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Trechos de livros

Leia trechos de obras, entrevistas, palestras dos principais filósofos.

Responsável - Equipe de ensino do Instituto Packter.

(10/Dez) O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro
Nesse sentido, o Brasil é a realização derradeira e penosa dessas gentes tupis, chegadas à costa atlântica um ou dois séculos antes dos portugueses, e que, desfeitas e transfiguradas, vieram dar no que somos: uns latinos tardios de além-mar, amorenados na fusão com brancos e com pretos, deculturados das tradições de suas matrizes ancestrais, mas carregando sobrevivências delas que ajudam a nos contrastar tanto com os lusitanos.
Como se vê, estava constituída já uma fórmula extraordinariamente feliz de adaptação do homem ao trópico como uma civilização vinculada ao mundo português mas profundamente diferenciada dele. Sobre essa massa de neobrasileiros feitos pela transfiguração de suas matrizes é que pesaria a tarefa de fazer Brasil.
A assunção de sua própria identidade pelos brasileiros, como de resto por qualquer outro povo, é um processo diversificado, longo e dramático. Nenhum índio criado na aldeia, creio eu, jamais virou um brasileiro, tão irredutível é a identificação étnica.

(04/Dez) Sobre a embriaguez e a arte
Para que haja arte, para que haja alguma ação e contemplação estéticas, torna-se indispensável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez. A embriaguez tem de intensificar primeiro a excitabilidade da máquina inteira: antes disto não acontece arte alguma. Todos os tipos de embriaguez, por muito diferentes que sejam os seus condicionamentos, têm a força de conseguir isto: sobretudo a embriaguez da excitação sexual, que é a forma mais antiga e originária de embriaguez. Também a embriaguez que se segue a todos os grandes apetites, a todos os afetos fortes; a embriaguez da festa, da rivalidade, do feito temerário, da vitória, de todo o movimento extremo; a embriaguez da crueldade; a embriaguez da destruição; a embriaguez resultante de certos influxos meteorológicos, por exemplo a embriaguez primaveril; ou a devida ao influxo dos narcóticos; por fim, a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade sobrecarregada e dilatada. O essencial na embriaguez é o sentimento de plenitude e de intensificação das forças. Deste sentimento fazemos partícipes as coisas, constrangemos a que participem de nós, violentamo-las, idealizar é o nome que se dá a esse processo. Libertemo-nos aqui de um preconceito: o idealizar não consiste, como se crê comumente, num subtrair ou diminuir o pequeno, o acessório. Um enorme extrair os traços principais é, isso sim, o decisivo, de tal modo que os outros desapareçam ante eles.

Crepúsculo dos Ídolos, de Friedrich Nietzsche

(03/Dez) Para uma crítica da economia política, de Marx
A arte grega supõe a mitologia grega, quer dizer, a natureza e as formas da sociedade, já elaboradas pela imaginação popular, ainda que de uma maneira inconscientemente artística. São estes os seus materiais. A arte grega, portanto,não se apoia numa mitologia qualquer, isto é, numa maneira qualquer de transformar, ainda que inconscientemente, a natureza em arte (a palavra natureza designa aqui tudo o que é objetivo, e portanto também a sociedade). De modo nenhum a mitologia egípcia poderia ter gerado a arte grega; nem poderia ter gerado uma sociedade que tivesse alcançado um nível de desenvolvimento capaz de excluir as relações mitológicas com a natureza exigindo do artista uma imaginação independente da mitologia.

Trata-se de uma mitologia que proporciona o terreno favorável ao florescimento da arte grega.

Por outro lado: será Aquiles compatível com a idade da pólvora e do chumbo? Ou, em resumo, a Ilíada com a imprensa, ou melhor, com a máquina de imprimir? O canto, a lenda, as musas, não desaparecerão necessariamente ante a barra do tipógrafo? Não desapareceram já as condições favoráveis à poesia épica? No entanto, a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopeia estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social; está sim no fato de nos proporcionarem ainda um prazer estético, e de serem para nós, em certos aspectos, uma norma e até um modelo inacessíveis. Um homem não pode voltar a ser criança, a não ser que caia na puerilidade. Porém, não é verdade que é sensível à inocência da criança, e que, a outro nível, deve aspirar a reproduzir a sinceridade da criança? Não é verdade que o caráter de cada época, a sua verdade natural, se reflete na natureza infantil?

Por que motivo então a infância histórica da humanidade, o momento do seu pleno florescimento,não há de exercer o encanto eterno, próprio dos momentos que não voltam a acontecer? Há crianças deficientemente educadas, e crianças que crescem demasiado depressa: a maior parte dos povos da antiguidade incluíam-se nesta categoria. Os Gregos eram as crianças normais. O encanto que encontramos nas suas obras de arte não é contrariado pelo débil desenvolvimento da sociedade em que floresceram. Pelo contrário, é uma consequência disso; é inseparável das condições de imaturidade social em que essa arte nasceu - em que só poderia ter nascido - e que nunca mais se repetirão.

