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Entrevista

  (06/Ago)

Entrevistando o filósofo José Maurício de Carvalho

 
Entrevistando o filósofo José Maurício de Carvalho

Responsável - Will Goya


José Maurício de Carvalho é natural de São João del-Rei (MG), onde nasceu a 13 de julho de 1957. Graduou-se em três cursos universitários: Filosofia, Pedagogia e Psicologia pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras (Faculdade da Congregação Salesiana) que deu origem à Universidade Federal de São João del-Rei. É Especialista e Mestre em Filosofia (UFJF), Especialista em Filosofia Clínica pelo Instituto Packter, de Porto Alegre, e Doutor em Filosofia pela UGF - Rio. Em 1982 iniciou sua carreira como Professor Universitário e em 1987 entrou para o Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ onde, em 1997, tornou-se Professor Titular, por Concurso Público. Como bolsista da FAPEMIG fez estágio de Pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa (1994), Portugal e, posteriormente, no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (2000-2001). Desde o ano 2000 orienta bolsistas de Iniciação Científica do CNPq, em seus projetos de pesquisa. Organizou e foi assessor científico de vários congressos, simpósios e colóquios. Integra o Conselho Editorial das Revistas Paradigmas (CEFIL-UEL), da Revista Crítica (UEL), Educação e Filosofia (UFU) e Anais de Filosofia e Vertentes (UFSJ). Na UEL integra o corpo de consultores da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. É membro da Academia de Letras de São João del-Rei, do Instituto Brasileiro de Filosofia (SP) e do Instituto Luso Brasileiro de Filosofia (Lisboa). Escreveu quinze livros, alguns com várias edições, elaborou muitos capítulos de variada obra, tem setenta artigos publicados em revistas de Filosofia, além de mais de sessenta resenhas na área. Escreveu ainda outros quarenta trabalhos publicados em Atas de encontros de natureza científica.


Professor José Maurício, do que trata seu livro mais recente O Homem e a Filosofia ?

José Maurício - O livro reúne meditações sobre a existência e a cultura, que agora aparecem em segunda edição pela EDIPUCRS. Nele expressamos nosso entendimento de que a Existência é categoria fundamental para falar do homem de hoje. A Cultura é o ponto de partida da Existência e o produto das ações humanas. Não se pode falar de uma existência humana fora da situação em que ela se desenvolve e a situação em que ela ocorre é a cultura. A cultura se forma com os valores que o homem criou no decorrer de sua história. Parece-me que a existência humana entendida como roteiro único e temporal, apenas é fecunda quando pensada num horizonte cultural, do qual emerge e modifica. Esse processo tem pontos específicos que procurei evidenciar na obra.
Ao aproximar existência e cultura não o fizemos na expectativa de estabelecer uma síntese eclética, mas reconhecendo ser a liberdade um aspecto fundamental para entender o homem. Ela, contudo, só é liberdade humana se se realiza num espaço específico de valores e na história. A liberdade do homem não é uma possibilidade absoluta ou indeterminação infinita, é o exercício de escolhas contra a natureza bruta e sua lógica num certo tempo. Mesmo sem tratar a vida como indeterminação absoluta como fez Jean Paul Sartre (1905-1982), não acreditamos que a existência perca o caráter dramático. Vivemos nossas dores, experimentamos diversos riscos, somos mortais, nossos limites estão sempre conosco. Nossa vida se realiza numa certa circunstância. Para nós o modo de ser do homem se manifesta no interminável processo de renovação das gerações. O sentido da Existência humana se revela tanto no drama que brota da vida pessoal, pois temos uma singular história de vida, quanto dos problemas da nossa geração como o desafio ecológico.


Em certa canção Renato Russo, ele mesmo um notório solitário, disse: "digam o que quiserem, o mal do século é a solidão..." Para você, existiriam alguns filósofos ou problemas filosóficos que hoje são mais importantes ou mais urgentes que outros, ou a questão fica ao gosto e interesse de cada um?

José Maurício - Entendo que os grandes momentos da história humana privilegiem certas questões, bem como formem tradições nacionais. Tudo isto precisa ser, contudo, tomado pelo sujeito como problema próprio, a merecer estudo e aprofundamento.
Examinemos a historicidade dos problemas. Conforme disse no livro que você anteriormente mencionou, O Homem e a Filosofia (2007), a história do pensamento seguiu uma trilha singular. Ali reproduzimos um episódio que vale a pena recordar aqui a título de ilustração. Conta-se que os anglo-saxões, da Nortumberlândia, estavam diante de um emissário do Papa Gregório Magno por volta do ano 620 da era cristã. O rei Eduíno estava muito apreensivo em relação à nova doutrina quando um de seus conselheiros apresentou-lhe as seguintes considerações: Vamos considerar que num dia muito frio de inverno vossa majestade esteja banqueteando com seus convidados. Repentinamente um pássaro entra na sala aquecida e iluminada, mas logo volta para o frio de fora. Esta passagem do pássaro assemelha-se à nossa vida, não sabemos o que a precede e o que a segue. Esta passagem é citada no Catecismo dos Bispos da Holanda, edição de 1974. O sábio conclui que a mensagem cristã tem algo a dizer disto que a experiência humana não é capaz.
Vamos deixar fora a questão da fé religiosa e centremos nossa atenção no pássaro da história acima mencionada. Imaginemos que enquanto percorre a sala iluminada do palácio ele pudesse estar pensando. O que ele iria pensar? Primeiro ele descobre que é inútil tentar esclarecer, naquele momento, o que experimentava antes ou tentar antecipar o que virá depois; em seguida compreende que o que ele vislumbra naquele momento não é tudo o que existe, pois muito fica fora de sua capacidade de representação, entende que aquilo que ele supõe ser tudo o que há é apenas a representação momentânea do que verdadeiramente há. Continuando o seu vôo e a pensar, o pássaro descobre-se criador da representação, percebe, também, que ela não se deve unicamente aos seus sentidos e, finalmente, que tudo aquilo que experimenta é o mundo que ele criou ao mergulhar em direção à luz. O conhecimento filosófico tem a ver com seu modo de ser e dele não se separa. O problema do que podemos conhecer acabou voltando suas atenções para o homem. Este é o objeto atual a merecer nossa atenção, esclarecer o que é o homem para entender, como resumiu Kant, o principal que a Filosofia buscou, o que podemos saber, o que devemos fazer e o que nos é lícito esperar.
Os filósofos contemporâneos procuram compreender a condição do homem elegendo-a tema central. Na medida em que percebem que não podem continuar a pensar o cosmo separado do existente, descobrem um novo caminho para a Filosofia. Esta trilha está se mostrando fecunda à medida que vai sendo explorada. A novidade começou com Kierkegaard, pois para ele a Existência não pode estar vinculada à essência universal. O existente é alguém concreto e individual, sendo que é a partir dele que a realidade do mundo deve ser considerada. A Existência tornou-se, a partir deste marco singular, a condição fundamental para tematizar o ser e para pensar sobre o que é verdadeiramente importante.


O senhor que já estudou, lecionou e escreveu sobre tantos pensadores clássicos, como avalia sua própria história pessoal de amadurecimento filosófico?

