, explica-se pela hereditariedade. Sob o sentido de que existe no sistema nervoso certas relações preestabelecidas, correspondendo às relações do meio ambiente, há verdade na doutrina das formas do pensamento, não a verdade que sustentam os seus defensores, mas uma verdade duma ordem paralela. Estas relações internas preestabelecidas, embora independentes da experiencia do indivíduo, não são independentes da experiencia em geral; foram estabelecidas por experiencias acumuladas dos organismos precedentes. Foram legadas com o capital e juro. É por isto que o Europeu chega a ter algumas polegadas cúbicas de cérebro a mais do que o Papou; que selvagens incapazes de exceder, contando, o número dos dedos e que falam uma língua informe, têm como sucessores, no decorrer dos séculos, os Newton e os Shakespeare. É para nós evidente, diz Gratiolet, que as análises ontológicas dos filósofos e sobretudo esta primeira distinção das ideias de tempo e de espaço, foram escritas de antemão nas preordenações da organização animal. A relação intima do sentimento e da razão está há muito tempo estabelecida: toda a emoção, implicando um conhecimento, e o conhecimento uma emoção qualquer, a evolução dos sentimentos consiste também num desenvolvimento das correspondências, e o seu progresso realiza-se por adição, por acréscimo em complexidade. No grau mais baixo, o desejo; depois algumas impulsões simples, correspondendo a impressões pouco complexas; depois os sentimentos simples formando grupos; depois os grupos agregando-se uns aos outros. Colocai uma criança no meio de grandes montanhas, e ela, que olha com prazer para um brinquedo, fica insensível a esse espetáculo. Se tiver mais idade poderá experimentar uma emoção agradável, contemplando uma rua, um campo, a sua casa, o seu jardim. Á medida que for crescendo e caminhando para a maturidade, é que os pequenos grupos de estados que nos primeiros dias da vida foram causados pelas arvores, os campos, os ribeiros, as cascatas, os rochedos, os precipícios, as montanhas, as nuvens, acordarão juntamente diante duma grande paisagem. Ao mesmo tempo nascem parcialmente miríades de sensações causadas nos tempos passados, por objetos semelhantes aos que se têm diante dos olhos. Enfim (e aqui desempenha a hereditariedade o seu papel) despertam-se também provavelmente certas combinações que existiam no estado orgânico, na raça humana, nos tempos bárbaros, quando toda a sua atividade, apta para o prazer, se desenvolvia sobretudo no meio das florestas e dos rios. É destas emoções, umas atuais, a maior parte nascentes, que resulta a emoção que uma bela paisagem em nós produz. Daqui é necessário concluir que as emoções serão tanto mais fortes, quanto mais elas contiverem um número maior de sensações atuais ou recentes. E é isto que explica o caráter irresistível do amor. Como exemplo notável desta verdade basta citar a paixão que une os sexos. De ordinário, ainda que com bem pouca razão, fala-se do amor como dum sentimento simples, enquanto que de fato é o mais composto, e, por conseguinte, o mais poderoso de todos os sentimentos. Aos elementos puramente físicos que contém, é preciso ajuntar primeiro estas impressões muito complexas produzidas pela beleza duma pessoa, e em torno das quais estão agrupadas muitas ideias agradáveis que, por elas mesmas, não constituem o sentimento do amor, mas que têm uma relação orgânica com este sentimento. A isto ajunta-se o sentimento complexo a que damos o nome de afeição - sentimento que, podendo existir entre pessoas do mesmo sexo, deve ser considerado como um sentimento independente, mas que só atinge a sua mais alta atividade entre os amantes. Ha também o sentimento de admiração, respeito ou veneração que, por ele mesmo, tem um poder considerável e que, no caso atual, torna-se ativo, num grau muito elevado. A isto é preciso ajuntar o sentimento que os frenologistas chamaram o amor da aprovação. Quando alguém se vê preferido a outros, e isto por algum que ele admira mais do que todos os outros, o amor da aprovação fica satisfeito num grau que excede todas as experiencias anteriores; especialmente, quando a esta satisfação direta se juntar a satisfação indireta que resulta de que esta preferência é atestada por indiferentes. Além disto, há também um sentimento parecido com o precedente, o da estima própria. Depois de se ter conseguido ganhar uma tal dedicação da parte dum outro, domina-lo, é uma prova pratica de poder, de superioridade, que não pode deixar de excitar agradavelmente o amor-próprio. Demais, o sentimento da posse, tem a sua parte na atividade geral; há um prazer na posse; os dois amantes pertencem um ao outro, valem-se um do outro, como uma espécie de propriedade. Demais, no sentimento do amor está implicada uma grande liberdade de ação. Com respeito a outras pessoas, a nossa conduta deve ser contida, porque em cada ser há certos limites delicados que se não devem exceder; - há uma individualidade na qual ninguém pode penetrar. Mas no caso atual, as barreiras destroem-se, o livre uso da individualidade dum outro é-nos concedido, e assim fica satisfeito o amor duma atividade sem limites. Finalmente há uma exaltação da simpatia: o prazer puramente pessoal duplica-se, sendo partilhado com um outro, e os prazeres doutro ajuntam-se aos nossos prazeres puramente pessoais. Assim, em redor do sentimento físico, que forma o núcleo de tudo, estão agrupados os sentimentos produzidos pela beleza pessoal, os que constituem a simples dedicação, o respeito, o amor da aprovação, o amor próprio, o amor da posse, o amor da liberdade, a simpatia. Todos estes sentimentos excitados cada um deles ao mais elevado grau e tendendo, cada um em particular, a refletir a sua excitação sobre um outro, formam o estado psíquico composto que chamamos amor. E como cada um destes sentimentos é por ele mesmo muito complexo, pois que reúne uma grande quantidade de estados de consciência, podemos dizer que esta paixão funde num agregado imenso quase todas as excitações elementares que podemos sentir; e daqui resulta o seu poder irresistível. Para todos os que seguiram até aqui esta síntese, é claro que a vontade não pode ser senão um outro aspecto do mesmo processo geral, donde saem o sentimento e a razão. Quando, em resultado da organização da experiencia acumulada, as ações automáticas se tornam tão complexas, tão diversas, e muitas vezes tão raras que já se não podem produzir com precisão e sem hesitação; quando, depois da recepção duma impressão complexa, os fenômenos de movimento apropriado nascem, mas não podem passar para a ação imediata, por causa do antagonismo de certos outros fenômenos de movimento, igualmente recentes, e apropriados a alguma impressão intimamente unida, á precedente; então produz-se um estado de consciência que, quando chega finalmente à ação, determina aquilo a que Spencer chama volição. Os fenômenos da vida afetiva originam, pois, o desenvolvimento voluntário; e a raiz das nossas volições está no desejo. III - ANÁLISE ESPECIAL Unidade de composição dos fenômenos psicológicos. A consciência reduzida a um duplo processo de assimilação e de desassimilação. Se passarmos do estudo sintético ao estudo analítico dos fenômenos da consciência, somos levados aos mesmos resultados. A análise verifica a síntese e a conclusão de que ela carece como exata, ou que sugere, pelo menos como muito provável, é ainda a da lei do progresso continuo, a doutrina da evolução. A ideia fundamental da psicologia analítica de Spencer é que existe entre todos os fenômenos da inteligência uma unidade de composição. É idêntica a natureza do processo que segue o sábio nos seus raciocínios mais vastos e mais complicados e aquele pelo qual uma consciência infantil, começa a pensar. Os dois processos consistem em compreender as semelhanças e as diferenças; mas o sábio percebe-as aos centos e aos milhares, ao passo que a criança e o animal, só as percebem em pequeno número. Não há mais do que uma diferença de grau. Toda a obra da psicologia analítica consiste em provar esta verdade ou, para falar com mais exatidão, em descobri-la. O seu resultado último, é que a vida intelectual consiste em dois processos fundamentais: um que unifica, o outro que diferencia; um que compreende as analogias, igualdades, identidades, outro que diz, respeito ás oposições e aos contrastes; um que assimila as impressões, o outro que as desassimila; um que consiste numa integração, o outro numa desintegração. Vejamos como Spencer chega a este resultado; como estabelece esta unidade de composição dos fenômenos intelectuais; e como este duplo processo, pela sua ação incessante e as suas complicações inumeráveis, constitui a nossa vida mental. É necessário não esquecer em primeiro lugar que vamos seguir um caminho completamente oposto ao da síntese. Uma análise conduzida duma maneira sistemática, deve começar pelos fenômenos mais complexos da série que se analisa; deve procurar ligá-los aos fenômenos mais próximos sob o ponto de vista da complexidade; deve proceder do mesmo modo com respeito aos fenômenos menos complexos; e por decomposições sucessivas deve descer até aos fenômenos mais simples e mais gerais, para alcançar finalmente o mais simples e o mais geral. Vamos esmiuçar, pedaço a pedaço, o edifício da inteligência, começando pelo cimo. Percorramos as diversas fases desta decomposição. Pode resumir-se todo o estudo do raciocínio definindo-o uma «classificação de relações.» Mas o que significa a palavra classificação? Significa o ato de agrupar juntamente as relações semelhantes e o ato de separar as semelhantes das dissemelhantes. Inferir uma relação, é pensar que há certas semelhanças ou dessemelhanças em outras relações. Todo o raciocínio se reduz pois a uma assimilação e a uma desassimilação. Do raciocínio à classificação, vai apenas um passo. A unidade de composição destes dois processos é manifesta. Se é exato dizer-se que todo o raciocínio é uma classificação, é também exato dizer-se que toda a classificação supõe um raciocínio. Basta um simples exemplo. Produz-se na minha retina a imagem dum fruto amarelo e esférico; classifico-o com outros semelhantes, que já anteriormente vira, com o nome de laranja. Mas esta classificação implica alguma coisa a mais do que a sensação atual, a saber, os atributos tangíveis, certo cheiro, certo gosto, uma estrutura interna que, depois da sensação visual, são apenas inferidos. E o que o demonstra, é que este objeto pode ser uma simples imitação, uma coisa falsificada: neste caso, o gosto, o tato, o cheiro, retificam a minha inferência, e o objeto deixa de ser classificado entre as laranjas. A transição é também fácil da classificação à percepção; porque há identidade de natureza entre estes dois processos, que, rigorosamente falando, são inseparáveis. Toda a classificação supõe a percepção e toda a percepção é uma classificação. Perceber um objeto especial, determinado, concreto, é classificá-lo na mesma categoria do que aqueles que se lhe assemelham; e como esta classificação se opera espontaneamente, coordena os atributos por um processo natural, pode chamar-se a percepção uma classificação orgânica. Dizer o que uma coisa é, é dizer o que lhe é semelhante, e a que classe pertence. Ha, pois, ainda um duplo processo de assimilação e de diferenciação. O método analítico indo constantemente do composto ao simples, resulta disto que devemos partir das percepções mais ricas, de aquelas que nos fazem conhecer os corpos como dotados de atributos de toda a espécie. A relação que se estabelece entre o sujeito e o objeto, no ato da percepção, é duma tríplice espécie. Toma três aspectos distintos; segundo a atividade for da parte do sujeito, da parte do objeto, ou da parte de ambos. 1º Se, ao passo que o sujeito é passivo, o objeto produz um efeito sobre ele (exemplo: irradiação do calor, emissão do cheiro, propagação do som) resultando disso no sujeito uma percepção daquilo a que se chama uma segunda propriedade do corpo; mas que se poderá chamar mais propriamente uma propriedade dinâmica; 2º Se o sujeito atua diretamente sobre o objeto prendendo-o, atraindo-o, arrastando-o, ou usando de algum outro processo mecânico, e se o objeto reage com uma força igual, o sujeito percebe estas espécies de resistência que será melhor classificar sob o nome de estático-dinâmicas; 3º E se o sujeito só é ativo, se o que ocupa a consciência, não é uma ação ou reação do objeto, mas alguma coisa que se conheceu por meio dessas ações e reações (como a figura, a forma, a posição) então a propriedade apercebida é da espécie das que se chamam vulgarmente primarias, mas que aqui se denominam estáticas. Spencer, numa análise longa e minuciosa, desce dos atributos dinâmicos e estático-dinâmicos aos atributos estáticos, que são os elementos fundamentais da percepção. Mostra que a figura se resolve numa relação de grandeza, a grandeza em relações de posição; e que todas as relações de posições podem ser finalmente reduzidas às posições do sujeito que percebe e do objeto apercebido. Em resumo, a percepção visual ou tátil de cada atributo estático do corpo é resolúvel em percepções de posições relativas que são adquiridas pelo movimento. Passamos agora da percepção dos objetos reais, com extensão, a percepção do espaço, que é deles o receptáculo, e do tempo, que é deles a condição. Ponhamos desde já de parte a hipótese de Kant sobre a origem transcendente destas duas noções. Posta perante os fatos, a questão reduz-se a isto: Como é que a experiência duma extensão ocupada, quer dizer, dum corpo, pode dar-nos a noção da extensão inocupada, quer dizer, do espaço? Como é que da percepção duma relação entre posições resistentes, chegamos a percepção duma relação entre posições não resistentes? - É por um processo complicado, embora se tenha tornado simples pela repetição e pelo habito. Nós não conhecemos duas posições relativas A e B senão pelo número das posições intermediárias, e este conhecimento é devido às nossas sensações. Para perceber entre estes dois pontos, não já uma extensão concreta, mas uma extensão vazia, simplesmente possível, um espaço, é necessário que em nós se produza, no estado infantil, a ideia das