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Entrevista

  (04/Jan)

Entrevista II, com o filósofo Joel Pimentel de Ulhôa

 
Entrevista II, com o filósofo Joel Pimentel de Ulhôa


Responsável - Will Goya
MINI-CURRÍCULO:

Joel Pimentel de Ulhôa (joel.ulhoa@uol.com.br)
Reitor da Universidade Federal de Goiás (UFG), 1986/1990;
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP);
Pós-doutorado: École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) , Paris, França.
Ex-professor (hoje aposentado) da Universidade Federal de Goiás, de graduação e mestrado.
Intelectual muito atuante no Brasil por meio de conferências, artigos em jornais e revistas especializadas, prefácios e apresentações de livros, participação em Bancas de Mestrado e Doutorado, em Bancas de Concurso em várias universidades do país, e outros.

PUBLICAÇÕES - LIVROS:
a) (neo)Liberalismo? - Uma introdução. Uberaba-São Paulo: Ed. Universidade de Uberaba/Editorial Cone Sul, 1999;
b) Reflexões sobre a leitura em Filosofia. Goiânia: Editora UFG, 1997;
c) A crise do Estado-providência. Tradução do original francês
La crise de l´Etat-providence, de Pierre Rosanvallon, Paris: Seuil, 1992. Co-edição: Editora UFG-Editora UNB, 1997;
d) Rousseau e a utopia da soberania popular. Goiânia: Editora UFG, 1996;
e) capítulo de livro: "Ética e Ação Política" , in Brito, Adriano Naves de, Heck José N. (organizadores), Ética e Política. Goiânia: Editora UFG, 1997, p. 175-9;


ENTREVISTA - II:

Professor Joel, estamos voltando a entrevistá-lo em razão de algumas questões formuladas por leitores da entrevista de outubro último publicada em nosso site.

Joel Ulhôa - Obrigado, Will, fico feliz com isso e estou às suas ordens.


Professor Joel, dentre as questões que nos foram apresentadas, algumas se prendem ao trabalho, propriamente dito, de filosofar. O que o Sr. pensa a respeito, lembrando o caráter teórico da filosofia, que o Sr. enfatizou tanto em sua entrevista de outubro?

Joel Ulhôa - Will, essa é uma boa questão e você terá que me permitir falar um pouco longamente sobre ela, visto que quando professor também era essa uma questão que meus alunos me propunham com freqüência.
Quanto nos referimos à filosofia, em expressões como "a filosofia de Descartes", "a filosofia de Kant", etc., o que queremos dizer? E quando dizemos: "a filosofia é estudada por um número reduzido de alunos, na Universidade", "a filosofia não é valorizada, no Brasil", "a filosofia tem uma rica historia", etc.? Embora no primeiro caso ("a filosofia de Descartes", "a filosofia de Kant", etc.) a extensão do conceito de Filosofia seja menor do que nos exemplos do segundo caso, a compreensão do conceito é a mesma. Ou seja, tanto num caso como no outro, "filosofia" quer dizer a mesma coisa, pois ela é um campo cuja especificidade já se consagrou desde a Grécia dos jônios. Em que consiste essa especificidade?
A especificidade da filosofia, de modo geral, e de uma filosofia (a de Descartes ou Kant, por exemplo), de modo particular, consiste em ser "um sistema coerentemente articulado e solidamente estruturado de conceitos e princípios teóricos, visando à explicação da essência do real e à justificativa de si mesmo pela crítica de seus próprios fundamentos".
A filosofia é isso desde as origens, e é isso na obra de cada filósofo. Assim, quando nos referimos à filosofia de um Descartes ou de um Kant, etc., ou à "filosofia no Brasil", etc., sempre queremos dizer isso. Dizer que existe uma filosofia de Descartes é dizer, de modo amplo, que Descartes produziu "um sistema coerentemente articulado e solidamente estruturado de conceitos e princípios"?.


Professor Joel, como é que isso se dá e como se explica a variedade tão grande de filosofias?

Joel Ulhôa - Na linha do que eu vinha dizendo, Will, se pode deduzir que, mudados os conteúdos dos conceitos e dos princípios, ou seja, mudada a natureza do objeto e, portanto, a natureza do sistema, temos "uma outra filosofia" ou, melhor dizendo, uma outra manifestação de filosofia. Cada filósofo cria a "sua filosofia", e a história da filosofia é constituída de "filosofias".
Um filósofo é, então, diferente de outro filósofo porque seus conceitos e princípios são diferentes, não fazendo nenhum sentido, por exemplo, uma pergunta como a seguinte: "o que quer dizer o ser, em filosofia"?. O correto é perguntar: "o que quer dizer o ser na filosofia do filósofo X"?. É freqüente, até, um mesmo termo ter vários significados na obra de um mesmo autor. A mesma palavra pode traduzir "realidades diferentes", segundo o sistema. Por isso, não nos devemos iludir com as palavras. Elas não são unívocas, em filosofia, e o que interessa é procurar saber que conceitos elas exprimem quando as empregamos. E o significado dos conceitos nós vamos buscar nos sistemas, ou seja, nas filosofias dos filósofos. Como exemplo, para esclarecer isso, lembremo-nos dos primeiros filósofos e quão diferente é, em cada um deles, o conceito de ser (em Thales, Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito, Parmênides).