José Maurício - A maneira como pensamos a Filosofia amadureceu no diálogo com alguns pensadores brasileiros. Queremos lembrar Miguel Reale (nascido em 1910) e Djacir Menezes (1907-1966), herdeiros do legado culturalista de Tobias Barreto (1839-1889). Com eles aprendemos que os valores culturais, tecidos no decorrer da história, estão na base da Existência concreta dos homens. Eles revelaram, ainda, que tais valores, com o passar do tempo, acabam assumindo objetividade universal e se manifestam, na tessitura existencial, como se inatos fossem. O culturalismo incorporou a tarefa de pensar a existência e o significado do sentido de uma vida singular na cultura. Miguel Reale vislumbrou este desafio, mas explorou pouco a questão. Procuramos levar adiante este que nos parece o desafio atual dos culturalistas.
Com a geração posterior de culturalistas brasileiros, na qual realçaria as contribuições de Antônio Paim (nascido em 1927) e Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999), igualmente aprendemos coisas importantes. O primeiro ensinou-nos que o Culturalismo é uma filosofia voltada para esclarecer o modo de ser do homem. O segundo revelou-nos que a Existência humana, ainda que vista de modo predicativo, e mesmo quando se objetiva em criações magníficas como, por exemplo: a arte, a ciência, a filosofia e a religião, não deixa de ser povoada pelo caráter dramático. Maciel de Barros ocupou-se da existência concreta e a tratou como tal. Acabou deixando a escola Culturalista, mas nos legou uma obra filosófica das mais significativas da filosofia brasileira.
Da grande tradição universal da filosofia alguns autores sempre estiverem presentes nossas leituras e influenciaram a forma como pensamos a meditação filosófica, destacaria inicialmente Emmanuel Kant (1724-1804), Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Edmund Husserl (1859-1938). Nos últimos anos três outros autores se tornaram especialmente importantes, especialmente porque repensaram problemas deixados pelos clássicos da filosofia alemã: o espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), o alemão Karl Jaspers (1883-1969) e o português Delfim Pinto dos Santos (1907-1966). O que considero o mais importante em cada um deles?
Ortega y Gasset ensina que a vida é o fato radical, o mais importante, aquele no interior do qual todos os demais ocorrem. Tudo o que não é a vida de cada qual é uma realidade que deriva dela. A vida é o fundamento último do mundo. A vida é a raiz de tudo, ela é o fundamento como já foi o ser e o pensamento, ou melhor: a filosofia de Ortega apresenta a existência de cada homem como fato radical, quer estar à altura das anteriores teses fundamentais da filosofia ocidental: o ser é coisa (realismo) e o ser é pensamento (idealismo). Daí decorre a existência ser sempre uma jornada única e singular. Esta é uma descoberta fundamental que assumimos, nossa vida nos é dada, mas não é dada pronta. Esta vida é uma realidade circunstanciada. A cultura representa parte fundamental do que chamamos circunstância.
Karl Jaspers nos ajudou a diferenciar a fenomenologia como filosofia existencial e como método. O seu interesse pela fenomenologia advém de sua condição de médico psiquiatra. Muitos filósofos entenderam que o método criado por Husserl permitia estruturar base conceitual sólida capaz de servir de fundamento para as ciências humanas. Os estudiosos da psicologia humana buscavam um tal fundamento como Jaspers notou. Ao estudar a obra de Jaspers considerei-a fundamental para a filosofia contemporânea. No livro Filosofia e psicologia procurei indicar que Jaspers entende que o existencialismo deita raízes no próprio nascedouro da filosofia, não se limitando, portanto, ao que emergia no seu tempo. Na reflexão de Jaspers a existência humana passa a ser a perspectiva pela qual toda a filosofia do Ocidente é revista, revisada, examinada. O método por ele adotado provém da fenomenologia, que lhe permite estabelecer o seguinte princípio: A reflexão sobre o real revela que, além da linguagem e do que pode ser objetivamente conhecido, isto é, a verdade científica, há uma realidade inexprimível, impensável e irredutível à experiência. Jaspers usa o conceito de "englobante" para se referir a ela e, ao mesmo tempo, assegurar a integração dos diversos planos do saber. Enfim, interessou-me de Jaspers o entendimento da existência como conceito amplo a partir do qual é possível pensar toda a história do pensamento humano e o uso da fenomenologia como fundamento para os estudos da psicologia humana. De um lado, ele procura fazer, a partir da fenomenologia, a mais exata descrição possível dos fatos psicológicos e assegura o caráter de cientificidade dessa investigação; de outro, constata que a dimensão existencial de terapeuta e de quem o procura devem ser considerados no processo.
Delfim Santos nos coloca em contato com o entorno a nós como existentes. O ponto de partida da reflexão filosófica é o reconhecimento de que algo existe. O que transcende a consciência é o que ele denomina mínimo ontológico. Com este entendimento crítico dos limites da consciência entende Delfim Santos manter-se fiel à herança fenomenológica de Husserl, o pensamento é sempre pensamento de algo. Tomado como ponto de partida, a intencionalidade é aspecto fundamental da fenomenologia, como lembra o orteguiano Julian Marías (2004): "Toda consciência é consciência de e o estudo da consciência inclui, (...), o de suas significações e de seus objetos intencionais" (p. 459). A noção de subjetividade fenomenológica se modifica em relação ao que fora pensado por Descartes, o eu não é substância separada das coisas. Essa conclusão só é possível porque se admite algo fora da consciência que nela aparece como isso, o que representa um passo adiante do idealismo, pois os conceitos com que o pensamento opera deixam vislumbrar, na maior parte dos casos, a sua origem prática e referente a algo fora da consciência. O mínimo ontológico expressa o reconhecimento de Delfim Santos de que não é possível reduzir tudo à consciência. As dificuldades de enquadrá-lo como objeto da consciência não autoriza excluí-lo como inexistente, como fez o idealismo. Pelo que a história do pensamento, notadamente as considerações de Kant nos deixaram, temos que conviver com o fato de que nem tudo é cognoscível, mas nem por isto pode-se deixar de lado como inexistente o que não é pensamento. Considero que este é o espaço que a cultura deve ocupar e que ficou sugerido em sua meditação.


Pessoalmente, como é que o senhor se situa do ponto de vista político?

José Maurício - Ao reconhecer a vida de cada um como uma história única e singular e tomar o homem concreto como o ponto de partida para se chegar ao conhecimento do mundo e a formulação da cultura não poderia deixar de me considerar um liberal. O problema, contudo, não se resume a tal classificação. O liberalismo é um movimento amplo e possui correntes importantes. Concordo com a recente análise de Antônio Paim na terceira edição de seu livro O liberalismo contemporâneo de que há um liberalismo social. Para mim a questão remonta a uma reflexão sobre o liberalismo que ganha força em nossa história, embora apareça na análise de filósofos como Ortega y Gasset. No Brasil quero lembrar a contribuição de Tancredo Neves que resumimos em nosso livro O pensamento filosófico e político de Tancredo Neves. Foi a este liberalismo vivido num Estado com preocupação social que também chegou Miguel Reale no final de sua vida. Trata-se de respeitar o mercado como agente de produção de riquezas, reservando ao Estado o papel regulador da vida social e articulador de políticas sociais importantes. Portanto estou distante da onda conservadora que ganhou força no liberalismo nos últimos anos que diminuiu a responsabilidade do Estado nas políticas públicas. Penso que cabe ao Estado levar adiante políticas públicas que assegurem maior igualdade de oportunidades para os cidadãos, além de tratá-los com respeito. Eis o que penso fundamental como desafios para o Estado hoje: gerir com eficiência os impostos recolhidos e gastá-los responsavelmente, proteger o patrimônio natural sobre o qual exerce soberania, garantir uma política básica de saúde para os seus cidadãos, ter uma boa escola pública em todos os níveis inclusive o universitário, garantir uma justiça eficiente e a segurança pública interna e externa, agir como fiscalizador eficiente quando distribuir concessões para a iniciativa privada como nos casos da telefonia e reduzir a burocracia no tratamento com as empresas e cidadãos.


Como o senhor situa o velho problema da definição do conceito de Filosofia?

José Maurício - Discutir o conceito de Filosofia é tema recorrente entre os filósofos porque o conceito que se tem de Filosofia interfere na forma de pensar filosoficamente por isto este é um problema que se renova para todos os que querem filosofar. Para nós a Filosofia é uma forma de pensar a existência, de tratar o sentido do mundo e de nossa presença nele. A meditação filosófica nasce de uma realidade própria homem, de uma experiência de estranhamento diante do mundo, pois o homem existe indagando diante das coisas. Não há também um filosofar fora de um explícito comprometimento com o que nos toca quando somos obrigados a julgar e fazer escolhas.
Historicamente, este saber que denominamos Filosofia nasceu na Antiga Grécia como estratégia de superação dos mitos. Ela começou misturada com a mitologia e com a cosmogonia. Por esse motivo os historiadores da filosofia associam a sua gênese às imprecisões dos mitos cosmogônicos de Hesíodo (séc. VIII a.C.) e Ferécides. O período mais importante desse momento original parece ser, contudo, o séc. V a.C., naquilo que se convencionou chamar de momento socrático, pois a anterior procura de um arquétipo racional para explicar e fundamentar a totalidade do real é mais exigência religiosa, ainda vinculada à disputa e afirmação frente aos mitos. O perfil da filosofia se desenhou mesmo a partir do século V a C.
O que ocorreu na experiência social dos gregos por volta do século V a.C.? Um esplendor de criatividade, momento de paz, prosperidade e confiança na democracia, marca do século de Péricles (495-429 a.C.). A vida política dos gregos sugeriu-lhes que os rumos da existência coletiva deviam ser decididos em conjunto, por todos os cidadãos. É verdade que o estreito conceito de cidadania que os gregos ostentavam não incluía todos os habitantes da cidade, deixava fora: mulheres, estrangeiros e escravos. De todo modo, foi um grande avanço em relação à prática política das teocracias guerreiras e monarquias autoritárias que, como forma de organização política, antecederam a Polis grega. Foi um avanço extraordinário considerar que o debate dos problemas de interesse coletivo pudesse ser realizado pelos cidadãos nas praças da cidade. A necessidade de explicar, naquele contexto, o próprio ponto de vista e defendê-lo perante as pessoas estimulou os gregos a se prepararem para defender as próprias idéias. Para aprender a fazê-lo, contrataram mestres (sofisté), que ensinavam a defesa das opiniões, geralmente de forma brilhante, mas sem qualquer comprometimento com a verdade e coerência. Por esse motivo, os sofistas perderam prestígio social, e sofisma passou a designar a argumentação apenas aparentemente correta. A razão é que os Sofistas falavam sobre tudo, sem a preocupação de explicar com clareza e objetividade o que diziam. Martin Heidegger (1999) relata um episódio esclarecedor do perfil dos Sofistas. Sócrates encontrou-se com um deles que regressava das conferências que ministrara na Ásia Menor. O Sofista vendo Sócrates perguntou: "Ainda continuas sempre às voltas na rua e a falar sempre do mesmo? Com efeito, respondeu Sócrates, eu faço isso; tu, pelo contrário, com as tuas constantes novidades, não és de todo capaz de dizer o mesmo acerca do mesmo" (p. 113/4).
A conclusão de Heidegger é que filosofar é dizer o mesmo de algumas poucas coisas. Para nós o principal deste episódio é que Sócrates chama atenção para a necessidade de viver um pacto com a verdade, fugindo da comodidade e da falta de compromisso com o que o homem de melhor pode produzir. Este compromisso é difícil, muitas vezes ao longo da história dos homens a dissimulação prevaleceu e a mentira se sobrepôs à racionalidade.
Desde sua origem a Filosofia vive às voltas com a corrupção do pensamento. Essa ameaça original nunca a abandonou. Sócrates (470-399 a.C.) chamou atenção para a importância de preparar as pessoas não apenas para aprender a discutir, mas para fazê-lo no espírito da sabedoria. Sabedoria é, ele esclarece, uma forma de tratamento dos juízos, de explicação da realidade. A maiêutica, o método que ele criou para ensinar a filosofar, permitia aos aprendizes definir com precisão o objeto do debate. A Filosofia aparece, desde então, como uma forma de explicar racionalmente o mundo, e a sabedoria filosófica tornou-se estratégia para lidar com a argumentação mendaz. Através dela é possível rejeitar as explicações sem rigor conceitual, pode-se contraditar os poderosos sem escrúpulos e os inescrupulosos sem poder. A sabedoria ensinada por Sócrates é uma forma de racionalidade que propicia o desenvolvimento do espírito crítico, justamente por isso ele foi condenado a beber cicuta. É que ensinar a pensar é uma ameaça a ordens sociais injustas e aos privilégios dos poderosos, considerado conduta desviante pelos governantes, quase sempre, punível com a morte.
A Filosofia teve várias definições ao longo da história do ocidente, aquela que melhor traduz o espírito que Sócrates lhe imprimiu a apresenta como uma amizade pela sabedoria que se exprime pelo pensamento.
A Filosofia mudou a vida dos gregos desde quando começou a ser praticada e exigiu que se distinguissem as explicações racionais dos ideais éticos, embora ambas as formulações concorressem para aquele objetivo socrático de construir a racionalidade do mundo. A Filosofia mudou a sociedade em que se desenvolveu e se tornou crescentemente importante em nossa cultura.