diversas sensações musculares, táteis, visuais, que foram anteriormente dadas pela experiência entre A e B. Se o leitor considerar a sua mão ou algum objeto também próximo, e se perguntar a si mesmo que espécie de conhecimento ha entre o espaço compreendido entre os seus olhos e o objeto, verá que este conhecimento é por assim dizer completo. Ha consciência das pequenas diferenças de posição. Há delas uma percepção extremamente completa e detalhada. Se agora dirigir os seus olhos para a parte mais afastada do quarto, e se considerar neste espaço uma porção igual à anterior, achará que dela só tem um conhecimento extremamente vago. Em seguida, se olhar para a janela, e se considerar que consciência tem dum espaço situado a cem metros de distância, verá que tem uma consciência ainda menos precisa. E se olhar o horizonte afastado, perceberá que tem apenas alguma percepção deste longínquo espaço, e que tem dele mais uma concepção indistinta do que uma percepção distinta. Mas é este exatamente o gênero de conhecimento que deve resultar da organização das experiencias que se acabam de descrever. Temos do espaço, que está perto de nós, por estar ao alcance das nossas mãos, a percepção mais completa, porque temos tido miríadas de experiencias da posição relativa, nos limites deste espaço. E temos uma percepção cada vez menos completa do espaço, à medida que ele está afastado de nós, porque temos tido experiencias cada vez menos numerosas das posições relativas que ele contém. Os extravagantes sentimentos que acompanham certos estados anormais do sistema nervoso, fornecem uma evidencia semelhante. Diz Quincey nos seus Sonhos dum comedor de ópio «que lhe apareciam edifícios e paisagens, cujas proporções são tão vastas que a vista do corpo não está apta para recebe-las. O espaço alargava-se e tornava-se duma grandeza infinita, inexprimível». Não é muito raro, nos indivíduos nervosos, haver percepções ilusórias, nas quais o corpo parece estender-se enormemente, a ponto mesmo de cobrir uma jeira de terreno. Entretanto o estado em que se produzem estes fenômenos, é um estado de atividade nervosa exaltada; estado em que Quincey se pinta como vendo, nos seus mais leves pormenores, fatos da sua infância há muito tempo esquecidos. E se considerarmos qual o efeito que deve produzir sobre nós a nossa consciência do espaço, uma excitação na qual experiencias esquecidas são ressuscitadas vivamente e em grande abundância, veremos que isto produzirá a ilusão de que ele trata. É evidente que, nós só nos lembramos duma parte das inumeráveis experiências das posições circunvizinhas que acumulamos durante a nossa vida. Elas tendem, como todas as outras experiencias, a desaparecer do espírito, e a percepção do espaço acabaria por tornar-se indistinta, se elas não fossem renovadas cada dia ou substituídas por outras. Imaginai agora que estas inumeráveis experiencias de posições relativas sejam repentinamente avivadas, que se tornem presentes na consciência duma maneira distinta. O que deve resultar daqui? É que o espaço nos será conhecido num pormenor relativamente microscópico; ver-se-á um muito maior número de posições; parece ter-se alargado, como diz Quincey. A ideia do tempo é Inseparável da de sequência, como a ideia de espaço da de coexistência. A doutrina de que o tempo só nos é conhecido pela sucessão dos nossos estados mentais, é tão antiga e está tão bem estabelecida, que é inútil expô-la. O tempo in abstrato é uma relação de posição entre estados de consciência. A nossa noção dum qualquer período varia segundo o número dos nossos estados de consciência. Assim todos sabem que uma semana passada em viagem e que, por consequência, excita muito a atividade do espírito, nos aparece retrospectivamente muito mais longa do que uma semana passada em nossa casa. Assim também um caminho por onde se vai pela primeira vez parece-nos mais longo do que quando se nos tornou familiar. Os fenômenos que se seguem a certos estados mórbidos do cérebro, fornecem exemplos análogos. Na descrição dos seus sonhos causados pelo ópio «quando o mal lhe aparecia povoado de inumeráveis figuras, suplicantes, coléricas, desesperadas, surgindo por miríadas, por gerações, por séculos, - quando uma arquitetura imaginária lhe aparecia com uma vivacidade e um brilho insuportável, tendo a faculdade de engrandecer e de reproduzir-se até ao infinito, quando as impressões mentais eram muito numerosas e muito distintas,» Quincey diz-nos que muitas vezes lhe pareceu «ter vivido 70 ou 1.00 anos numa só noite;» ainda mais «que teve então impressões que lhe pareciam ter durado mil anos, ou antes um espaço de tempo que excedia os limites de toda a experiencia humana.» Todos estes fatos, aos quais ainda se poderiam ajuntar outros, mostram claramente que a nossa noção de um espaço de tempo é determinada pela série dos estados da consciência que tornam a aparecer. A análise conduz-nos a experiência fundamental. Por decomposições sucessivas dos nossos conhecimentos em elementos cada vez mais simples, devemos chegar finalmente ao mais simples, ao elemento material último. Qual é este elemento? É a impressão da resistência. Eis aqui o elemento da consciência primordial, universal, sempre presente. É primordial, neste sentido de que é uma impressão que os seres vivos da ordem mais inferior estão aptos para sentir; no sentido de que é a primeira espécie de impressão que a criança recebe; no sentido de que é apreciada pelo tecido desprovido de nervos do zoófito, e no sentido de que aparece vagamente até na consciência embrionária da criança que ainda não nasceu. É universal, porque é cognoscível (empregando este termo, não no sentido humano, mas no mais largo) para todo o animal que possui alguma faculdade de sentir; porque em geral, todas as partes do corpo de cada animal podem conhece-lo; porque é comum a todos os organismos sensíveis; e comum, na maior parte dos casos, a toda a sua superfície. Está sempre presente, no sentido de que todo o animal, ou ao menos todo o animal terrestre, está a ele sujeito durante toda a sua existência. Se excetuarmos estes animais muito inferiores que não dão nenhuma resposta visível aos estímulos externos, e aqueles que flutuam passivamente suspendidos na água, não há nenhuns que não experimentem a cada momento da sua vida, alguma impressão de resistência, vindo das superfícies sobre as quais estão colocados, ou da reação dos seus membros durante a locomoção, ou duma e doutra. Assim as impressões de resistência, sendo as primeiras que a natureza viva e sensível experimenta, considerada como um todo progressivo; que experimenta todo o animal superior no decurso do seu desenvolvimento; que experimentam quase todas as partes do corpo na grande maioria dos seres animados; estas impressões são necessariamente os primeiros materiais agrupados na gênese da inteligência. E como, durante a vida, estas impressões estão continuamente presentes sob uma forma ou outra, constituem necessariamente esta corrente de consciência em que entram todas as outras impressões. A gora, se depois de termos analisado as diversas formas da percepção, investigarmos o que há de comum em todas, somos levados a concluir que a percepção, considerada no que ela tem de mais geral, consiste em compreender as relações que as sensações têm entre si; em perceber uma relação ou relações entre estados de consciência atuais ou anteriormente experimentados; numa palavra, perceber, é classificar relações. Spencer examina as diversas relações de cointensidade, coextensão, coexistência, identidade de natureza. Mostra que todas se ligam em última análise às relações de semelhança e de diferença. Mas diferença pode-se traduzir por mudança, e semelhança por não-mudança. Com efeito para que dois objetos sejam conhecidos como diferentes, é preciso que haja na consciência dois estados correspondentes e, por conseguinte uma mudança do primeiro para o segundo; a percepção da similitude, ao contrário, não implica nenhuma mudança interna. A relação mais simples que a inteligência pode perceber, é uma relação de sequência ou de sucessão; é esta a relação primordial que constitui o próprio fundo da consciência, e, por conseguinte, a condição de todo o pensamento; e a mudança, a sucessão, a dessemelhança. Um estado de consciência homogêneo ou contínuo é uma impossibilidade, uma não consciência. Um ser no estado de repouso total, que não passa por nenhuma transformação, está morto, e uma consciência que se tornou estacionaria, é uma consciência que cessou. No entanto não basta uma sucessão de transformações para que a consciência se constitua. Esta sucessão deve ser regular. As transformações só formam a matéria bruta da consciência; é preciso ainda que sejam organizadas, isto é classificadas, segundo as semelhanças e as diferenças. Em resumo pois, o primeiro ato da consciência, o mais simples de todos, é a percepção duma diferença; o segundo ato, a percepção duma semelhança. Desde então, a inteligência constitui-se. Assimilar e diferenciar, eis todo o mecanismo do pensamento; e todo o seu progresso consiste em acumular semelhanças e diferenças. A unidade da composição é estabelecida e verificada pela análise. Desde o ato da consciência mais humilde até ao raciocínio mais complicado, desde a intuição grosseira da semelhança, que é apenas uma analogia afastada, até a intuição da semelhança perfeita, que é uma identidade, o processo é o mesmo invariavelmente. Vejamos a aproximação do duplo processo psicológico da do duplo processo que constitui a vida física. Vimos que a condição sob a qual a consciência pode começar a existir, é a produção dum começo dum certo estado, e que esta transformação cria necessariamente os termos duma relação de dessemelhança. Vimos que, não só a consciência nasce em virtude duma mudança, pela produção dum estado diferente do estado precedente, mas que a consciência só pode continuar enquanto as mudanças continuarem e enquanto se estabelecerem relações de semelhança. Por conseguinte, a consciência não pode nem nascer, nem se continuar, sem que no seu estado se produzam diferenças. Deve sempre passar dum certo estado para um estado diferente. Noutros termos, deve ser uma diferenciação continuada dos seus estados constitutivos. Mas também já vimos que os estados de consciência que se produzem sucessivamente só podem tornar-se elementos do pensamento enquanto forem conhecidos como semelhantes a outros certos estados por que a consciência passou anteriormente. Se nada ficar desses diferentes estados, à medida que se produzirem, se atravessam a consciência como imagens passando em frente dum espelho, então nenhuma inteligência é possível, por mais tempo que dure o processo. A inteligência só pode nascer pela organização, disposição e classificação destes estados. Se cada um é notado em particular só pode sê-lo como sendo mais ou menos semelhante a outros estados precedentes. Só podem ser pensáveis, considerados como sendo semelhantes a tais ou tais estados que a consciência anteriormente experimentou. É impossível conhece-los sem os classificar com outros da mesma natureza, sem os assimilar uns aos outros. Por consequência, cada estado, quando é conhecido, deve formar apenas um todo com certos outros estados precedentes, deve ser integrado com estes precedentes estados. Cada ato de consciência deve ser um ato de integração, quer dizer que deve haver nele uma integração contínua de estados de consciência. São estes dois processos contrários pelos quais a consciência subsiste; são estas as ações centrífugas e centrípetas, graças às quais o seu equilíbrio se mantém. Para que possa haver materiais para o pensamento, é preciso que a cada instante a consciência seja diferenciada em seu estado. E para que o novo estado que daqui resulta se torne um pensamento, é preciso que seja integrado em estados anteriormente experimentados. Esta perpétua alternativa é a característica de toda a consciência, desde a mais baixa até a mais elevada. Vê-se isto claramente nesta oscilação entre dois estados, que constitui a forma da consciência mais simples que se possa conceber; vê-se também nesses raciocínios muito complexos dos homens mais sábios. E não é somente em todo o ato particular do pensamento que esta lei se manifesta; é também no progresso geral do pensamento. As pequenas diferenciações e integrações que a cada instante se produzem, chegam a essas diferenciações e integrações mais importantes, que constituem o progresso mental. Toda a vez que uma inteligência desenvolvida descobre alguma distinção entre objetos, entre fenômenos ou entre leis que estavam antes confundidas juntamente, como sendo da mesma espécie, isto implica uma diferenciação de estados da consciência. E cada vez também que uma inteligência desenvolvida reconhece certos objetos, certos fenômenos, certas leis como sendo essencialmente da mesma natureza e que anteriormente eram considerados como distintos, isto implica uma integração de estados da consciência. Portanto toda e qualquer ação mental, considerada sob o seu aspecto mais geral, pode definir-se: a diferenciação e a integração continuada de estados de consciência. O único fato importante que resta ainda a indicar, é a harmonia que subsiste entre esse resultado e o que nos indica uma ciência próxima da psicologia. A verdade mais larga que as investigações fisiológicas puseram a claro, é paralela à verdade a que justamente acabamos de chegar. Assim como é pelos dois processos contrários que a consciência se mantém, assim também é pelos dois processos contrários que se mantem a vida do corpo; e ambos os processos contrários são comuns a uma e a outra ciência. Pela ação do oxigênio, cada tecido diferencia-se, mas cada tecido integra ou agrupa também os materiais que lhe são fornecidos pelo sangue. Nenhuma função se pode produzir sem as diferenciações do tecido que a produz, e nenhum tecido pode desempenhar a sua função senão por uma integração da nutrição. É no equilíbrio destas duas funções que consiste a vida orgânica. Cada nova integração torna o órgão apto para ser de novo diferenciado; cada nova diferenciação torna o órgão apto para integrar-se de novo. E na vida física como na vida psíquica, a