Diante disso, Professor Joel, como se cria, então, uma filosofia que possa ser reconhecida como tal?

Joel Ulhôa - Face ao que vinha dizendo, Will, já podemos ter uma pequena idéia do gigantesco esforço que representa a criação de uma filosofia. Não basta que produzamos um conceito para termos criado um "conceito filosófico". Um conceito só é "um conceito filosófico" quando faz parte, de modo coerente, de uma explicação teórica abrangente da realidade, ou seja, quando faz parte de um sistema, conforme procurei definir antes. Um conceito isolado, como um cometa girando no espaço, tem, exatamente como um cometa, que se integrar numa certa ordem, num certo sistema que o sustente, atender a certas "leis", caso contrário ele se perde, sem rumo e sem direção, no infinito do sem-sentido.


O Sr. poderia esclarecer um pouco mais isso?

Joel Ulhôa - Will, o que estou tentando dizer é que, quando pretendemos defender conceitos ou propô-los como legítimos, de duas uma: ou temos já construído o nosso próprio sistema filosófico, que lhes dê sentido, e aí seríamos verdadeiramente criadores de uma filosofia - ou adotamos, depois de muito meditar e refletir, um sistema, dos muitos que constituem a historia da filosofia, para respaldar esses conceitos, legitimá-los. Sem isso, um conceito não tem "fundamento", não tem base, não tem legitimidade, não é critico, é apenas "opinião".
Daí, Will, termos que conhecer a história da filosofia, e se possível muito bem, como, aliás, a conheceram, sempre, os grandes filósofos - até para tentarmos avançar, inovar, criar. A criação, para ser racional e consciente, pressupõe a percepção da "novidade", o que implica, obviamente, que saibamos a partir do quê estamos criando ou o que estamos rejeitando.
O conhecimento da história da filosofia, no entanto, não pode ser nem dogmático - ou seja, porque "me especializo" numa determinada filosofia (num determinado filósofo) ela passa a ser paradigma, modelo da verdade, etc., com o que acabamos por negá-la enquanto filosofia, porque a transformamos num mito, vale dizer, na "palavra final" (sentido do mito) -, nem voltado para a erudição memorizativa, que nos transforma em dicionários ambulantes de doutrinas de que se sabem fazer precisas descrições. O estudo da história da filosofia tem sentido, no meu modo de entender, principalmente porque nos permite compreender como é que a filosofia se manifesta na história, ou seja, como é que, ao longo da história, a humanidade, por meio dos filósofos, vem produzindo sistemas de explicação filosófica da realidade. Isso significa estudar a gênese das filosofias, ou seja, como é que são produzidas as tentativas de soluções filosóficas para os "problemas filosóficos" que o homem vai encontrando na sua história. Em termos mais claros, isso quer dizer tentar compreender a relação que existe entre os conceitos de uma filosofia e os problemas que suscitaram a produção desses conceitos.

Professor Joel, o Sr. poderia deter-se um pouco mais sobre essa questão dos "problemas filosóficos"? Quando o Sr. fala em "problemas", o que é mesmo que o Sr. quer dizer, no caso da filosofia?

Joel Ulhôa - É preciso que nos lembremos, sempre, de que o homem não produz conceitos por acaso, e de que estes não caem do céu, num passe de mágica ou por milagre. Os conceitos são produzidos para aliviar a tensão do homem com o mundo, tensão que brota da necessidade sempre insatisfeita que o homem sente de explicar o que lhe causa espanto ou admiração (a ciência é um outro caminho). Compreender a "problematicidade" disso que espanta e admira o homem e, a partir dela, a gênese e o conteúdo dos conceitos e dos sistemas filosóficos é o que nos deve principalmente interessar no estudo da história da filosofia, porque é a partir disso que conseguimos entender melhor em que consiste a atitude filosófica e o que realmente significa refletir. Fora disso, um texto filosófico, por maior e mais notável que seja o seu autor, não é objeto muito digno de um esforço filosófico de leitura.
Cada filósofo tem a sua filosofia (refiro-me aos gênios fundadores), ou seja, o seu modo próprio de teorizar ou de explicar a realidade, de identificar problemas, de perceber a problematicidade dos problemas, de tentar deslindá-los e de organizar tudo num discurso coerente que chamamos de "a sua filosofia". O bom leitor ou o estudioso da filosofia deve procurar entender e distinguir isso, até para vir a ser, quem sabe, ele próprio, também, um privilegiado inovador, um privilegiado criador de uma nova filosofia. E nesse esforço, ele vai percebendo certas identidades, certas empatias e certas simpatias - talvez devido à natureza das questões (das questões e não propriamente dos "problemas", porque estes provavelmente variam das circunstâncias do filósofo para as circunstâncias do leitor. Por exemplo: a questão ou o tema da "liberdade" pode ser atraente para um dado leitor que, por isso, se sente interessado, digamos, em Rousseau, mas o problema da liberdade em Rousseau certamente não será o mesmo que para o seu leitor de hoje, etc.) - e ao perceber isso, ele vai, pouco a pouco, se aproximando de uma filosofia que parece poder ajudá-lo a refletir filosoficamente sobre os seus (dele, leitor, de um outro tempo e lugar) problemas. Há uma maneira de desenvolver a reflexão, um modo de caminhar, um estilo, um modo de problematizar, de cercar as questões, de sentir o mundo, etc., que o atraem e que ele, leitor, pode, com proveito, adotar, testar, experimentar, no seu tempo e lugar, no seu esforço próprio de filosofar. Isso não é "servilismo intelectual" - talvez seja modéstia, o que é altamente positivo... -, não é ingenuidade, não é dogmatismo. É sabedoria, vale dizer, é filosofia, e nos ajuda a avançar, pelo pensamento, numa atitude filosófica...