Especialista em história da filosofia brasileira, como o senhor avalia a tão divulgada opinião de que não há legítima filosofia brasileira? De que tudo o que produzimos até agora se deve antes aos comentários - ainda que ricos e originais -, das filosofias americanas e européias?

José Maurício - Considero que esta seja uma questão já superada em nossos dias. Quando falamos de uma filosofia brasileira não rejeitamos que a filosofia pretenda constituir um discurso universal sobre os problemas. O que conhecemos hoje da filosofia brasileira indica que formulou contribuições importantes para a grande tradição universal. Esta é uma discussão que tem algum tempo. A origem dessa preocupação pode ser identificada nas filosofias de Herder, Kant e Hegel. Historiadores e estudiosos da Filosofia do século XX empregam esse entendimento na exposição de suas idéias.
Entre os contemporâneos que se envolveram com a questão queremos lembrar: Alexandre Morujão (nascido em 1922), Antônio Bráz Teixeira (nascido em 1936), Eduardo Silvério Abranches de Soveral (nascido em 1927), Francisco da Gama Caieiro (1928-1994) e Joaquim de Carvalho (1892-1958), em Portugal; Antônio Heredia e José Luiz Abellán, na Espanha; Horácio Guldberg e José Gaos (nascido em 1900), no México; e Miguel Reale (nascido em 1910), Leonardo Prota (nascido em 1930), Ubiratan Borges de Macedo (nascido em 1936), Antônio Paim (nascido em 1927) e Ricardo Vélez Rodríguez (nascido em 1943), no Brasil.
Para estes pensadores a filosofia moderna ganha um perfil singular pelo fato de ser elaborada numa certa tradição cultural. Que argumentos trouxeram ao debate? De modo geral, os adversários dessa posição, entendem que a Filosofia não adquire qualquer característica especial por ser elaborada numa ou noutra nação. Reconhece-se que existem diferentes culturas, sabe-se que os poetas, literatos e comunidade verbal constituem uma espécie de mundivisão, a linguagem é vista como um espaço de desvendamento do ser. No entanto, explicam os adversários dessa tese, a história da filosofia se distingue das outras manifestações de cunho sociológico, histórico, antropológico e mítico. Embora os filósofos nasçam em pátrias distintas, a filosofia não tem pátria, possui um caráter universal porque cria explicações com propósito universal, valendo para todos os homens do mesmo modo. Delfim Santos, por exemplo, afirma que se é fato verificável que o produto do pensamento dos filósofos acaba incorporado ao contexto geral da cultura, mas que isto não pode ser evocado na defesa de uma filosofia nacional. Ele afirmou: "Daqui se poderia concluir que, se há filósofos portugueses, eles não expõem uma filosofia portuguesa" (Obras, 1982, v. II, p. 329). O principal dessa argumentação é que o caráter universal da filosofia não se traduz numa tradição nacional. O argumento é o mesmo que o utilizado a favor da universalidade das religiões. Nenhuma religião, ainda que tenha nascido numa certa região, entende-se como válida apenas para esse determinado povo.
Se a questão pudesse se reduzir a isso, o problema estaria resolvido desta forma. No entanto, os estudos contemporâneos revelam que há mais coisas a considerar. Vejamos, a seguir, o que foi proposto na defesa da existência das tradições nacionais que formam filosofias como a brasileira.
Para os autores enumerados acima as explicações filosóficas, ainda que não percam o propósito da universalidade, nascem em tradições específicas que lhes dão singularidade. António Bráz Teixeira, por exemplo, entende que o problema de distinguir uma filosofia única, dos múltiplos sistemas, é uma questão que está presente na Filosofia desde suas origens gregas. Em outras palavras pode-se asseverar que a existência de uma filosofia nacional é problema tradicional da própria Filosofia. Quando se fala de filosofia nacional não se está afastando o propósito universal do discurso filosófico, portanto. Universal no seu anseio e destino, a Filosofia participa, enquanto pensar do homem e do mundo, de sua própria condição de ser situado no mundo, numa pátria, numa língua, numa cultura, num culto que tipifica a existência. O caráter nacional da elaboração da Filosofia não é antagônico, portanto, nem é inimigo da universalidade. Assim, explica-nos o pensador, a Filosofia tanto é particular e única em sua raiz quanto universal no sentido de sua indagação e finalidade. E completa o seu argumento com uma alegoria muito sugestiva: "Deste modo, contrapor ao caráter nacional da filosofia a sua universalidade seria o mesmo que negar a ave o voar só por ter pernas" (Teixeira, 1997).
Bráz Teixeira afirma também que o problema das filosofias nacionais somente aparece com clareza quando se pensa a Filosofia a partir do caráter concreto da existência. A existência é sempre situada, a Filosofia, como obra do existente, herda esse aspecto. Por isso, o propósito de criar explicações universais não é antagônico à compreensão de que a Filosofia se diferencia pelos problemas que assume e pelo modo singular de os abordar. Em síntese, o que propõe encontra lastro naquilo que, a esse respeito, escreveu outro filósofo português conhecido: José Marinho. Teixeira afirma, acompanhando seu compatriota, que o desenvolvimento de uma visão autêntica da verdade se efetiva na situação concreta do homem e do pensar do homem no espaço e no tempo. Desse modo, estabelece uma aproximação entre a origem do filosofar e a circunstancialidade de seu agente no espírito do que a respeito tematizou a filosofia da existência considerar o mundo e o homem como realidades inseparáveis.
Maria Helena Varela examina as teses de Bráz Teixeira. No capítulo 9 do livro Conjunções filosóficas (2000), intitulado A filosofia no Brasil, hoje, ela descreve as dificuldades em torno do tema. Toma como interlocutor Gerd Bornheim (nascido em 1929) e Antônio Joaquim Severino (nascido em 1941). Combinou-as com as próprias observações, especialmente com a leitura pessoal da obra de Euclides da Cunha (1866-1909) e Vicente Ferreira da Silva (1916-1963), que realiza com grande inteligência.
Ao comentar a posição de Bornheim, contrária à existência de tradições filosóficas singulares, Maria Helena distingue uma filosofia substantiva de outra adjetivamente nacional. A diferença entre as nações, dissera Bornheim, é questão menor entre os europeus, mas significa muito no universo latino-americano. É entre os latino-americanos, afirma o pensador, que o problema da nacionalidade tem se colocado acima dos projetos universais. Para desembaraçar-se das observações de Bornheim e revalorizar o problema, Maria Helena segue as linhas gerais das meditações de Antônio Paim e Miguel Reale. De Paim considera a ênfase na linguagem e a criação dos estados nacionais, elementos essenciais ao entendimento do que são as tradições nacionais. De Reale ela menciona o sentido brasileiro da historicidade, "através do qual a noção de um tempo breve e de um espaço imenso parece articular-se à própria imagem de um país novo" (p. 73). Para ela as tradições nacionais não afetam o propósito de a Filosofia elaborar explicações com valor universal.
Para completar sua análise das posições culturalistas de Reale e Paim, a pensadora emprega a obra literária de Euclides da Cunha, para quem o sentir-pensar brasileiro se manifesta nos limites da concretude e positividade. A paixão é reveladora de experiências concretas de vida e traduz um estilo brasileiro, que Euclides desnuda nos seus romances. A tradição cultural, também para ela, influencia na preferência dada aos problemas e no modo de abordá-los.
Em seguida, Maria Helena apresenta as idéias de Antônio Joaquim Severino, para quem a filosofia brasileira se exprime em quatro tradições no seio das quais se desenvolvem tendências e vertentes. Ela entende ser interessante construir a história da filosofia brasileira cujas correntes identificadas são: a tomista ou neotomista, a positivista ou naturalista, a hermenêutica e a social. Nesta última manifestam-se três tendências: a dialética hegeliana, a marxista e a dialética negativa. Varela aproxima as duas primeiras, que constituem, segundo ela, a base da filosofia brasileira.
De Bráz Teixeira, Varela lembra o que ele denomina Escola de São Paulo, uma vertente especulativa orientada para o estudo da religiosidade, do sagrado, do mito, da cultura ou valores, da arte e da técnica. Os principais representantes da Escola de São Paulo são Miguel Reale e Vicente Ferreira da Silva. O diálogo deste último com Heidegger explica, para ela, a atenção que o filósofo brasileiro dedica a formas gnósicas, da imaginação sensível e supra-sensível. É também a razão das críticas que Ferreira da Silva desfere contra a opção técnico-científica do ocidente, responsável pelo ódio à vida e à natureza da presente geração. A influência germânica identificável, não oculta a singularidade de um autor que considera a racionalidade cristã e a realidade pagã contrapostas numa tensão dialética que exprime o pensar brasileiro. Um pensador que aclimata um sério dilema do ocidente, a tensão entre o mito e o logos, que ela entende ser a marca da filosofia vicentina.
As reflexões de Maria Helena dão conta de que a filosofia brasileira não se afasta da tradição ocidental e nela representa uma contribuição específica, o que é a tônica das abordagens contemporâneas. No entanto, sua proposta, apesar de reconhecer a singularidade da filosofia brasileira, não considera aspectos importantes. Ela se vale de uma visão limitada da filosofia brasileira, não acompanha a evolução do debate ao longo de quase dois séculos, não atribui aos culturalistas o destaque que tiveram no tratamento do tema, compara projetos teóricos que não têm comparação. Sua análise deixa de lado parte substancial do debate realizado nos últimos anos em torno da originalidade da Filosofia, não aprofunda a idéia de tradição cultural, que permite distinguir as filosofias nacionais. São estudos como os deixados por Joaquim de Carvalho que revelam que filosofia nacional não é categoria para tratar países latino-americanos em processo de afirmação. Ao contrário, é categoria que possibilita distinguir as principais filosofias européias e a renovar os estudos de História da Filosofia Moderna. O aprofundamento dessa questão poderá ser observado nas considerações de vários autores. A compreensão das filosofias nacionais em nosso tempo precisa considerar as posições dos brasileiros, exige um balanço do legado de Miguel Reale, Djacir Menezes, Roque Spencer Maciel de Barros, Antônio Paim, Paulo Mercadante, Ricardo Rodríguez, José Carlos Rodrigues e Leonardo Prota, entre outros. Todos contribuem para o esclarecimento do problema. Vamos nos limitar ao legado de Antônio Paim. Ele fez um exame cuidadoso dos elementos que tipificam as filosofias nacionais. Ele apresenta seu pensamento na obra As filosofias nacionais editada em Londrina pela EdUEL (1997). O que ele diz? Ele aceita o entendimento de Ortega y Gasset, para quem a filosofia é uma criação do homem circunstanciado, contudo, julga necessário ir adiante. Como avançar neste debate? Inicialmente revela os quatro pontos que utiliza para justificar o conceito de filosofia nacional. Através desses pontos, esclarece a idéia orteguiana de circunstância.