(03/Dez) Baudelaire, sobre contrastes
O vinho exalta a vontade, o haxixe aniquila a vontade. O vinho é um sustento para o corpo, o haxixe, uma arma para o suicídio. O vinho torna as pessoas boas e amistosas. O haxixe isola. O vinho significa trabalho duro, ao passo que o haxixe é um sinônimo de preguiça. Por que estranha razão há de alguém suportar a maçada que é trabalhar, lavrar a terra, escrever, enfim, fazer o quer que seja, se, com uma fumaça, pode alcançar o paraíso? O vinho é para as pessoas que trabalham e que merecem bebê-lo. O haxixe pertence à categoria dos prazeres solitários; foi feito para o ocioso infeliz. O vinho é útil, produz resultados frutíferos. O haxixe é inútil e perigoso.

Charles Baudelaire

(01/Jun) sobre cuidar o pensamento, com Dante Alighieri
Pois, ao excelso desejo se acercando,
A mente humana se aprofunda tanto
Que a memória se esvai, lembrar tentando.

Os tesouros, porém, do reino santo,
Que arrecadar-me pôde o entendimento,
Serão matéria agora de meu canto.

Faz-me neste final cometimento,
Bom Febo, do teu estro eleito vaso,
Que tenha ao louro amado valimento.
...
Por várias portas surge refulgente
A lâmpada do mundo; mas daquela,
Onde orbes quatro brilham juntamente.

(01/Jun) A Condição Humana, de Hannah Arendt
Se o homem soubesse que o mundo acabaria quando ele morresse, ou logo depois, esse mundo perderia toda a sua realidade, como a perdeu para os antigos cristãos, na medida em que estes estavam convencidos de que as suas expectativas escatológicas seriam imediatamente realizadas. A confiança na realidade da vida, pelo contrário, depende quase exclusivamente da intensidade com que a vida é experimentada, do impacte com que ela se faz sentir.

Esta intensidade é tão grande e a sua força é tão elementar que, onde quer que prevaleça, na alegria ou na dor, oblitera qualquer outra realidade mundana. Já se observou muitas vezes que aquilo que a vida dos ricos perde em vitalidade, em intimidade com as «boas coisas» da natureza, ganha em refinamento, em sensibilidade às coisas belas do mundo. O fato é que a capacidade humana de vida no mundo implica sempre uma capacidade de transcender e alienar-se dos processos da própria vida, enquanto a vitalidade e o vigor só podem ser conservados na medida em que os homens se disponham a arcar com o ônus, as fadigas e as penas da vida.

(10/Mar) O Jogo das Contas de Vidro, Hermann Hesse
Somos, fluindo de forma em forma docilmente:
Movidos pela sede do ser atravessamos
O dia, a noite, a gruta e a catedral

Assim sem descanso as enchemos uma a uma
E nenhuma nos é o lar, a ventura, a tormenta,
Ora caminhamos sempre, ora somos sempre o visitante,
A nós não chama o campo, o arado, a nós não cresce o pão

Não sabemos o que de nós quer Deus
Que, barro em suas mãos, conosco brinca,
Barro mudo e moldável que não ri nem chora,
Barro amassado que nunca coze

Ser enfim como a pedra sólido! Durar uma vez!
Eternamente vivo é este o nosso anseio
Que medroso arrepio permanece apesar de eterno
E nunca será o repouso no caminho

(06/Abr) A respeito das falsas personalidades sociais
O ator acaba por não deixar de pensar na impressão causada pela sua pessoa e no efeito cênico total, até por ocasião da mais profunda mágoa, por exemplo, mesmo no enterro do seu filho; chorará ante o seu próprio desgosto e respectivas exteriorizações como sendo o seu próprio espectador. O hipócrita, que desempenha sempre um mesmo papel, acaba por deixar de ser hipócrita. ...A profissão de quase toda a gente, até do artista, começa com hipocrisia, com uma imitação a partir do exterior, com um copiar de aquilo que é eficaz. Aquele, que traz sempre a máscara das expressões fisionômicas amistosas, tem de acabar por adquirir poder sobre as disposições anímicas benévolas, sem as quais não é possível forçar a expressão da afabilidade - e, finalmente, por seu turno adquirem estas poder sobre ele: ele é amistoso.

Friedrich Nietzsche em Humano, Demasiado Humano

   

Como referenciar: "Trechos de livros" em Só Filosofia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2024. Consultado em 18/04/2024 às 19:30. Disponível na Internet em http://sofilosofia.com.br/trecho.php?pg=2