Como é que o Sr. vê a tendência, que parece tão crescente em nossos cursos de filosofia, de os que a ela se dedicam se tornarem "especialistas" em pensadores do passado?

Joel Ulhôa - Nas Universidades ensinamos Aristóteles, Platão, Descartes, Rousseau, Kant, etc. Neles nos "especializamos", e deles somos capazes de citar, para nossos alunos, frases e períodos inteiros, de cor, muitas vezes nos respectivos originais. Isso é ruim? Não, necessariamente. O ruim é pensarmos ser essa a função de um curso de filosofia, e fazermos de nossos alunos receptáculos passivos de dados. Ensina-se a história da filosofia, ensina-se o que foi produzido com o nome de filosofia, ao longo da história. O pensamento produzido e registrado nos textos, encarado como monumento, é esmiuçado nas suas articulações internas, no seu "tempo lógico", na sua estrutura. Desvia-se do campo da filosofia para o da ciência da história e, por mais belas que sejam as construções, pergunto-me se essa arquitetura teórica chega a nos pôr em condições de responder a questões simples, não obstante cruciais, como as seguintes: "o que é que eu, que estudei tanto, e tanto "assimilei", eu, que conheço as obras de tantos filósofos, o que é que eu devo fazer, e como devo fazer, para assumir a "atitude filosófica"? O que é, na prática, filosofar? O que é, e o que representa, para mim, concretamente, na prática, a filosofia? Se eu tiver que me manifestar, como filósofo - e não como sociólogo, como historiador, como psicólogo, como educador, etc., - sobre um dado assunto, como farei? O que direi? O que é um "problema filosófico"?
É conhecida e aplaudida a advertência de Kant de que não se ensina filosofia, mas apenas a filosofar. Como se pode ensinar a filosofar? Popper nos ajuda a pensar nisso, especialmente em Conjecturas e Refutações, em que ele diz, taxativamente, que "os filósofos devem filosofar", ou seja, "devem tentar revolver problemas filosóficos, em vez de falar sobre a filosofia". É importante não nos esquecermos dessa advertência de Popper, na leitura que legitimamente fazemos dos filósofos. É a compreensão da tensão existente entre o filósofo e seu mundo, é a identificação dos "problemas filosóficos" que o mobilizam e a compreensão da natureza do esforço que desenvolve para resolvê-los que pode formar-nos para filosofar, para refletir, para produzir e fazer avançar o pensamento filosófico. Daí porque a tarefa de um professor de filosofia é, no meu modo de ver, essencialmente a de levar os alunos a apreenderem a filosofia pela sua prática, compreendendo-a a partir de sua gênese, ou seja, dos "problemas" que deram origem às filosofias, e de certa forma "simulando" a atividade filosófica em sala de aula, que deveria ser um autêntico "laboratório conceitual", como diz Manuel Maria CARRILHO em um interessante livro denominado Razão e Transmissão da Filosofia, da Imprensa Nacional, Portugal. Essa mesma preocupação pedagógica é, também, muito bem tratada por Bertrand RUSSELL, no seu conhecido livro Os Problemas da Filosofia, também publicado em Portugal pelo Editor Arménio Amado. Para Russell é absurdo pretender iniciar alguém na filosofia por meio da transmissão a ele de problemas filosóficos que um determinado autor pretendeu resolver. Isso retira da pretensa formação do aluno aquilo que é mais próprio e inerente à filosofia que é a crítica, o debate, a discussão das soluções que filósofos, por mais importantes que sejam estes, apresentaram para os problemas que julgaram filosoficamente relevantes.
Nessas idéias, quem sabe, Will, talvez estejam, pelo menos em germe, alguns princípios interessantes para repensarmos o que vimos fazendo, no dia-a-dia dos cursos que ministramos...









     

 
 
Como referenciar: "Entrevista II, com o filósofo Joel Pimentel de Ulhôa - Entrevista" em Só Filosofia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2024. Consultado em 22/11/2024 às 23:47. Disponível na Internet em http://sofilosofia.com.br/vi_entr.php?id=19