paragem de cada um dos dois processos, é a paragem de ambos. IV – TEORIA DO CONHECIMENTO Na análise geral, que é uma teoria do conhecimento, Spencer toma uma posição a parte entre os associonistas da escola inglesa. Ao passo que John Stuart-Mil defende francamente o idealismo e Bain se inclina para este, Spencer, pela sua parte, é claramente realista; e a teoria do conhecimento não é mais do que um longo combate contra o idealismo. Começa ele primeiro por protestar, em favor da percepção, contra a supremacia exclusiva que os metafísicos dão a razão. O culto da razão serviu-nos para destruir muitas superstições; mas, como sucede quase sempre, ficou essa outra superstição substituindo as que tinham deitado por terra. Ora o raciocínio, entretanto, não é nada mais do que a recoordenação de estados de consciência já coordenados duma maneira mais simples; e a recoordenação não pode dar aos resultados aos quais se chega um valor independente daquele que já possuíam os estados de consciência anteriormente coordenados, assim como o corte dum pedaço de-madeira numa certa forma não pode dar a esta madeira um poder independente daquele que a madeira já possuía. O fato notável é que esta confiança excessiva na razão, comparada com os modos inferiores da atividade mental, não se encontra naqueles que por ela chegaram a resultados tão admiráveis. O astrônomo que, por raciocínios quantitativos elaborados, a que nós chamamos cálculos, conclui que a passagem de Vênus começará em tal dia, a tal hora, a tal minuto, e no tempo indicado volta o seu telescópio para o sol e não vê nenhuma mancha negra entrando no disco, conclui que o seu cálculo era falso, e não que eram falsos os atos do pensamento relativamente breves e primitivos, em virtude dos quais fez a sua observação. O químico cuja formula explica que o precipitado isolado dum composto recente deve pesar uma grama, e que acha que esse peso é de duas gramas, abandona logo o veredito do seu raciocínio, e não pensa nunca em duvidar do veredito da sua percepção direta. Acontece o mesmo a essa classe de homens cujos esforços reunidos levaram o nosso conhecimento do universo ao estado coerente e compreensivo que atualmente possui. O realismo justifica-se de duas maneiras: negativamente e positivamente. A justificação negativa consiste em provar que ele tem a seu favor: 1º a prioridade: as nossas primeiras afirmações, tais como se produzem na criança, no aldeão, são realistas; a concepção idealista forma-se depois; 2º a simplicidade: a afirmação realista não supõe mais do que um ato de indiferença, ao passo que a afirmação contrária supõe uma série de atos desta natureza; e o idealista propõe-nos que rejeitemos o ato único, para nos fiarmos numa série de atos da mesma natureza; 3º a clareza: o realismo é o resultado de atos mentais extremamente vivos e bem definidos; o idealismo, de atos mentais extremamente fracos e mal definidos. A justificação positiva do realismo supõe primeiro a determinação dum critério; porque, na falta deste, não há nenhum campo de batalha comum entre os idealistas e os realistas. Não se partindo dum princípio comum, os argumentos ferem ao acaso, sem haver probabilidade de se encontrarem. O postulado universal, esse critério supremo de toda a verdade, é a inconcebivilidade da negativa. Spencer sustenta novamente, combatendo todas as objeções de Stuart-Mil, que nós não temos nenhuma razão para duvidarmos da validade deste critério. A justificação positiva do realismo consiste em mostrar que a antítese entre o sujeito e o objeto é um resultado de atos regulares do pensamento como os que estabelecem as verdades que temos por certas em ponto mais elevado. Esta antítese entre o sujeito e o objeto é estabelecida por uma longa análise, que leva ao resultado de que nós temos duas series de estados de consciência pouco mais ou menos paralelos, que Spencer chama o agregado vivo (o mundo exterior) e o agregado fraco (a nossa consciência puramente subjetiva). Estas duas series são relativamente coerentes cada uma de per si, e relativamente incoerentes uma em relação a outra. A diferenciação completa entre o sujeito e o objeto leva a afirmação da existência objetiva. Ha uma coerência indissolúvel (e, por conseguinte verificada pelo critério) entre cada um dos estados de consciência vivos e definidos, conhecidos como sensação, e a representação indeterminada dum modo de existência fora da sensação e distinto dela. Mas o realismo a que chegamos por este modo, qual é? É o realismo da vida comum, desde a criança ao aldeão? - Não; é o realismo transfigurado. Para o compreendermos, recorramos a uma projeção geométrica. Supúnhamos um cilindro e um cubo: o cilindro representa o sujeito que percebe, o cubo o objeto apercebido; e a figura projetada pelo cubo sobre o cilindro representa este estado de consciência a que chamamos uma percepção. Sabemos que a figura projetada não se parece de modo algum com um cubo: na imagem, as linhas não têm nem o mesmo comprimento, nem as mesmas relações, nem as mesmas direções, etc., etc., do que no sólido: assim, linhas que são direitas no cubo, são curvas na imagem, superfícies planas, são representadas por superfícies curvas. No entanto, a cada mudança no cubo, corresponde uma mudança na imagem. Ora é isto que se passa no ato da percepção. O grupo dos efeitos subjetivos produzido é totalmente diferente do grupo das causas; as relações entre os efeitos são totalmente diferentes das relações entre as causas; as leis de variação dum grupo diferem das leis de variação do outro grupo; e no entanto todos se correspondem de tal maneira que, toda a mudança na realidade objetiva, produz um estado subjetivo exatamente correspondente. V -RESUMO E CONCLUSÃO O caráter fundamental da vida psicológica consiste pois numa correspondência que, à medida que se completa, reproduz subjetivamente a realidade objetiva do mundo. É sucessivamente direta e homogênea, direta e heterogênea; estende-se ao espaço e ao tempo; aumenta em especialidade, em generalidade, em complexidade; ela coordena enfim os seus diversos elementos e produz também uma integração, isto é, uma fusão de elementos originariamente separados. Tais são os períodos que a vida psicológica atravessa para se constituir. Considerada, não no seu modo de formação, mas nas suas manifestações, é primeiro ação reflexa, depois instinto, que não é mais do que uma ação reflexa composta. Aqui começa propriamente falando, a vida consciente, que é, duma parte, memória e razão, doutra parte, sentimento e vontade. Se agora, observando uma inteligência de homem adulto no pleno exercício das suas faculdades, isto é, o tipo mais elevado que possamos conhecer da vida psicológica, queremos resolve-la pela análise nos seus elementos, indo do muito composto ao menos composto, do composto ao simples, do simples ao muito simples e ao irredutível, percorremos esta progressão decrescente: raciocínio quantitativo composto, raciocínio quantitativo simples, raciocínio quantitativo simples e imperfeito, raciocínio qualitativo perfeito, raciocínio qualitativo imperfeito, raciocínio em geral. O raciocínio é uma classificação de relações, a percepção uma classificação de atributos. O objeto concreto da percepção submetido a análise é despojado primeiro dos seus atributos dinâmicos (qualidades segundas), em seguida dos seus atributos estático-dinâmicos (qualidades secundo-primarias), enfim dos seus atributos estáticos (qualidades primarias). A percepção fundamental é a de resistência. Considerada em geral, a percepção é uma classificação orgânica de relações; as duas relações mais simples são as de semelhança e de dessemelhança e a de sucessão; de maneira que o ato mais simples da consciência é primeiro a percepção de uma diferença, depois a percepção duma semelhança. PRINCÍPIOS DE SOCIOLOGIA Eis-nos chegados á parte da filosofia de Spencer mais complexa e mais difícil de ser resumida. Os Princípios de Sociologia são quatro volumes, que somos obrigados a analisar e resumir no menor número de páginas possível. OS DADOS DA SOCIOLOGIA I - Evolução Superorgânica. Chegamos ao último dos três gêneros de evolução indicados nos Primeiros Princípios: a Inorgânica, a Orgânica e a Superorgânica. Pode-se distinguir facilmente a Evolução Superorgânica da Orgânica notando que ela contém todos os processos e os produtos que resultam da ação coordenada de muitos indivíduos. Embora os agregados formados pelos insetos que vivem em sociedade - as abelhas, as vespas e as formigas - simulem, de diversas maneiras, os agregados sociais, não são, no entanto, agregados sociais verdadeiros. Eles não formam uniões entre indivíduos semelhantes, independentes um do outro pelo parentesco, e aproximadamente iguais em capacidade; são uniões entre seres saídos duma só mãe. As verdadeiras formas rudimentares da Evolução Superorgânica são as que aparecem em certos vertebrados superiores, tais como as gralhas, os castores, e alguns dos primatas. Aqui estudaremos só a forma de Evolução Superorgânica que as sociedades humanas mostram no seu desenvolvimento, na sua estrutura, nas suas funções e nos seus produtos, isto é, os fenômenos da Sociologia. II - Fatores dos fenômenos sociais. Toda a sociedade, quer rudimentar, quer avançada, apresenta fenômenos que se podem ligar aos caracteres das unidades que a compõem, e às condições sob as quais existe. Subdividindo estes primeiros fatores, obtemos os fatores extrínsecos do clima, do solo, da Flora e da Fauna, e os fatores intrínsecos dos traços físicos emocionais e intelectuais do homem individual, a unidade social. Entre os fatores secundários ou derivados, que a própria Evolução social põe em jogo, podem citar-se por exemplo, as mudanças do clima causadas pelos cortes de mato das florestas ou pelo esgotamento dos pântanos; e os efeitos produzidos sobre a Flora e a Fauna da superfície ocupada. O desenvolvimento social é, ao mesmo tempo, a consequência e a causa do progresso social. A divisão do trabalho não pode ir muito longe, quando é muito pequeno o número de indivíduos para partilhar desse trabalho. As influencias da sociedade sobre a natureza das suas unidades e destas unidades sobre a natureza da sociedade, cooperam incessantemente para criar elementos novos. Á medida que as sociedades progridem em grandeza e estrutura, operam profundas metamorfoses umas sobre as outras, ora pelas suas lutas guerreiras, ora pelas reciprocas relações industriais. Os produtos superorgânicos, materiais e mentais, que se vão sempre acumulando e sempre se complicando, constituem uma outra série de fatores que se tornam causas de transformações cada vez mais influentes. Deve-se dar muita importância ao poder destes fatores, III - Teoria Primitiva das Coisas. Spencer, em diversos capítulos, analisa o homem primitivo físico, emocional e intelectual, e estuda as suas ideias sobre o animado e o inanimado, o sono e os sonhos, a síncope, a apoplexia, a catalepsia, a morte, a ressurreição, as almas, fantasmas, as ideias duma outra vida e dum outro mundo, os agentes sobrenaturais, os pressupostos agentes sobrenaturais que causam a epilepsia, as convulsões, o delírio, a loucura, as doenças e a morte, a feitiçaria, os exorcismos, a adivinhação, os lugares sagrados, templos, altares, sacrifícios, jejuns, propiciação, a oração, o culto dos antepassados em geral, dos ídolos e feitiços, dos animais, das plantas, da natureza e das divindades. O conjunto das suposições pueris e das conclusões monstruosas que formam a massa enorme de crenças supersticiosas que em toda a parte existem, este conjunto que nos parece um caos, aclara-se e regulariza-se, desde que deixamos de encará-lo no passado, colocando-nos no nosso ponto de vista avançado, e o examinamos no futuro, colocando-nos no ponto de vista do homem primitivo. Os interpretes das concepções primitivas cometem o mesmo erro do que a maior parte dos professores da mocidade. Não tendo nunca estudado a psicologia, o pedagogo tem apenas uma vaga noção do espírito do aluno imaginando que uma inteligência no seu começo possui concepções que só a inteligência desenvolvida pode ter, apresenta-lhe fatos absolutamente incompreensíveis, generalizações antes de haver fatos para generalizar, e abstrações enquanto não existe ainda nenhuma das experiencias concretas de que possam derivar estas abstrações: produz-lhe o espanto e parece bestifica-lo. Assim, também os narradores das lendas primitivas, os interpretes das superstições dos selvagens, trazem com eles as ideias e os sentimentos engendrados pela civilização; atribuem-nos aos selvagens, e ora manifestam uma admiração sem motivo por ver o selvagem pensar como pensa, ora procuram explicar a suas ideias e atribuem-lhe explicações que supõem concepções que ele nunca poderia ter. No entanto, quando por uma verificação a priori duma prova a posteriori, reconhecemos que o homem primitivo não tem ideias do natural e do não natural, do possível e do impossível, nem as ideias de lei, de ordem, de causa, etc.: que, por um lado, não manifesta nem a admiração do raciocínio, nem a curiosidade que leva ao exame, e que por outro lado tem falta das palavras próprias para exprimir a investigação, assim como a faculdade da meditação continuada, condição necessária para a investigação; vemos que, em vez de especular e de forjar explicações, ele não faz mais do que receber passivamente as conclusões que se lhe impõem. Se interrogarmos quais são esses erros, descobrimos que o homem primitivo é inevitavelmente vítima dum erro inicial, o que dá lugar inevitavelmente também a um sistema errôneo, que se vai aperfeiçoando pouco a pouco. Para vermos a que ponto a evolução deste sistema de ideias é natural, vamos passar em resumo as diversas concepções do homem primitivo. O céu e a terra passam cada dia por mudanças, com intervalos mais curtos ou mais longos, sem que o selvagem saiba por quê: são aparições ou desaparições, transmutações, metamorfoses inesperadas. Estas mudanças parecem provar que o arbitrário é o caráter das coisas que se passam em redor do homem, e sustentam a ideia de que existe uma dualidade nas coisas que ora se tornam visíveis, ora desaparecem ou que se transformam; depois a