Antônio Paim principia sua explanação realçando o fato de que nem todos os pensadores são igualmente reconhecidos em todas as tradições. É também o que observam historiadores da filosofia como Rodolfo Mondolfo e Joaquim de Carvalho. Não lhe parece que isso seja um fato novo ou pouco conhecido. Ele lembra que Alexis Philonenko escreve um ensaio na célebre coleção de História da Filosofia organizada por François Chatelet, onde afirma que os franceses desconheceram solenemente as contribuições de Hermann Cohen (1842-1918) e Paul Natorp (1854-1924), apesar de serem os principais representantes do neokantismo alemão. Ernst Cassirer (1874-1954) somente foi traduzido recentemente na França, e a Escola de Marburgo não foi estudada na União Soviética. Exemplos iguais existem aos montes e é preciso explicar o motivo dessa ignorância seletiva. Para continuar o exame da questão trata a estrutura básica da Filosofia. Distingue perspectivas, sistemas e problemas e conclui que é possível organizar as filosofias nacionais pela preferência que elas atribuem a estes últimos.
Antônio Paim explica os conceitos que emprega para abordar o assunto. Perspectivas representam pontos de vista últimos dos quais Platão e Kant são os representantes mais destacados. O primeiro defende que as explicações filosóficas se baseiam em algo permanente encontrado atrás do fenômeno, o segundo que não é esse o caminho, porque não há como ter acesso ao que as coisas são em si mesmas. Irredutíveis além de si mesmas, está nas perspectivas o que há de universal na Filosofia. Os sistemas, ao contrário, são passageiros e influenciados pelas circunstâncias em que são elaborados. Os sistemas não são permanentes nem são eles os mantenedores da chama filosófica, estando a provocação filosófica nos problemas que animam o debate em todos os tempos. Paim atribui essa descoberta a Rodolfo Mondolfo (1877-1976), reconhecendo que também Nicolai Hartmann (1882-1950) atribui prevalência ao problema no curso histórico da filosofia.
Uma vez estabelecida a base teórica a partir da qual é possível se falar de filosofias nacionais, Paim explica quais são os pontos em torno dos quais é possível diferenciar uma filosofia nacional de outra. Vejamos como propõe cada um.
O primeiro é a ênfase na linguagem. Para Paim, há uma inegável relação entre as línguas nacionais e as filosofias nacionais, que ele entende tenha sido primeiramente observada por Hegel. Quando Hegel se refere ao sistema de Christian Wolff (1679-1754) comenta que uma ciência pertence a um povo quando é praticada em sua própria língua, ao que acrescentou e em nenhuma isto é tão necessário como na filosofia (Paim, 1997, p. 31). O essencial para a discussão das filosofias nacionais foi a quebra da unidade lingüística resultante da formação dos estados nacionais. Então, para Paim, as filosofias nacionais decorrem do homem haver criado uma nova forma de organização política nos tempos modernos: o estado nacional. Ele considera, mesmo à parte da impropriedade da imagem, esta relação entre filosofias e línguas nacionais como uma espécie de verdade primeira e ponto de partida para estudo do problema.
Outro elemento importante na formação das filosofias nacionais é a peculiaridade da tradição cultural. Além da percepção já mencionada no item anterior, Hegel observa que o caráter diferenciado das culturas influencia no modo como se constitui o direito. Aos poucos diversos autores culturalistas interpretaram a pista deixada por Hegel, associando a tradição cultural de cada povo com a filosofia que ele elabora. Quais as conseqüências desse fato? Os sistemas, elaborados nas diversas nações, explica Paim, somente podem ser compreendidos se tiverem como pano de fundo a cultura ocidental. Todos eles, portanto, possuem a mesma raiz. No entanto, a tradição cultural representa aqui não um estilo, por exemplo, de construção arquitetônica, ou de plantar flores. Não se trata disso. Para Paim, tradição cultural radica na própria Filosofia como expressão do modo de ser do homem. Estudando-a é possível identificar preferências no trato com as questões filosóficas, porque reflete um modo de ser associado aos valores. Inúmeros casos examinados pelo pensador ilustram o que ele quer afirmar. O sucesso do comtismo no Brasil, por exemplo, fundamenta-se na continuidade da tradição pombalina, a adesão lusitana a um certo historicismo de inspiração espiritualista, reflete, por seu turno, a presença e a força do pensamento de Joaquim de Fiori. Em outras palavras, a dinâmica simples da atividade filosófica não consegue explicar o sucesso desta ou daquela vertente e da força como ela é tratada numa ou noutra nação.
O terceiro elemento mencionado por Antônio Paim é a relação da filosofia nacional com o universal. Já no item anterior ele menciona que o pano de fundo das tradições culturais é comum. Ele volta a esse aspecto, aprofundando-o e esclarecendo. Será que a preferência por determinados temas é contraditória com o propósito de elaborar explicações universais? Ele afirma que não. Para explicar o que pretende dizer, Paim retoma a discussão empreendida por Gama Caieiro, para quem a idéia de multiplicidade e unidade sempre conviveram na Filosofia. Uma não exclui a outra. O modelo empregado é a dialética platônica. Através dela é possível operar sucessivas distinções lógicas para se chegar a um conceito superior. Gama Caieiro, valendo-se desse paradigma, afirmou que a filosofia nacional não se opõe a filosofia universal. Não se trata de apresentá-las como antagônicas, mas como alternativas. Paim aceita a argumentação de Caieiro e a aproxima da dialética da complementaridade de Miguel Reale. Na dialética da complementaridade os termos do processo não se anulam, eles permanecem irredutíveis um ao outro. A referência ao pano de fundo comum e a demonstração de inexistência de contradição lógica entre filosofia nacional e universal é o que conclui.
O último aspecto a ser considerado é a correlação entre filosofia nacional e a estrutura da filosofia. O que ele quer dizer com a assertiva? Aqui Paim examina como ocorre a criação filosófica. Ele parte das observações elaboradas por dois renomados estudiosos da história da filosofia: Jean Wahl e Rodolfo Mondolfo. O Tratado de Metafísica (1953) do primeiro chama atenção para a força dos problemas na origem da filosofia, mas a questão somente ganha profundidade com o livro Problemas e métodos de investigação na história da filosofia (1960) do segundo. A criação filosófica é entendida, por esses autores, como o enfrentamento das questões. Esse último orienta o melhor de seus esforços para identificar o problema teórico que motiva os pensadores brasileiros, tornando relativo e fazendo depender disso o diálogo que estabelecem com os mestres do pensamento universal. Para explicar como se efetiva a criação filosófica, Paim distingue diferentes níveis. O primeiro e o mais radical ele denomina perspectiva. Perspectiva traduz o ideal grego do fundamento. Os gregos, escreve, que criaram o tipo de meditação depois denominado de filosofia, queriam saber se todas as coisas poderiam ser reduzidas a um único princípio (Paim, 1997, p. 44). De início estavam procurando um elemento capaz de explicar as mudanças ocorridas no mundo da matéria. Com Aristóteles a busca do arquétipo torna-se a procura do permanente na mudança, para o que ele cria a categoria substância. No entanto, é Platão quem primeiro afirma que as mudanças da realidade material somente tem como fundamento algo além delas, algo que está subjacente ao fenômeno. Esse tipo de raciocínio Paim denomina transcendente, explicando que ele predominou até a Idade Média. A partir da Idade Moderna a preocupação passa a ser o fenômeno, isto é, dar conta da experiência. Este novo modo de conduzir a Filosofia foi denominado transcendental seguindo a nomenclatura kantiana, ele não significa a substituição da perspectiva anterior. Ao contrário, ambas as perspectivas convivem desde então. Deve-se, explica Paim, distinguir as perspectivas dos sistemas filosóficos. Esses últimos não possuem duração maior, eles sempre são superados. Ao longo da história da filosofia, pode-se observar uma multiplicidade de sistemas, conforme Hegel notou. Alguns mais outros menos influentes, contudo, sempre transitórios. Estaria a criação filosófica explicada pelas referências às perspectivas e aos sistemas?
Antônio Paim afirma que não. A criação filosófica não se esgota nos sistemas e perspectivas. O que impulsiona a elaboração filosófica são os problemas, conforme disse Hegel. Rodolfo Mondolfo escreve que os problemas permanecem, enquanto os sistemas são superados. É como reflexão em torno dos problemas que a meditação filosófica se mostra pela história afora. Para Paim, a criação filosófica somente é entendida distinguindo-se perspectivas, sistemas e problemas. A valorização dos problemas, como aspecto mais dinâmico da criação filosófica, deve ser transposta para o contexto da discussão em que foi elaborada, isto é, da correlação entre as filosofias nacionais e a estrutura da filosofia. Uma vez situada a discussão, compreende-se onde o pensador quer chegar: as filosofias nacionais se diferenciam pela preferência que dão aos problemas.
No entendimento de Antônio Paim, o estudo das filosofias nacionais nasce num tempo que superou o entendimento de que existe uma única filosofia ocidental. Esse entendimento persistiu até o século XIX, quando ainda era forte a expectativa de se edificar um sistema tão abrangente e reconhecido como o fora a Escolástica. Para além da diversidade lingüística tal sistema garantiria a unidade do pensar. Essa esperança não mais está entre nós, quer porque a última tentativa de elaborar um sistema, representada pelo momento Kant-Hegel, não teve sucesso, quer porque o desenvolvimento da ciência eliminou qualquer propósito filosófico de explicar o que é a natureza.