repetida experiência das sombras, do reflexo e do eco, vem confirmar esta crença. Estas impressões, produzidas pela vista do mundo exterior, vem ao apoio duma crença provocada por uma experiência mais definida e mais familiar, a dos sonhos. O homem primitivo não tem nenhuma ideia do espírito; considera um sonho como um encadeamento de acontecimentos reais: fez as coisas, visitou os lugares e viu as pessoas do seu sonho. Insensível às contradições, aceita os fatos tais como eles se apresentam; e se reflete nisso, vê-se levado a conceber um duplo que se afasta dele durante o sono, e entra nele de novo, quando acorda. O sonambulismo, que algumas vezes pode observar, parece confirmar esta ideia da sua própria dualidade. O que parece confirmá-la duma maneira ainda mais definida é a produção de certos outros fenômenos anormais de insensibilidade. Na síncope, na apoplexia, na catalepsia, e na perda de consciência depois das feridas, parece que o outro eu, em vez de voltar ao primeiro chamamento, só volta depois dum espaço de tempo, que pode ir de alguns minutos a muitos dias. Algumas vezes, ao sair dum destes estados, o outro eu dá conta do que sucedeu durante o intervalo, outras vezes nada pode dizer das suas aventuras, e outras também essa ausência prolongada faz pensar que talvez se fosse por um tempo indefinido. A diferença que separa estes estados de insensibilidade temporária dos estados de insensibilidade definitiva escapa muitas vezes ao homem instruído: o selvagem não poderia pois conhece-la. A inconsciência normal do sono, donde o outro eu vem depressa, liga-se, por meio destas espécies anormais de inconsciência, donde o outro eu só volta com dificuldade, à inconsciência definitiva, donde o outro eu não poderá voltar. Todavia, a analogia leva o selvagem a concluir que o outro eu acabará por voltar. Lembrai-vos da observação que muitas vezes ouvimos fazer junto dum morto, que é difícil supor que ele não retomará o movimento, ao sair de dum descanso em que a tranquilidade não é mais profunda do que em outras circunstâncias, e considerai que força devia ter sobre o espírito do homem primitivo a associação entre a ideia deste repouso, que se parece com o sono, e a ideia do despertar, que se segue habitualmente ao sono, associação que, só por si, deveria sugerir a ideia de ressurreição. A ressurreição, de que as raças inferiores têm uma imagem vaga, atestada por um fato universal, o temor dos que voltam, toma as formas nítidas, à medida que a teoria do sonho dá clareza a ideia da migração do duplo humano. O segundo eu, atribuído a cada homem, não difere, ao princípio, em nada do seu original. Julgam-no igualmente visível, igualmente material; mas nem por isso deixa de ter fome, sede, cansaço, dor. O espírito ou a alma que no começo não se pode distinguir da própria pessoa, que pode afogar-se, matar-se, destruir-se uma segunda vez, toma pouco a pouco um aspecto diverso. Na sua tendência a pôr de acordo as conclusões a que chega, o pensamento, progredindo, atribui ao espírito dos mortos uma natureza material cada vez menos grosseira; à medida que o espírito do morto, que ao princípio tem apenas uma segunda vida por um tempo, adquire pouco a pouco uma para sempre, a natureza da sua substância vai diferindo da do corpo, e no fim torna-se etérea. Este duplo do homem morto, que primitivamente se concebeu como igual a ele em todos os pontos de vista, é concebido como dado a ocupações idênticas desde que partiu na ocasião da morte. Se é duma raça de rapina, combate e caça como antes; se duma raça de pastores, continua a ocupar-se do gado e a beber leite; se duma raça agrícola, retoma o trabalho dos campos, semeia, colhe, etc. Enfim, desta crença numa segunda vida, que se parece também com a primeira pela forma de governo e pelas disposições sociais, proveem os costumes de deixar alimentos junto dos cadáveres, assim como bebidas, fatos, armas, e de sacrificar sobre o túmulo os animais domésticos, as mulheres e os escravos. Os duplos dos homens mortos, aos quais, ao princípio, se atribui a segunda vida por um certo tempo, não podiam logo dar lugar a crença de que os espíritos se tornam uma multidão cada vez mais numerosa; mas, desde que se lhe atribui a segunda vida perpétua, não podem deixar de formar uma multidão cujo número cresce sem cessar. Pululando por toda a parte, capazes de aparecer e de desaparecer, procedendo de maneiras impossíveis de prever, consideram-nos como as causas de tudo o que parece desconhecido, inesperado, inexplicável. Atribui-se aos seus atos tudo o que se afasta do ordinário; chega-se até a atribuir-lhes efeitos de causas ordinárias que saltam aos olhos. Autores presumidos de todos os fenômenos notáveis do mundo exterior, são-no também das ações extraordinárias das pessoas vivas. Quando o corpo é abandonado pelo seu eu durante um estado de insensibilidade, normal ou anormal, o outro eu de dum outro indivíduo vivo ou morto, pode aí entrar; por conseguinte, atribuiu-se á malignidade dos duplos dos mortos a epilepsia e as convulsões, o delírio e a loucura, Deseja-se e implora-se pelas orações a entrada de espíritos amigos nos homens, para lhes dar uma força, ou um conhecimento sobrenatural, e, ao contrário, teme-se a entrada dos espíritos que produzem males materiais e mentais; quando se julga que esta desgraça tem lugar, há só um remédio: é preciso expulsar estes espíritos. O exorcista pretende expulsar o intruso maligno, recorrendo a um barulho medonho, a caretas terríveis, a perfumes insuportáveis. A esta forma simples de exorcismo sucede uma forma em que o operador chama em sua ajuda um espírito mais poderoso. Daqui saíram por fim as práticas do feiticeiro, que tem relações e poder sobre certas almas de mortos. Das provisões postas sobre o túmulo do morto, ora habitualmente, ora em épocas fixas, derivam as oblações religiosas, ordinárias e extraordinárias, as de cada dia, e as dos dias de festa. Da imolação e das mutilações das vítimas sobre o tumulo, passa-se aos sacrifícios e às ofertas de sangue no altar duma divindade. A abstinência em proveito do espírito do morto, torna-se a pratica do jejum; as viagens feitas ao túmulo para aí depor ofertas, transformam-se em peregrinações ao altar. Os louvores em honra do morto e as orações que se lhe dirigem, tornam-se orações religiosas. Enfim, todo o rito religioso provém, na sua origem, dum rito fúnebre. Depois de ter achado que a concepção primitiva dum ser sobrenatural, que permanece comum a todas as raças, é a dum espírito; que os meios de tornar favorável um espírito foram sempre os originais dos meios de tornar favoráveis as divindades; achamo-nos em frente da questão que consiste em saber se o espírito dum morto não é o tipo do ser sobrenatural, donde todos os outros tipos saíram. Os fatos citados em apoio duma resposta afirmativa pertencem a diversas classes. Alguns foram recolhidos mesmo dos povos primitivos e provam que, do culto do espírito em geral, saiu o culto de espíritos de antepassados muito afastados, considerados como criadores ou divindades. Agora que concluímos que, do culto dos mortos toda a outra espécie de culto provém provavelmente, vamos examinar os cultos que se não parecem com os dos mortos no exterior, afim de investigar se não haverá entre eles uma analogia. O culto dos animais é uma outra forma religiosa, derivada do culto dos antepassados. Metamorfoses, umas reais, outras aparentes, que se apresentam á experiencia do selvagem, favorecem a crença nas metamorfoses, quando uma qualquer causa vem sugerir esta ideia. Vemos em todas as raças que a crença na transformação de homens em animais e de animais em homens é uma ideia muito espalhada. Por conseguinte, supôs-se que os animais, que aparecem nas moradias dos homens, são mortos que voltam sob novas formas; e que as criaturas que frequentam o lugar de sepulturas, são formas sob as quais as almas se escondem. De mais, o costume muito espalhado de dar aos homens nomes de animais leva, por um erro inevitável na interpretação das tradições, às crenças que dão às raças de homens animais por antepassados. O que faz que o animal sagrado, ao qual se mostra a homenagem dum respeito excepcional, ao qual se fazem pedidos, ao qual se oferece culto, tenha o caráter divino por se ligar a um antepassado, próximo ou remoto. Assim também o culto das plantas. É sempre o culto de um espírito, originalmente humano, que se julga introduzido na planta, quer por causa dos efeitos excitantes que produz, quer por que uma tradição mal interpretada de origem a crença de que ela é um antepassado, donde a natureza saiu, quer por que um nome mal interpretado, a identifique com um antepassado. Em toda a parte, a forma humana, que se atribui ao espírito-planta, objeto do culto, e os desejos humanos, que se lhe atribuem, são provas de que esse culto provém do duma pessoa humana. O culto dos grandes objetos e das grandes forças da natureza, tem também a mesma origem. Quando uma montanha marca o caminho donde partiu uma raça, a tradição faz dela um lugar de origem ou o pai da raça. Também acontece o mesmo provavelmente com o mar, nalguns casos. As montanhas e o mar dão também nomes de família. Os fatos permitem supor que a concepção que personifica a aurora provém de que o nome de aurora tenha servido de nome próprio. Nas raças inferiores, vemos que a personificação das estrelas e das constelações existe ao lado da crença de que estes astros foram outrora homens ou habitantes da terra. O mesmo com a lua. Tradições de povos de categoria inferior atribuem a lua uma existência anterior, sob a forma de homem ou de mulher; a lua serve também de nome próprio entre os povos não civilizados; e supõe-se que esse respeito que se lhe testemunha é dirigido a uma pessoa defunta. Enfim o culto do sol deriva de duas maneiras do culto dos antepassados. Ora são conquistadores que voltam do país onde o sol nasce, e que são chamados por isto «filhos do sol»; acabam por considerar o sol como seu antepassado; ora o sol é apenas um nome metafórico dado a um indivíduo, ou pelo seu aspeto exterior, ou pelos atos que pratica, ou enfim pela posição augusta que ocupa; daqui a identificação com o sol na tradição, e por consequência do culto do sol. Além destes produtos, que derivam indiretamente do culto dos antepassados, há outros que derivam diretamente. Entre a massa dos espíritos dos mortos, há os que se tornam divindades e que conservam os seus caráteres antropomórficos. Como o divino e o superior são ideias equivalentes para o homem primitivo, como o homem que vive e o espírito que volta é uma e a mesma coisa, segundo as crenças, como as palavras espírito dum morto e deus são, no princípio, termos sinônimos, é fácil compreender como o deus sai, por graus insensíveis, do homem poderoso e do espírito do homem poderoso morto. Na tribo, o chefe, o mágico, o homem dotado duma qualquer habilidade, tratados com respeito durante a vida, porque manifestavam um poder de origem e grandeza desconhecida, são temidos ainda mais quando, depois da morte, ajuntam ao seu poder, já conhecido, o poder que todos os espíritos possuem; há ainda mais razão para tratar o estrangeiro, o introdutor de artes novas, e o conquistador que pertence a uma raça superior, como seres sobrenaturais durante a vida, e para os adorar depois como seres sobrenaturais superiores. As narrativas mais maravilhosas são de ordinário as que obtêm mais crença e, por conseguinte, de geração para geração, aumentam-se os feitos destes personagens tradicionais com exagerações, que a credulidade publica acolhe avidamente; pode-se compreender que, com o tempo, estas narrativas possam alcançar todos os graus de expansão e de idealização. Reconhece-se, pois, que, partindo do duplo viajante de que o sonho sugere a ideia, depois passando para o duplo que se vai no momento da morte, e caminhando em seguida deste espírito, ao qual ao princípio só se atribuía uma vida temperaria, para espíritos que existem para sempre e cujo número vai sempre crescendo, o homem primitivo chega a povoar, pouco a pouco, o espaço, que o cerca, de seres sobrenaturais, que se tornam inevitavelmente para ele os autores de todas as coisas que não são familiares. Só tem em seguida que continuar neste método de interpretação, para se embrenhar nas superstições sempre mais numerosas e que acabámos de descrever. Incontestavelmente, as crenças que constituem o sistema das superstições desenvolvem-se da mesma maneira do que todas as outras coisas. Por uma operação de integração e de diferenciação contínua, formam um agregado que, aumentando, passa duma homogeneidade indefinida, incoerente, para uma heterogeneidade definida, coerente. Esta relação é inevitável. A lei a que obedece a evolução do ser humano, e a que obedece também a inteligência humana, todos os produtos da inteligência humana a ela obedecem necessariamente. Desde o momento que esta lei se exprime por estruturas, e, por conseguinte pelas funções dessas estruturas, não pode deixar de revelar-se também nas manifestações concretas destas funções. Assim como a linguagem, considerada como produto objetivo, traz a marca desta operação subjetiva, assim também o sistema de ideias que diz respeito à natureza das coisas que o espírito pouco a pouco elabora. A teoria do Cosmos, que começa por uma noção mal concebida duma força manifestada pelo espírito dos mortos, e que chega até a ação ordenada duma potência desconhecida e universal, é um exemplo mais de que as transformações ascendentes se conformam todas com a lei da evolução. IV - O domínio da sociologia A razão de terem sido compreendidas nos dados da sociologia muitas matérias que fazem parte da sociologia propriamente dita é que, em caso nenhum se podem formular os dados duma ciência, sem ter-se adquirido um certo conhecimento dessa ciência. Pode-se agora formular a conclusão geral a que chegamos. É que, ao passo que a conduta do homem primitivo é, em parte, determinada por sentimentos com os quais considera os homens que o cercam, por outro lado determina-se em parte pelos sentimentos com os quais considera os homens que já não existem. O temor dos vivos é o ponto de partida do governo político, o temor dos mortos é o ponto