Chegamos ao ponto que nos interessa discutir em especial. No âmbito das filosofias nacionais, a filosofia brasileira teria alcançado maturidade, concluiu Paim. A consciência do valor da contribuição brasileira para a filosofia universal deve-se sobretudo aos filósofos culturalistas. Eles explicaram que o pluralismo é inerente à filosofia desde que esta comporta diferentes perspectivas, pelo menos duas, no seio das quais há diversas formas de estudo dos problemas. Adicionalmente a meditação culturalista, na medida em que toma a cultura como a realidade fundamental e a define como o conjunto dos bens objetivados pelo espírito na realização de seus fins últimos, coloca a investigação das tradições culturais no plano dos problemas a serem investigados. O culturalismo encontrou uma solução para o estudo do modo de ser do homem sem cair na metafísica dogmática, "significando uma contribuição valiosa ao patrimônio comum representado pela filosofia ocidental" (Paim, O pleno desabrochar da filosofia brasileira. Revista Brasileira de Filosofia. 50 (199): 386. jul./set. 2000).

Falar da filosofia brasileira significa referir-se a um procedimento especulativo singular no seio da cultura ocidental cristã. Não que exista um rompimento com o propósito de se chegar a explicações com valor universal. O que falamos é que existe uma tradição que aclimata os problemas que emergiram em nossa cultura, dando maior destaque a uns do que a outros.
A assimilação das contribuições dos filósofos precisa passar por um processo de amadurecimento, desafio renovado pelas dificuldades presentes na filosofia brasileira. Saberemos torná-las os elementos de um diálogo com outras filosofias nacionais? Essa compreensão das filosofias nacionais como um capítulo da circunstancialidade humana terá muito pouco significado se não conseguirmos nela enxergar o que é próprio de todo homem e não será verdadeiro diálogo se não olharmos as outras filosofias nacionais como uma parte de nós, uma possibilidade não vivida que completa o que nos falta. A filosofia brasileira é, assim, a reflexão filosófica feita no Brasil segundo uma determinada tradição que pensa explicações com propósito universal.


Ainda sobre a questão anterior, mais um ponto. O senhor publicou em 2005 o livro Filosofia clínica, estudos de fundamentação, abordando a atual polêmica da nova filosofia de Lúcio Packter. Considerando que a filosofia clínica, depois de percorrer centros de pós-graduação em quase todos os estados brasileiros, e já sendo objeto de atenção em cursos no exterior... na sua opinião, este é um pensamento filosófico legítimo, sério, e poderia ser considerado uma autêntica produção de filosofia brasileira?

José Maurício - Não há dúvida de que a filosofia clínica é uma criação importante e séria, mas não é uma corrente filosófica no sentido que nós usualmente consideramos uma escola ou um movimento filosófico. Portanto não a situaria como um momento da história da filosofia brasileira, nem considero que ela aborda os assuntos fundamentais que a filosofia brasileira privilegia. Ela é algo novo.
O que é a filosofia clínica? A filosofia clínica é uma nova maneira de estabelecer ajuda pessoal e foi criada por Lúcio Packter. Ao procurar um caminho próprio para o exercício da psiquiatria, Packter elaborou um novo método de fazer psicoterapia. O diferencial na técnica é que ela busca nos vinte e sete séculos de tradição filosófica elementos para entender a singularidade existencial que constitui o mundo de cada pessoa. O que ela procura na história da filosofia? Uma rica tradição de pensar a vida humana na circunstância em que ela se dá. As diferentes teorias filosóficas são justapostas sem qualquer ordem? De modo algum. A filosofia clínica reúne esse material valendo-se de compreensão própria de todo o legado cultural do Ocidente. Ela desenvolveu uma visão ampla da vida que não se fecha em aspectos específicos da existência como ocorre, por exemplo, na psicanálise, estruturada em torno do impulso primitivo da vida.
No Caderno "S", Lúcio define a filosofia clínica como "a filosofia acadêmica adaptada e direcionada à atividade clínica realizada por filósofos formados em faculdades de filosofia reconhecidas pelo MEC" (p. 1). Hoje outros profissionais estudam a filosofia clínica, mas o problema central não está nessa parte da definição. O conhecimento da tradição filosófica é um diferencial da técnica, mas, se formos rigorosos, ele deveria valer também para psicólogos, psiquiatras, pedagogos, isto é, para todos os profissionais que lidam com a alma das pessoas, todos os profissionais para quem o significado das vivências é fundamental para o êxito do seu trabalho.
O que nos parece é que a filosofia clínica é um procedimento de ajuda pessoal que busca no passado filosófico os elementos teóricos para fundamentar a relação clínico-partilhante. Sempre que estudamos o passado filosófico, constatamos que não podemos prescindir dele, mas também percebemos que não mais vivemos nele, não podemos repeti-lo. Vamos vivendo, temos novas necessidades a cada dia, isto é, os problemas que precisamos enfrentar são muito diversos dos que ficaram para trás. Quem acha possível assumir uma doutrina antiga tal como ela foi concebida não percebe que está sendo fiel ao trabalho dos grandes pensadores da humanidade. Não é razoável absolutizar teorias, porque elas deixam de responder aos novos desafios da vida e as teorias filosóficas foram elaboradas para resolver questões fundamentais do mundo da cultura. O que fazer então? A atitude consagrada pelos grandes filósofos de nosso tempo como Martin Heidegger, Karl Jaspers, Ortega y Gasset, Delfim Santos e Miguel Reale é rever a tradição filosófica a partir de um paradigma hodierno. Trata-se de ler o passado com uma lente atual atendendo às inquietações hodiernas. O que faz a filosofia clínica quando se defronta com os vinte e sete séculos de história do pensamento? Parece-nos ser o seguinte: ela faz uma retrospectiva de todo o passado filosófico, mas o traz até nosso tempo à luz de uma filosofia contemporânea, a fenomenologia existencial. Essa é uma marca da filosofia clínica. Ao empregar a fenomenologia, ela o faz orientada pelo aspecto prático da atividade clínica. Sua preocupação é ajudar quem a procura, mas a clínica, do início ao fim do processo, busca entender o sentido ou significado das experiências que a pessoa atribui às situações que ela vive no dia-a-dia, situá-la no seu mundo. Sua análise fenomenológica das formas concretas da existência permite-lhe identificar conflitos e problemas, proporcionando uma compreensão global da história de vida e da significação que o partilhante dá à própria existência. Quando este exame está completo, é possível descobrir uma relação entre a situação vivida e o sofrimento que a pessoa padece. Em seguida, através do uso dos submodos, o clínico ajuda o partilhante a lidar melhor com suas aflições e choques interiores. Quanto melhor resolvidos os choques na malha intelectiva da pessoa, quanto mais eficiente for a clínica, mais autonomia ou amadurecimento pessoal o partilhante adquire. Mesmo quando as vivências pessoais aparecem sob a forma de angústia e restrição, a pessoa consegue viver melhor se os tópicos não tiverem choques profundos, se a relação com o que se passa à sua volta não for de grande confusão. Enfrentar os choques na estrutura de pensamento e saber resolvê-los é uma experiência humana maravilhosa, pois representa um caminho de superação de si mesmo, abertura para os diversos aspectos da existência. Aos olhos de quem sabe como lidar com suas experiências, a vida é oportunidade de realização e alegria, mesmo com seus dramas.
Em síntese, como técnica a filosofia clínica pode se praticada por quem tiver sido bem treinado no procedimento, não precisa mais do que isto. No que se refere a sua justificação como saber válido, nós pensamos que é a fenomenologia que melhor a fundamenta, mas esta é uma questão aberta.


Quais as relações de proximidade e dessemelhanças que o senhor identifica entre a filosofia de Packter e a de Ortega y Gasset?