de partida do governo religioso. Partindo das unidades sociais condicionadas e constituídas, a Ciência da Sociologia deve dar conta de todos os fenômenos que resultam das suas ações combinadas. Começando pelo desenvolvimento da família, a Sociologia passa em seguida a descrição e a explicação do modo como nasce e se desenvolve a organização política; a evolução das instituições e funções eclesiásticas; a autoridade incarnada nas observações de etiqueta; e as relações entre a divisão reguladora e executora de toda a sociedade. Depois destes desenvolvimentos deve seguir esses outros desenvolvimentos combinados que auxiliam a evolução social, ao mesmo, tempo que são auxiliados por ela, os desenvolvimentos da linguagem, do saber, da moral e da estética. Enfim, temos que considerar a dependência reciproca dos aparelhos, das funções e dos produtos, tomados na totalidade. O mais belo resultado da sociologia é abraçar o vasto agregado heterogêneo do gênero humano, de modo que se veja como cada grupo se acha em cada passo determinado, em parte pelos seus próprios antecedentes, e em parte pelas ações passadas e presentes que os outros exercem sobre ele. Terminados estes preliminares, abordemos as generalizações empíricas nas quais se podem ordenar os fatos da Sociologia. AS INDUÇÕES DA SOCIOLOGIA I. - O que é uma sociedade? Uma sociedade é uma entidade; porque embora seja formada de unidades discretas, a persistência das relações entre elas, em todo o espaço que ocupam, implica que o conjunto destas unidades tem alguma coisa de concreto. Os atributos duma sociedade, sendo semelhantes aos de um corpo vivo, é preciso examinarmos as razões que ha para afirmar que as relações permanentes entre as partes duma sociedade, são análogas às relações permanentes existentes entre as partes dum corpo vivo. II - Uma sociedade é um organismo O primeiro traço próprio para nos fazer considerar a sociedade como um organismo, é o seu crescimento contínuo. A medida que uma sociedade se desenvolve, as suas partes diferenciam-se: apresenta um aumento de estrutura. Esta comunidade de caráter entre a sociedade e o organismo individual será melhor apreciada, observando que a diferenciação progressiva das estruturas sociais se acompanha duma diferenciação progressiva das funções sociais. As funções não são simplesmente diferentes, mas as suas diferenças são ligadas de maneira a tornarem-se uma e outra possíveis. Este auxílio reciproco produz uma dependência mútua das partes. E essas partes dependem mutuamente umas das outras; vivendo por cada uma delas e para cada uma delas, formam um agregado constituído segundo os mesmos princípios do que um organismo individual. Com respeito à «divisão fisiológica do trabalho» os dois organismos são absolutamente semelhantes. É preciso deixar os pontos de semelhança para examinarmos uma extrema dessemelhança. As partes dum animal formam um todo concreto, mas as duma sociedade formam um todo discreto. Ao passo que as unidades vivas constituindo o animal são unidas por uma ligação estreita, as unidades vivas, que compõem uma sociedade, são livres, discretas, e mais ou menos dispersadas. Como é que então há analogia? Embora discreto em vez de ser concreto, o agregado social é um conjunto vivo pela linguagem da emoção e da inteligência; assim se acha estabelecida a dependência mútua das partes, que constituem a organização. III - Tipos Sociais e Constituições No começo as sociedades podem ser classificadas segundo o seu grau de composição, como simples, compostas, duplamente compostas, triplamente compostas; e duma maneira secundária, embora menos especifica, em sociedades principalmente militantes e em sociedades principalmente industriais. Certas generalizações saem da classificação primaria. Ha sociedades destes diferentes graus de composição: as do mesmo grau apresentam semelhanças gerais nas suas estruturas e nascem na mesma ordem. As fases de composição e de recomposição devem ser atravessadas sucessivamente. Acima do grupo simples, o primeiro grau é um grupo composto de grandeza insignificante. A dependência mutua das partes que dele fazem um todo funcionando, não pode existir sem o desenvolvimento de linhas de comunicação e de instituições destinadas a uma ação combinada; e este progresso deve ser realizado sobre uma pequena superfície antes de o ser sobre uma superfície mais extensa. Quando uma sociedade composta se consolidou pela cooperação dos grupos que a formam durante a guerra sob o comando dum só, torna-se na realidade uma. Pela conquista ou pela federação em tempo de guerra, com outras sociedades da mesma ordem, podem formar-se sociedades do tipo duplamente composto. Em fases ulteriores, por passos análogos, maiores agregados se produzirão com estruturas ainda mais complexas. É assim que a evolução social caminhou e é assim que ela parece possível. Passando para a classificação secundária, embora as sociedades que se estudam estejam todas em estado de transição, nós podemos nelas nitidamente distinguir os traços constitucionais destes tipos opostos, caracterizados respetivamente pela preponderância dos aparelhos externos ou pela dos sistemas internos. O tipo militar é aquele em que o exército é a nação mobilizada, ao passo que a nação é o exército em repouso e que, por conseguinte, toma uma estrutura comum a nação e ao exército. O caráter que sempre se encontra na estrutura militante é que as suas unidades são forçadas ao desempenho das suas diversas ações combinadas. Como a vontade do soldado é suspensa, a ponto de tornar-se em tudo o executor da vontade do seu oficial, assim a vontade do cidadão em todas as transações, privadas ou públicas, acha-se dominada pela vontade do governo. A cooperação que mantém a vida duma sociedade militante é uma cooperação obrigatória. Os traços pelos quais o tipo industrial difere de uma maneira tão completa do tipo militante, têm origem nas relações entre indivíduos motivadas pelas atividades industriais. Todas as transações comerciais entre operários e patrões, entre compradores e vendedores de artigos de consumo, ou entre pessoas de profissões liberais e aqueles que as auxiliam, efetuam-se por via da livre troca. Esta relação de cooperação voluntária, na qual os serviços mútuos não são impostos, e onde o indivíduo não está subordinado, torna-se dominante em toda a sociedade em que predominam as atividades industriais. Se tivéssemos mais espaço, poder-se-iam ajuntar algumas páginas com respeito a um tipo social futuro e possível, um tipo social que, tendo um sistema de sustentáculo mais completamente desenvolvido do que nenhum daqueles que existem, não se servirá dos produtos da indústria, nem para sustentar uma organização militante, nem exclusivamente para se engrandecer materialmente, mas que os consagrará a atividades mais elevadas. IV - Metamorfoses sociais Nos organismos sociais, como nos individuais, a estrutura adapta-se a atividade. Se as circunstâncias impõem uma transformação fundamental no modo da atividade, daqui resulta em breve uma transformação fundamental na forma da estrutura, e um retrocesso ao antigo tipo, se houver uma volta à antiga atividade. Lançando uma vista de olhos sobre as metamorfoses sociais que têm acompanhado as atividades sociais modificadas, devemos lembrarmo-nos estas resistências na transformação que o tipo hereditário indica, e as resistências para a transformação, devidas a continuação parcial das antigas condições. Além disto devemos esperar uma reversão se as antigas condições começam a predominar. As transformações do tipo militante em tipo industrial e do industrial em militante, têm um interesse capital. O fato de que a volta dos costumes belicosos torna a desenvolver o tipo militante de estrutura, é evidente quando comparamos o período de 1815 - o começo da longa paz - a 1.850, ao período de 1850 até ao presente. Não podemos deixar de ver que em Inglaterra, assim como noutras nações, ao lado de aumento de armamentos, de lutas frequentes e do despertar do sentimento militar, aumentaram-se as regulamentações obrigatórias. Ao passo que a alargavam nominalmente, concedendo-lhe o voto, a liberdade do indivíduo, esta liberdade foi diminuída de muitas maneiras, ora pelas restrições que os múltiplos funcionários têm por fim impor, e pela extorsão de dinheiro destinado a assegurar-lhe, ou assegurar a sua custa a outros vantagens que antes se deixava cada um assegura-las a si mesmo. Não se poderá negar que isto é uma volta a essa disciplina coerciva que invade toda a vida social, onde predomina o tipo militante. Isto mostra também como o tipo industrial, parcialmente desenvolvido, retorna para o tipo militante, quando se produzem lutas internacionais. Naturalmente, as metamorfoses sociais são, em todos os casos, complicadas e encobertas por causas especiais que não são nunca duas vezes iguais. Em certos países modernos, por exemplo, os costumes, as crenças e os sentimentos variaram de todo pela vasta transformação causada subitamente pelos caminhos de ferro e pelos telégrafos. AS INSTITUIÇÕES DOMÉSTICAS I - Conservação da Espécie Para compreender claramente a conservação da espécie humana, é preciso primeiro ver a conservação dos seres vivos em geral. É incontestável que, para cada espécie, é preciso que os indivíduos que morrem sejam substituídos por novos indivíduos, sem o que a espécie, no seu conjunto, morreria. Não é menos evidente que, se numa espécie, a cifra da mortalidade é elevada, a da reprodução deve sê-la também, e reciprocamente. Esta proporção da reprodução com a mortalidade é necessária, tanto para a humanidade como para outra espécie. A condição requerida da produção dum certo número de adultos por gerações sucessivas pôde dar-se de maneiras diversamente modificadas, que subordinam os membros existentes ou futuros da espécie em graus diversos. Vamos considerar agora certos aspectos especiais do antagonismo entre a Individuação e a Reprodução. II - Os interesses diversos da espécie, dos pais e da progenitura. Constatemos o fato de que a evolução reduz ao mínimo o sacrifício do indivíduo ao da espécie, subindo do Protozoário microscópico, cuja curta existência adulta desaparece absolutamente com as vidas dos seus rebentos, até aos mamíferos, onde se encontra a mais completa conciliação dos interesses da espécie, dos adultos e dos pequenos. Progresso de que se segue as linhas, subindo dos tipos dos mamíferos inferiores para os superiores. Os gastos materiais da reprodução supõem uma subtração equivalente ao desenvolvimento e a atividade do indivíduo, subtração para a qual não há compensação nos tipos inferiores; mas subindo a escala animal, nós vemos uma compensação que vai aumentando: o prazer dos pais. O modo superior de constituição da família é alcançado quando há entre as necessidades da sociedade e as dos seus membros, velhos ou novos, uma conciliação tal que a mortalidade entre o nascimento e a idade de reprodução seja reduzida ao mínimo, ao passo que a subordinação das vidas dos adultos a educação das crianças se torna a mais fraca possível. Esta subordinação pode ser diminuída de três maneiras: primeiro, pelo prolongamento do período precedendo a reprodução; segundo, pelo número de nascimentos mais limitado, e pelo aumento dos prazeres que a sua educação lhe procura; terceiro, pelo alongamento da vida depois de passado o período reprodutor. Devemos ter presente no espírito de que as relações domesticas mais elevadas, no ponto de vista ético, são as mais elevadas sob o ponto de vista biológico e sociológico. III - Passado e futuro da família O leitor deve ter visto que as conclusões estão implicadas na ideia de Evolução. Pondo de parte o fato de que as organizações domesticas e sociais das sociedades mais avançadas são mais coerentes, melhor definidas e mais complexas, achamos que, pouco a pouco, se foi realizando esta conciliação dos instintos da espécie, dos pais e dos filhos, que caracteriza a evolução em geral. A transformação dos grupos sociais inferiores, que com dificuldade se podem chamar sociedades, em grupos maiores, ou de estrutura mais complicada, ou em grupos que são ao mesmo tempo uma e outra coisa, implica o desenvolvimento da cooperação; esta pode ser forçada, voluntaria ou parcialmente uma e outra. Vimos que o militarismo implica o predomínio da cooperação forçada e o industrialismo o da cooperação voluntária. Faremos notar aqui que a dedução como a indução levam a verdade que as relações domésticas concomitantes são, nos dois casos, conformes com as relações sociais que com elas se coadunam O que se pode inferir do futuro das relações da família? Supondo que entre as nações civilizadas o industrialismo aumente e que o militarismo diminua, a questão é esta: - quais serão as relações domésticas que coexistirão com o industrialismo completamente desenvolvido? As sociedades que, duma para outra geração, produzem em abundância indivíduos que, relativamente às condições requeridas, sejam os melhores fisicamente, moralmente e intelectualmente, tornam-se sociedades preponderantes e tendem pelo pacífico processo da concorrência industrial a substituir as outras. Por conseguinte, as relações matrimoniais que favorecem este resultado em mais alto grau propagar-se-ão; os sentimentos e as ideias que elas dominam hão de harmonizar-se de modo que toda a outra relação seja condenada. A monogamia é evidentemente a forma última da relação sexual, e só há a esperar que ela se transforme, aperfeiçoando-se e alargando-se. Se, guiados sempre pelo curso da evolução passada, investigarmos que transformações se podem prever na condição legal da mulher, o resultado deve ser que se produzirá uma aproximação ulterior no sentido da igualdade entre os sexos. Com o declinar do militarismo e o desenvolvimento do industrialismo, com o decrescer da cooperação forçada e o aumento da cooperação voluntária, com uma compreensão mais profunda dos direitos pessoais e uma consideração mais simpática dos direitos pessoais de outrem, deve produzir-se um decréscimo nas incapacidades políticas e domesticas das mulheres, até que elas tenham chegado ao ponto onde só lhe restarão as impostas pelas diferenças da sua constituição. Não se pode tirar