José Maurício - Comecemos recapitulando algumas coisas. A Filosofia Clínica é nome do método de ajuda criado por Lúcio Packter para ajudar as pessoas a superar choques na sua Estrutura de Pensamento (EP). Lembramos que a base da técnica é o levantamento da (EP) que resume a história de vida do partilhante. Ortega ensina que as opções de cada um dão à trajetória da sua vida um caráter singular, o filósofo clínico diz o mesmo quando afirma que a pessoa funciona desse ou daquele modo ao se referir à maneira como cada um faz suas escolhas e vai vivendo. O filósofo clínico começa a estudar a história de vida de quem o procura partindo do assunto imediato que lhe é oferecido. Ao falar do que a levou até solicitar ajuda, a pessoa mostra outros aspectos que singularizam sua vida. Por que as coisas se passam assim? Porque ela tem uma herança biológica própria, nasce num meio cultural específico, desenvolve suas emoções de forma particular, faz uma avaliação única do que está à sua volta. Cada qual elabora categorias das quais se vale para dar conta da difícil tarefa de viver e fazê-lo, se possível, com alegria e satisfação. O filósofo clínico está atento para que ao menos essa forma de ver o mundo não contemple choques na malha intelectiva da pessoa. Ortega também nos ensinou a ver a vida em circunstância, mas para ele as pessoas querem mais do que evitar choques, elas esperam conseguir a própria felicidade sendo fiéis a si mesmas e para ser fiel a si mesmo é preciso superar os choques íntimos. É claro que cada pessoa entenderá que o caminho para sua felicidade é único, próprio; porém acrescenta Ortega, os sentimentos de bem-estar e satisfação estão associados não só à ausência de conflitos, mas ao tanto que conseguimos realizar nossas aspirações íntimas. Vemos o quanto a forma de pensar orteguiana se entrelaça com o que propõe a Filosofia Clínica.
Viver não se aprende em parte alguma, não possui fórmula infalível, não tem garantia de acerto ou seguro contra falhas, diz Ortega. O resultado é que as categorias intelectuais que cada indivíduo emprega em sua vida podem levar a ambigüidades, choques e sofrimento, sugere a Filosofia Clínica. Este é o campo onde o filósofo clínico irá atuar. É diante das dificuldades relatadas por Ortega que a habilidade do clínico se revela, pois a história de vida da pessoa deve ser montada a partir do relato dela própria, sem agendamentos prévios das ações a realizar e com identificação precisa dos lapsos temporais apresentados na sua história. Conhecida essa história, inclusive as fases ou períodos que o partilhante deixou de abordar enquanto contava sua vida, é necessário montar a EP e identificar os tópicos nela presentes. O passo seguinte é ocupar-se dos choques entre esses tópicos da EP que ocorre quando, por exemplo, a pessoa entende que deve fazer algo, mas não se sente feliz ao realizá-lo. A vida do partilhante fica dividida entre uma coisa e outra. Ao mesmo tempo em que constata o choque, o clínico separa no decorrer do processo, e se for o caso, o assunto imediato da consulta inicial do verdadeiro motivo que levou a pessoa a solicitar ajuda, denominado motivo último. A descoberta dos submodos, combinação de aspectos de várias categorias que cada qual usa para enfrentar suas dificuldades, demonstra uma compreensão sofisticada da maneira como o partilhante construiu o seu mundo. Todo este método clínico é algo que se faz à parte da meditação orteguiana.
O método de Lúcio começa, portanto, com uma bem elaborada estratégia de observação clínica. Essa forma singular de organizar a história de vida do partilhante não se orienta, contudo, para fazer o diagnóstico de qualquer enfermidade mental, mas para elaborar uma completa biografia, funciona para descrever o modo como a pessoa elaborou e vive o seu mundo. Trata-se de operacionalizar aquilo que o raciovitalismo enquanto uma expressão da consciência fenomenológica afirma, cada homem é um mundo singular. Para obter tais informações, Lúcio segue a escola anglo-saxônica, tendo em conta o que ensinou Adolfo Meyer, "insistindo particularmente sobre a necessidade da biografia (ser estabelecida) pelo enfermo (melhor seria dizer o sujeito) mesmo" (Ey, Henri; Bernard, P e Brisset, Ch., 1978, p. 77). A escola anglo-saxônica prefere o relato da própria pessoa ao de "uma terceira, família, serviço social, chefe de emprego etc." (idem, p. 77), mas pode se valer dele também quando necessário.
A forma como o filósofo clínico faz esta modalidade atípica de anamnesis, denominado levantamento da historicidade do partilhante, é, como já vimos, aquele preconizado pela fenomenologia: "compreender em que consiste sua intuição clínica, uma espécie de empatia, de compreensão da intimidade do sujeito por sua experiência íntima nele mesmo" (idem, p. 77). Como procedimento "a fenomenologia trata da captação da essência dos fatos, sem violar o principal legado constituído pela tradição kantiana" (Carvalho, 2001, p. 59). A aplicação do método demanda treinamento. O contato com o mundo do outro pede o controle da afetividade e do modo de agir do clínico, o que é obtido com os ensinamentos da fenomenologia categorial. Através dela, o filósofo clínico pode trabalhar o mundo do seu partilhante, como observa Vera (1983): "Assim, como a fenomenologia de Jaspers se apóia na idéia husserliana de descrição, a fenomenologia categorial se baseia na intuição categorial" (p. 73).
A filosofia clínica é, contudo, mais do que o que foi descrito até aqui. Se fosse somente isso seria uma variação da psiquiatria e da psicologia fenomenológica, mas ela é uma técnica nova. O que ela tem de diferente é que, tendo por referência a fenomenologia, seu criador soube dialogar de modo próprio com o ensinamento milenar dos filósofos para neles encontrar os elementos necessários para compreender como cada um entende a realidade. Eis alguns exemplos: para montar a história do partilhante, o clínico estuda o conceito de tempo, entendido como duração da consciência, onde os estados se sucedem de modo ininterrupto, conforme foi elaborado por Henry Bergson. Outro exemplo, para examinar o tópico da EP denominado como o mundo aparece, o clínico vai investigar o modo como cada partilhante representa o mundo. Vimos que a questão não se prende ao que Schopenhauer considera, isto é, o entendimento que o mundo que nós conhecemos é a representação que dele fazemos, pois o que é conhecido é apresentado a cada um através de formas subjetivas. "A representação é aparência: o conhecimento do mundo como representação dele é o mundo como a nós aparece" (Sciacca, 1968, v. III, p. 64). A questão é mais complexa conforme se deu conta Husserl, o modo como o mundo aparece para mim é inseparável de meu mundo. A filosofia orteguiana ajuda a entender esta verdade que a fenomenologia ensinou, a vida se realiza numa dada situação com a qual interajo.
Em síntese podemos dizer que os elementos que tornam a vida uma experiência interessante é algo que todos procuramos. Quem anda atrás da ajuda clínica não está esperando mais do que superar aquelas situações que o impedem de viver, de superar suas dificuldades existenciais. As reflexões de Ortega fornecem indicações preciosas ao clínico. A primeira é o esclarecimento do que significa circunstância e de como o homem tem que vencê-la se não quiser sucumbir a si próprio, porque circunstância integra o seu viver. Outro aspecto é o entendimento de que a sua vida é a realidade fundamental que está na base do que o homem realiza quando domina a natureza. As considerações orteguianas são importantes para o clínico que aí pode encontrar indicações relevantes sobre como cada homem organiza seu mundo para dar curso à sua própria dinâmica. Suponho que não estará bem quem deixar de ouvir a si próprio, sua missão e suas expectativas. Assim, a meditação de Ortega é um alerta precioso tanto para quem procura ajuda clínica quanto para quem a oferece. Ortega fez também reflexões profundas sobre a unicidade e a concretude do viver. Neste aspecto suas meditações estão de acordo com o que pensam os fenomenólogos. A vida é singular pelas circunstâncias vividas, mas igualmente pelas escolhas de cada um. Para explicar o que representa essa experiência solitária, o filósofo deixou indicações preciosas, inclusive os desafios que as diferentes gerações têm de vencer para continuar vivendo. Todas essas reflexões são fundamentais ao clínico e para todos aqueles que perceberam que viver é uma arte construída sobre necessidades vitais.
A aproximação de Ortega y Gasset da fenomenologia foi um problema pouco estudado por seus herdeiros intelectuais. Eles ficaram muito impressionados quando o filósofo afirmou que havia abandonado a fenomenologia no momento que a conheceu. A frase tem o caráter de rompimento definitivo e profundo. A frase aparece no Prólogo para os alemães publicado no volume VIII das suas Obras Completas. O motivo da recusa à fenomenologia era o entendimento orteguiano que Edmund Husserl não considera o caráter executivo da consciência. Em outras palavras o problema da realidade fica no campo transcendental, na consciência. Ao retirar dela o contato com as coisas a consciência fica sem conteúdo de realidade, pois realidade não é consciência. Afirma Ortega: "o que verdadeira e autenticamente existe não é a consciência e nela a idéia das coisas, mas o homem que existe em um contorno de coisas, em uma circunstância que existe também" (p. 51).
No último Encontro Nacional de Filosofia Clínica em Vitória julgamos importante aproximar a meditação orteguiana da fenomenologia. A interpretação orteguiana da consciência fenomenológica como sendo não executiva afastou historicamente a fenomenologia do raciovitalismo, mas hoje sabemos que a consciência fenomenológica não é apenas transcendental como interpretou Ortega y Gasset, ela é também executiva, a pessoa toma decisões que vão constituindo uma história pessoal pela relação que estabelece com os outros e com as coisas. Não foge da interdição kantiana de investigar sobre a coisa em si, mas admite a relação com algo que existe em volta ao eu. Quanto à redução do conhecimento científico ao mundo vivido proclamado por Husserl, não há como deixar de ver a aproximação com o conceito de crença formulado por Ortega. Eis o que queremos dizer. O conhecimento principia na experiência, mas só é possível em função da anterioridade do existente. Esta experiência do fundamento é o campo das manifestações espontâneas naturais do viver comum que Husserl cognominou Lebenswelt. O mundo do existente é resultado de escolhas contínuas e irreversíveis que se faz sobre este chão e que se objetiva na Cultura e no saber da Natureza. Pode-se levar adiante essa compreensão formulada por Husserl no final de sua vida. Ele entendeu que a Filosofia superaria os entraves mais profundos de nosso tempo, ou seja, quando voltasse a se interessar pelo homem e pela Cultura. Vinculou Cultura aos valores, de modo a deixar bem delimitado o espaço do formalismo científico. Ao mesmo tempo orientou o principal de sua atenção para existência humana. Para Ortega y Gasset crença é a forma de traduzir a confiança inabalável na realidade do mundo, o que parece ser o sentido de confiança na relação com as coisas que Husserl quer traduzir com Lebenswelt. Em outras palavras para a fenomenologia o que as coisas são pode ser questionado teoricamente, mas o homem não vive sem elas, de modo que o questionamento teórico não distancia o homem das manifestações naturais do viver e da confiança nas coisas. Esta é uma questão que se explicita melhor na filosofia de Martin Heidegger, o homem é um ser aí em meio a coisas, mas mesmo Husserl já falara antes de Heidegger da existência humana no meio das coisas. A interpretação orteguiana não considerou esta característica da última etapa da fenomenologia de Husserl conforme demonstrou recentemente Javier San Martin Sala. Sendo possível entender a consciência intencional como executiva como afirma Martin Sala no capítulo Ortega como fenomenólogo (21-41) publicado no livro José Ortega Y Gasset (2007), podemos considerar Ortega um tipo de fenomenólogo. Sala afirma isto explicitamente. O principal do que disse Martin Sala é que em alguma medida Ortega é um fenomenólogo. Esta afirmação ratifica nosso entendimento que o estudo orteguiano da circunstância amplia o que as categorias fenomenológicas que ligam o homem ao mundo dizem.
A aproximação de Ortega do movimento fenomenológico ajuda a explicar a relação que podemos fazer entre a sua filosofia e as práticas existentes na Filosofia Clínica.


O senhor atualmente está trabalhando em outro livro? Qual?

José Maurício - Estou organizando diversos ensaios sobre Filosofia Clínica com o objetivo de aprofundar as questões levantadas em meu livro Filosofia Clínica, estudos de fundamentação (2005). Algumas questões ficaram a merecer maior aprofundamento: a fundamentação epistemológica da prática clínica, a relação da prática clínica com a linguagem, os aspectos fenomenológicos inerentes nos tópicos da EP, as contribuições da Filosofia Clínica para a educação, questões ligadas à ética profissional do filósofo clínico, comentário sobre alguns livros de filosofia clínica lançados recentemente.


Professor Mauricio, no acúmulo de suas vivências com Filosofia, o que o senhor teria a dizer para o leitor de outras formações sobre a importância da Filosofia?