uma conclusão exata com respeito às transformações futuras da condição legal dos filhos. Tudo quanto tiver por fim o interesse mais elevado dos filhos deve estabelecer-se cada vez mais, visto que os filhos de pais inferiores, educados duma maneira inferior, serão sempre substituídos pelos filhos de pais melhores, educados de melhor modo. Resta-nos a atender a um último fator da evolução doméstica. Entre os laços que constituem a família, o último sentimento que aparece - o cuidado dos pais pela sua progenitura - é que está destinado a maior desenvolvimento. A simpatia intelectual e moral entre pais e filhos, fortificando-se, fará com que os últimos dias da vida sejam suavizados por uma maior solicitude filial, que indenizará os pais da solicitude maior ainda que eles mostraram nas primeiras fases da vida de seus filhos. INSTITUIÇÕES CERIMONIAIS Se designarmos com o nome de conduta tudo quanto implique as relações diretas dum agente com outrem e com o nome de governo todas as instituições que têm autoridade sobre a conduta, seja qual for a sua origem, é forçoso confessar que o gênero de governo mais primitivo, aquele cuja existência é mais geral, e que se reconstitui sempre espontaneamente, é o governo das observâncias cerimoniais. Ainda não é tudo. Não só esta espécie de governo precede todas as outras, e não só em todos os tempos e em todos os lugares teve uma influência quase universal, mas exerceu sempre e exerce ainda hoje a parte maior de autoridade que regula a vida dos homens. A prova de que os modos de conduta chamados maneiras e atitude apareceram muito antes dos freios políticos e religiosos, está em que eles precedem não só a evolução social, mas a evolução humana: podem-se observar nos animais superiores. O cão, que tem medo que lhe batam, chega-se rastejando para o pé do dono; mostra evidentemente o desejo de testemunhar a sua submissão. Não é só para com os homens que os cães assim procedem; mas também uns com os outros. Todos tem visto os cãozinhos, cheios de terror pela aproximação dum formidável Terra-Nova ou dum enorme dogue, deitarem-se de costas e levantar as patas para o ar. Este animal fraco toma a atitude, ele próprio, que resultaria se houvesse luta; e parece confessar «estou vencido e a tua mercê». Como a autoridade das cerimônias precede, na ordem da evolução, a autoridade civil e religiosa, é preciso que dela nos ocupemos primeiro. I - Das cerimônias em geral Vamos ver como nasceram os modos de conduta que constituem o cerimonial. Admite-se vulgarmente que são expressões adotadas porque simbolizam a veneração ou o respeito. Esta hipótese parece-se com a que originou a teoria do contrato social; uma certa concepção é familiar ao homem civilizado, tanto basta para que ela o seja também ao homem primitivo. Mas não há razão nenhuma para se acreditar que o homem primitivo adotasse deliberadamente símbolos, assim como também não a ha para crer que ele tenha concluído um contrato social. Ambas estas coisas têm uma origem natural e enquanto esta origem natural não estiver descoberta nalguma cerimônia, podemos ter a certeza de que lhe não encontrámos a origem. A vaca lambe o vitelo e o motivo é que ela se acha satisfeita no sentimento maternal pela viva sensação que produz no filho. Para o cão o lamber o dono nas mãos ou na cara é um meio de testemunhar-lhe a sua subordinação; e se pensarmos como o olfato deste animal é apurado, a ponto de seguir a pista do dono, podemos ainda supor que o seu sentido do gosto recebe também uma impressão associada ao prazer que lhe causa a sua presença. Ha razão para se concluir que o beijo, como marca de afeto na espécie humana, tem uma origem análoga. O uso do beijo não é universal: os pretos por exemplo desconhecem-no; mas como este uso se encontra em povos muito diversos, pode concluir-se que tem a mesma origem que a ação análoga dos animais. Vamos agora ao resultado indireto do beijo. Do beijo, sinal de afeto, deriva o beijo como meio de simular afeto e alcançar a benevolência da pessoa que se beija. Vê-se de aqui o caminho que nos leva ao beija-pés, beija-mãos, beijar dos vestidos, e outras tantas demonstrações de cerimônia. O sentimento, quer tenha a sua origem na sensação ou na emoção, causa contrações musculares tanto mais fortes quanto for mais ardente. Basta que nos lembremos que, quando uma mãe abraça o filho, o sentimento é tanto maior quanto mais fortemente ela o apertar. O sentimento descarregando-se, produz contração nos músculos dos órgãos vocais e nos outros músculos. É por isto que os gritos, motivos de alegria em geral, indicam a alegria que se tem quando se encontra uma pessoa querida, e servem para dar a aparência de alegria diante duma pessoa que se precisa captar. Entre os Fidjenses o respeito dos inferiores para com os superiores é manifestado no grito tama. As saudações primitivas tornam-se com o tempo formulas de cumprimentos adaptados às pessoas e às circunstâncias. As armas tomadas na guerra dão origem aos símbolos de autoridade e passam pouco a pouco por transformações muito variadas. Os presentes, ao princípio, em alimentos, dados pelos selvagens aos estrangeiros para invocarem a benevolência, tornam-se nos presentes, também em alimentos, dados aos chefes; ao mesmo tempo vemos oferendas, também em alimentos, feitas aos espíritos e aos deuses. Os túmulos são visitados em sinal de respeito pelo espírito dos mortos; os templos são visitados para aí serem adorados os deuses, que se supõem presentes; visitam-se os soberanos na sua corte para se lhes manifestar fidelidade; e os particulares como prova da consideração para com a sua pessoa. Faz-se uma mesura, por uma atitude que supunha primitivamente subordinação, ante os monarcas e suseranos; fazem-se mesuras aos deuses, aos mortos e imita-se esta atitude para com os iguais. É evidente que todas estas formulas do cerimonial se desenvolvem com o tipo militar da sociedade. A cerimônia, como se viu, tem origem no medo: por um lado supremacia dum vencedor ou senhor; por outro lado, medo da morte ou dum castigo no vencido ou no escravo. Enfim, sob o regime de cooperação, tal como ele é formado pelo medo, este sentimento desenvolve-se e mantém todas essas formulas cerimoniais. Mas logo que se eleva o tipo social, fundado na cooperação voluntária, o medo decresce, o comerciante não é já vítima das rapinas ou de tormentos da parte do nobre, e tem meio de o forçar a pagar; o trabalhador, na ocasião de receber o salário, não está exposto a levar pancada como o escravo. No regime industrial, os homens não se temem, nem são dominados pela força, e por consequência aplicam-se menos em desempenhar estas formulas de cerimonias. Isto não é só exato a priori, mas a posteriori; e pode concluir-se que as observâncias cerimoniais têm um papel educador nos povos em que dominam. Na Rússia, onde sempre predominou o governo despótico e muito cerimonioso, os homens são muito delicados e reina um grande respeito entre todas as classes. O italiano, sujeito durante muito tempo a um governo tirânico, em perigo de morte se chega a excitar os sentimentos de vingança dos seus concidadãos, distingue-se pelas suas maneiras conciliadoras. Em Espanha, onde o governo tem grande autoridade, onde as mulheres são muito maltratadas e onde nenhum operário anda sem navalha, reina uma extrema delicadeza. Ao contrário, o povo inglês, que durante muito tempo viveu sob leis que o protegem contra qualquer ofensa, tem falta de doçura e mostra-se muito desatendido com respeito a essas pequenas delicadezas. Assim, guiados pelo passado, não podemos duvidar do futuro. Cada progresso novo do tipo social, baseado sobre a cooperação voluntária, fará cair em desuso as saudações cerimoniosas, as formulas de cumprimentos, os títulos, as insígnias, etc. ORGANIZAÇÃO POLITICA. INTEGRAÇÃO E DESINTEGRAÇÃO Uma sociedade, no sentido sociológico do termo, só se forma quando a justaposição dos indivíduos se ajunta a cooperação. A cooperação tornou-se possível com a sociedade e torna esta possível. Pressupõe homens associados e estes permanecem neste estado por causa das vantagens que lhes dá a cooperação. A organização, implicada pela cooperação é de dois gêneros, de origem e de natureza diferentes. O primeiro, nascendo diretamente dos esforços em vista dos fins individuais, e levando indiretamente ao bem público, desenvolve-se inconscientemente, e não tem força coerciva. É a organização industrial. O outro, nascendo diretamente, tem fins de interesse público, e serve de modo indireto ao bem dos indivíduos, mas constrange-os e prejudica-os. É a organização militar. Uma das leis da evolução, em geral, é que a integração se opera quando as unidades semelhantes se acham submetidas a ação da mesma força ou de forças semelhantes. (Primeiros Princípios.) Vemos esta lei verificada desde os primeiros degraus da integração social até aos últimos. A semelhança das unidades formando um grupo social, sendo uma condição da sua integração, uma nova condição é que elas reajam em conjunto contra as ações externas; a cooperação na guerra é a causa principal da integração social. As alianças temporárias dos selvagens para o ataque e a defesa, mostram-nos o primeiro passo. Quando muitas tribos se unem contra um inimigo comum, a longa combinação da sua ação combinada dá-lhes uma certa coerência sob uma autoridade comum. E assim sucede também com agregados maiores. O progresso da integração social é ao mesmo tempo a causa e a consequência duma aptidão sempre menor das unidades em separarem-se. Mas, como também já se indicou nos Primeiros Principias, o estado de homogeneidade num agregado social, é um estado instável. As divisões políticas produzem-se em toda a parte onde há alguma coerência e alguma permanência de relação entre as partes do agregado. A diferenciação política primaria nasce com a diferenciação primaria da família. Os homens e as mulheres estando expostos, pela diversidade das suas funções na vida, a influencias diferentes na comunidade, começam logo ao princípio por tomar posições diferentes na comunidade, assim como na família; desde o começo, formam respetivamente as duas classes políticas dos governantes e dos governados. Quando os homens passaram do estado nômade ou pastoril para o estado agrícola ou sedentário, foi possível para uma sociedade apossar-se doutra com o território que esta ocupa. Quando isto sucede, nascem divisões novas de classes. A tribo conquistada, e que paga o tributo, além de que tem chefes subordinados, tem todo o seu povo reduzido a um estado tal que, para continuar a viver nas suas terras, são obrigados a entregar, por intermédio dos seus chefes, uma parte dos seus produtos aos vencedores; assim começa a classe que mais tarde se chamará a dos servos. Desde o começo, a classe militar, dominando pela força das armas, torna-se a classe a que pertence a fonte de todo o alimento: a terra. As desigualdades de situação social, conduzindo a desigualdades na provisão dos alimentos, vestidos e abrigos, tendem a estabelecer diferenças físicas; e estas são ainda para vantagens dos governantes e para detrimento dos governados. Além das diferenças físicas, produzem-se diferenças mentais, emocionais e intelectuais, em consequência dos hábitos respectivos, agravados ainda mais pela natureza do contraste geral. Quando chegamos às conquistas de que resultam as sociedades compostas, e mais tarde as sociedades duplamente compostas, formam-se diversas camadas de classes sobrepostas. E o efeito geral é que, ao passo que as classes da sociedade conquistadora se elevam respectivamente mais alto do que as que antes existiam, as da sociedade conquistada rebaixam-se sempre mais. As diferenciações políticas de que o militarismo é o iniciador, e que durante muito tempo se tornam cada vez mais definidas, são, noutras épocas e noutras condições, alteradas, separadas e destruídas, no todo ou em parte. Ao passo que a evolução política superior dos grandes agregados sociais tende a destruir as diferenças de classe que tinham elevado nos pequenos agregados sociais que compunham o grande, e a substituir-lhes outras divisões, as divisões primitivas são ainda mais batidas em brecha pelo industrialismo crescente. Criando uma riqueza que não depende da classe, o industrialismo dá origem a um poder competitivo; e ao mesmo tempo, estabelecendo a igualdade de situação dos cidadãos diante da lei, no que diz respeito às transações comerciais, enfraquece estas divisões que, no começo, eram a expressão duma desigualdade de situação diante da lei. Ao apoio destas interpretações, podemos ajuntar que elas estão de acordo com as que já demos das instituições cerimoniais. Quando se reduz a escravo o inimigo vencido, quando ele é mutilado e se lhe toma um troféu do seu corpo, nasce, ao mesmo tempo, a mais profunda distinção política, assim como a cerimônia que dela é o distintivo. O militarismo persistente, que compõe e recompõe os grupos sociais, acompanha-se do desenvolvimento das distinções políticas, e do das cerimonias que delas são a caraterística. E assim como vimos o industrialismo crescente diminuir o rigor das regras cerimoniais, assim também o vemos tender para destruir as divisões de classe, que o militarismo introduz. 