José Maurício - Nossa vida tão corrida e muitas vezes com tanta coisa para ser aprendida nos dá pouco tempo para examinar assuntos que não são de nossa especialidade. Vamos tentar mostrar a alguém de outra formação porque a Filosofia nos parece essencial para todas as pessoas.
1° - A Filosofia mudou a vida dos gregos e depois toda a cultura do ocidente porque forneceu um novo instrumento para abordar o problema da existência e o sentido dela, questão fundamental para o homem em todos os tempos. Se quisermos compreender a nossa cultura, seus valores, sua forma de pensar, precisamos entender e conhecer o que os filósofos pensaram ao longo do tempo.
2° - A Filosofia nos ensina a pensar de forma autônoma. Ficou claro, desde a Grécia, que filosofar é um pensar que se faz com a própria cabeça, ainda que seus elementos, a linguagem, conhecimentos científicos, artísticos e os problemas, por exemplo, integrem a cultura de um povo. O filosofar é, neste ponto, como qualquer ação radical de criação cultural, um produto que dá forma pessoal ao que brota da experiência de um grupo. É que para irmos adiante de onde outros já foram é preciso estar consciente das dificuldades já enfrentadas, ou melhor, conhecer a forma como foram tratados, no passado, os problemas humanos. A consciência que temos dos problemas amadurece com o tempo e na própria atividade de pensar. A Filosofia, portanto, nos ajuda a pensar com nossa própria cabeça, nos ajuda a firmar uma posição pessoal frente aos grandes problemas de nosso tempo.
O confronto com as teorias filosóficas é para o homem de hoje o alimento da reflexão. Hegel nos ensinou a olhar o passado da Filosofia desta forma, ensinou a não vê-lo como coisa morta, afirmando na sua Introdução à História da Filosofia publicada na coleção Pensadores pela Nova Cultural (1988) que "o patrimônio da razão autoconsciente que nos pertence não surgiu sem preparação, nem cresceu só do solo atual, mas é característica de tal patrimônio o ser herança e, mais propriamente, resultado do trabalho de todas as gerações precedentes do gênero humano" (p. 87). Essa afirmação não quer dizer que novos problemas não surjam no âmbito da cultura, eles aí nascem, mas mesmo para tratar os novos é fundamental conhecer os antigos. Por isso, já tivemos oportunidade de comparar o estudo das teorias filosóficas com o encontro de uma fogueira fumegante por um viajante do deserto. O viajante aprende a aproveitar as fagulhas escondidas sob as cinzas, aprende a separar a cinza inútil da lenha ainda acesa e pacientemente aproveitá-la. Também nós fazemos algo semelhante com o que foi concebido como Filosofia, somos viajantes na existência, nossa vida é como uma marcha e precisamos saber tocar nos sistemas antigos para encontrar o fogo da razão que o alimentou num certo tempo. Há muitos modos de comparar a jornada histórica da razão, mas basta esta. Os acampamentos dos beduínos, que são levantados e desfeitos periodicamente, lembram o esforço das gerações de homens que andam pela história a construir o seu rumo, a sua trajetória, a fazer o seu caminho tentando entender o acampamento e o caminho.
3° - O filosofar está relacionado a uma tradição cultural que pensa os problemas. Conhecê-la é importante conhecer para entender nossa vida atual, nossos problemas e nossas possibilidades. A Filosofia emerge na Grécia e ali se desenvolveu como investigação de certos problemas, porque existiam condições para o seu florescimento. Além disso, indicamos, embora sucintamente, que novos problemas emergiram como resultado das mudanças ocorridas na cultura. A necessidade de explicar as razões de validade da ciência experimental, por exemplo, mobilizou os filósofos na Idade Moderna, estando a preocupação com a experiência associada ao surgimento e ao sucesso da ciência experimental. A filosofia moderna precisou conceituar a experiência natural porque ela era a base do novo método de estudo da natureza. Esse trabalho deu como resultado as obras magistrais de John Locke (1632-1304), David Hume (1711-1776), G.W. Leibniz (1646-1716) e Emmanuel Kant (1724-1804), para recordarmos apenas alguns autores célebres.
A Filosofia nos ajuda a entender a tradição cultural relativa ao modo como as gerações como as gerações compreendem a história humana. A dimensão pessoal da criação filosófica, anteriormente mencionada, fica assim melhor esclarecida. É que os problemas filosóficos já descritos, buscar a felicidade pessoal na participação política, ou conhecer as razões do sucesso da ciência foram, cada um a seu tempo, problemas que mobilizaram pessoalmente os filósofos.
4° - Por que a filosofia é fundamental? Ela não é supérflua porque nasce de um compromisso vital. Na Grécia, aprender a argumentar, participar da vida na pólis não foi supérfluo. O cidadão sentia o problema como essencial, não tinha como dele se livrar, sob pena de perder aquilo que o sustentava na existência, o ser cidadão grego. O mesmo se diga do homem moderno, para quem a ciência era o diferencial do seu tempo, uma nova forma de tratar a natureza que garantia a sobrevivência para uma comunidade cada vez mais numerosa.
Em cada tempo, o compromisso de pensar só é levado adiante porque toca o homem na sua humanidade, ele sente que não há como viver sem considerar seriamente o que para ele é visto como um desafio. Se assim não fosse, a Filosofia não teria sobrevivido, tantos foram os períodos da história em que a falta de estímulo para pensar eram enormes.
A filosofia em nosso século se deparou também com a existência e sua missão consistiu em esclarecer a situação do homem, em elucidar o seu modo de ser e as bases do seu viver. Aí está onde estamos, a descrição do modo de ser do homem revela uma condição singular, mostra os limites que o cercam e as suas possibilidades. O que a filosofia mostrou? Antes de tudo o significado trágico do existir. Os limites do homem foram tratados de muitos modos: circunstância, finitude, facticidade foram as formas de traduzir a ausência de justificação metafísica do homem.
Este movimento que desembocou no homem quando considerava o problema da experiência natural aconteceu também porque foi ampliado o conceito de experiência. A discussão sobre o conceito de experiência natural levou a admissibilidade da conceituação da experiência moral ou cultural. A cultura é o mundo que o homem cria a partir dos valores aos quais adere. E o que é o valor? É aquilo que preferimos em nossa existência, o que escolhemos como marca de nossa presença.
A vida humana, apesar de seu caráter trágico, tem como característica esta realidade única originada nas suas ações. Através delas a natureza se modifica, o ambiente natural é adaptado, o espaço inóspito torna-se um ambiente favorável à presença humana. Dada as características desta forma de criação ela se torna objeto de preocupação da Filosofia. Assim, os caminhos da razão contemporânea, que descobriu no homem o seu objeto, desembocam nesta forma especial de considerá-lo, isto é, através do exame daquilo que ele objetiva como próprio de sua presença no mundo.
Tendo como referência o que foi dito, podemos indagar: qual a importância contemporânea da Filosofia? Integrar a busca do sentido da existência pessoal, o conhecimento da espessura concreta do existir, na experiência cultural. A cultura, entendida aqui como concretização do que o homem é, emerge objeto privilegiado a ser desvelado. A cultura é o mundo humano à espera de elucidação e exame.
O debate sobre a inserção do homem na circunstância, a atenção aos problemas do existente concreto, o exame da trajetória da Filosofia moderna sugeriram que a filosofia ganhou um perfil singular desde então. O que melhor a caracteriza são as filosofias nacionais, entre as quais está a filosofia brasileira.
Entendemos que nossa geração tenha amadurecido a discussão sobre a cultura e simultaneamente acerca da originalidade da filosofia brasileira, entendendo que originalidade não significa um rompimento com tudo o que já se fez, ou se faz, no Ocidente sob o nome de Filosofia. Conforme dissemos anteriormente, nenhum trabalho filosófico o será de fato se não for original no sentido de inovar e explicitar o que já foi pensado, isto é, se não for adiante na compreensão dos grandes problemas que formam uma tradição cultural no ocidente. Observe-se que ir adiante em Filosofia não é idêntico a acumular informação, antes é a ampliação do entendimento, retorno, com maior densidade ao já pensado, ao que dá sentido ao nosso existir.
A compreensão da cultura como reveladora do homem nos colocou numa condição privilegiada para identificar o propósito universal do discurso filosófico. Ele se dá nos limites do mundo ocidental, que desde a modernidade vive o processo de afirmação das nações. A gênese das nações e a substituição do latim como língua culta no ocidente produziu uma diferenciação palpável entre as principais filosofias européias. Na revisão que elas procederam da herança grega vão se ampliando as diferenças que guardam entre si. Essa circunstância nos incomoda, muitas vezes nos perguntamos se o que fazemos não é uma repetição do que já foi feito em outros tempos ou por outros povos. As tradições nacionais renovaram a preocupação com a originalidade da filosofia.

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SEUS LIVROS PUBLICADOS SÃO:
1. As idéias filosóficas e políticas de Tancredo Neves (1994), Belo Horizonte, ITATIAIA.
2. Caminhos da moral moderna (1995), Belo Horizonte, ITATIAIA.
3. Situação e perspectiva da pesquisa da filosofia brasileira (1996), Londrina, CEFIL.
4. A Idéia de filosofia em Delfim Santos (1996), Londrina, EDUEL.
5. Mauá e a ética saint-simoniana (1997), EDUEL, Londrina. Tese de doutorado.
6. Contribuição contemporânea à história da filosofia brasileira (2a ed. 1999, 3ª ed. 2001). Londrina, CEFIL.
7. O homem e a filosofia, pequenas meditações sobre a existência e a cultura (1998, 2ª edição revista e ampliada em 2007), EDIPUCRS, Porto Alegre.
8. Antologia do culturalismo brasileiro; um século de filosofia (1998), CEFIL, Londrina.
9. A filosofia da cultura, Delfim Santos e o pensamento contemporâneo (1999), EDIPUCRS, Porto Alegre. Tese de Concurso para Professor Titular.
10. A vida é um mistério (1999), CEFIL, Londrina.
11. Curso de introdução à história da filosofia brasileira (2000), EDUEL, Londrina.
12. História da filosofia e tradições culturais (2001), EDIPUCRS, Porto Alegre.
13. Introdução à filosofia da razão vital de Ortega y Gasset (2002), CEFIL, Londrina
14. Filosofia Clínica, estudos de fundamentação (2005), UFSJ, São João del-Rei.
15. Filosofia e Psicologia; o pensamento fenomenológico existencial de Karl Jaspers. (2006), Lisboa: Imprensa Nacional.
     

 
 
Como referenciar: "Entrevistando o filósofo José Maurício de Carvalho - Entrevista" em Só Filosofia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2024. Consultado em 23/11/2024 às 00:10. Disponível na Internet em http://sofilosofia.com.br/vi_entr.php?id=14