1 - Caracteres gerais da sociedade militar Será instrutivo dispor numa ordem sistemática os traços gerais do tipo militar, que já se assinalaram incidentemente, assim como os do tipo industrial. O processo da organização militar é uma arregimentação que, efetuando-se primeiro no exército, se estende em segundo lugar, a toda a sociedade. Assim como o comandante diz ao soldado, ao mesmo tempo, o que ele deve fazer e o que não deve fazer, assim em toda a sociedade militar em geral, a regra é ao mesmo tempo negativa e positivamente reguladora; não só reprime, mas impõe; o cidadão, como o soldado, vive sob um sistema de cooperação obrigatória. O desenvolvimento do tipo militar produz uma rigidez crescente, pois que a coesão, a combinação, a subordinação e a regulamentação a que subordina as unidades duma sociedade diminuem inevitavelmente a sua aptidão para mudar de posição social, de ocupações e de localidade. A prontidão em obedecer ao general durante a guerra supõe a crença na sua capacidade militar; a prontidão em obedecer-lhe durante a paz supõe a crença de que esta capacidade se estende aos assuntos civis. Estas concepções favorecem o desenvolvimento duma confiança absoluta na autoridade governamental. Gerações educadas por um regime que governa todos os negócios, privados e públicos, admitem tacitamente que os negócios não se podem governar de outro modo. Como consequência natural disto, o indivíduo não tem iniciativa e nada se empreende. O estado mental, resultante destas influencias é o da resignação passiva e o da expetativa. Por consequência, impedindo o progresso industrial, o militarismo obsta à substituição das ideias de causalidade pessoal pela de causalidade impessoal. É natural que uma vida ocupada a adquirir conhecimentos, como uma vida ocupada na indústria, passem por desprezíveis para as pessoas que se dedicam à guerra. Os Espartanos são disto uma prova, na antiguidade; temos outra na Europa feudal, quando o saber era um objeto de desdém e considerado bom para os clérigos e o populacho. Evidentemente, desde que as ocupações militares obstam ao estudo e a difusão do saber, retardam o momento em que o espírito, emancipado da autoridade das ideias primitivas, chega a reconhecer as leis naturais. Em terceiro lugar e antes de tudo, o efeito em questão é o resultado da experiencia visível e contínua da causalidade pessoal, originada pelo espírito militar. No exército, desde o comandante em chefe até ao subalterno, todo o movimento é dirigido por um superior; e, na sociedade, quanto mais a arregimentação for completa, tanto mais as coisas se passam segundo a vontade reguladora do soberano e dos seus subordinados. Quando se trata de interpretar os assuntos sociais só se reconhece uma causação, a causação pela pessoa. A história não é mais do que a série dos atos dos homens notáveis; e admite-se tacitamente que foram eles que formaram as sociedades. O espírito não alcança o curso da evolução social, porque não possui o habito da causação impessoal. A ideia da formação natural dos órgãos e das funções sociais é uma concepção de tal modo estranha e parece absurda à primeira vista. A ideia dum processo social, que a si mesmo se regula, é ininteligível. O Daomé moderno e a Rússia, o antigo Peru, Egito e Esparta, são exemplos da posse do indivíduo pelo estado, o que se estende a vida, a liberdade, aos bens, posse que é caracterizada pelo estado social adaptado à guerra. A Roma imperial, o império de Alemanha e a Inglaterra, desde que entrou no caminho das conquistas, mostram que, à medida que uma sociedade se adapta às funções guerreiras, há um aumento de funcionalismo, de autoridade, de vigilância. Temos o exemplo da Alemanha, onde os traços do tipo militar, já muito manifestos, se tornaram, depois da última grande guerra, ainda muito mais. O exército não só foi grandemente aumentado, mas consolidou-se mais; em lugar dos fundos militares votados anualmente, somas maiores são votadas agora por sete anos: abdicações progressivas do poder do povo ante o poder imperial. Simultaneamente, o funcionalismo militar substituiu de duas maneiras o funcionalismo civil: os oficiais subalternos são recompensados com nomeações para postos civis, e a organização eclesiástica tomou-se mais subordinada à organização política. Se passarmos às atividades industriais, podemos notar a transferência progressiva dos caminhos de ferro para o Estado; a extensão das intervenções na ordem comercial, pelas tarifas protecionistas, pelas posturas de novo em vigor das leis contra a usura, pelas restrições feitas ao trabalho do domingo. Enfim, o testemunho é fornecido pelo caráter adaptado dos homens que compõem as sociedades militares. Põem a gloria suprema no sucesso da guerra; por isto confundem a bondade com a bravura e a energia. A vingança é para eles um dever sagrado. Os sentimentos de simpatia, de bondade, de indulgência, são constantemente abafados. II - Caracteres gerais da sociedade industrial Os caráteres do tipo industrial são de tal modo ocultos pelos do tipo militar ainda dominante, que só se podem dar deles exemplos imperfeitos. As exigências do tipo industrial excluem toda a autoridade despótica. O regime da condição legal própria do militarismo desapareceu, o regime do contrato, que o substitui, deve impor-se a todos. Da cooperação voluntaria, este princípio fundamental do tipo industrial, nascem inúmeras associações privadas, análogas pela sua estrutura a associação publica, que forma a sociedade em que se contêm. Como resultado indireto, uma sociedade do tipo industrial tem por caráter a plasticidade; tende também para perder a sua autonomia econômica e fundir-se com as sociedades vizinhas. Vejamos agora o indivíduo do tipo industrial da sociedade para vermos que, tanto pelo caráter da unidade como do agregado, se a indução confirma os dados da dedução. Certos povos selvagens, cuja vida se passa em ocupações pacíficas, distinguem-se pelo seu espírito de independência, a resistência à opressão, a honestidade, a veracidade, generosidade e bondade. Quando observamos o caráter dos ingleses antigos durante os períodos belicosos da Inglaterra, vemos à medida que o industrialismo aumenta e o militarismo diminui, elevar-se o nível da independência, abaixar-se o da fidelidade política, diminuir a fé nos governos e decrescer o patriotismo; ao mesmo tempo, pelo efeito do espírito de empreendimento, com a diminuição da fé na autoridade, com a resistência a um poder irresponsável, aumentou a fé do indivíduo em si próprio, os respeitos pela individualidade de outrem, que se revelam pela diminuição dos atentados e a multiplicação dos esforços benéficos. Para evitar confusões, deve-se notar que estes caracteres devem ser considerados, menos como resultados imediatos do industrialismo, do que como resultados remotos dum estado não militar. Ainda que a simpatia não seja a regra da troca de serviços sob o regime do contrato, tal como hoje existe, realiza-se contudo em grande parte e pode realizar-se completamente com o respeito devido aos direitos de outrem, e pode coadunar-se com o sentimento do benefício feito, como do benefício recebido; mas atos tais como matar adversários, queimar-lhes as casas, apropriar-se do seu território, não se podem separar do sentimento vivo da injustiça e do mal que se lhes faz e do efeito brutificador que disto é a consequência, efeito produzido não só sobre soldados; mas sobre os que os empregam e que contemplam com prazer esses feitos. Esta última forma de vida social, por consequência, extingue a simpatia e provoca um estado de espírito que leva ao crime; a primeira, ao contrário, que deixa livre carreira a simpatia, se a não põe em ação diretamente, favorece o desenvolvimento dos sentimentos altruístas e as virtudes que deles resultam. III - Conclusões Todos os fenômenos sociais, se os analisarmos no fundo, levam-nos as leis da vida, e é impossível compreende-los bem, se não nos reportarmos às leis da vida. Transportemos, pois, a questão dos direitos naturais, da arena política para o domínio da ciência da vida. A vida animal supõe uma perda; toda a perda exige uma reparação; reparação implica nutrição. Por seu turno, a nutrição pressupõe a aquisição de nutrição; a nutrição não pode ser obtida sem faculdades de apreensão, e, ordinariamente, de locomoção; e para que estas faculdades se possam exercer, é preciso que haja liberdade de cada um se mover. Encerrai um mamífero num espaço estreito ou ligai-lhe os membros, ou tirai-lhe os alimentos que ele buscou, e matá-lo-eis, se persistirdes num e noutro destes processos. Para além dum certo ponto, a impossibilidade de satisfazer estas necessidades torna-se fatal. O que acabamos de dizer dos animais superiores, em geral, aplica-se naturalmente ao homem. Se adotamos o pessimismo como crença e com ele a implícita de que a vida, sendo quase sempre um mal, é preciso pôr lhe fim, não há base moral pela qual a vida seja mantida; a questão cai por terra. Mas se adotamos, quer a doutrina do otimismo, quer a doutrina do progresso, se pensamos que, em suma, a vida dá mais prazeres do que penas, ou que ela está prestes a tornar-se em estado de nos dar mais prazeres do que penas, então os atos pelos quais a vida se mantem são justificados, e a liberdade de os exercer não se deve impedir. Portanto, admitindo-se que é justo não impedir as atividades necessárias ao sustento da vida, reciprocamente admite-se que se tem o direito de exerce-las. É manifesto que a «concepção dos direitos naturais» tem a sua origem no reconhecimento desta verdade que, se a existência é justificável, deve haver uma justificação para o desempenho dos atos essenciais à sua conservação e, por conseguinte, uma justificação das liberdades e dos direitos que tornam tais atos possíveis. Mas esta proposição, sendo exata para outras criaturas e para o homem, não tem caráter moral. O caráter moral nasce somente com a distinção entre o que é permitido ao indivíduo fazer, exercendo as atividades que mantêm a sua vida e o que não lhe é permitido. Esta distinção resulta da presença dos seus semelhantes. Se indivíduos se acham em contato imediato ou são um pouco separados, os atos dum podem influir sobre os atos doutro, e se é impossível provar que alguns tem o poder ilimitado de fazer o que querem, ao passo que outros o não têm, é forçoso admitir uma limitação natural. O direito de prosseguir certos fins passará da forma não ética para a forma ética, quando se reconhecer a distinção entre os atos que se podem realizar sem transpor os limites e aqueles que se não podem. É incontestável que o governo nasceu da agressão e foi engendrado pela agressão. Nas pequenas sociedades primitivas, onde uma paz completa reinou durante séculos, não existe nada de semelhante aquilo a que chamamos governo. Um quadro dos malefícios dos governos, se fosse bem feito, provaria que uma parte do código moral ainda em vigor remonta e convém ao estado de guerra e acalmaria talvez as impaciências daqueles que trabalham para alargar a missão governamental. Depois de ter observado que, não só os carácteres, mas também os princípios desta estrutura política primitiva, produzida pelo militarismo crônico, continuam a subsistir, o reformador e o filósofo seriam talvez menos ardentes, esperando um tão grande bem da intervenção universal do governo, e seriam talvez dispostos a ter mais confiança nas organizações não governamentais. Sem dúvida um resumo dos principais crimes dos legisladores responsáveis não seria inútil. Serviria para muitos fins. Mostraria claramente como esta entidade da moral governamental e dos costumes da guerra, se mantem ainda hoje e exerce uma grande influência sobre o nosso proceder e sobre a nossa vida quotidiana. Os diversos crimes dos legisladores explicam-se até certo ponto, se nós subirmos a sua origem. Proveem da opinião errônea segundo a qual a sociedade é um produto fabricado, ao passo que ela é um desenvolvimento. Nem a educação dos tempos passados, nem a da época atual ensinaram a um número considerável de pessoas a fazer uma ideia científica duma sociedade, a considerá-la como tendo uma estrutura natural, em que todas as instituições estão em dependência recíproca umas das outras, dependência que, em certo sentido, é orgânica. Pelo contrário, costuma-se considerar a sociedade como uma quantidade de farinha a qual a cozinheira pode dar a forma que lhe agrada, ou duma empada, duma torta ou dum pastel. É verdade que se poderia supor que, independentemente do erro consistindo em conceber a sociedade como massa plástica, ao passo que é um corpo organizado, fatos ha que, impondo-se a cada momento a nossa atenção, dever-nos-iam tornar céticos com respeito ao sucesso de tal ou tal método pelo qual se pretende mudar as ações dos homens. A experiência domestica fornece, tanto ao cidadão como ao legislador, provas diárias de que a conduta dos homens engana todos os cálculos. Um renunciou à ideia de governar a mulher e deixa-se governar por ela. De todos os métodos que experimentou na educação dos filhos, as reprimendas, as punições, a persuasão, os prêmios, nenhum produz êxito satisfatório; nenhuma repreensão impede a mãe de tratar os filhos duma maneira que o pai julga perniciosa. O mesmo sucede com relação aos criados; quer ralhe ou os leve pela razão, o efeito produzido raras vezes dura muito: a falta de atenção, de pontualidade, de celeridade, produz-se em alternativas constantes. No entanto, apesar das dificuldades que experimenta nas suas relações com a humanidade em detalhe, tem confiança na sua habilidade em regular os negócios dos homens formando o corpo da nação. O legislador não conhece a milésima parte dos cidadãos, não viu a centésima parte, não tem senão fracas noções dos hábitos e do modo de pensar das classes a que pertence a grande massa, e apesar de tudo crê firmemente que todos procederão do modo que ele prevê e caminharão para o fim que ele deseja ver realizado. Não há nisto um desacordo evidente entre as premissas e a conclusão? Estes revezes na vida doméstica, a amplificação, a variedade, a complicação da vida social, tal como aparece, a ponto de que a imaginação se esforça em vão de a conceber, deveriam fazer acreditar que os homens hesitassem longo tempo antes de fazer leis. E, apesar de tudo, em toda a parte, eles mostram uma presunção surpreendente. Entre todas as crenças monstruosas, uma das mais monstruosas é a que afirma ser forçoso uma longa aprendizagem para um simples ofício, como o de sapateiro por exemplo, e que a única coisa que não exige aprendizagem é fazer leis para uma nação. A doutrina, tacitamente aceita, do poder ilimitado do Estado, doutrina comum aos conservadores, liberais e radicais data duma época em que os legisladores passavam por ser delegados de Deus; ela subsiste ainda, embora a crença na delegação divina tenha desaparecido. «Oh! um ato do parlamento pode tudo», eis o que se responde ao cidadão que questiona a legitimidade dalguma intervenção arbitrária do estado, e o cidadão cala-se. Ele não pensa em perguntar como, quando e onde nasceu essa pretendida onipotência, limitada somente por impossibilidades materiais. Permita-nos pôr aqui em dúvida essa onipotência. Augusto Comte aceitava que o homem não muda, e que, se ele teve necessidade de ser guiado no passado, também precisa de o ser no futuro; era de opinião de que o princípio da autoridade deve incarnar-se nalgum corpo visível. A história, que nos fornece induções e a teoria da evolução que as generaliza e confirma, não permitem esta crença. A história mostra nas sociedades civilizadas uma decadência gradual das diversas instituições governamentais; a teoria da evolução mostra-nos como, a influência da autoridade visível que decresce, se substitui a influência duma autoridade invisível, duma potência muito mais eficaz. Por ter sido necessária a ação dum governo espiritual e temporal, conclui-se sem razão, que o deve ser sempre. Este erro provém da ideia falsa que se tem da função do governo, sob as duas formas que se apresenta. Julga-se que o governo é destinado a dirigir os cidadãos na ação. Não há nada menos exato. A origem deste erro data da antiga concepção antropomórfica, que outrora imprimiu cunho a todas as nossas concepções das coisas, e que exerce ainda no nosso tempo um domínio tão vasto. O homem que julgava que o sol e a lua tinham sido lançados no espaço por mão toda poderosa, que o homem fora modelado em barro por um artista duma habilidade sobrenatural, julgava; segundo o mesmo modo de pensar, que a sociedade, a que pertencia, tinha sido moldada e regulada, ou diretamente pela Providência, ou indiretamente pela sabedoria suprema, que inspirava um legislador todo poderoso. Esta maneira de pensar encontra-se ainda hoje. Tende-se para atribuir às instituições do passado um caráter augusto, que as eleva acima das nossas críticas. Foi a sabedoria do soberano, é a sabedoria dos nossos pais, diz-se, que criou tal ou tal instituição. Ha quem pense que um estado social é a obra dos governantes, o resultado feliz dos pensamentos dos homens de gênio que as nações têm tido a felicidade de possuir. É um erro. Uma sociedade, como toda a existência concreta, é o produto dum desenvolvimento submetido a leis fixas. As forças dos sentimentos conservadores e dos sentimentos reformadores exprimem, pela sua luta e pela resultante das suas tendências, o grau de moralidade duma sociedade. O triunfo dos primeiros indica um predomínio de costumes violentos; a vitória dos segundos prova que os costumes morais do respeito dos direitos adquiriram a preponderância. Uma sociedade deve ser julgada segundo o grau do constrangimento exercido sobre os cidadãos em nome da lei humana, e o grau de obediência voluntária a lei moral da igualdade na liberdade. Quando uma falta, a outra substitui-a. Quando a lei moral se fortifica, a do constrangimento deve desaparecer. Então todo o governo se torna inútil, um mal até, e os homens sentem uma tal aversão pelas barreiras da autoridade, mostram-se tão ciumentos dos seus direitos, que todo o governo se torna impossível. Admirável exemplo da simplicidade da natureza: o mesmo sentimento que nos torna aptos para a liberdade, torna-nos livres. A MORAL EVOLUCIONISTA I - A boa e a má conduta É evidente para os que tenham seguido este volume, desde os Primeiros Principias até aos Princípios de Sociologia, que a conduta a qual aplicamos o epiteto de boa, é a conduta duma evolução relativamente mais avançada. Consideramos como boa a conduta favorecendo a conservação do ser e como má a que tende para a sua destruição. A conduta dos pais é chamada boa ou má, segundo aumenta ou diminui o poder da perpetuação da espécie, protegendo a posteridade. E chama-se boa, em toda a força do termo, a forma de conduta pela qual a vida se completa no ser e nos seus descendentes. A boa conduta eleva-se ao grau da melhor, quando realiza simultaneamente a maior totalidade da vida no indivíduo, na sua progenitura e nos seus semelhantes. O que se pode definitivamente afirmar é que nenhuma escola de moral, ou da moral absoluta, da religiosa ou da relativa, poderá evitar de tomar como objetivo último da moral, um estado desejável de sentimento, quer se lhe dê o nome de prazer, gozo ou felicidade. O prazer, em qualquer caso, para algum ser ou alguns seres, é um elemento impossível de banir da concepção. É uma forma tão necessária de intuição moral como o espaço é uma forma necessária de intuição intelectual. II - Maneiras de julgar a conduta Os métodos correntes da moral, têm todos um defeito comum: esquecem-se das conexões causais ultimas. Não sabem erigir em sistema a constatação das relações necessárias entre as causas e os efeitos, nem deduzir as regras de conduta do enunciado destas relações. A escola de moral mais antiga é a que não reconhece outra linha de conduta a não ser a suposta vontade de Deus. A noção de que tal ou tal ação se torna boa ou má sobre uma simples injunção divina é equivalente à noção de que tal ou tal ação não tem na natureza das coisas tal ou tal efeito. Se não ha uma inconsciência da causação, há pelo menos uma ignorância desta. Seguindo Platão, Aristóteles e Hobbes, muitos pensadores modernos sustentam que a lei é a única origem do bem e do mal. Pretendem que os direitos são puro negócio de convenção: os deveres também o são. Se, entretanto, os assassinatos, o roubo, a falta de fidelidade nos contratos, a fraude, etc., quer sejam ou não proibidos, fazem mal numa comunidade em proporção da sua frequência, completamente independente de qualquer proibição, não é manifesto que o mesmo deve suceder a todas as outras partes da conduta humana? Aqui ainda a teoria mostra a inconsciência da causação. O mesmo acontece aos intuitivos puros. Por que afirmar que nós sabemos o que é bem e o que é mal, em virtude duma certa consciência sobrenatural, é negar tacitamente as relações naturais entre os atos e os seus resultados. Embora pareça impossível, a própria escola utilitária está muito longe de reconhecer completamente a causação natural. Os discípulos desta escola supõem que no futuro, assim como agora, a utilidade só deve determinar-se depois dos resultados observados, e que não há nenhuma possibilidade de saber, pela dedução dos princípios fundamentais, que conduta deve ser má, e qual deve ser vantajosa. Se seguirmos até ás ultimas ramificações os efeitos que produzem os atos que a chamada moral intuitiva reprova; se perguntarmos o que dela resulta, não só para o indivíduo como também para os que o rodeiam; vemos que estes atos, além de tenderem primeiro a prejudicar a vida do indivíduo atacado, tendem em segundo lugar a abaixar o nível de toda a sua família, e em terceiro lugar a vida da sociedade em geral, que se encontra lesada por tudo quanto prejudica as suas unidades. Assim pois, todos os sistemas correntes de moral esquecem as conexões cansais ultimas. A moral, compreendendo, assim como o compreende, uma parte das ciências físicas, biológicas, psicológicas e sociológicas, não pode achar as suas últimas interpretações senão nas verdades fundamentais comuns a todas estas ciências. III - O egoísmo É evidente que o egoísmo manda mais imperiosamente do que o altruísmo. Porque os atos que tornam possível a constituição da vida, devem, em média, ser mais peremptórios do que aqueles que a vida torna impossíveis, compreendendo os atos favoráveis a outrem. Se considerarmos a vida no decurso da evolução, vemos a mesma coisa. Os seres sensíveis progrediram dos tipos inferiores para os tipos superiores, sob a lei de que os superiores se aproveitam da sua superioridade, e que os inferiores sofrem pela sua inferioridade. O que equivale dizer que os direitos egoístas triunfam dos direitos altruístas. O acordo com esta lei tem sido, e é ainda, necessário, não só para a continuação da vida, mas para o aumento da felicidade, pois que os seres superiores são aqueles cujas faculdades se adaptam melhor às condições; faculdades, por consequência, que no seu exercício produzem mais prazeres do que penas. Considerações mais especiais juntam-se a estas mais gerais para mostrar essa verdade. O egoísmo que conserva um espírito vivo num corpo vigoroso contribui para a felicidade dos descendentes, dos quais as constituições hereditárias tornam o trabalho fácil e os prazeres vivos; enquanto que, reciprocamente, a infelicidade passa dos pais a posteridade quando estes lhe legam constituições arruinadas pela negligencia da sua saúde. De mais, o indivíduo, cuja vida, bem mantida, se revela por um temperamento alegre, torna-se pelo fato só da sua existência uma origem de prazeres para todos os que o rodeiam; ao passo que a tristeza, que acompanha vulgarmente a falta de saúde, espalha-se a família e aos amigos. Por uma outra consequência, aquele que sempre soube contar consigo, conserva o poder de ser útil a outros, enquanto que o que mostra uma abnegação excessiva, é, não só incapaz de ajudar os outros, mas sobrecarrega-os. Por outro lado, ainda a subordinação exagerada do egoísmo ao altruísmo é prejudicial. Direta e indiretamente a ausência de egoísmo, levada ao excesso, engendra o egoísmo. Todos se podem lembrar de casos em que os benefícios feitos por um ser generoso a um ser cupido, aumentam-lhe a cupidez; e ainda, um homem pode gastar a fortuna com outros, o que, impedindo-o de se casar, impede a transmissão dos traços altruístas aos descendentes, e aumenta o egoísmo. Finalmente, pode-se notar que um egoísmo racional, bem longe de supor uma natureza humana mais egoísta, é compatível com uma natureza humana menos egoísta. Porque reclamar os direitos pessoais que são devidos, é, por implicação, traçar uma linha de marcação para além da qual não são devidos, e, por conseguinte, pôr em foco de maior luz os direitos dos outros. IV - O altruísmo Se definirmos o altruísmo toda a ação que, no curso normal das coisas, aproveite a outrem em lugar de aproveitar ao que a pratica, segue-se que, desde o alvorecer da vida, o altruísmo não é menos essencial do que o egoísmo. Porque, ao passo que, por uma parte a omissão de atos normais egoístas produz o enfraquecimento ou a perda da vida, por outra parte uma falta de atos altruístas, que produza, a morte da progenitura ou o seu desenvolvimento insuficiente, implica a desaparição, nas gerações futuras, de naturezas que não sejam suficientemente altruístas, diminuindo assim o egoísmo médio. Numa palavra, cada espécie se purifica continuamente dos indivíduos em excesso egoístas, e perde os indivíduos em excesso altruístas. Assim como há um progresso insensível do altruísmo familial inconsciente para o altruísmo familial consciente da espécie mais elevada, assim também ha um progresso gradual do altruísmo da família ao da sociedade. Examinemos agora os diversos motivos por que sob as condições sociais, o bem-estar individual depende da consideração legitima pelo bem-estar de outrem. A plenitude das satisfações egoístas, no estado social, dependendo, primeiramente, de manter-se a relação moral entre os esforços dispendidos e os benefícios obtidos, relação que é a base de toda a vida, implica um altruísmo que ao mesmo tempo inspira uma conduta equitativa e força a estabelecer a equidade. As satisfações egoístas de cada um dependem, em grande escala, primeiro da sua própria justiça, segundo de que ele faça executar a justiça entre os outros, e terceiro de que ele mantenha e aperfeiçoe os órgãos pelos quais a justiça se administra. Mas a identificação da vantagem pessoal com a dos seus concidadãos vai mais longe ainda. Tudo o que contribui para o seu vigor interessa-o, porque diminui a despesa do que ele tem de adquirir. Tudo o que o livra da doença diz-lhe respeito, porque a tendência para adoecer é por isso diminuída. Tudo quanto lhe eleva a inteligência diz-lhe respeito, porque diariamente sofre os inconvenientes que a ignorância ou a doidice de outrem lhe produz. Tudo o que lhe eleva o caráter moral diz-lhe respeito, porque a cada passo é vítima da falta de consciência da média dos que o cercam. Ainda mais diretamente, as suas satisfações egoístas dependem das atividades altruístas que provocam as simpatias dos outros. O egoísta, antipático aos que o rodeiam e perdendo o auxílio gratuito que eles lhe podem prestar, priva-se dum vasto domínio de prazeres socais, e não recebe estas exaltações da alegria e estas suavizações da dor, próprias da simpatia humana. Há ainda outros casos em que o egoísmo, não modificado pelo altruísmo, é prejudicial. O egoísmo exagerado vai além do seu fim produzindo uma inaptidão para a felicidade. As satisfações puramente egoístas tornam-se menos vivas pela saciedade, mesmo no começo da vida, e quase desaparecem no declinar; as alegrias menos empolgantes do altruísmo deixam um lugar vago durante toda a vida, sobretudo na última parte, em que elas substituem em tão larga escala as satisfações egoístas; e produz-se uma espécie de insensibilidade para com os prazeres estéticos de ordem mais elevada. É fácil de reconhecer-se que esta dependência do egoísmo e do altruísmo reina para além dos limites de cada sociedade, e tende até a tornar-se universal. Á medida que a evolução social, supondo um aumento de dependência mútua, progride, a dependência do egoísmo do altruísmo também aumenta; e é um corolário o fato de que, ao passo que a dependência recíproca das sociedades cresce pelas relações comerciais, o bem-estar interno de cada uma torna-se um assunto de interesse para as outras. V - Conciliação e fim Do que fica dito vê-se claramente a necessidade dum compromisso entre o egoísmo e o altruísmo. Que aspecto deve tornar este compromisso? Como é que os direitos legítimos de cada um serão legitimamente satisfeitos? Está admitido que a felicidade pessoal, numa certa medida, se obtém assegurando a dos outros. Não poderá ser verdade, reciprocamente, que a felicidade geral poderá obter-se assegurando a felicidade individual? Se o bem-estar de cada unidade se alcança em parte pela sua solicitude pelo bem-estar do agregado, o bem-estar deste não poderá ser alcançado pela solicitude de cada unidade por ela mesmo? É claro que a nossa conclusão deve ser que a felicidade geral se deve obter sobretudo pela procura adequada da própria felicidade dos indivíduos; ao passo que, reciprocamente, a felicidade dos indivíduos deve obter-se, em parte pela procura da felicidade de todos FIM